Míriam Leitão: Todas as forças

A crise da segurança pública é tão ampla, tão profunda e perigosa que as autoridades precisam abandonar as partições com que veem suas responsabilidades. Os estados pedem a presença das Forças Armadas, que acham que não é sua função. A União diz que está apenas auxiliando, porque é atribuição constitucional dos estados. Há uma emergência e as disputas de jurisdição aumentam o risco de todos.

Existem brigas e rixas entre polícias e desentendimento entre instâncias administrativas sobre de quem é a responsabilidade em cada evento. As Forças Armadas dizem que não foram preparadas para a atuação dentro das cidades, mas sim para defender a integridade nacional e temem que a presença prolongada no combate aos narcotraficantes contamine a tropa. Os estados, muitas vezes, convocam as Forças Armadas porque querem reduzir os custos, aliviar suas responsabilidades e, na visão federal, estão banalizando esse ato. A Força Nacional virou uma forma de melhorar salários dos policiais e os estados se queixam de que custa caro.

Há, claro, diferentes competências, mas as forças do Estado brasileiro precisam estar unidas, porque o crime criou coalizões. Ninguém sabe hoje a separação entre tráfico de drogas e tráfico de armas. O narcotráfico é o grande cliente das armas ilegais que entram através de fronteiras que estão sob a supervisão das três forças. As facções de criminosos atravessaram divisas estaduais e se tornaram grupos interestaduais, portanto o que antes era enfrentado apenas dentro das unidades federadas passou a ser crime federal, no combate ao qual tem que estar a Polícia Federal também. As drogas e as armas entram pela terra, pelo mar, ou pelo ar, atravessam estradas e rios, cruzam fronteiras estaduais, chegam nas grandes cidades e alimentam o poder de grupos que tiram a soberania do Estado Nacional sobre partes do nosso território urbano. Quem deve nos proteger nessa disseminação do crime? Todas as forças. O cidadão quando paga seus impostos não escolhe a quem destinar o fruto do seu trabalho, se a essa repartição ou àquela.

A crise da segurança pública não é mais algo localizado, virou uma epidemia. Não é um problema segmentado, mas um risco generalizado. A violência está em níveis intoleráveis e números eloquentes mostram isso. O assassinato de jovens atingiu dimensão de país em guerra e não há nada mais ameaçador para uma nação do que a morte da juventude. A educação é atingida por diversas formas, a começar da impossibilidade de as escolas funcionarem em muitos dias, em muitas áreas das grandes cidades. O que os governos gastam para acudir os atingidos pela tragédia da segurança é muito mais do que gastariam se investissem na prevenção, com visão estratégica e a consciência de que esse é um problema de todos os que nos governam.

A Constituição, que dá essa atribuição aos estados, não pode ser biombo para que forças federais se escusem ou que se apresentem como auxiliares voluntários no combate ao crime. A presença do governo federal não pode ser entendida pelos estados como uma terceirização da responsabilidade. É de todas as forças que o Brasil precisa porque o inimigo é grande e ameaça não uma cidade, mas a Nação. As realidades locais são parte de um mesmo mosaico trágico.

Pela sua geografia urbana, o Rio dá ao morador a noção exata de como somos todos alvos da mesma guerra. De várias partes da cidade, é possível ouvir os tiros ecoando nas áreas pobres, onde grupos de criminosos disputam o controle territorial. Os moradores das favelas são avisados com antecedência sobre o momento em que haverá o choque entre os grupos de bandidos. No Rio, não há como não ver e ouvir, não é possível segregar a tragédia como se ela pertencesse a um grupo social. No Rio, desmascara-se a hipocrisia da sociedade desigual que fecha em redomas blindadas os mais ricos e expõe os pobres. A cidade tem que ser vista, não como um caso destoante, mas como o alerta do risco extremo que todos corremos. Há questões e momentos em que é preciso ter noção lúcida da dimensão da ameaça e, desta forma, construir a união entre as forças do Estado. Este é o caso da segurança pública.

 


Míriam Leitão: O erro na Caixa

A Caixa foi o assunto numa reunião ontem em Brasília de todos os órgãos de controle: TCU, MPF, CGU, Banco Central e auditoria da CEF. Concordaram que não basta afastar quatro vice-presidentes, e que é preciso mudar radicalmente a forma de seleção de dirigentes. Vão dar um voto de confiança ao Conselho de Administração, que começa semana que vem a implantar a nova estrutura de governança.

O presidente Temer sabia que estava errando na Caixa. Tanto que estabeleceu outros critérios na direção da Petrobras e Eletrobras. Para as duas estatais de energia escolheu gestores sem ligação política e concedeu a eles liberdade de atuação. Entre as grandes estatais, a Caixa ficou como o enclave podre. Nas outras muitas estatais o padrão também é o fatiamento político.

A situação no banco começou a mudar esta semana. Após o MP pedir a substituição dos vice-presidentes, o Banco Central fez o mesmo. O Conselho de Administração, que é presidido pela secretária do Tesouro, Ana Paula Vescovi, havia contratado a auditoria do escritório Pinheiro Neto, depois que a Price aprovou com ressalvas o balanço de 2016. O que a auditoria descobriu confirmou tudo o que fora investigado em quatro operações do Ministério Público. O cerco começou a se fechar.

A Caixa tem sido vítima do uso político abusivo. A operação Sepsis exibiu como acontece. No dia primeiro de julho de 2016, quando Temer ainda era interino, a operação foi estourada. Lá se contava como acontecem as indicações para a Caixa. Lúcio Funaro, com uma folha corrida de crimes investigados em três operações — Banestado, Satiagraha, Mensalão —, foi a “autoridade” que decidiu quem seria o vice-presidente de Loterias e Fundos Públicos. Funaro indicou o nome de Fábio Cleto ao deputado Eduardo Cunha, no governo Dilma, em 2012. Foi explícito a Cleto sobre o fato de que ele tinha que fazer o que “nós quisermos". O “nós” era ele e Cunha. O ministro Guido Mantega chamou Cleto em seu gabinete e o nomeou.

Imaginemos, apenas por hipótese, que em meados de 2016 o presidente Temer não soubesse o risco das indicações políticas. Se tivesse lido o que ficou público pela Sepsis naquele primeiro de julho, saberia que a distorção é tal que um criminoso, réu confesso do mensalão, na prática havia indicado a pessoa responsável, entre outras coisas, pelo FGTS.

Na Eletrobras, Wilson Ferreira fez uma mudança na organização para cortar os excessivos cargos administrativos. A Caixa permaneceu tendo uma dúzia de vice-presidentes, abaixo deles os diretores e depois os superintendentes. Para que ter 12 vice-presidentes? Elementar. Para melhor dividir o bolo, ocupar a máquina, ordenhar o banco no qual está depositada a poupança de milhões de brasileiros.

Quando Pedro Parente foi convidado para a Petrobras ele recebeu a informação de Temer de que teria liberdade para nomear a diretoria. Na Caixa manteve-se a rotina de dividir o comando em sesmarias e entregálas aos capitães políticos para as práticas extrativas.

Quando Temer assumiu, as análises da situação das empresas indicavam que tanto a Petrobras quanto a Caixa precisavam ser capitalizadas. A Petrobras se ajustou sozinha, cortou custos, vendeu ativos, reduziu endividamento, aumentou a receita. A Caixa, desenquadrada nas normas bancárias internacionais, vem tentando se capitalizar com o dinheiro do FGTS.

O erro na Caixa foi a repetição do pecado original: usar as empresas estatais para o repasto político. Não basta tirar quatro vice-presidentes, ou mesmo todos. É preciso mudar a forma de recrutamento de gestores. Alguns dos atuais dirigentes da Caixa estão sendo investigados. “Não podemos dizer que eles são culpados, mas podemos garantir que o sistema que os levou é. O corrupto é apenas o fruto. Se a árvore não for extraída, o crime continuará", diz um integrante de órgão de controle.

Temer sabia o que aconteceria na Caixa ao reserva-la aos políticos. Quando o Ministério Público pediu a saída dos vice-presidentes, fingiu não ouvir. Foi preciso que o Banco Central usasse seu poder de fiscal do sistema financeiro para que quatro deles fossem afastados. Sanear a Caixa vai demorar anos. Mas esta semana pode ter sido um ponto de inflexão na longa história de abusos sofridos pelo banco público.

 


Míriam Leitão: Otimismo curto

Os estoques deixados pela supersafra de 2017 vão garantir a estabilidade dos preços dos alimentos este ano. A produção vai cair, mas os preços não terão altas muito fortes. O desemprego ficará alto, mas o consumo pode continuar aumentando. Essa é a visão do economista José Roberto Mendonça de Barros. Ele aposta em um crescimento do PIB de 3,5%. Mas não tem visão positiva sobre 2019.

Todo mundo sabe que o ano passado foi excelente para a agropecuária brasileira, mas nem sempre se tem uma medida desse desempenho. José Roberto comparou a primeira previsão de safra de 2017, feita ainda em 2016, com o que acabou sendo colhido e chegou a um número impressionante:

— Foram 30 milhões de toneladas de grãos além da estimativa.

Isso não vai se repetir, e a colheita deve ser menor. Muita gente acha que isso significa forte pressão nos preços, mas ele acredita que não haverá isso porque os estoques de passagem (de um ano para o outro) estão altos:

— O milho terá uma produção menor mas o estoque é de 12 milhões de toneladas. Na soja, a queda da produção deve ser de apenas 3%. Com o país bem abastecido de milho e soja, não há por que ter grande variação nos preços da carne.

Mendonça de Barros esclarece que o desempenho do agronegócio não foi apenas pelo excelente ano climático. Foi também pelo aumento constante da produtividade. Isso significa que, mesmo com um ano climático não tão bom quanto 2017, o país continuará elevando a competitividade.

Acha que a inflação será baixa, em torno de 4%, porque outros fatores vão manter os preços estáveis:

— Os mecanismos de realimentação da inflação estão baixos porque os IGPs ficaram negativos e haverá até quem queira reduzir os preços de aluguéis, o IPCA ficou abaixo do piso da meta, e o INPC ficou em 2%.

Ele também não teme que o câmbio possa ser um fator de pressão caso a volatilidade aumente pela incerteza eleitoral e crise política. Pondera que o país “está cheio de dólar”. Houve um superávit histórico na balança comercial, o país recebeu investimento direto, e o balanço de transações correntes está perto de zero. Com abundância de oferta da moeda americana, e as reservas do BC, o país pode absorver, na opinião do economista, qualquer instabilidade no câmbio.

E o desemprego? Não há visão positiva que negue o problema, que permanece alto demais. José Roberto acha que os números continuarão negativos e o desemprego permanecerá em níveis elevados:

— Mas está caindo aquela sensação de que ‘eu posso ser o próximo na fila do desemprego.’ Essa sensação segurou muito o consumo no ano passado, porque mesmo quem estava empregado temia perder o posto de trabalho. Mas, agora, a escalada de demissões diminuiu. Há empresas que voltaram a contratar. E isso pode manter o consumo das famílias.

Ele acha que uma das provas desse fenômeno está nos dados de vendas de varejo. Os bens de maior valor, que precisam de financiamento, estão com um crescimento maior do que os que não precisam de crédito porque têm valor menor. Por isso, no seu cenário está um aumento do consumo, apesar de não haver uma melhora significativa no mercado de trabalho.

O desemprego hoje, na opinião de Mendonça de Barros, é um freio na retomada do crescimento. A recuperação econômica, após a recessão, está sendo mais lenta porque o desemprego está alto.

Se os dados positivos do cenário se confirmarem, o país atravessará um ano tumultuado na política com a economia em recuperação branda, não criando marolas. Afinal, a política já produzirá bastante tremor. O conflito se dará, segundo o economista, entre candidatos populistas e reformistas:

— O problema é que o candidato reformista ainda não está definido.

Mesmo um economista com uma visão otimista sobre a economia em 2018 nada garante sobre 2019. Para sustentar essa recuperação será preciso aumentar o investimento e isso exige um horizonte de estabilidade fiscal para alavancar investimentos públicos e privados. O país vai comemorar o dado bom de cada dia — como o de ontem, em que o IBC-Br teve alta 1% em 11 meses do ano passado — mas não tem qualquer certeza para além de 2018.

 


Míriam Leitão: Alavanca da retomada

A vitória sobre a inflação construiu o caminho pelo qual o país saiu da recessão. Por causa da queda dos preços, houve uma sequência de eventos favoráveis na economia que permitiu o início da retomada. Não foi a recessão que derrubou a inflação, foi a queda da inflação que superou a recessão. Nas causas da vitória estão a produção agrícola e a ação do Banco Central.

O mocinho da virada foi o preço de alimentos, mas a redução da inflação foi generalizada, tanto que, como disse o Banco Central, sem os alimentos a taxa teria ficado em 4,54%. A queda foi resultado da supersafra, mas também dos acertos da política econômica, principalmente do BC.

A inflação estava acima de 10% em janeiro de 2016 e terminou 2017 em 2,95%. O INPC, que mede a evolução da cesta de consumo de famílias até cinco salários mínimos, terminou o ano em 2,07%. Como esse índice corrige benefícios previdenciários, isso ajudará também nas contas públicas, porque o Orçamento foi elaborado prevendo 3,1%.

Por causa da queda dos preços, houve mais espaço no orçamento das famílias para outros consumos. E isso aconteceu principalmente porque foram os alimentos que puxaram a média dos preços para baixo. Em 2016, houve momentos em que a inflação de alimentos se aproximou de 15%. O grupo terminou 2017 com deflação de 4,8%. Com a queda da inflação, os juros puderam ser reduzidos em mais de sete pontos percentuais. O relaxamento monetário permitiu renegociação de dívidas privadas e redução dos preços de rolagem da dívida pública. Com menos inflação e menos juros, houve um aumento da confiança e, mais tarde, da produção e das vendas.

Um evento levou ao outro, numa sequência de fatos positivos na economia que desafiou o ambiente tóxico da política, com a revelação da inaceitável conversa entre o presidente e o empresário Joesley Batista e todas as articulações nefastas para manter o governo.

Apesar da confusão política, a economia foi encontrando seu caminho para sair do buraco de duas quedas sequenciais do PIB de 3,5%. Mas a crise política impõe um teto para a recuperação. A alta do PIB de 2017 deve ter ficado em torno de 1%. Pouco para o tamanho da perda, apenas permite que o país comece a fazer o caminho de volta.

Ao contrário de todos os outros momentos da história do real, esta queda da inflação não elevou a popularidade presidencial e a aprovação do governo. Uma das razões é que o ambiente ainda é de crise, a renda permanece em níveis mais baixos do que já esteve, o desemprego continua muito alto. Além disso, os vilões — preços que subiram muito apesar da queda geral — atingem em cheio a classe média: combustíveis, mensalidades escolares, energia, planos de saúde. Essa recuperação é também diferente de outras recessões, porque o país está saindo à francesa. Lentamente. A última recessão deste tamanho foi provocada pelo Plano Collor. A recuperação ocorreu no governo Itamar, e o país saiu do PIB negativo de 1992 para a alta de quase 5% em 1993. O clima agora ainda é de crise, o país continua com sequelas, as empresas investem pouco, o governo enfrenta graves dificuldades fiscais.

Sair desse fosso pela queda dos preços é um fato curioso no Brasil que teve durante tanto tempo uma relação atormentada com a inflação. Ela arruinou a economia do país várias vezes. Quando voltou a dois dígitos no fim de 2015 e começo de 2016, temia-se a reindexação da economia. O cenário felizmente não se confirmou.

A ideia de que foi a recessão que derrubou a inflação não explica o que aconteceu. No Brasil, várias vezes tivemos recessão com preços subindo, a última vez foi em 2015. O país colheu uma supersafra e isso foi providencial. A produção agrícola foi o grande jogador em campo. Mas a atuação do Banco Central buscando a meta, quando parecia difícil ser atingida, e os acertos da política econômica ajudaram a derrubar os índices de preços. Os IGPs da FGV terminaram o ano com deflação. Em 2018, a inflação sobe um pouco, mas o temor do descontrole que havia no começo de 2016 foi superado. Na velha briga do Brasil contra a inflação, o país venceu desta vez.

(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)


Míriam Leitão: Para sair do impasse

Orçamento de 2019 não poderá ser feito enquanto a lei não for alterada, e governo prepara uma série de medidas que ainda serão apresentadas como contrapartida. O governo quer a suspensão da regra de ouro junto com um conjunto de medidas: a possibilidade de usar recursos de superávits passados que estão na conta única, mudar o artigo constitucional que dá aos servidores direito a aumento salarial todo ano, reduzir carga horária e salário de servidor. Para o governo, 2019 é o ano que já começou. Ele tem que preparar o Orçamento e há um impasse.

Quando o ministro Henrique Meirelles fala em adiar a discussão é porque houve forte reação. Mas no governo admite-se que dá para fechar as contas de 2018, mas não dá para fazer o Orçamento do próximo ano. A ideia é apresentar um conjunto de propostas junto com a suspensão da regra de ouro.

Algumas delas: na conta única estão receitas de impostos que tinham destinação específica, não usadas nos anos em que houve superávit. Pela lei, essa receita só pode ser usada naquele objetivo para a qual estava destinada. A Cide, por exemplo, que é para investimento em estradas. O governo quer a liberdade de remanejar esses recursos. Outra mudança é no artigo da Constituição que dá ao funcionário público o direito a reajuste anual. O governo quer não reajustar durante a crise. A terceira medida seria a possibilidade de reduzir horas trabalhadas de servidores de áreas não essenciais para diminuir os salários. O ministro Teori Zavascki morreu antes de julgar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no Supremo sobre isso.

O que se diz no governo é que a crise é maior e mais ampla do que eles estão conseguindo explicar. Admitem que comunicaram mal a ideia de quebrar a regra de ouro, que estabelece que só pode haver aumento de endividamento na mesma proporção dos investimentos. A ideia é reapresentar a proposta junto com outras mudanças constitucionais.

Pela lei, a regra de ouro se cumpre duas vezes: quando o Planejamento faz o Orçamento e o entrega em agosto ao Congresso e, depois, quando o Tesouro prova ao fim do ano que não quebrou a regra. Portanto, o impasse de 2019 é realidade agora. Teria que haver um ajuste que os técnicos calculam entre R$ 180 bilhões e R$ 200 bilhões num ano, 3% do PIB. Um ajuste “impossível”.

O grande risco seria o Congresso se enganar com o curto prazo. De imediato, há notícias boas: o déficit de 2017 ficará menor em R$ 30 bilhões, como eu já escrevi aqui, e em 2018 haverá o repasse de R$ 130 bi do BNDES para o Tesouro, como informou ontem o “Valor”. A confusão é o ano que vem, por isso o que se diz no governo é que as boas notícias de curto prazo têm que ser vistas como uma janela de oportunidade:

— A ideia de que se pode resolver o problema aprovando crédito suplementar, como foi sugerida por alguns economistas, é equivocada. Esse recurso é para ser usado quando uma despesa não prevista aconteceu, uma catástrofe, por exemplo, e o gasto real que o governo terá com uma rubrica é maior do que a orçada. Mas o governo não pode fazer um Orçamento com despesas deliberadamente subestimadas para, no ano seguinte, pedir um crédito suplementar ao Congresso.

Quem olha a série do Banco Central dos resultados do Tesouro vê que o Brasil, de 1991 até 2014, teve apenas um pequeno déficit primário, de 0,25% do PIB em 1997. No começo do segundo mandato do governo Fernando Henrique, ele levou o resultado para superávit através de um aumento de impostos. As receitas líquidas foram de 14% do PIB para 18%. E as despesas subiram de 14% para 16%. Atualmente seria difícil fazer o ajuste através do aumento de carga tributária. Seria impossível também cortar porque a rigidez do Orçamento aumentou em vez de diminuir. Agora é de 92% dos gastos.

— A situação é trágica. O país em 2020 entrará no sétimo ano de superávit. Não se deveria permitir que chegasse nesse ponto, mas chegou. O investimento público da União em 2014 foi 1,4% do PIB. Em 2016 foi 1%, ou, R$ 65 bilhões. Em 2017 deve fechar em 0,6% do PIB, entre R$ 40 bi e R$ 45 bi. Mesmo se fosse a zero não seria suficiente. Hoje para dizer a verdade precisaríamos de um ajuste impossível, de 2% do PIB — admite um alto funcionário da área econômica.

Esse tom dramático se pode ouvir de vários integrantes da equipe. O país chegou num impasse fiscal. Eles dizem que é preciso agir agora para ter Orçamento para 2019, ano em que o governo será outro.

 


Miriam Leitão: Os brasileiros que vi

Os brasileiros que têm projetos e sonham. Verônica, 17 anos, é aluna de escola técnica pública em Franca. “Você vai entrevistar só homens, ou vai falar também com mulheres na sua série?", perguntou em tom de desafio. E avisou: “sou feminista". O barco deslizava no Rio Negro e eu quis saber de Roberto, o barqueiro, o que ele fazia antes da atual ocupação. “Era madeireiro, meu pai e meu avô também foram. Hoje trabalho pela sustentabilidade."

O ano de 2017 foi todo cheio de conversas marcantes. Passei o ano viajando pelo Brasil para gravar uma série para a GloboNews. Os encontros me protegeram contra o pessimismo natural derivado da crise política e econômica. Hoje é o último dia do ano e eu deveria publicar aqui uma coluna sobre o balanço do que houve na economia em 2017. Escrevi o balanço. O leitor poderá encontrá-lo no meu blog. Mas preferi dedicar o espaço para falar de alguns brasileiros que conheci no ano.

O país visto de perto arrebata e emociona. Marivaldo, jovem, negro, violinista, sentado debaixo de uma árvore, falava com entusiasmo e visível sinceridade. Ele perdeu o irmão em um acidente de moto. O pai morreu logo depois. Está no projeto Neojibá desde o início, há dez anos. O projeto protege jovens e crianças na Bahia através da música clássica. Hoje Marivaldo é um multiplicador, porque além de tocar na orquestra, ele ensina nos núcleos de estudantes mais jovens. Perguntei sobre o futuro.

— Só vejo música, multiplicação. Todo mundo tocando junto. Porque na música não tem diferença, todo mundo é igual. A gente pensa num Brasil em que todo mundo é igual, todo mundo buscando o mesmo objetivo que é um país sem diferença.

Foi assim o meu ano. Uma parte de mim acompanhava a conjuntura, outra se deixava levar pelas conversas sempre surpreendentes com brasileiros de todas as regiões, das mais variadas atividades. Conheci muita gente. Walter, trabalhador de Santa Catarina, que aos 95 anos vai entrar agora em janeiro no livro “Guinness” como a pessoa há mais tempo numa mesma empresa. Sua carteira de trabalho mostra a devastação monetária que o Brasil viveu no século XX: há registros em nove moedas.

No Rio Grande do Norte, conheci um produtor rural que gosta de ser chamado de Zé Peneira. Sua renda aumentou desde que as torres de energia eólica começaram a ser instaladas na região. Ele primeiro forneceu matéria-prima, depois arrendou parte da terra para a empresa de energia. O dinheiro foi investido na propriedade e nos estudos dos netos.

— Tinha uma neta minha estudando pra ser médica. Eu já estava para cansar. Com o dinheiro eu ajudei e ela, daqui a dois meses, já está cortando gente.

A neta cirurgiã, e o avô inventando tecnologias para aumentar a produtividade da sua lavoura. Costuma apontar para a cabeça e dizer “tudo saiu daqui" quando vai contar alguma solução engenhosa. Saía da sua fazenda em Parazinho, já com os equipamentos na van para retomar a estrada, quando José Peneira me convidou:

— Se a “incelência” me der o prazer de voltar, vai encontrar tudo “meorado".

No Acre, a jovem Sarah Evellyn criou uma organização social, o Impacta Jovem, para divulgar informações sobre oportunidades de intercâmbio. Em Belo Horizonte, Laura Leal fez parte do Impacta Jovem e depois criou seu próprio movimento, que quer ampliar as chances das meninas nas ciências exatas. Em Roraima, a jovem estudante Ariene Wapixama quer que seu povo e outros indígenas elejam um representante do estado para o Congresso.

O país mergulhado no pessimismo com que atravessou o ano, e seu Zé Peneira tem certeza de que tudo estará melhor no futuro, Marivaldo sonha com um país sem diferença, Roberto, o barqueiro, ensina a importância de manter em pé as árvores que no passado derrubaria, Verônica quer ser advogada e defender a causa feminista.

Entrevistei tanta gente interessante que não cabe neste espaço. Foi o trabalho de transformar o meu livro “História do Futuro” em uma série de dez episódios para a GloboNews. As reportagens foram sobre as possibilidades e tendências do Brasil, mas fiquei marcada pelas conversas com esses e outros brasileiros. Por isso, neste último dia do ano quis trazê-los a este espaço para falar de esperança. Feliz 2018.

 


Míriam Leitão: O tempo do poder

A ministra Cármen Lúcia corrige a coluna dizendo que não existe jurisprudência, nem mesmo o costume, de que ministros se aposentem após concluir o mandato de presidente do Supremo. Os que saíram da Corte o fizeram no tempo que escolheram e por razões específicas, segundo ela. A presidente do STF admite que mandato para ministros é tema que tem sido discutido em cortes constitucionais.

O problema levantado pela coluna existe: a longa permanência, o poder excessivo por tempo prolongado demais dos magistrados que chegam a tribunais superiores. No caso brasileiro, não há mandato, mas dependendo da idade em que foi escolhido, um ministro pode permanecer por 30 anos no cargo.
— Isso não faz bem para a pessoa, para o país e para o tribunal — admite a ministra Cármen Lúcia.

Ela já defendeu, no passado, o estabelecimento de um mandato, que poderia ser de dez anos. Hoje, tem algumas dúvidas diante do caso concreto.

— Os decanos cumprem um papel fundamental na Corte, como acontece com o ministro Celso de Mello — disse Cármen.

Nesse caso, sim, porque o decano atual é pessoa ponderada. Mas os intempestivos também virarão decanos um dia. Trinta anos ou mais para a permanência de alguém com tanto poder na vida brasileira é de fato excessivo e esse é um dos aperfeiçoamentos institucionais que o país deveria fazer. A própria ministra lembra que alguns países estabeleceram mandatos para os ministros das cortes constitucionais. Existem outros, como nos Estados Unidos, em que a vitaliciedade é levada a extremos: o ministro fica até morrer. No Brasil é 75 anos, e até recentemente era 70.

No passado recente, os ministros Nelson Jobim, Ellen Gracie e Joaquim Barbosa pediram aposentadoria antes de chegar à idade limite. Jobim porque pensava em ser candidato à vice na chapa do ex-presidente Lula, o que acabou não sendo. Ellen deixou o tribunal dois anos depois de ter sido presidente e Joaquim Barbosa nem terminou o mandato de presidente do Supremo. Saiu em julho de 2014, encurtando o período de dois anos no comando da Corte, que terminaria em novembro. O ministro Moreira Alves e Sidney Sanches, nomeados respectivamente pelos generais Ernesto Geisel e João Figueiredo, ficaram até abril de 2003, no início do governo Lula. Antes de 1946, a vitaliciedade era até a morte.

Na Alemanha, os 16 ministros da Corte Constitucional têm mandato de 12 anos, com aposentadoria automática se chegam a 68 anos, e ninguém pode ser reconduzido ao cargo. Na Suprema Corte da Espanha, o mandato é de nove anos, mesmo tempo da corte italiana. Em Portugal são seis anos, sem recondução. Na Argentina, os membros não só ficam até os 75 anos, como podem ser reconduzidos por mais cinco anos. Enfim, cada país tem uma solução.

O Judiciário tem muito a rever e aperfeiçoar, porque a cobrança sobre o Poder tem aumentado até pela presença diária na pauta brasileira. O Brasil enfrentará agora um período eleitoral com uma velha distorção ficando ainda mais perigosa. Hoje a composição do Tribunal Superior Eleitoral inclui dois integrantes que são representantes da classe dos advogados. Eles normalmente estão ainda nas suas bancas. O que significa que podem advogar até às seis da tarde e, às sete, vestem a toga e vão julgar. O potencial conflito de interesses em época turbulenta da vida política brasileira, que será julgada nesses tribunais, é enorme. O mesmo acontece, com risco ainda maior, nos tribunais regionais eleitorais.

É natural que o país olhe para o Judiciário querendo que ele se torne mais eficiente, transparente e sem privilégios. Seus ganhos acima do teto serão sempre um ponto nevrálgico na sua relação com a opinião pública. A situação dramática do Rio Grande do Norte deixa isso mais claro. O estado está falido e atrasando salários de funcionários, mas 218 juízes e desembargadores do Estado conseguiram o direito de receber o auxílio-moradoria retroativo aos últimos seis anos, no valor total de R$ 39,5 milhões. O ministro Marco Aurélio Mello considerou que o valor integra o patrimônio deles. Discutir esses assuntos é uma forma de fortalecer a relação entre o Judiciário e o país.

 


Míriam Leitão: Duas cabeças

O governo está dividido sobre o que fazer diante da crise do Rio Grande do Norte, mas só existe um caminho: o de cumprir a lei. Não é possível seguir a cabeça dos ministros políticos e do ministro do Planejamento, que estão se esforçando para atender ao pedido do governo estadual. Existe uma lei de recuperação fiscal, que estabelece regras, e só através dela se pode dar ajuda federal.

Foi esse caminho que o Rio de Janeiro seguiu. É doloroso, difícil, mas é isso que está na lei. A própria legislação que estabelece a forma de socorrer estados em crise foi uma concessão. Ela cria uma espécie de monitoramento das contas estaduais pelo governo federal e faz exigência de que o estado, antes de ser ajudado, se enquadre em um programa de recuperação das contas públicas. No Rio, os funcionários ficaram o ano inteiro com seus salários atrasados enquanto o governo tentava aprovar o programa de recuperação que previa cortes de gastos, aumento da contribuição de funcionários e a privatização da Cedae. Há percalços, até judiciais, mas o fato é que o Rio vem tentando conseguir formas de se enquadrar na lei de recuperação. O mesmo acontece com o Rio Grande do Sul.

Se o governo quiser transferir recursos para o Rio Grande do Norte para que o governo estadual pague os salários atrasados, estará desrespeitando a Lei de Responsabilidade Fiscal, que veda este tipo de socorro. É isso que internamente tem dito a secretária do Tesouro, Ana Paula Vescovi. Oficialmente, o Ministério da Fazenda vetou a ajuda de R$ 600 milhões, depois que ouviu do Tribunal de Contas que a ajuda seria inconstitucional.

É crime pela LRF transferir recursos aos estados sem que eles se enquadrem em um programa de recuperação. Além disso, é quebra da isonomia federativa. Se ajudar um estado, terá que transferir recursos para todos os outros. No dia em que, neste ponto, vencer a ala gastadora do governo, haverá outros 26 governadores na porta do Palácio do Planalto querendo recursos. E é bom lembrar que este é um governo que enfrenta uma enorme crise fiscal e que está com déficit primário nas suas contas.

Em qualquer governo, há divisão entre os gastadores e os que querem manter, em maior ou menor grau, o controle de gastos. Desta vez, a cisão é ainda pior e parece haver, na prática, dois governos Temer, tal a distância que está se abrindo entre um lado e outro. Um deles tem resultados a mostrar porque controlou o pior da crise econômica, já reduziu fortemente a inflação, e esta semana mesmo mostrou melhora de arrecadação e até um superávit primário nestes tempos difíceis de déficits sequenciais. Há outra parte que repete a fórmula da gastança e do toma-lá-dá-cá que o ministro Carlos Marun explicitou esta semana ao defender o uso político dos recursos da Caixa como se fosse natural e apenas “ações de governo”.

O Congresso depôs a presidente Dilma exatamente por não cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal e por usar politicamente os recursos dos bancos públicos. Se cada disputa interna continuar sendo vencida pela ala que acha que os limites legais são meros detalhes que podem ser contornados, o perigo é enorme. Não para o governo, mas para o país, que tem uma situação fiscal desastrosa e vive uma recuperação econômica frágil.

O Rio Grande do Norte está em uma crise social e de segurança de grandes proporções, com os policiais e os bombeiros aquartelados e em greve há uma semana. No Espírito Santo, houve um motim da PM, deflagrado apesar de os salários não terem atrasado. O governo capixaba enfrentou o problema e ele foi resolvido sem a ajuda financeira do governo federal. Não há outra saída a não ser avisar ao governador potiguar que ele tem que propor um programa de ajustes dentro da Lei de Recuperação Fiscal e só depois disso começará a ser discutida a ajuda federal.

O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, que foi rigoroso com o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul, não pode se ausentar nesta discussão. E neste assunto ele tem que pensar com a cabeça de ministro das finanças e não como possível futuro candidato. O governo federal tem que ter a cabeça na lei que aprovou e sancionou, e não em interesses políticos momentâneos.

 


Míriam Leitão: Ações contraditórias

O ministro Marun disse que o governo condiciona a liberação de recursos da Caixa ao apoio dos governadores à reforma da Previdência. Segundo Marun, BB e BNDES também seguem “ações de governo”. Sem cerimônia, o novo articulador político do governo Carlos Marun admitiu que o governo manipula a liberação dos recursos de bancos públicos para tentar aprovar a reforma da Previdência. O uso de dinheiro dessas instituições tem que obedecer às exigências da boa administração fiscal. Esse governo só existe porque a ex-presidente Dilma caiu por usar os bancos públicos nas pedaladas.

Marun diz que usar os recursos de bancos estatais, como Caixa, Banco do Brasil e BNDES, para aprovar projetos, é “ação de governo”. Por duas vezes, as “ações de governo” foram executadas para livrar o presidente Michel Temer das denúncias da Procuradoria-Geral da República. Agora é para aprovar a reforma da Previdência. Não existe causa boa se for aprovada de uma forma tão distorcida. E isso por razões objetivas: uso político de bancos federais foi um dos motivos da situação fiscal lamentável em que o Brasil está. A Caixa Econômica Federal está hoje precisando de capitalização, tentando conseguir dinheiro emprestado junto ao FGTS, exatamente porque foi usada em “ações de governo” nas duas últimas administrações.

O país precisa da aprovação da reforma da Previdência porque ela será um passo decisivo para a organização das contas públicas. Não pode ser aprovada, contudo, no meio de liberação de recursos para a compra de bancadas, ampliação de gastos, anistia para devedores da Previdência e tudo o mais que tem sido feito. Essas ações estão desorganizando ainda mais as contas públicas, exatamente o oposto que a reforma busca.

Em entrevista publicada ontem no “Estado de S. Paulo”, a secretária do Tesouro, Ana Paula Vescovi, foi clara e direta. “Se deu para um grupo, vai faltar para o outro.” Explicava por que não se pode fazer concessões corporativas e fisiológicas. Para dar benefício com o dinheiro público para um setor, o dinheiro terá que sair de algum lugar, explicou a secretária. Se for para manter o aumento do funcionalismo, o governo terá que cortar em outra área. Essa é a natureza do dilema na atual crise fiscal. Simplesmente é preciso ser rigoroso e seletivo. A austeridade fiscal de um momento assim não combina com a compra de votos para a reforma da Previdência, usando bancos federais. Como também não combina com decisões que o governo está para consagrar ou negocia com os setores empresariais.

Até sexta-feira o governo vai sancionar a nova Lei do Repetro, a MP 795, que concede deduções tributárias para o setor petrolífero até 2040. Continua sendo negociado com o governo o novo programa de incentivos fiscais para o setor automobilístico, o Rota 2030. Como disse a secretária do Tesouro: “Isso tem que ficar claro: deu para um grupo vai faltar para o outro.” Essa regra de ouro serve tanto para os aumentos do funcionalismo, que se mantidos exigirão cortes de outros gastos, quanto para subsídios ao capital que vão fazer com que menos recursos cheguem aos cofres públicos. Se der para empresas de petróleo e de automóveis, vai faltar em outro lugar.

Se Marun passar a distribuir recursos públicos para os estados conforme o compromisso do governador de se envolver no esforço de aprovação da reforma da Previdência, ele pode até conseguir, eventualmente, aprovar a reforma, mas estará desorganizando os cofres públicos. E mantendo o método mais nocivo de construção das maiorias parlamentares. É natural que os estados e municípios peçam ajuda ao governo federal para a superação de crises. Mas as concessões têm que ocorrer dentro de critérios fiscais saudáveis e sustentáveis.

No mesmo dia em que Marun explicitou sua filosofia sobre a melhor maneira de fazer a articulação política, Vescovi deu nova entrevista falando em cortes de despesas não obrigatórias de R$ 26 bilhões para cumprir o Orçamento. Essa duplicidade do governo está cada vez mais estranha. Alguém deveria fazer uma articulação política para apresentar uma parte da administração Michel Temer à outra parte. O que a competente secretária do Tesouro fala faz todo o sentido, mas não guarda qualquer relação com o que Marun está falando e fazendo no ministério que acaba de ocupar.

 


Miriam Leitão: Fuga para o Planalto

O grande risco com o Lula não é o radicalismo. Ele nunca foi radical, tanto que, como disse em entrevista na última semana: “Esse mercado injusto que nunca me agradeceu com o tanto que ganhou.” Deveria também ter cobrado gratidão das empresas em geral, porque nos 13 anos do governo petista os benefícios para o capital foram de 3% do PIB para 4,5% ao ano, um aumento, ao PIB de 2015, de R$ 90 bilhões.

Na entrevista, em que convidou um grupo de jornalistas para um café da manhã, o ex-presidente disse: “Eu não tenho cara de radical, nem o radicalismo fica bem em mim.” De fato. Não é esse o problema. O risco Lula é institucional. Já condenado em primeira instância, réu em mais 5 processos, denunciado em outros, sua estratégia é a fuga para o Planalto, único local onde poderá escapar de todas as ações, todas as investigações, onde terá autoridade sobre a Polícia Federal, e poderá minar o poder do Ministério Público. O Brasil se transformará num país em que a impunidade será coroada se o réu chegar à Presidência da República.

Ele tem usado a candidatura como defesa nas ações a que responde na Justiça. Provavelmente calcula que quanto maiores forem suas intenções de voto mais inatingível ficará, mais poderá usar a versão de que é um perseguido político.

Contudo, a Justiça terá que decidir diante das provas e dos autos e agora a palavra está com o TRF-4. Mesmo na hipótese de ser absolvido, há outros processos contra ele. Lula se define como uma pessoa “mais conhecida que uma nota de R$ 10”, e tenta usar essa notoriedade para se blindar. Vai se aproveitar do tempo jurídico e das muitas possibilidades recursais em seu favor. “Se eles cometerem a barbaridade jurídica de me condenar tenho ‘n’ recursos para fazer, e vou continuar viajando.”

A Justiça Eleitoral tem aceitado, inexplicavelmente inerte, à campanha presidencial antes da hora. Também nada faz contra a descarada campanha de Jair Bolsonaro. Isso cria a distorção de punir quem cumpre a lei, e favorecer quem a ofende. “O mundo é dos espertos”, disse recentemente o técnico Renato Gaúcho, do Grêmio, ao ser apanhado espionando adversários com drones. A tese do técnico tem se confirmado porque as intenções de voto colocam Lula e Bolsonaro nos primeiros lugares. Pelo visto, bobo é quem cumpre a lei eleitoral.

Ao dar os primeiros toques do que seria seu programa, ele, de novo, recorre à demagogia. “Por que o povo pobre tem que pagar mais imposto de renda do que o povo rico. Por que o rentismo não paga imposto de renda sobre o que ele ganha? Por que a gente não pode começar a pensar em uma política tributária em que as pessoas mais humildes paguem menos e os mais aquinhoados paguem mais? Por que não se coloca em prática a questão do imposto sobre as grandes fortunas? Parece radicalidade, mas não é.” Faltou uma pergunta: por que em 13 anos, quatro meses e 11 dias de governo, o PT não teve tempo de fazer o que ele propõe? Fez o oposto. As deduções de imposto para os grandes grupos e setores empresariais, as transferências através de empréstimo subsidiado, a elevação da dívida pública para aumentar em meio trilhão a capacidade de o BNDES dar crédito barato para grandes empresas, como JBS, grupo X, Odebrecht e outros, foram as grandes marcas dos governos petistas na economia. O programa econômico executado por ele e sua sucessora foi regressivo. Gastou-se mais dinheiro público com os muito ricos.

Lula prepara os truques com os quais vai responder às suas incoerências. Culpou o PT pela foto que tirou com Maluf. “Quando Haddad foi candidato a prefeito em 2012 eu estava com câncer, inchado e foram me tirar de casa para uma fotografia com Maluf.”

Ele se comporta como se o país tivesse amnésia coletiva. Propôs mudar tudo através de uma Constituinte, acusando a “elite”de ter feito uma nova Constituição desde 1988. O PT governou em quase metade desse tempo. Critica a atual gestão da Petrobras como se não tivesse acontecido nas gestões petistas o maior escândalo de corrupção da história do país.

Há todos os disfarces e truques de sempre, a demagogia costumeira, mas estes não são os maiores riscos, e sim um fato de que ele tem contas a acertar com a Justiça e tenta, como defesa, a fuga para a Presidência da República.

 


Míriam Leitão: Poder ilimitado

O fim de ano foi cheio de provas de que um dos problemas a corrigir na democracia brasileira é a vitaliciedade dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Hoje, eles praticamente governam o Brasil e têm poder demais por tempo prolongado demais. Gilmar Mendes, para ficar no mais polêmico, tem teoricamente mais 13 anos, a menos que ele decida encurtar sua presença na Corte, antes dos 75 anos.

A vitaliciedade é uma prerrogativa dos juízes da Suprema Corte em inúmeros países, mas em democracias mais consolidadas há contenções naturais aos seus poderes. No Brasil, mais do que corte institucional, o STF é também tribunal criminal da elite política. Aqui, juízes idiossincráticos tomam decisões autocráticas e controversas, se enfrentam no plenário como se estivessem em um ringue, e são chamados a arbitrar sobre questões do cotidiano.

O ministro Alexandre de Moraes nasceu no dia da decretação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968. Completará 75 anos em 2043. Foi indicado pelo presidente Temer para um mandato de 26 anos, ou seja, terá poder pelos próximos seis mandatos presidenciais. Dias Toffoli já é ministro há oito anos e tem mais 25 anos pela frente para exercer seu mandato. O decano Celso de Mello foi escolhido pelo ex-presidente José Sarney e tem sido ministro por todo o período da democracia.

Isso não era problema até um passado recente. Havia uma regra não escrita pela qual o ministro mais antigo se aposentava após atingir o ápice e ser presidente do Supremo Tribunal Federal. Isso foi seguido por alguns, como Ellen Gracie e Joaquim Barbosa, mas a presença prolongada deixou de ser um constrangimento para os magistrados. O governo Collor acabou há 25 anos e o ministro que ele escolheu, Marco Aurélio Mello, ficará até 2021.

No último dia antes de sair para o recesso, o ministro Gilmar Mendes decidiu que não pode haver condução coercitiva. Deveria ser uma decisão colegiada, já que existe previsão legal, apesar da birra do ministro com o instrumento. Mas a decisão em cima do recesso mantém a soberania da sua vontade pessoal até a volta dos ministros ao trabalho. O ministro Ricardo Lewandowsky decidiu que o Executivo não pode adiar o aumento salarial concedido ao funcionalismo e o que estava no Orçamento teve que ser suspenso. A ministra Cármen Lúcia foi chamada para dizer se IPTU do Rio de Janeiro deve ou não subir. Por vontade dos ministros, ou por falhas institucionais, o STF virou mais do que o comando de um poder, ele se precipita sobre os outros.

Não faz bem para nenhuma democracia que uma pessoa detenha um poder tão grande durante, por exemplo, os 33 anos do mandato do ministro Dias Toffoli. Principalmente em época como a atual, em que há uma mistura explosiva: a exagerada extensão do privilégio de foro, ministros idiossincráticos, e a fragilidade das instituições que estimula as demandas de toda a ordem sobre a Corte.

Uma forma de resolver seria transformar em lei o que antes era costume: a saída do ministro, após exercer a presidência da Corte. A renovação das pessoas no poder é parte do exercício respiratório de qualquer democracia.

Em nenhuma República a vitaliciedade é uma boa regra. Nos Estados Unidos, tem sido objeto de muita controvérsia. Todos os demais cargos do outros poderes têm mandatos fixos. Não se justifica essa prerrogativa pouco solidária com os princípios republicanos fundadores.

O mandato não é o único problema do Supremo Tribunal. Ele exerce funções de justiça quase ordinária, quando devia ser fundamentalmente a corte constitucional e o recurso em última instância. E não para protelar sentenças passadas em julgado em outras instâncias, mas para dar a palavra final em conflitos constitucionais. Principalmente aqueles nos quais se opõem cidadãos e o Estado ou os conflitos que eventualmente ocorram entre os outros poderes da República. Este controle constitucional, sim, é um mecanismo indispensável ao equilíbrio democrático e será sempre prerrogativa do STF. Para que a Corte melhor o exerça sua composição deveria conter algum mecanismo que permita a renovação mais frequente.

 


Míriam Leitão: Voo solo

O voo da Embraer para ser parte da indústria global será sempre turbulento, seja qual for a rota. Se virar parte da Boeing, não será em uma simples “combinação dos negócios”, mas sim um processo no qual a grande engolirá a pequena. Se ficar isolada em um mercado, hoje dominado por um duopólio, mas ameaçado pela China, pode ser pequena demais para competir. Para o país, o dilema também não é fácil.

Não se trata apenas da velha divisão entre nacionalistas e globalistas. O Estado foi a grande alavanca que permitiu o voo da Embraer de São José dos Campos para o mundo. Nasceu estatal com vantagens e subsídios, explícitos ou camuflados, de grande valor. Foi privatizada com financiamento estatal. Continuou voando graças aos benefícios e financiamentos do Estado. É um caso de sucesso empresarial, e de desenvolvimento de tecnologia, mas sem o incentivo do dinheiro coletivo não teria chegado onde chegou.

Contudo, é uma empresa privada e deveria estar livre para tomar as decisões que fossem melhores da perspectiva dos seus acionistas. Mas, como é uma empresa especial, o governo, ao privatizá-la, conservou a golden share. É uma única ação, mas dá superpoderes a quem a possui. A União pode, por exemplo, vetar uma troca de nome ou de logomarca da empresa. Também pode impedir que sejam criados ou alterados programas militares que envolvam o Brasil ou que terceiros sejam capacitados para operar tecnologia militar brasileira. O controle acionário da empresa só pode ser transferido com o aval da União, que também precisa permitir que seja feita qualquer oferta pública de ações.

Dos 11 membros do conselho de administração, um deles é indicado pela União. Dois deles são indicados pelos empregados da companhia; e oito pelos demais acionistas.

Do total de ações da Embraer, 51% estão negociadas na Bolsa de Nova York, ou seja, mais da metade do seu capital já está nas mãos de estrangeiros. A maior participação individual, 12% das ações, segundo a SEC (US Securities and Exchange Commission), a CVM americana, é do fundo Oppenheimer, um dos maiores fundos de investimentos americano. Logo após vem o Brandes Investment Partners, também americano, com 7,73%.O BNDES aparece em terceiro lugar, com 5,36%. Mas a maior parte das ações, 74%, está pulverizada nas mãos do mercado, no Brasil e no exterior.

O mercado de jatos regionais tem uma disputa ferrenha entre a Embraer e a Bombardier. Mas há iniciativas de países como China, Rússia e Japão para avançar sobre ele. A Bombardier acaba de ser comprada pela Airbus. Por isso já se esperava que a Boeing tentasse comprar a Embraer. O professor da UFRJ Respício do Espírito Santo, especialista no setor, acha que a Boeing deve estar interessada em duas unidades de negócios da Embraer: a de aviões comerciais e a de aviões executivos.

— Não acho que haveria interesse na unidade de defesa, porque a Boeing já é muito forte nisso e não teria muito o que ganhar. É importante entender que cada unidade é uma empresa diferente dentro do grupo, com CNPJ, CEO e conselho diretor diferentes. Então a Boeing não compraria a Embraer, mas uma unidade da empresa — afirmou.

O professor define como “um atraso de mentalidade” dizer que não se pode vender a Embraer para uma empresa estrangeira:

— A holding da Embraer já é uma empresa mundial, a maioria do capital é negociada no exterior e por isso a Boeing poderia comprar ações da empresa na Bolsa de Nova York e passar a ser majoritária.

O fato é que se a Boeing comprar a Embraer ou algumas de suas unidades, ela vira um apêndice da empresa americana. Se o governo brasileiro usar o seu poder para tentar impedir o negócio, pode ser inútil, porque o controle de uma empresa com capital tão pulverizado, em que os dois maiores acionistas são fundos americanos, nem é fácil determinar. Se ficar sozinha, a Embraer pode não aguentar a competição nos próximos anos com a entrada forte da China nesse mercado. Os próximos dias definirão a natureza dessa “combinação de negócios” que está sendo discutida entre as duas empresas.

(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)