Míriam Leitão: No futuro, não acreditaremos
Se nos disserem daqui a algum tempo que no dia em que o Brasil contava 52 mil mortos por um vírus violento a prioridade do governo era proteger infratores do trânsito, nós tomaremos um susto. Somos testemunhas do inacreditável. Na última terça-feira, o governo mobilizou sua base parlamentar, agora engordada com o centrão, para aprovar a sua menina dos olhos: os motoristas terão mais chance de cometer infrações de trânsito, antes de chegar ao ponto de perder a habilitação. No dia seguinte, o secretário de Vigilância Sanitária, usou 184 palavras para comunicar uma notícia curta e dura: que a curva dos infectados e mortos ainda cresce no Brasil.
Naquela mesma quarta-feira, em que morreram 1.103 brasileiros pela covid-19, o presidente e seu filho e divulgador, conhecido pela alcunha de Carluxo, foram à Polícia Federal. Aquela que está investigando o presidente da suspeita de intervir nela mesma. Ao lado de um receptivo diretor-geral Rolando de Souza, o presidente se exibiu dando tiros com várias armas, o que pode ser conferido no vídeo postado nesse jornal pela competente Bela Megale. Quem olhar no futuro essa cena, e for informado do contexto do país naquele dia, se perguntará: que presidente é este? Teremos dificuldade de explicar.
No tempo de hoje vamos vivendo o insólito. Um ex-ministro da Educação, investigado por racismo e por ameaça às instituições democráticas, foi indicado para diretor executivo do Banco Mundial. A instituição passou os últimos anos atualizando seus valores para fugir exatamente do que o ministro leva na bagagem das suas convicções.
No futuro duvidaremos de nós quando relatarmos aos mais novos que tudo estava fora do lugar no mesmo momento. O ministro do Meio Ambiente é aliado de desmatadores, o presidente da Fundação Palmares ofende Zumbi dos Palmares, a ministra da Mulher acredita que mulheres devem se submeter aos maridos, o ministro das Relações Exteriores destrata países com os quais o Brasil tem relações e alimenta teorias conspiratórias sobre as organizações multilaterais, o Ministério da Saúde enfrenta duas demissões e uma longa interinidade no meio de uma pandemia, um militar chefia a Casa Civil, e o ministro da Justiça acha que o presidente é um profeta.
Será difícil explicar o contorcionismo dos últimos dias em torno do caso Queiroz. Sumido há muito tempo, ele foi encontrado na casa do advogado que defendia Flávio Bolsonaro e o próprio presidente. Frederick Wassef é realmente um fenômeno. Inicialmente ele negou que conhecesse seu próprio hóspede. Depois disse à “Veja” que escondeu Queiroz para proteger o presidente da República. O ex-assessor poderia ser morto e o presidente, responsabilizado. Quem no futuro não entender essa rocambolesca história não deve se culpar. Não será a única estranheza do caso. A Justiça do Rio deu ao filho mais velho do presidente o direito a foro por prerrogativa de função que ele já não exerce. Inventou a prerrogativa de ex. Um detalhe talvez comprometa mais ainda a verossimilhança dos eventos: o governo foi eleito dizendo que combateria a corrupção.
O brasileiro vive dois grandes tormentos: uma pandemia e a pior crise econômica. Nesse quadro o presidente propôs aos ministros “escancarar”. A verdade sobre a pandemia? Não. A necessidade de proteger a população? Não. As medidas para socorrer pessoas e empresas contra a crise econômica? Não. Ele propôs escancarar a liberação das armas.
Mais armas nas mãos das pessoas, e menos punição para os delitos de trânsito. Eis a solução para todos os nossos problemas, da covid-19 à recessão econômica.
Os desatinos diários, os berros, as palavras chulas, a falta de demonstração de sentimento em relação às vítimas da tragédia tudo se tornou tão rotineiro que o país foi se acostumando. Por isso, só daqui a muito tempo teremos dimensão da ignomínia vivida pelos brasileiros nesse triste momento da nossa história. Nos últimos dias o presidente não foi a qualquer manifestação antidemocrática, não ameaçou chamar as Forças Armadas contra o Supremo, não mandou jornalistas calarem a boca. Dizem que daqui para frente tudo vai ser diferente. Que ele vai se comportar para escapar dos inquéritos do Supremo e vencer a eleição para um segundo mandato presidencial. Contando, ninguém acredita.
(COM MARCELO LOUREIRO)
Míriam Leitão: A grande chance do saneamento
Novo marco abre espaço para corrigir o atraso no saneamento, mas investimentos também dependem de estabilidade política e respeito ao meio ambiente
Imagine, apenas imagine, que o Brasil tivesse água tratada chegando na casa de todos os brasileiros. Hoje uma população do tamanho da do Canadá não tem serviço de água no Brasil e, portanto, não pode seguir o primeiro protocolo para o combate à pandemia. Outros milhões têm um fornecimento intermitente. Imagine que o Brasil tivesse coleta e tratamento de esgoto. O país teria poupado milhares de vida nessa pandemia.
Nesse momento em que notícias boas são raras, é preciso comemorar o passo dado no saneamento. Ele não garante nada, esqueça os números sempre bilionários que aparecem na economia. Mas o fato é que o novo marco do saneamento estabeleceu datas. Daqui a 13 anos, ou 20, as empresas que prestam serviço terão que entregar a universalização. No meio do caminho haverá metas intermediárias. E a ANA, a agência das águas, será a reguladora-mor.
— Não tem país com esse potencial, acho que só a Índia, mas ela está muito atrasada. As grandes companhias, Suez, Eólia, Águas de Barcelona, não têm para onde ir. Todo mundo está de olho no Brasil. Hoje eu recebi um japonês no escritório. A primeira pergunta que fazem é: e se o novo prefeito não quiser ou o governador tirar o contrato. No novo marco fica mais difícil essa instabilidade. O Brasil é uma jabuticaba, tem 52 agências reguladoras, mas agora haverá uma coordenação federal. A ANA vai criar normas para as agências — diz Edison Carlos, presidente do Trata Brasil.
Hoje só 6% das empresas são privadas, o resto é estatal e 75% são estaduais. O Brasil já viu o suficiente para saber que não é porque a companhia é privada que é boa. Nem para achar que a empresa estatal é justa. Conhece a Cedae e a sua geosmina. Viu que a Odebrecht Ambiental teve que ser vendida, depois de escândalos. A subsidiária da Galvão também caiu na Lava-Jato. O que é importante é haver estímulo à competição, transparência, metas de desempenho, e data para que o Brasil saia da idade média em termos de saneamento.
O novo marco deve muito ao trabalho do senador Tasso Jereissatti, que vem há alguns anos tentando desfazer o cipoal de Medidas Provisórias que caducam ou projetos de lei que precisam ser negociados. O projeto final acabou tendo que fazer concessão para ser votado. Uma delas: as atuais empresas podem renovar os contratos por 30 anos. Só que terão que provar que conseguem chegar nas metas estabelecidas. Edison Carlos, que está nessa estrada há muito tempo, disse que nunca viu um ministro da Economia tão empenhado nesse assunto quanto Paulo Guedes. O primeiro movimento para sair da inércia em que estava o setor foi dado no governo Temer, mas agora é que se conseguiu aprovar.
— Nas regras atuais o prefeito já podia fazer licitação, mas é quase caso a caso. O prefeito precisa estar incomodado com a empresa operadora do município, chamar outra empresa para fazer uma análise, abrir processo de licitação. O setor privado nunca conseguiu ganhar escala. Niterói, Piracicaba, Limeira, Campos, Campo Grande, umas cidades em torno de Porto Alegre, estão com empresas privadas. Em geral, o prefeito não quer brigar com o governador, e a estatal vai ficando — diz Edison Carlos.
Agora haverá um incentivo maior para a competição, as regras estão mais claras, os municípios se reúnem em consórcios e a empresa concessionária terá que provar que tem meios de chegar aos seus objetivos. Se tudo der certo, será um estímulo econômico enorme.
— Movimenta as indústrias de plástico, aço, cimento, equipamentos, produto químico, engenharia, consultoria de arquitetura, tudo se movimenta na economia quando o país investe em saneamento — explica.
Quando se diz que o Brasil “tem potencial” nessa área é porque nosso atraso é tão grande que há muito a fazer. Isso pode ser uma das molas da retomada pós-pandemia. Mas o grande capital não financia país onde há incerteza regulatória, agora já há um marco. Não é só isso. É preciso ter estabilidade política. E pelas regras de conformidade muitos fundos só investem em países que respeitam o meio ambiente.
Imagina um país em que o presidente ameaça a suprema corte e dá avisos enigmáticos de que “está chegando a hora”. Imagina um país em que o ministro do Meio Ambiente propõe aproveitar a pandemia para driblar a lei ambiental. Foi esse recado que foi enviado essa semana às embaixadas pelos fundos de investimento. Um país só pode ser moderno por inteiro. Não existe progresso pela metade.
Míriam Leitão: A desigualdade piora na pandemia
Ministro Marco Aurélio diz que há vários caminhos na Constituição para diminuir os gastos com servidores sem ter reduzir salários
O ministro Marco Aurélio Mello disse que a despesa com os servidores pode ser reduzida, ainda que o Supremo tenha decidido que são irredutíveis os salários dos funcionários públicos da União, Distrito Federal, estados e municípios. No mesmo dia dessa decisão, que protege um grupo profissional, o IBGE divulgou que a renda do brasileiro caiu 18% em maio, e que, dos afastados do trabalho, quase dez milhões passaram a não ter renda alguma. Desses, 33% são empregadas domésticas sem carteira. São os retratos do país.
O Brasil sabe como construir desigualdades e faz isso na saúde e na doença, na prosperidade e na crise. Agora, por exemplo, alguns, como eu, conseguem trabalhar de casa porque têm boa internet e bons equipamentos. Os de maior escolaridade, avisa o IBGE, são a maioria entre os que conseguiram continuar produzindo de casa.
O ministro Marco Aurélio explicou que a Constituição estabelece a irredutibilidade dos salários dos servidores, mas não o de trabalhadores do setor privado.
— É bom pensar nisso para uma futura emenda — disse.
O tratamento é desigual, afinal, o Brasil vive uma pandemia, um colapso da arrecadação que devasta as finanças de estados e de municípios, e o gestor público pode cortar tudo, menos o salário do servidor. Imagine uma cidade sem recursos que tenha que, em vez de comprar remédio para um hospital, manter o mesmo rendimento para o servidor num país que empobreceu?
O que o ministro argumenta é que a própria Constituição aponta um caminho:
— O rol de medidas, para reduzir as despesas com pessoal, contido na Constituição, é exaustivo. Está no artigo 169. Permite a redução dos gastos de pessoal, primeiro afastando 20% dos detentores de cargos de confiança, depois exonerando os servidores não estáveis e por último até os estáveis, desde que pagando-se uma indenização de um mês por ano trabalhado. Mas tem que conciliar todo ajuste à irredutibilidade dos salários dos servidores — disse.
Nesse artigo a Constituição estabelece que os salários dos servidores de qualquer esfera administrativa do setor público não pode exceder o limite estabelecido por lei complementar. E faz a lista desses ajustes que podem ser feitos. Nada impede agora que o governo federal diante da conhecida queda de arrecadação reduza em 20% os cargos comissionados. Mas, pelo visto, na negociação com o centrão para defender seu mandato, o presidente está fazendo o caminho oposto. Aumentando as nomeações de apadrinhados.
Os efeitos econômicos do coronavírus no mercado de trabalho são como um bombardeio sobre os postos de trabalho. Os servidores que têm estabilidade já estão num abrigo antiaéreo. Na outra ponta, estão 19 milhões de trabalhadores que foram afastados e, desses, quase 10 milhões ficaram sem remuneração alguma. Somando-se os brasileiros que gostariam de procurar trabalho mas não estão procurando por causa da pandemia e os desempregados, há 36,4 milhões de brasileiros “pressionando o mercado de trabalho”, como disse o IBGE.
E, ao contrário do que o presidente Bolsonaro argumenta, isso não é provocado pelas decisões de isolamento, mas sim pelo vírus em si. As medidas, agora cada vez mais neglicenciadas, são decorrentes da necessidade de proteger a vida. Se o governo tivesse sido eficiente nas linhas de crédito para as empresas micro, pequenas e médias, teria reduzido em muito a crise atual. Se tivesse organizado com competência a distribuição do auxílio emergencial, teria evitado a maior parte das filas que certamente aumentaram as taxas de contaminação. E, principalmente, se o presidente não tivesse passado tantos sinais contraditórios, não tivesse negado a ciência, mas agido como coordenador, o peso da pandemia e da crise econômica teriam sido menores.
Em todas as áreas o que se vê no Brasil durante a pandemia é o aprofundamento das desigualdades. A falta da cobertura de banda larga no país, a falta de computadores nos lares dos mais pobres, a falta de celulares afastam pessoas do mercado e tiram a capacidade de aprendizado dos estudantes. E pensar que quando foi criado o FUST era para ser, como o nome diz, um fundo para universalizar os serviços de telecomunicação. O dinheiro ficou parado no fundo, no meio de muito debate sobre o seu destino, e agora o governo Bolsonaro propôs sua extinção.
Míriam Leitão: Pacote de ruído assusta o capital
O Brasil tem sido visto como um pacote de problemas pelos investidores. Há baixa perspectiva de crescimento, alta acelerada da dívida, ruídos institucionais e má condução da pandemia. É o que explica Alberto Ramos, economista-chefe para América Latina do banco americano Goldman Sachs. Ele também avalia como tímidas as reformas aprovadas nos últimos quatro anos, como a da Previdência, porque ela não incluiu estados e municípios e manteve privilégios para algumas categorias.
Ramos é português de nascimento e está na Goldman Sachs desde 2003. Antes disso, foi economista sênior do FMI. É PhD em Chicago, onde foi professor. Tinha tudo para achar que um governo que chegou ao poder defendendo um programa liberal estaria no caminho certo. Ele é defensor de um programa forte de reformas e acha que elas serão mais necessárias depois da pandemia, porque a projeção do FMI, divulgada ontem, é de que a dívida brasileira chegará a 100% do PIB.
— O Brasil está sofrendo o que todo mundo está sofrendo na pandemia, mas, além disso, tem ruídos políticos e institucionais que persistem e podem levar à perda de governabilidade. São coisas que não ajudam, com risco fiscal elevado, e a economia sem crescimento e com desemprego alto — alerta.
O economista faz uma lista do que considera como ruídos provocados pelo governo, que, em sua visão, trabalha com uma “polarização muito grande”, o que não ajuda na recuperação da crise.
— Tem ruído entre governo e Congresso, entre governo e STF, entre governo e imprensa, entre o governo e o próprio governo, da equipe econômica do Paulo Guedes com assessores do presidente e outros ministros. Houve as saídas dos ministros da Educação, da Justiça, de dois ministros da Saúde em plena pandemia. Há fricção entre o governo federal e governadores — afirmou.
Este ano, os investidores estrangeiros já tiraram R$ 73 bilhões da bolsa brasileira e o risco-país subiu acima da média de outros países emergentes. A recuperação do índice Ibovespa, que saltou da casa dos 65 mil para os 95 mil pontos, aconteceu principalmente pela entrada do investidor pessoa física brasileiro, que tem fugido da baixa rentabilidade da renda fixa. Muitos são pequenos investidores tendo a primeira experiência. A grande dúvida, para quem faz projeções de longo prazo no país, é se o Banco Central vai conseguir manter a taxa Selic em patamares baixos, caso o governo e o Congresso não consigam transmitir confiança de que vão conter a escalada da dívida.
— O Brasil é como uma família que já estava no cheque especial e sofreu um acidente de carro. Vai ter que se endividar mais para consertar o veículo. E com isso pode ter que pagar juros mais caros no cartão. No pior cenário, pode até ficar sem o cartão — disse.
A imagem do cartão serve para explicar a situação fiscal do Brasil. Já não era boa antes da pandemia. Agora, como em todos os países, o gasto está dando um salto pela crise da saúde. Na visão de Alberto Ramos, o aumento da “fricção” institucional diminui a chance de se obter consensos políticos para a futura aprovação de reformas.
De Nova Iorque, onde mora e trabalha, o economista não acredita em risco de ruptura institucional no Brasil. Entende que há “excessos de linguagem” por parte de alguns atores políticos, mas faz um alerta. Continuar com esses ruídos não seria bom para a economia, porque haveria forte aumento do risco, disparada do dólar e fuga de capitais. Em outras palavras, isso aprofundaria a recessão:
— Seria um ambiente que poderia levar à retração do investimento, e com isso à destruição do potencial de crescimento da economia, pela instabilidade e aumento do risco. Isso confunde a cabeça do investidor. É ruído desnecessário e de custo econômico elevado.
Embora haja o temor de uma segunda onda do coronavírus nos Estados Unidos, a recuperação da economia americana tem sido melhor do que o esperado, na visão de Ramos. Na América Latina, o cenário é pitoresco: há dois líderes conservadores, Bolsonaro e Piñera, promovendo aumento de gastos, um populista de esquerda no México cortando despesas, e o FMI na Argentina aplaudindo quebras de contratos e permitindo reestruturação da dívida.
Míriam Leitão: A escalada do vírus entre nós
O Brasil chegou a um milhão de infectados disputando o campeonato de pior país do mundo no combate a pandemia
Um milhão é um número assustador e sabemos que ele é apenas o que está registrado. O Brasil superou esse número de infectados pelo novo coronavírus sem uma luz no fim do túnel. Foram pouco mais de três meses de intensidade vertiginosa, de erros colossais, de tumulto extra produzido pelo próprio presidente da República. O mundo inteiro está aprendendo com a pandemia, alguns países mais rapidamente do que outros.
Para se ter uma ideia da velocidade, e de como a pandemia nos pegou despreparados, um integrante da equipe econômica me disse no começo de março, quando o Brasil tinha quatro infectados, que o país seria pouco afetado. A tese era que o Brasil é fechado, do ponto de vista econômico e comercial. É, de fato, país de muitas barreiras ao comércio e pouco integrado às cadeias globais de produção. Ainda assim tem uma intensa relação com o mundo, muitos voos internacionais, e tem na China o seu maior parceiro comercial.
Talvez baseado nesse diagnóstico, o ministro Paulo Guedes chegou a falar numa entrevista à revista “Veja”, no dia 13 de março, quatro dias antes da primeira morte, que “com R$ 3, R$ 4, R$ 5 bilhões a gente aniquila o coronavírus. Porque já existe bastante verba na saúde, o que precisaríamos seria de um extra. Mas sem espaço fiscal não dá.” Na semana seguinte, no dia 17, o governo pediu ao Congresso que reconhecesse o estado de calamidade pública. O pedido foi publicado no Diário Oficial do dia 18 e aprovado no Senado no dia 20. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, propôs um “orçamento de guerra”.
O país que não tinha espaço fiscal, três meses depois está com a projeção oficial de déficit de R$ 800 bilhões em 2020. Tudo se precipitou. Os especialistas em políticas sociais alertaram que era preciso criar um programa de renda de emergência, e economistas que sempre defenderam o controle do gasto público disseram que era hora de ampliar, e muito, as despesas. O ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, numa entrevista que me concedeu no dia 16, havia dito que o governo deveria decretar — como o fez no dia seguinte — calamidade, como o previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal.
O mundo inteiro foi na tentativa e erro diante desse inimigo desconhecido, invisível, contagioso. Alguns países erraram mais. Nós disputamos o campeonato do pior do mundo, infelizmente. Esse é o preço que o país está pagando pelo negacionismo do presidente.
Bolsonaro fez o que pôde para tornar a vida do país mais difícil na pandemia. Está no terceiro ministro da Saúde desde que ela chegou ao país. Entrou em rota de colisão com o então ministro da Justiça Sergio Moro, que saiu atirando. Os tiros viraram um inquérito no STF em que o presidente é investigado por tentar interferir na Polícia Federal. Participou de manifestações que defenderam o fechamento do Congresso, do Supremo, e um novo AI-5. Uma dessas em frente ao Exército em Brasília, que virou outro inquérito. Fez uma calamitosa reunião ministerial em abril, quando o país já tinha quase três mil mortos, e ele já havia demitido o primeiro ministro da Saúde. Nela, ele não mostra qualquer preocupação com a pandemia, mas sim em armar a população para a luta contra as medidas restritivas impostas por governadores. Criticou todas as regras de prevenção, exibiu-se sem máscara, subestimou os riscos da doença, tentou manipular os dados, estimulou a invasão de hospitais e na última quinta-feira disse que o número real de mortes é 40% menor, baseado em nenhuma evidência.
A revista “Economist” trouxe ontem uma reportagem dizendo que o Reino Unido tem o governo errado para esta doença. Entendo o que quer dizer. Governo faz toda a diferença. Um estudo da Economist Inteligence Unit, sobre os países da OCDE, fez um ranking do desempenho na pandemia. A Alemanha está entre os melhores países, o Reino Unido, entre os piores.
O mundo ainda não sabe o que fazer. Ontem, a Apple anunciou que voltará a fechar 11 lojas em quatro estados americanos. A China teme uma segunda onda, com o aparecimento da doença em Pequim. No Brasil, os governadores começaram a abrir a economia, com maior ou menor grau de precipitação. Alguns já recuam. O país está numa enorme crise institucional, como se não bastasse ter um milhão de infectados por um vírus que a humanidade ainda não sabe como vencer.
Míriam Leitão: Todos os medos do presidente
O nome do que acontecia no gabinete do senador Flávio Bolsonaro é desvio de dinheiro público. Rachadinha é apelido
Ontem não foi um “grande dia” para Jair Bolsonaro, no sentido que ele costuma dar à expressão, mas foi um dia longo e cheio de eventos. O presidente amanheceu sabendo que seu velho amigo, e colecionador de segredos, Fabrício Queiroz, tinha sido preso na casa do advogado de Flávio Bolsonaro, e que também defende o presidente em outros casos, Frederick Wassef. O STF, com votação consagradora, considerou constitucional o inquérito das fake news que tem se aproximado de apoiadores e pessoas do círculo presidencial. Na confirmação da constitucionalidade do inquérito foram lançadas duríssimas mensagens ao presidente. Bolsonaro apareceu de tarde, tenso e estático, ao lado de Abraham Weintraub, um dos investigados. O presidente tirou-o do cargo de ministro a contragosto. Apesar do seu péssimo desempenho na Educação, o presidente o manteria se pudesse.
Wassef entra e sai do Palácio Alvorada, em fins de semana e fora de horário de trabalho. Entra e sai do Palácio do Planalto. Na quarta-feira mesmo esteve lá na posse do novo ministro da Comunicação. É pessoa próxima da família. E justamente Wassef hospedava Fabrício Queiroz, num sítio. Onde? Em Atibaia. Surreal.
Os Bolsonaros temem que Queiroz fale porque ele sabe muito. Ele é homem treinado a esconder informação. Contudo, está doente, e sempre temeu que suas filhas fossem atingidas. Tanto que foi a única pergunta que fez. A mulher Márcia Aguiar está sendo procurada.
O nome “rachadinha” reduz o peso do crime. O deputado Flávio Bolsonaro tinha mais de uma dezena de funcionários fantasmas no seu gabinete. Todos eles entregavam parte do salário a Queiroz. Entre os fantasmas, parentes da ex-mulher de Bolsonaro que moravam em Resende. A mulher do próprio Queiroz, Márcia. A filha dele estava lotada no gabinete do então deputado Jair Bolsonaro, mesmo sendo personal trainer no Rio. A ex-mulher e a mãe do miliciano Adriano da Nóbrega também recebiam sem trabalhar no gabinete de Flávio.
Queiroz comunicou à ex-mulher de Adriano, Danielle Mendonça, que ela seria exonerada porque Flávio “ficaria muito exposto na campanha”. O miliciano Adriano reclamou com a ex, porque parte do dinheiro ia para ele. Tudo isso já foi investigado. Essa fantasmagórica equipe fez 483 depósitos na conta do ex-assessor, preso ontem, no valor total de R$ 2 milhões em um ano. O nome disso é desvio de dinheiro público. Rachadinha é apelido.
De noite, na live, o presidente disse que a prisão foi “espetaculosa” e que Queiroz poderia ter sido convocado que compareceria. E que estava no sítio porque era perto do hospital, em São Paulo, onde ele se trata de câncer. Recentemente, Flávio também defendeu o assessor que demitiu no auge da campanha de 2018, dizendo que Queiroz era correto e trabalhador, e que “dava o sangue” pelo que acreditava. Continuam ligados, pelo visto.
No Supremo, o inquérito das fake news prosseguirá agora muito mais forte depois do julgamento sobre a sua legalidade. Dez dos 11 ministros consideraram que sim, ele é constitucional, e deram razões de sobra para a investigação sobre os ataques ao Supremo Tribunal Federal. Houve nas mensagens mais do que ódio. Houve ameaças de morte contra ministros, de estupro de suas filhas. Na deep web foi encontrado um plano de explosão do Supremo com croqui do prédio. Dias Toffoli lembrou a história do ministro Hans Kelsen, da Suprema Corte da Áustria, que, atacado por conservadores extremistas, no clima da ascensão do nazismo na região, acabou pedindo para sair do tribunal. “Ninguém defendeu a Corte Constitucional. Ninguém defendeu a democracia. E eis que a pálida e escura noite do totalitarismo destruiu a civilização e seus valores”, disse Toffoli. O ministro Celso de Mello definiu como “insólita ameaça” e “gravíssima transgressão” à Constituição o descumprimento de ordem judicial, “por parte de qualquer autoridade, inclusive o presidente”. Todos disseram que o STF é o guardião da Constituição, a “última palavra constitucional”. Recado para Bolsonaro. “Essa corte tem a exata noção histórica do momento”, disse Celso.
Num dia de más notícias para o governo, tentou-se desviar a atenção com a demissão de Weintraub. Por seu péssimo trabalho, Weintraub recebeu uma promoção. Vai ser diretor do Banco Mundial na vaga que o Brasil ocupa. De noite, Bolsonaro teve tempo de mais uma fake news. Disse que 40% das mortes registradas como Covid-19 não foram de Covid.
Míriam Leitão: O pouco efeito dos juros baixos
O Banco Central cortou a Selic, dentro do esperado, e rompeu mais uma vez o piso histórico. Mas qual o efeito disso na economia? Ajudará a amenizar o custo da dívida, isso representa em torno de R$ 20 bilhões a menos de pagamento de juros. Mas o grande resultado que se busca com a queda da taxa básica é o estímulo à atividade econômica. Desde a última reunião do Copom, a previsão do PIB de 2020 saiu de uma recessão leve (-0,9%) para um tombo histórico (-6,51%) no Boletim Focus. E certamente a projeção vai piorar nas próximas semanas. Menos juros e mais liquidez oferecida aos bancos deveriam atenuar a recessão, mas até agora nada garante esse efeito. Primeiro, porque a taxa menor não tem chegado na ponta e as empresas micro, pequenas e médias não têm tido acesso às linhas que o governo criou no contexto da pandemia.
Os dados de abril vislumbram a queda livre da economia: produção industrial, vendas do varejo e serviços tiveram quedas entre 11% e 18% em relação a março. O desemprego oculto, segundo o IBGE, pode estar atingindo 17 milhões de brasileiros que não procuram emprego porque acham que não vão encontrar. Além dos que já estão desempregados. Tudo é absolutamente incerto na economia. A bolsa e o dólar estão numa gangorra. Na última reunião do Copom, o dólar estava subindo. No dia 14 de maio chegou a R$ 5,93, em 10 de junho havia caído para R$ 4,88 e ontem estava em R$ 5,24. Os ativos têm oscilado por fatores externos. Refletem a esperança de recuperação mais rápida de economias centrais, o medo da segunda onda, a expectativa de um remédio ou uma vacina. O ruído político, provocado por um governo que não sabe governar, mas adora criar confusão, é grande. Quando é levado em conta, atrapalha ainda mais a economia.
Diante dessa incerteza provocada pela pandemia, e pela incompetência do governo, reduzir a taxa de juros para níveis nunca antes vistos não vai atenuar a queda da atividade. Mas é um movimento natural diante de uma economia que está em deflação e na qual se fala a inédita palavra “depressão”. A queda dos juros tem a vantagem de tornar mais baixo o custo de uma dívida que está subindo. Essa queda da Selic começou no governo Temer, que a pegou em 14,25% e a deixou em 6,5%. No governo Bolsonaro, continuaram os cortes e, com a crise, eles se aprofundaram até os 2,25% decididos ontem. Cada ponto a menos significa teoricamente um gasto menor de R$ 30 bilhões. Mas isso se na equação tudo o mais permanecer constante. A dívida bruta tem subido, a taxa longa nem sempre tem o mesmo movimento. Além disso, como parte das reservas está investida em papel do Tesouro americano, que está rendendo menos, o custo da dívida tem se mantido constante nos dois últimos anos, em torno de R$ 380 bilhões líquidos, segundo dados do Banco Central.
O Copom disse que o corte dos juros até agora “parece compatível com os impactos econômicos da pandemia”. Apesar de ter indicado na última reunião que esse seria o corte que encerraria o atual ciclo de relaxamento monetário, no comunicado após a decisão de ontem houve uma abertura para uma nova queda, dependendo da análise que fizerem dos impactos da Covid-19 e do efeito das medidas de crédito e de recomposição da renda.
Na verdade, novas reduções dos juros não ajudam muito. O Banco Central participou há três meses do anúncio no Palácio do Planalto de medidas de socorro a empresas, como a linha para cobrir o pagamento da folha, que nunca virou realidade. Até agora, três meses depois da primeira morte, o ministro Paulo Guedes disse ontem que o governo está finalizando o programa emergencial para minimizar os efeitos da pandemia. Várias das medidas anunciadas não se tornaram realidade.
Guedes, ao falar do que ele chama de segunda onda, a da crise econômica, disse que é consequência de termos “paralisado parcialmente a nossa economia” e que isso provocou “uma recessão que pode se transformar em uma depressão se não lutarmos adequadamente”.
Guedes acha que a luta adequada é a retomada das reformas. O momento, contudo, ainda é das medidas emergenciais para evitar a morte serial de empresas. E isso se faz com projetos que não sejam apenas peças de propaganda governamental, mas cheguem aos cofres das empresas, principalmente as micro, pequenas e médias.
Míriam Leitão: Futuro do ajuste no pântano político
Saída de Mansueto Almeida é mais uma perda num projeto econômico que periga pelas fraquezas e inconsistências do governo Bolsonaro
Mansueto Almeida é um desfalque grande para a equipe econômica, em um momento que será necessário ter firmeza na questão fiscal, capacidade de diálogo com o Congresso e os governadores, conhecimento da máquina e destreza técnica em contas públicas. O economista é um quadro do setor público e era o único, dentro da equipe, que já estava no cargo desde o governo anterior. Por característica pessoal e por essa história, sempre teve mais independência para dizer o que fosse necessário internamente.
Bruno Funchal, que vai substituí-lo, vem da melhor experiência fiscal estadual que é a do Espírito Santo, o único estado com a nota de crédito A. Funchal substituiu Ana Paula Vescovi quando ela deixou o estado para ser secretária do Tesouro no começo do governo Temer. Depois, ela virou secretária-executiva do antigo Ministério da Fazenda, e Mansueto foi ser secretário do Tesouro.
Mansueto preparou sua saída para não “causar”. Foi dizendo internamente e preparando o movimento. Ele tem dito que o fiador das contas públicas não é ele, mas o ministro Paulo Guedes. Não está sendo insincero, porque é isso que realmente acredita. Mas Guedes tem dado sinais desde o começo do governo de que consegue adaptar seus projetos ao que o presidente quer. Usa sempre o argumento de que Jair Bolsonaro é que foi eleito. Se todos os ministros da Fazenda usassem o mesmo argumento teria havido muito mais interferência política no Ministério. Uma forma de blindar a Economia é exatamente não ceder à lógica política. Isso é diferente de ter diálogo com o Congresso. Há momentos em que o ministro dessa pasta tem que ser o doutor “não”. O presidente Jair Bolsonaro nunca teve convicção fiscalista, nem mesmo liberal. E agora que está fazendo acordo com o centrão cresceram as ameaças contra o projeto de austeridade e não interferência política nas questões fiscais e econômicas.
Este ano não é o momento de austeridade no sentido de buscar uma meta fiscal, mas sempre será necessário procurar a eficiência da despesa pública, a transparência de cada conta, e o projeto de médio e longo prazos para inverter a curva da dívida que está subindo exponencialmente. O sinal dado com a entrega da presidência do Banco do Nordeste a um indicado pelo centrão é muito ruim. O nome escolhido durou 24 horas. Isso significa que o controle que o Planalto diz que tem sobre a qualidade das escolhas não resiste ao primeiro teste de consistência. É sempre um risco a entrega de bancos públicos no balcão das negociações políticas.
O país terá este ano um déficit jamais visto. De mais de R$ 700 bilhões. A dívida que estava começando a ser reduzida dará um salto para 95% do PIB ou mais. O presidente luta contra seu enfraquecimento político, voltando-se para o grupo de partidos ao qual sempre pertenceu, atrás de um total de 200 votos. Isso é um pouco mais do que o necessário para barrar um processo de impeachment, mas não o suficiente para aprovar projetos, muito menos mudanças constitucionais. Pela trilha que escolheu, Bolsonaro continuará fazendo provocações — como a da semana passada, ao mandar uma MP inconstitucional ao Congresso e vê-la devolvida — em vez de negociar um verdadeiro entendimento institucional.
Nesse quadro tormentoso, o ministro Paulo Guedes tentará retomar a mesma agenda de antes, apesar de não ter conseguido entregar ao Congresso as propostas de reformas administrativa e tributária. Nesse quadro, qual a chance de prosperar um bom, consistente e coerente plano pós-pandemia? Muito pequena. Um detalhe que não passa despercebido é a frequência com que o presidente da Caixa, Pedro Guimarães, o homem das 15 armas e do litro de cloroquina, aparece em transmissão do presidente para fazer coisas como tomar um copo de leite ou referendar o uso político dos programas públicos. Guimarães é a ponta mais visível da politização da equipe econômica. Mansueto era a parte mais forte do apuro técnico da equipe.
A mudança do critério de transferência de recursos aos estados foi feita por ordem direta do presidente Bolsonaro, que queria reduzir ao máximo o socorro a São Paulo. Se fosse pelo valor da arrecadação de ICMS, o governo paulista receberia mais. Por isso, foi necessário inventar uma fórmula mais complexa. Concessões da equipe e a distribuição de cargos ao centrão tornarão mais difícil o projeto de ajuste quando ele for necessário.
Míriam Leitão: O impossível não acontece
Um consultor e uma alta autoridade dizem que o país não aguentará mais dois anos e meio deste grau de tensão provocado por Bolsonaro
‘Em 40 anos de consultoria, o que eu aprendi é que o impossível não acontece.’ Foi essa a resposta que me deu um experiente consultor quando perguntei se o governo Bolsonaro concluiria seu mandato. Isso foi em 7 de maio. No mesmo dia, ele previu que o Brasil seria o segundo país com mais mortes. Parecia exagerado, afinal era o oitavo. Na sexta-feira, virou o segundo. “É impossível mais dois anos e meio dessa tragédia que nós estamos vivendo. Com esse grau de dissonância, ruído, complicação, briga. Isso não acontece”, disse ele. Esse é o grande assunto entre cientistas políticos, economistas, cenaristas em geral. Para permanecer, Bolsonaro teria que mudar. A nota assinada pelo presidente, o vice e o ministro da Defesa na noite de sexta-feira tem como alvos o ministro Luiz Fux e TSE, mas há uma ameaça implícita a qualquer voz divergente.
A hipótese de Bolsonaro mudar, distensionar o país e, assim, conseguir concluir o mandato é improvável. Bolsonaro não vai mudar. Por incapacidade mesmo. Ele será sempre criador de atritos constantes. Ele não sabe governar, por isso precisa dos confrontos. As brigas serão com pessoas, grupos sociais ou instituições. Escolherá aleatoriamente os “inimigos” para hostilizar. Quando faltar adversários, ele vai atirar para dentro do seu próprio governo.
Fiz a mesma pergunta que havia feito ao consultor — se o presidente terminaria o mandato — a uma alta autoridade da República, fora do Executivo. A resposta que eu ouvi:
— Com ele ignorando os conselhos que recebe, com essa estrutura que Bolsonaro criou, o Brasil explode antes de 2022. Do ponto de vista social e econômico. Eu tenho certeza. Como é que resolve? Dentro da democracia.
A democracia tem muitos caminhos. O afastamento de um presidente é remédio extremo, usado já duas vezes desde o começo do atual período da República. Bolsonaro pensa estar se blindando de duas formas. Usando as Forças Armadas como manobra dissuasória e comprando o centrão com cargos para ter votos no parlamento. Para evitar um impeachment precisa de apenas 171 votos. Parece pouco, mas quando um governo desmonta, nada há que o sustente. O centrão estava no governo Dilma. Esse grupo de partidos vai para onde soprar o vento. Distribuir cargos não é suficiente.
No horizonte dos riscos ao presidente está agora o Tribunal Superior Eleitoral onde tramitam oito processos de cassação da chapa. Os dois primeiros foram suspensos por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes e tratam de um ataque virtual a um site de mulheres contra Bolsonaro durante a campanha. Dos restantes, quatro tratam do assunto mais delicado: a contratação dos serviços de disparo em massa de mensagens pelo WhatsApp.
As investigações do inquérito das fake news estão caminhando na mesma direção. É difícil saber a evolução desses processos, mas a nota divulgada pelo presidente, pelo vice Hamilton Mourão e pelo ministro da Defesa é grave porque contém uma ameaça, ao dizer que as Forças Armadas não cumprem ordens absurdas, como a tomada de poder, mas também “não aceitam tentativas de tomada de Poder por outro Poder da República, ao arrepio das leis, ou por conta de julgamentos políticos”. O núcleo militar do governo está convencido de que o Judiciário está interferindo em áreas do Executivo. Portanto, isso é uma ameaça. E é um aviso prévio ao TSE que só aceitará resultado favorável. Se por acaso houver um processo de impeachment eles farão as mesmas ameaças. No Congresso, o julgamento é político.
O ministro Luiz Eduardo Ramos disse em entrevista à revista “Veja” que é “ultrajante e ofensivo” para as Forças Armadas dizer que pode haver um golpe militar no Brasil. Segundo ele, o presidente jamais falou em golpe.
Mesmo? O presidente vai a manifestações com faixas pedindo intervenção militar, fechamento do Congresso e do Supremo. Em uma delas, disse que as Forças Armadas estavam com eles, os manifestantes. Ministros de origem militar fazem constantes insinuações intimidatórias. O próprio Ramos disse na entrevista: “Não estiquem a corda.”
É impossível manter o país por mais dois anos e meio neste grau de tensão, com um presidente como Bolsonaro que estimula o conflito, ataca pessoas ou instituições, ameaça a democracia, e põe em risco o pacto civilizatório que o Brasil penosamente construiu. Isso não acontece.
Míriam Leitão: Biruta da bolsa e o vento da economia
Queda das bolsas americanas ontem mostra que os mercados devem viver momentos de volatilidade, apesar das últimas semanas de recuperação
Os mercados ontem derreteram. As bolsas americanas tiveram a maior queda diária em três meses, e os papéis das maiores empresas brasileiras fecharam em queda de 8,7% por lá. Durante semanas, o movimento foi o oposto, de forte recuperação. Na quarta-feira, as bolsas nos EUA haviam zerado as perdas com a crise. No Brasil, o Ibovespa subiu 48% desde o pior momento, mas ainda está 26% abaixo do pico registrado em janeiro. Hoje, o índice deve abrir em queda, após o feriado, para refletir o movimento no mundo do mercado.
Mesmo com a queda de ontem, o fato é que os mercados parecem meio descolados da realidade. Houve momentos nos últimos dias em que a bolsa subia no Brasil, o dólar caía, enquanto o país vivia a escalada das mortes e o aprofundamento da crise política. No mundo inteiro as projeções são de forte recessão em 2020. Então por que houve essa recuperação das bolsas? Os investidores explicam que muita coisa mudou desde o início da pandemia, atenuando os temores iniciais.
— De uma forma geral, a recessão está menos intensa do que se imaginava. Houve suporte grande dos governos e um aumento de liquidez nunca visto pelos bancos centrais. Além disso, hoje se tem mais informações sobre o vírus. Então, em uma ponta, houve diminuição do risco, e em outra, o “seguro pelo sinistro” ficou maior, pela atuação dos BCs — resume o economista-chefe da Mauá Capital, Alexandre de Ázara.
O economista Felipe de Faria Viana, estrategista-chefe da Valor Investimentos, entende que houve um exagero inicial dos mercados. Olhando para a bolsa brasileira, ele explica que o índice Ibovespa tem um peso muito grande de empresas exportadoras, como a Vale, que se beneficiam da desvalorização do real, e de outras companhias grandes que mantêm acesso ao crédito mesmo nos piores momentos, o que não acontece com a micro, pequenas e médias empresas.
— Parte do problema da crise foi absorvida pelas políticas fiscal e monetária. Nos EUA, as famílias de baixa renda receberam cheques mensais de US$ 1,2 mil do governo. Houve muito estímulo. Aqui no Brasil a composição do índice Ibovespa em alguns momentos faz com que ele se descole da economia real — explicou.
Os gráficos e dados mostram que as bolsas americanas tiveram uma recuperação em “V”, ou seja, com uma queda forte e uma volta rápida. O índice Nasdaq, com papéis de empresas de tecnologia, não só recuperou a queda como bateu novo recorde. A redução do desemprego nos EUA em maio animou os investidores, após a forte alta no mês de abril. A taxa, que havia disparado de 4,4% para 14,7%, foi para 13,3%. E havia projeções de que poderia passar dos 20%.
— Na China, onde a pandemia começou, as vendas do varejo, a produção industrial e as pesquisas de PMIs de serviço e manufaturas vieram melhores do que o esperado — acrescenta Ázara.
No Brasil, no pior momento, no final de março, a bolsa caiu a 63 mil pontos e voltou para a casa dos 97 mil esta semana, com uma pequena queda nos últimos dois pregões. O dólar, que quase rompeu a barreira de R$ 6,00, caiu para R$ 4,97. Os investidores estrangeiros voltaram a comprar ações de empresas brasileiras em junho, com saldo positivo de R$ 3,17 bilhões no mês até o dia 10. Tudo isso, no entanto, ainda é uma recuperação parcial. No acumulado do ano, há saída de R$ 73 bi de investidores estrangeiros da bolsa, em janeiro o Ibovespa chegou a 119 mil pontos e o dólar era cotado a R$ 4,03.
A péssima atuação de Bolsonaro no combate à pandemia e o agravamento da crise política enfraqueceram o governo. Aos olhos do investidor, isso significa que a agenda de ajuste fiscal perderá força. Na semana que vem, os mercados financeiros estarão atentos à decisão do Copom. Com a deflação registrada em maio, o índice de preços em 12 meses caiu para 1,88%, muito abaixo do centro da meta de 4%. São grandes as apostas para um novo corte na Selic, em 0,75 ponto, que colocaria a taxa básica de juros em 2,25%.
Os ativos permanecerão voláteis este ano, porque há muitos fatores de instabilidade, riscos de uma segunda onda, o rigor da maior crise econômica da história recente no mundo e o coronavírus ainda fora do controle. O Brasil tem também seu tormento político.
Míriam Leitão: Intervenção em universidades
O governo Bolsonaro amanheceu ontem atentando contra mais um princípio constitucional: a autonomia das universidades federais. Isso é uma constante no tempo doloroso que vivemos. É certo que, a cada dia, ele tentará de alguma forma enfraquecer alguma instituição ou minar algum processo democrático. O absurdo de ontem, logo cedo, foi a Medida Provisória que dá a Abraham Weintraub o direito de nomear interventores para as universidades cujos reitores tiverem concluído seus mandatos no período do coronavírus. Bolsonaro e Weintraub estão usando a pandemia para intervir nas universidades.
O Ministério explicou que a MP está baseada na lei que estabeleceu medidas “para o enfrentamento de emergência de saúde pública”. O presidente desdenha da pandemia, sabota todos os esforços de saúde pública e defende que nenhuma medida de precaução deveria ser adotada. Porém, usa a lei que respalda o governo na tomada de decisões na área da saúde para suprimir o processo de escolha da lista tríplice para reitores universitários. Normalmente é feita uma longa consulta na comunidade acadêmica, que inclui alunos, professores e funcionários. A partir daí forma-se uma lista tríplice de eleitos que é levada ao presidente da República.
Desde o primeiro dia deste governo a educação tem sido alvo de ataques. O objetivo é destruir. E isso é feito através da escolha de néscios para o cargo de ministro. Foram dois. O primeiro era até inofensivo perto desse que chegou ao cargo achando que estava numa missão de demolição, inclusive da língua portuguesa. A educação é o assunto menos relevante para ele, como mostrou naquela reunião ministerial de 22 de abril, em que nada falou sobre as questões da sua pasta no meio da pandemia. Dedicou o seu tempo a uma confusa catarse, em que se disse perseguido, alegou que tem se “ferrado”, defendeu a destruição de Brasília, disse que odeia a definição de “povos indígenas” e pediu a prisão dos ministros do Supremo. Essa fala transtornada deveria ter sido suficiente para ele perder o cargo. Com a MP de ontem ele ganhou mais poderes.
Curiosamente a crise de saúde pública que Bolsonaro desdenha foi a justificativa dada pelo MEC para a MP que dá a Weintraub poderes de nomear “reitores temporários”. Ou “interventores”, como define, com mais precisão, o presidente da Associação dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior, João Carlos Salles.
Há cerca de 20 universidades com processos pendentes até o fim do ano, em estágios diversos, entre elas a do Pará, do Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Rural de Pernambuco, Lavras, São João Del Rei, Tecnológica do Paraná. Algumas já estavam com a consulta quase concluída quando as aulas foram suspensas. Há diversas soluções temporárias, como a de manter o atual reitor até que se possa escolher a nova lista tríplice ouvindo alunos, professores e funcionários, como sugere a reitora da UFRJ, Denise Pires de Carvalho. Outra ideia que ouvi de um ex-reitor é manter o vice-reitor que tenha sido escolhido em data posterior e, portanto, ainda tenha mandato. Uma consulta informal, se houvesse diálogo entre o Ministério e a comunidade acadêmica, permitiria encontrar uma solução para preservar a autonomia administrativa das entidades. O governo, claro, preferiu uma saída ilegal e autoritária.
A comissão da Câmara dos Deputados que acompanha o MEC soltou uma nota dizendo que a MP “afronta o estabelecido pelo Artigo 207 da Constituição Federal, que dispõe sobre a autonomia das universidades para decidir sobre questões administrativas, didático-científicas, gestão financeira e patrimonial”. Segundo a comissão, a MP é “antidemocrática e inconstitucional”. Por isso, os deputados pediram a devolução imediata da Medida Provisória. Até porque outra MP sobre o mesmo assunto acaba de caducar.
Desde que assumiu o cargo, Weintraub vem ofendendo as universidades e fazendo acusações difamatórias que não consegue provar. Ele tem sido também completamente omisso em outras questões do Ministério relacionadas ao ensino básico. Exemplo foi a sua ausência no debate sobre o Fundeb. Essa nulidade terá agora o poder de nomear interventores nas universidades públicas do país.
Míriam Leitão: Bolsonaro divulga falsa interpretação de decisão do STF sobre a pandemia
É falsa a versão de que o STF afastou o presidente do combate à pandemia. Jair Bolsonaro tem repetido essa interpretação distorcida sobre a decisão do Supremo, que definiu o papel de cada ente federativo. O presidente tem responsabilidade no combate à crise sanitária, mas não está cumprindo.
O Supremo, consultado por estados e municípios, esclareceu que a Constituição diz com todas as letras que a Saúde é um direito de todos e uma responsabilidade compartilhada entre União, estados e municípios. Cada um deles tem um papel a cumprir. A corte definiu que as decisões cotidianas, como o funcionamento do comércio, se dão em nível local. Mas isso não exime a União e o presidente de suas obrigações, obviamente.
Na sua conta no Twitter, o presidente escreveu esta semana: “Lembro à Nação que, por decisão do STF, as ações de combate à pandemia (fechamento do comércio e quarentena, p.ex.) ficaram sob total responsabilidade dos Governadores e dos Prefeitos.” Logo depois, saiu uma mensagem no Twitter, espalhada por robôs: “só para lembrar: STF afastou Bolsonaro do controle da Covid, dando poder a governadores e prefeitos.” Foi tão imediata a transmissão dessa mensagem que confirmou como funciona a comunicação do presidente nas redes, impulsionada pelo gabinete do ódio.
O conteúdo também é falso. O STF não afastou o presidente do combate à pandemia. O Supremo estabeleceu os limites da responsabilidade compartilhada entre União, estados e municípios, porque assim estabelece a Constituição.
Toda a preocupação do presidente, desde o início da crise sanitária, é saber como a atuação dele vai ser interpretada durante a campanha de 2022. Jair Bolsonaro fala isso abertamente. Na segunda-feira ele tratou como o maior problema do país nesse momento as manifestações contra o seu governo.
A situação é muito grave para ser tratada assim. É evidente que o maior problema atual é a pandemia, que já matou mais de 38 mil pessoas até aqui.
O esforço inicial do presidente foi para jogar o custo da crise econômica em cima de governadores e prefeitos. Agora o foco é distorcer a decisão do STF. A realidade é que a situação seria muito pior sem as medidas de restrição tomadas por governadores e prefeitos.
O STF não afastou o presidente das responsabilidades na Saúde, mas ele continua se omitindo o tempo todo. Bolsonaro é o presidente de uma nação que enfrenta uma crise grave, com esse grau de letalidade. Ele foge das suas obrigações de presidente. Passa o tempo todo administrando a versão dos fatos, para que possa usá-la eleitoralmente em 2022. É só com isso que se preocupa Jair Bolsonaro. Isso é impressionante. A situação é grave demais para ser tratada com essa leviandade.
Na terça-feira, o presidente chegou a dizer algo extremamente estapafúrdio. Bolsonaro falou que ninguém no Brasil morreu por falta de respirador ou de leito de UTI, e que no futuro se descobrirá que alguns morreram por não receberem hidroxicloroquina. Ele continua obcecado, incapaz de ver a realidade. É evidente que pessoas morreram por falta de UTI e de respiradores, como mostram os veículos de comunicação. Todos vimos. De novo, o presidente constrói uma versão falsa dos fatos.