Míriam Leitão: Encurralados
A entrevista do general Braga Netto é coisa de ditadura. Pedir pergunta antecipada e por escrito, limitá-las, não é a forma de comunicação democrática. Desse jeito não funciona, general. A intervenção federal é uma possibilidade de encontrar uma saída, mas os primeiros sinais são preocupantes. Não enfrentar a crise de segurança do Rio seria um erro porque a pressão da ditadura do tráfico piorou.
Tudo é mais complicado do que parece no Rio e no quadro da segurança do Brasil. Os protestos contra a intervenção têm razão em grande parte, principalmente porque alertam para a necessidade de precaução contra excessos. Há riscos e precedentes, mas as críticas pecam quando ignoram a atual realidade de quem vive encurralado entre o medo da tirania dos traficantes e o risco diário de violência na circulação pelo Rio de Janeiro. O general Braga Netto diz que é exagero da mídia, mas, num sinal de que não está à vontade no papel que exerce, se cerca dos seus colegas de farda, se fecha no mundo que entende e ao qual pertence. A cena dos três militares dando entrevista fardados parecia familiar aos mais velhos, como eu, mas podia ser apenas impressão. Afinal, as Forças Armadas têm um papel a exercer no Estado de Direito. A forma autoritária da entrevista, contudo, lembrava demais os velhos tempos.
O biombo de todos os presidentes anteriores na questão da Segurança Pública tem sido a Constituição. Ela entrega essa obrigação aos estados, exime os prefeitos, e os presidentes sempre atuaram nas crises se dizendo auxiliares dos governadores. Nada mais absurdo, principalmente agora que os principais crimes que se combate são federais. O presidente Michel Temer quer mostrar que mudou essa atitude, mas seu Plano Nacional de Segurança não saiu do papel, por que com o Ministério da Segurança seria diferente? Afinal, o nome completo do Ministério da Justiça incorporava esse assunto e tinha na sua alçada todos os órgãos que agora trocaram de ministro e de lugar na Esplanada. A torcida é para que o ministro Raul Jungmann encontre uma forma de coordenação com os estados e não use a “bomba atômica”.
A frase do presidente Temer definindo como “jogada de mestre” o que ele fez neste momento infeliz da história do Rio é desrespeitosa. Por outro lado, as manifestações prévias sobre os riscos de que a intervenção signifique opressão da população das favelas do Rio ignoram que ela já vive sob opressão de autoridades não constituídas pelo Estado brasileiro.
“Ninguém pode desrespeitar a lei do morro”. Assim uma moradora da Rocinha, com quem conversei esta semana, se referiu às várias regras de comportamento, de horário de circulação, de proibição de qualquer relacionamento com policial e outras ordens que emanam das autoridades do tráfico. Ela está deixando a Rocinha e vai para outro morro onde acha que estará mais segura e onde investiu todas as suas economias e as do marido. Lá na nova residência terá que obedecer à lei da milícia.
O general Braga Netto pode ser um bom gestor. Precisará de mais do que isso para vencer todos os enormes desafios que vão da falta de estrutura para a polícia à corrupção policial. Se ficar fechado em copas com as tropas não sairá do lugar. Precisará de investimento em inteligência, em integração, em troca de informação, em planejamento, em estudo das experiências que deram certo na urgente e difícil tarefa que lhe foi delegada. Precisará sobretudo de tempo e de recursos. Não pode se deixar usar numa “jogada de mestre” de um presidente que pode estar pensando em eleição.
O sucesso do general e de suas tropas depende do bom relacionamento com a comunidade do Rio e com a comunidade das favelas. Nesse ponto, a comunicação é essencial. Não há de ser com perguntas por escrito e normas autoritárias de entrevistas que ele vai inaugurar essa interação. Comunicação não tem uma via só. Isso funciona em regimes autoritários e não em sociedades democráticas. A entrevista poderia ser considerada apenas uma prova de maus modos dos entrevistados, mas foi mais um sinal de que talvez não se consiga avançar nesse esforço de normalização da vida no Rio de Janeiro. Sem comunicação não funciona, general.
Míriam Leitão: Temer e Meirelles, fogueira das vaidades
O primeiro objetivo do presidente Temer ao se colocar como candidato é adiar a hora em que será um pato manco, um governante sem poder, em fim de mandato. Temer quer manter a ideia de que tem um horizonte amplo. A expectativa de que possa ter poder no futuro aumenta sua força agora. Seu movimento levou ao improviso do ministro Henrique Meirelles, considerando encerrado seu tempo na Fazenda.
O Brasil terminou a semana com duas estranhezas. Um presidente impopular que tem ambições de permanecer no cargo e por isso todos os seus atos serão considerados de campanha, e um ministro da Fazenda que já encerrou o expediente, mas ainda não deixou o cargo.
Temer e seu grupo são profissionais do poder, sempre estiveram colados aos cascos dos navios, e agora estão no comando. Seus ministros mais próximos são investigados, e, se continuarem ministros, terão a vantagem do foro privilegiado. Isso sem falar em outras regalias. Ele próprio tem uma vantagem decorrente de uma falha na lei eleitoral: pode disputar a eleição estando no poder, enquanto seus concorrentes precisarão estar fora de qualquer cargo.
O ministro Henrique Meirelles tem bons serviços prestados, tanto no Ministério da Fazenda quanto no Banco Central. Ajudou o ex-presidente Lula a vencer a desconfiança contra ele, que, em 2003, elevara o dólar, a inflação e o risco-país. Depois, foi o ponto de resistência contra as propostas econômicas equivocadas do partido do então presidente. No Ministério da Fazenda, montou uma boa equipe. Ele, sua equipe e um competente Banco Central tiraram o país da inflação de quase dois dígitos e da recessão.
O problema do ministro é que ele não tem os atributos de comunicação naturais de um candidato. Sua única experiência com as urnas foi no seu estado natal, Goiás, numa eleição proporcional. É difícil imaginar Meirelles empolgando as massas em um palanque ou usando de forma convincente o horário eleitoral.
Meirelles não fez um anúncio formal sobre a candidatura. Numa entrevista à rádio Itatiaia, disse que sua etapa à frente do Ministério está cumprida e que estava “contemplando” a possibilidade de se candidatar. Mais tarde, em entrevista à CBN, confirmou sua ambição de concorrer. Um ministro da Fazenda que diz que essa etapa de sua vida está encerrada tem que, em seguida, entregar o cargo. Mas ele disse que a candidatura ainda depende de alguns fatores. Um deles é ter estrutura partidária. Se Meirelles anda se aconselhando com marqueteiros experientes como Duda Mendonça, deve ter ouvido que esse anúncio na condicional o deixa num limbo. Nem é mais ministro da Fazenda, nem ainda é candidato. Fica difícil entender a estratégia de Meirelles.
Temer tem ouvido que, se há um legado do seu governo, ele mesmo deve se aproveitar disso. Vários dos que estão no seu grupo dependem dessa vitória, como biombo contra a Justiça. O STF, pela sua espantosa lentidão, faz com que o foro seja um excelente negócio. A prerrogativa pode ser restringida, mas essa decisão ficou presa na armadilha Dias Toffoli. O ministro interrompeu a tomada de decisão do STF sob o argumento de que o Congresso estava deliberando sobre isso, e os políticos engavetaram o assunto. Agora a intervenção trancou a gaveta a chave.
Temer e Meirelles têm o mesmo pensamento. Ambos calculam que a economia vai crescer este ano e com inflação baixa, aumentando a sensação de conforto econômico. Ambos acham que podem ser beneficiários desse momento. A recuperação, desta vez, tem características próprias. O desemprego permanece muito alto, e a sensação de insegurança está presente nas famílias. Há bons indicadores de melhora. É possível medi-los, mas ainda é difícil senti-los. É improvável que o tímido fim da recessão, em ambiente hostil de desemprego e renda, seja capaz de alavancar candidatos que pontuam tão pouco nas pesquisas. Há outros itens na agenda do brasileiro. A intervenção federal na segurança do Rio é manobra que tem muitos riscos e, se trouxer ganhos, serão a longo prazo. A candidatura de Temer aumentará o combate à intervenção, porque ela será vista como manobra eleitoreira. As ambições do presidente tornam ainda mais difícil esse fim de governo.
Míriam Leitão: Ritmo da economia
Quando o IBGE divulgar o PIB de 2017, no dia 1º de março, o número deve ficar em torno de 1%, mas o resultado do último trimestre ficará pequeno, entre 0,1% e 0,3% em comparação com o terceiro. Vai parecer que o PIB está desacelerando. Mas os economistas acreditam que a economia está ganhando fôlego. As famílias vão gastar R$ 100 bilhões a menos com dívidas e isso alavancará o consumo em 2018.
O Itaú Unibanco estima que o PIB do quarto trimestre subiu apenas 0,1% em relação ao terceiro. O Bradesco e o BNP Paribas projetam 0,3%. Por essa forma de se olhar, a economia parece estar perdendo vigor, já que no primeiro trimestre houve uma forte alta de 1,3%, seguida de um número de 0,7%, no segundo, e de 0,1% no terceiro. O problema, explicam os economistas, é que o crescimento da agropecuária ficou concentrado no primeiro trimestre e agora está “roubando” PIB dos outros trimestres, do ponto de vista estatístico:
— O quarto trimestre deve ser baixo, em relação ao terceiro, mas por uma questão estatística. O PIB da agricultura ficou concentrado no primeiro trimestre e por isso ele ficou negativo nos outros três. Mas quando a gente olha para as outras duas formas de comparação do PIB, sobre o trimestre do ano anterior e no acumulado em 12 meses, a tendência de aceleração é clara — explica o economista Artur Passos, do Itaú.
A taxa em 12 meses, de fato, mostra isso. Depois de afundar 4,6% no segundo trimestre de 2016, o PIB ficou cada vez menos negativo a cada trimestre e fechará 2018 com uma alta em torno de 1%, voltando para o azul pela primeira vez desde 2014. Em 2018, continuará acelerando, podendo fechar em 3%, como estimam tanto o Itaú quanto o BNP Paribas, ou até mais.
— O índice de difusão do PIB, calculado pelo Itaú, que mostra quantos setores estão crescendo, estava em 46% em janeiro. Em novembro já havia subido para 54%. O crescimento está mais espalhado — completa Passos.
O economista Gustavo Arruda, do banco BNP Paribas, aposta que o crédito será uma das alavancas para o crescimento. Ele chama atenção para a queda do endividamento das famílias, que irá liberar renda para o consumo. O Banco Central tem um indicador que mede o comprometimento da renda mensal com o pagamento de dívidas. Em dezembro, ele caiu para 20%, o percentual mais baixo desde 2011. Pela estimativa do BNP, o número continuará caindo este ano, para 18,5%, o que significa R$ 100 bilhões a menos de gastos com dívidas em 2018 em relação a 2017.
— A média entre 2011 e 2016 foi de 22% de comprometimento da renda com pagamento de dívidas. Agora, já percebemos uma queda mais acentuada e isso vai continuar. É significativo o impacto disso no consumo — explicou.
O grande problema continuará sendo o desemprego. Apesar das estimativas de queda ao longo deste ano, e com mais criação de vagas formais, não há qualquer projeção de que a taxa, que hoje está em 11,8%, volte rapidamente aos patamares anteriores à crise. O presidente da Associação Brasileira da Indústira Têxtil (Abit), Fernando Pimentel, conta que o seu setor perdeu 130 mil vagas entre 2015 e 2016. No ano passado, abriu apenas 2 mil postos e este ano deve gerar 20 mil:
— Se esse ritmo for mantido, o setor vai precisar de mais seis anos para recuperar o que perdeu. As empresas aprenderam a ficar mais “magras”, ou seja, a produzir mais com menos funcionários. E, além disso, há as incertezas na economia e na política que têm travado os investimentos em novas plantas.
A reforma trabalhista, diz Pimentel, é positiva, mas ainda vai precisar de uns 4 ou 5 anos para ser pacificada nos tribunais. Esse é o tempo estimado para que a Justiça julgue as ações da nova legislação e crie uma jurisprudência que retire as dúvidas sobre as novas regras.
— A reforma foi muito positiva porque viabiliza a formalização de outras formas de emprego e de relação entre empregador e empregado. Mas levará tempo para se ter um panorama mais claro sobre os seus efeitos — disse Pimentel.
A economia está em recuperação. As travas para uma retomada mais rápida continuam sendo a incerteza política e a ausência de solução para o desequilíbrio crônico das contas públicas.
Míriam Leitão: O que fazer depois
O governo já não contava com a aprovação da Previdência na última revisão orçamentária anunciada em janeiro. Tanto que, mesmo sem anunciar, ele abateu o ganho de R$ 5 bilhões que teria se ela fosse aprovada. Apesar disso, é possível que na próxima revisão, em 22 de março, em vez de cortar mais, deve ser liberada parte dos R$ 16 bilhões contingenciados. É que a arrecadação está melhor do que o esperado.
Medidas para ajustes na Previdência em legislação ordinária têm sido estudadas. Uma das ideias é a de reformular a regra de cálculo do valor do benefício. Outra seria no valor das pensões. Isso pode ser feito por medida infraconstitucional e teria ganho importante. Mas há resistências internas, porque afetaria apenas o Regime Geral e pouparia os servidores. Faria o oposto do que a reforma estava tentando que é diminuir as desigualdades entre os sistemas.
A situação de 2018 não é crítica, mas a do ano que vem é. Em 2019, o ganho da reforma seria de R$ 12 bi a R$ 14 bi. Para preparar o orçamento será preciso cortar em várias áreas, fazer avaliações em todos os programas e reduzir os valores dos que tiverem mais fraudes. Um desses que têm muitos furos é o seguro-defeso, destinado a pescadores em época em que é preciso suspender a atividade. Nele há sinais claros de fraude.
Tudo o que tem sido pensado não substitui a reforma. A mudança em algumas regras na Previdência por lei ordinária, o combate à fraude, a reavaliação dos programas sociais significam redução das despesas, mas não ajudam a equacionar o enorme rombo das contas públicas. Na equipe econômica, defende-se a tese de que a derrota da reforma terá o efeito de piorar as projeções fiscais, o que afetará a confiança e o ritmo futuro da atividade econômica.
Essa visão pessimista parece contraditória com a alta da bolsa e principalmente da ação da Eletrobras. Os analistas consideram que o governo, agora, mais do que nunca, precisará da privatização da empresa. E por isso a ação sobe. É possível que a empresa seja vendida, mas isso exigirá a aprovação do Projeto de Lei da privatização, a negociação do acordo entre o governo e a Eletrobras. Só então começará a ser preparada a operação em mercado. Na melhor das hipóteses, no início do segundo semestre.
O pacote anunciado na segunda-feira foi feito como uma forma de se ter uma agenda legislativa, após o abandono da reforma da Previdência. Não convenceu e ainda provocou reação do deputado Rodrigo Maia. De todas as medidas, a mais importante será a do PL da Eletrobras. A que tem mais efeitos futuros será a da autonomia do Banco Central, se ela for mesmo apresentada.
Um ponto curioso no cenário fiscal: os economistas estimam que o país terá três anos relativamente tranquilos no endividamento público. A dívida permanecerá alta, mas sem a aceleração que houve nos últimos anos. O ItaúUnibanco, por exemplo, calcula que a dívida bruta ficará estável, em torno de 74% do PIB, entre 2017 e 2019. Isso por causa da devolução de recursos do BNDES ao Tesouro e dos efeitos da regra do teto de gastos, que impedirá o crescimento das despesas. O efeito da regra do teto em 2019 fará com que o aumento da despesa fique limitado à inflação do ano anterior. Para se ter uma ideia do que isso significa, nos últimos 20 anos, o gasto público teve crescimento médio de 6% ao ano em termos reais.
Essa aparente calmaria esconde um enorme risco mais para frente. Sem a reforma da Previdência, o cenário fiscal fica insustentável e a dívida começará a subir rapidamente a partir de 2020, para chegar a 95% do PIB em 2025. Pelos cálculos dos economistas do Itaú, se a reforma tivesse sido aprovada em 2017, pelo texto do substitutivo do relator Arthur Maia, o ganho fiscal para o país, em 2025, seria de 1,2% do PIB. Uma economia de cerca de R$ 79 bilhões apenas nesse ano. Se o mesmo texto for aprovado em 2019, a economia será de 1% do PIB, ou cerca de R$ 66 bilhões.
No curto prazo, em 22 de março, quando o governo descontingenciar parte das despesas, parecerá que a reforma da Previdência não faz falta. Engano. O aumento da arrecadação que está havendo este ano é apenas conjuntural, resultado da melhora da atividade econômica. O curto prazo está melhor, mas o futuro ficou mais incerto.
Míriam Leitão: Os dois atos
A criação do Ministério da Segurança não representa coisa alguma, a não ser a transferência de órgãos de um lado para outro da Esplanada, já muito abarrotada de ministérios, e mais cargos para nomeação. Dependendo de quem for escolhido para comandá-lo, pode ser ainda pior do que já está. Por que a Polícia Federal ou a Polícia Rodoviária Federal ficariam melhores saindo da Justiça?
Ao anunciar ontem que vai criar o novo órgão, o presidente Temer reduz a força de sua própria decisão de sexta-feira de decretar a intervenção na segurança do Rio. No primeiro ato, é a tentativa de encontrar uma saída para problema agudo. O segundo é inútil e demonstra falta de foco. A ameaça principal vem do narcotráfico. Ele ficou muito poderoso nos últimos anos. Antes o país tinha uma soma de facções locais, agora mudou. “O crime organizado virou um empreendimento multinacional”, diz uma autoridade. Contra ele, os braços do Estado precisam se unir, com soma de esforços e troca de informações.
A intervenção só terá resultados se houver muito planejamento, inteligência e uso intensivo da tecnologia. Nunca funcionou, e não funcionará agora, o “prender e arrebentar”, apesar de ainda hoje existir quem defenda esse caminho, com aplausos de plateias desavisadas. O crime sofisticou-se e há a complicação territorial. Os moradores das favelas são seus escudos e primeiras vítimas. Uma das muitas dificuldades do novo comando da segurança será saber com que parte da Polícia pode contar e que parte já trabalha para o narcotráfico.
Não há uma crise de segurança exclusiva do Rio. Há uma crise de segurança. Ela atinge vários estados, e o Rio é apenas a ponta mais visível desse iceberg. O combate ao crime exige todos os recursos que o Estado puder mobilizar. Para que funcione, é preciso apostar no que há de mais moderno em tecnologia de vigilância e controle.
Antes de mergulhar na atual confusão, a partir das suas declarações sobre o processo do presidente Temer, o diretor-geral da Polícia Federal, Fernando Segóvia, foi em visita oficial às agências de segurança dos Estados Unidos. FBI, INL (departamento de combate ao narcotráfico), DSS (setor de segurança do Departamento de Estado), ICE (segurança de imigração). Ouviu propostas de cooperação e ofertas de compartilhamento de tecnologias com a Polícia Federal. Independentemente da crise interna no órgão, essa é uma agenda importante que tem que continuar tendo desdobramentos.
O Brasil carrega ainda a cicatriz do velho trauma do autoritarismo. Por fundadas razões. Por isso, teme a vigilância e o controle como se fossem sinônimos de cerceamento de direitos. Mas nenhum país constrói hoje um bom sistema de combate ao crime organizado sem o uso intensivo de tecnologia. O problema no país é que até o aparato das Forças Armadas lembra outros modos e períodos. O general Sérgio Etchegoyen, respondendo a um jornalista, na sexta-feira, disse que “As Forças Armadas jamais foram ameaça à democracia..." Até esse ponto a frase espantou porque parecia a negação da História, mas ele completou: “desde a redemocratização.” O ministro Raul Jungmann reforçou a ideia, lembrando que as Forças Armadas estão obedecendo a comandos constitucionais. A necessidade de fazer esse esclarecimento mostra como o Brasil ainda tem velhos medos. A intervenção federal com o uso das Forças Armadas foi entendida, por alguns, como intervenção militar, o que evidentemente não foi o que aconteceu.
Agora o país vive outra história, e as Forças Armadas reclamam internamente do uso excessivo de suas tropas em ações para as quais não foram treinadas nem destinadas. Reclamam, mas cumprem as ordens. Nada há de errado em usar as Forças Armadas sob o comando constitucional.
Há muito a aprender com o que deu certo no passado. Na Operação Suporte, da Polícia Federal, na época sob o comando do diretor Paulo Lacerda, foi construída a tecnologia de cruzamento de dados e informações que levou à criação futura das UPPs. Nessa operação trabalhava José Mariano Beltrame, que depois assumiu a secretaria de Segurança do Rio. Existem experiências que podem ser estudadas. A luta não é perdida, mas é muito difícil. O trabalho será demorado e intenso, mas desistir dele seria desistir do país.
Míriam Leitão: Nas franjas da Justiça
As muitas nuances do Judiciário tornam o caso Lula mais complexo. Não é o ministro Luiz Fux, hoje presidente do TSE, que vai decidir se pode ou não haver registro de candidaturas. Ele já não estará no cargo. Em relação à prisão, se algum recurso da defesa for levado pelo ministro Edson Fachin para a turma, será à Segunda Turma. Lá, a maioria é a favor de que a pena seja cumprida só após o julgamento de tribunal superior.
No dia 15 de agosto, às 19 horas, o ministro Luiz Fux deixa de ser presidente do TSE. Exatamente neste momento começa o prazo para a inscrição das chapas. A opinião forte de Fux sobre a Lei da Ficha Limpa é importante, mas quem vai dizer se a candidatura de Lula é “irregistrável” será o TSE presidido pela ministra Rosa Weber.
A expectativa é a de que o ex-ministro Sepúlveda Pertence imprima novo tom à defesa do ex-presidente. Ele foi ontem ao ministro Edson Fachin falar do habeas corpus em favor de Lula. Reclamou do ritmo “porto-alegrense” da Justiça, querendo dizer que os desembargadores do TRF-4 foram rápidos demais em condenar. O problema é que ele precisa desse mesmo ritmo para que andem os pedidos no STJ e STF de habeas corpus preventivo em favor do ex-presidente Lula.
Se o assunto chegar à Segunda Turma, o resultado pode ser bem diferente do que foi no caso do deputado João Rodrigues, preso ontem, depois da decisão da Primeira Turma. A Segunda tem outra composição e outra maioria sobre essa questão. Lá estão Celso de Mello, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Fachin. Destes, apenas Fachin é a favor da prisão após a condenação em segunda instância.
A respeito do plenário, permanece a mesma dúvida. Qual seria o resultado de um novo julgamento sobre o momento do início da execução da pena? Se chegar ao pleno, será a quarta análise do assunto em oito anos. Já analisou o assunto em 2009, 2015 e 2016, com resultados diferentes. E agora a questão pode voltar novamente. Esta semana, a surpresa foi o voto do ministro Alexandre de Moraes. Ele é a favor do cumprimento da pena após a condenação em segunda instância. Resta a dúvida sobre Rosa Weber, que votou contra a segunda instância, e uma eventual mudança de voto dos outros ministros. A única certeza é a nova posição do ministro Gilmar Mendes
.
A favor de Lula há o fato de que agora ele contará com uma defesa juridicamente mais sólida, porque conduzida pelo ex-ministro e veterano jurista Sepúlveda Pertence. A defesa de Lula até agora foi excessivamente politizada, o que ajudou a dar uma narrativa aos manifestantes e aos defensores políticos do ex-presidente, mas não afetou o julgamento.
Há algumas frestas para o ex-presidente. Estreitas. A situação dele permanece muito difícil. A publicação do acórdão do TRF-4 dá à defesa, na prática, 12 dias. Ela tem 10 dias para abrir o acórdão eletronicamente e, depois de aberto, dois dias para a apresentação dos embargos de declaração. Há duas batalhas para a defesa: evitar a prisão ao fim do julgamento dos embargos e reverter a inelegibilidade. A maioria dos juristas costuma sustentar que a aplicação da Lei da Ficha Limpa é muito difícil de ser contornada e que há caminhos — mas não muitos — para adiar a prisão de Lula.
Fux fez questão de deixar claro que a Lei da Ficha Limpa, legislação de iniciativa popular, será respeitada, e que um ficha-suja é irregistrável. Lula, quando concluir o julgamento da segunda instância, será um ficha-suja pela lei que foi defendida, em relatoria e votos, pelo PT. Quem decidirá sobre essa espinhosa questão do registro de candidaturas será o TSE sob o comando de Rosa Weber. Estarão também como representantes do Supremo na Justiça Eleitoral os ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin. Esse trio será mais duro do que o que acaba de sair e o que se formou sob Fux.
Os ministros do Supremo no TSE têm mandato, e o de Fux termina em agosto. É por isso que na eleição mais incerta da nossa história recente a composição do tribunal será tão mutante. Num mesmo ano, o TSE está tendo três presidentes. O emaranhado jurídico pode ser enorme, mas a tendência até agora parece ser contra o ex-presidente Lula.
Míriam Leitão: Visão de mercado
O Ibovespa afundou ontem 2,6% num dia em que no mundo inteiro houve quedas fortes. O temor é que o banco central americano suba os juros mais rapidamente este ano. O S&;P teve queda de 4,1%, e o Dow Jones, o maior recuo em pontos da história. No Brasil, espantosa foi a alta anterior. A bolsa teve o melhor janeiro em 12 anos, e a entrada de capital estrangeiro em um mês foi quase do tamanho de 2017.
Em janeiro, a alta no mercado brasileiro foi de 11% e houve quebras de recordes sucessivos. Nos últimos 12 meses, em que o país viveu crise fiscal e tensão política, as ações na bolsa tiveram uma valorização, segundo cálculo feito pela Economática para a coluna, de mais de R$ 800 bilhões. O cálculo foi feito com o pico, antes das últimas duas quedas.
O movimento de ontem foi mundial e não tem muita ligação com o que acontece aqui. Mas o interessante é se perguntar, mais do que a oscilação negativa dos últimos dois pregões, o que levou ao movimento de alta.
Num seminário na semana passada do banco Credit Suisse, continuava a aposta de que as reformas seriam aprovadas. Se não forem pelo governo Temer, deverão ser por quem for eleito em outubro, independentemente do viés político. Outro motivo da visão positiva é que a previsão mais comum é de crescimento por dois ou três anos, para recuperar a perda da recessão.
Quem cruza os dados da conjuntura política e fiscal do país com o movimento do Ibovespa não pode deixar de se espantar. Nos últimos 12 meses, terminados no fim de janeiro, o índice saiu da casa dos 60 mil pontos para 85 mil, o que representou uma valorização nominal de R$ 823 bilhões das empresas brasileiras, segundo o estudo elaborado por Einar Rivero, da Economática. A queda de sexta e de ontem levou o índice para 81 mil.
Apesar do temor de mudança da política monetária americana, o cenário externo não é ruim. Os EUA estão com PIB mais forte, assim como a Europa, e não há risco de desaceleração abrupta da China. Há bastante liquidez no mundo, e esses dólares buscam mercados emergentes como o Brasil porque estão mais dispostos a correr riscos. Em janeiro, o saldo do investimento estrangeiro na bolsa foi de R$ 9,54 bi. No ano passado inteiro foi de R$ 13,4 bi.
Mas, além disso, há a avaliação interna. O economista Luis Stuhlberger, que gere o Verde, um dos fundos de investimento mais rentáveis do país, explicava na semana passada o movimento positivo com a tese de que o mercado financeiro está olhando para o curto prazo e para a possibilidade de crescimento mais forte do Brasil nos próximos dois ou três anos. Pelas suas contas, a alta do PIB pode ficar acima de 3% entre 2018 e 2020.
Amanhã o Banco Central deve reduzir novamente a taxa Selic, para 6,75%. Essa sequência de quedas, que levou a taxa de juros de 14,25% para a nova redução esta semana, será um dos motores da alta do PIB em 2018. Como a inflação está baixa, o mercado financeiro estima que os juros reais também ficarão baixos, o que irá facilitar o pagamento de dívidas, os investimentos e o consumo.
O dólar normalmente sobe em anos de muita incerteza eleitoral, mas em 2018 alguns pontos são favoráveis: o déficit em conta-corrente é muito pequeno, e as reservas cambiais, muito altas. Esse abundância de dólares aqui, que se soma ao fluxo de entrada de capital, faz com que o cenário mais provável seja de a volatilidade ser menor do que em 2002. Haverá, claro, volatilidade. E ontem isso ficou claro.
Em qualquer evento do mercado os dados apresentados são de um país em grave crise fiscal em que os gastos obrigatórios, entre eles o previdenciário, têm subido demais, reduzindo outras despesas necessárias. E, apesar disso, a bolsa teve sucessivas altas.
A conclusão é a de que o Brasil tem um bom curto prazo, com crescimento do PIB, inflação e juros baixos, altas reservas cambiais. O futuro tem entraves que parecem imensos, mas a avaliação mais comum feita no mercado é a de que a situação chegou a tal ponto que qualquer que seja o eleito ele será naturalmente empurrado para uma agenda de reformas para aumentar sua capacidade de governar.
Evidentemente não é tão simples. Se o mercado mundial entrar numa fase de queda de bolsas e aversão a risco, as análises todas terão outro viés. E as crises brasileiras pesarão muito mais.
Míriam Leitão: A nova esquerda
O Brasil precisa de uma esquerda sólida e vinculada aos seus ideais de inclusão, diversidade e promoção da ascensão social
- O Globo
A esquerda precisa se reconstruir. Por ela e pelo Brasil. País de enormes desigualdades e no qual ideias conservadoras têm prosperado, o Brasil precisa de partidos que defendam políticas públicas de inclusão, espaço no Orçamento para os pobres, interesse de grupos excluídos, fim dos privilégios, atualização dos costumes. Mas quem é a esquerda brasileira? A que se autodenomina não parece ser.
A esquerda não pode ser a favor de doação de recursos públicos para o capital. Isso não faz sentido. Aqui, houve aumento das transferências para grandes empresas, inclusive estrangeiras, de 3% para 4,5% do PIB nos governos petistas, pelas contas do Banco Mundial. Pode ser muito mais. Houve várias formas de benefícios às grandes empresas, alguns deles indiretos. Os descontos nos impostos, ou o custo financeiro dos empréstimos subsidiados, deveriam ser um inimigo a combater.
Uma nova esquerda terá que enfrentar definitivamente o engano embutido na tese de que o Estado deve estimular os grupos empresariais para eles serem grandes e lucrativos porque, desta forma, a economia estará bem e haverá emprego. Isso foi tentado pela direita, no regime militar, mas não é estranho um governo conservador ter uma política de transferência para o capital. O que espanta é o governo que se definia como progressista ter implantado as mesmas propostas do regime militar que combateu. A recente política industrial de campeão nacional era idêntica à da ditadura, só que em vez de os beneficiários serem Bardela, Villares, eram JBS, BR Foods, Grupo X. Nos dois momentos históricos a proposta fracassou.
O Brasil é cheio de cartórios, interesses específicos, categorias que conseguiram ter vantagens em relação ao resto da população. Os partidos da esquerda brasileira sempre abraçaram esses grupos, defenderam seus interesses como sendo os do povo. Diante de qualquer comprovação da assimetria de tratamento entre cidadãos do mesmo país, a tese levantada é a do direito adquirido. Quando se tenta mostrar os privilégios na Previdência, a esquerda entra em negação e diz que o problema não existe. A defesa de interesses corporativos não pode ser parte de uma verdadeira agenda de esquerda.
Na época da luta contra a inflação ficou claro o desvio no qual os partidos da esquerda entraram. Um líder do PT me disse em 1994 a seguinte frase: “combater a inflação é um projeto da elite brasileira.” Diante da repercussão, ele negou ter dito. Como ele já morreu, não vou dizer seu nome, apesar de ter certeza de que escrevi o que ouvi. O importante é pensar na frase porque ela coincidia com o comportamento do partido na época do Plano Real. A alternativa que apresentava era a negociação de pacto de preços e salários entre empresários e trabalhadores. O pacto era um conluio, no qual os trabalhadores de maior renda e de sindicatos fortes recebiam reajustes salariais que eram repassados para os preços, e tudo isso realimentava a inflação, que atingia violentamente os mais pobres. A inflação alta concentrava renda, mas não havia em nenhum partido de esquerda uma consciência da natureza deletéria da escalada de preços.
Nas privatizações também ficou evidente que, mais do que o controle estatal das empresas, o que estava sendo defendido a pedras e chutes em manifestações de rua eram as vantagens dos funcionários das estatais.
A transferência de renda para os mais pobres através do Bolsa Família foi bem executada, depois de abandonada a ineficiente proposta do Fome Zero. O programa tem foco nos mais pobres e todas as avaliações mostram isso. Mas a política perdeu parte do seu valor quando foi apresentada como um benesse do governo de esquerda aos pobres. Ao ser usada como uma chantagem eleitoral, ela foi se parecendo cada vez mais com as práticas clientelistas que sempre manipularam o voto dos pobres.
O Brasil precisa de uma esquerda sólida e vinculada aos seus ideais de inclusão, diversidade e promoção da ascensão social. Por natureza, a esquerda deveria combater o patrimonialismo, porque esse velho mal brasileiro está na raiz das nossas iniquidades. Por destino, deveria ser progressista porque para conservar privilégios e status quo, já existem os conservadores.
Míriam Leitão: Por conta própria
Um em cada quatro brasileiros que está trabalhando inventou seu próprio emprego e está na categoria “trabalhador por conta própria”. É a principal causa da leve queda da taxa de desemprego divulgada ontem. Há uma melhora da economia que se vê em vários indicadores, mas o número de desempregados é absurdo. Nos EUA, Trump tem comemorado a queda do desemprego, um feito do governo Obama.
O presidente Donald Trump, no discurso que faz anualmente no Congresso, o Estado da União, prometeu, na noite de terça-feira, mais crescimento e disse que será decorrência do corte de impostos sobre empresas. Quando Obama assumiu, o desemprego estava em disparada e se aproximava de 11%. Ele recuperou a economia do caos financeiro da crise de 2008 e entregou o país crescendo, com desemprego em queda. Mesmo assim, seu partido perdeu a eleição. Hoje, o desemprego americano está abaixo de 5%. Trump tem surfado nessa onda e a apresenta como sua. O corte de impostos ainda nem teve tempo de produzir efeitos.
No Brasil, tudo tem outra escala. O desemprego caiu pela primeira vez, desde 2014, na comparação com o mesmo período do ano anterior, mas ligeiramente: de 12% para 11,8%. Na média de um ano contra outro, a taxa ficou maior. E olhando-se os números, o que tem puxado a melhora é o trabalhador por conta própria. Um milhão e cem mil brasileiros entraram nesse grupo quando se compara o último trimestre de 2017 contra o mesmo trimestre de 2016. Nessa categoria está desde a pessoa que realiza o sonho do empreendedorismo até aquela que “se virou” diante do ambiente inóspito da destruição de postos de trabalho.
Após a devastação da crise econômica, que se prolonga por três anos, quem poderá crescer na intenção de votos com o alívio modesto que aconteceu ou com a promessa de prosperidade? Que o ambiente melhorou não há dúvida para quem olha os números, mas percepção é diferente de estatística. Na Nota de Crédito do Banco Central veio a informação de que aumentou a oferta de empréstimo para as famílias. Os resultados fiscais mostraram subida da arrecadação. Mas quem pode comemorar isso, ou mesmo sentir, diante de tantas dificuldades diárias da prolongada crise, do bombardeio das más notícias sobre as negociatas em que os políticos se envolveram? Ontem, a 7ª Vara Federal aceitou mais uma denúncia contra o ex-governador Sérgio Cabral. Já são tantas que o país perdeu a conta.
A demanda dos eleitores está ainda difusa, mas certamente os brasileiros vão querer mais segurança, mais emprego, melhores serviços públicos. A pesquisa do Datafolha mostrou que o ex-presidente Lula permanece na frente nos cenários em que aparece, com perto de um terço das intenções, e que o segundo é o deputado Jair Bolsonaro. O primeiro está longe da urna, depois da condenação. O segundo não melhora além da margem de erro no cenário sem Lula. O que cresce é o grupo dos nulos, em branco ou não sabe, que chega a um terço das intenções. A campanha não começou e tudo o que os dados mostram é a confusão. Para fazer a pesquisa, foi preciso ter nove cenários para apresentar aos entrevistados. Fica também claro que há uma avenida para ser ocupada por pessoa que traga esperança para além da polarização raivosa.
Há economistas prevendo que o país pode ter um ciclo longo de crescimento se resolver o nó fiscal que tem pela frente, e que o horizonte da solução começará a aparecer se a reforma da Previdência for aprovada. O debate “E agora, Brasil?”, publicado hoje no jornal, mostra esse pensamento. E os números indicam a importância do tema para a definição do futuro. Um dos vários dados impressionantes exibidos pelo economista José Márcio Camargo é o de que Brasil gastou em 15 anos, com o pagamento das aposentadorias do servidores públicos federais, R$ 1,2 trilhão. Isso é 50% mais do que gastou com educação no período. É dramático, mas a maioria dos candidatos vai tentar fugir de assuntos áridos como a Previdência.
A tantos meses das eleições, qualquer previsão é porosa. Esta é a eleição mais incerta da história recente. No Brasil real, as pessoas inventam seu próprio emprego e buscam soluções diárias para os problemas que o governo — ou a falta de — cria para o país. O brasileiro continua vivendo por conta própria.
Míriam Leitão: Futuro imediato
As lutas de Lula nas frentes política e criminal. A visão mais frequente nos meios jurídicos é que existem espaços para adiar a prisão do ex-presidente Lula, mas não existem espaços para evitar a inelegibilidade. Pode-se evitar a prisão agora, com medida liminar suspensiva, tanto no STJ quanto no STF. Já a Lei da Ficha Limpa é de aplicação quase automática. A defesa precisará ser mais eficiente do que foi até agora porque os recursos têm que ser sólidos.
Os pedidos de habeas corpus que certamente serão impetrados pelos advogados de Lula serão decididos pelos ministros Felix Fisher, no STJ, e Edson Fachin, no Supremo. Os HCs podem pedir a suspensão da ordem de prisão ou podem requerer anulação da condenação. Deferido ou indeferido o HC, os ministros vão querer levar imediatamente a plenário. Ninguém quer ficar com o peso de uma decisão solitária sobre essa questão. A liminar pode ser concedida, ou não, mas o ministro deve buscar a visão do colegiado. Há uma pressa políticoinstitucional de que isso seja decidido e a tendência dos juízes é distribuir o ônus da decisão com o pleno de cada tribunal. Uma fonte que acompanha detidamente tudo o que se passa nos julgamentos da LavaJato acha que há mais chance de o HC ser concedido no Supremo do que no STJ.
O fim do julgamento no TRF-4 é questão de semanas. A defesa tem um pouco mais de tempo do que se imagina, porque os dois dias para os embargos de declaração começam a contar a partir do momento em que os advogados abrirem os autos eletrônicos e eles têm dez dias para fazer isso. Certamente, os autos serão abertos só ao fim desse tempo. Mesmo assim, quem acompanha a maneira de atuação do TRF-4 acha que no final de fevereiro ou no começo de março devem estar julgados os embargos de declaração. Eles são, como se sabe, breves e simples. Têm que discutir apenas pontos obscuros da decisão, sem qualquer rediscussão de prova.
Aliás, mesmo nos tribunais superiores não se discutirá mais a validade das provas, porque do ponto de vista processual, explicam os juristas, toda a discussão “fática” acaba na segunda instância. Agora, os advogados podem alegar vícios do processo. Vão, certamente, discutir novamente se o juiz Sérgio Moro e a 13ª Vara tinham a competência de julgar o caso. A defesa alegou junto à segunda instância que não era o foro adequado porque o dinheiro da OAS para as obras no triplex não veio de contratos da Petrobras. Se não é Petrobras, não deveria ser Moro. Isso foi derrubado insistentemente no TRF-4, mas eles podem levar a mesma questão ao STJ. Se fosse aceito, o julgamento poderia ser anulado. Nos meios jurídicos, a avaliação é que isso tem pouquíssima chance de acontecer. A concessão de qualquer recurso não é automática, ele precisa ter alguma procedência para ser analisado.
A decisão do Supremo sobre prisão em segunda instância não é mandatória. Pelos termos da decisão do STF — que sempre pode ser alterada — foi permitido ordenar a prisão após condenação em segunda instância, mas não tornou a prisão automática ou obrigatória. Contudo, o que já foi determinado pelo desembargador Leandro Paulsen é que, esgotados os recursos no TRF-4, o juiz de primeira instância deve mandar cumprir a ordem. Em outras palavras, que Moro mande prender Lula. Para evitar isso, os advogados entrarão com Habeas Corpus.
Quanto ao Direito Eleitoral, a aplicação é tão clara que um ministro do TSE diz que Lula, no momento, tem “inelegibilidade aritmética”. Basta se cumprir essa curta reta final. A ideia de que será preciso esperar até 15 de agosto, prazo final do registro de candidaturas, para se saber se o ex-presidente será ou não candidato, não faz sentido, segundo essa autoridade. A Lei da Ficha Limpa é clara sobre a impossibilidade de qualquer condenado em segunda instância concorrer a cargo eletivo.
O PT só conseguiria manter a candidatura se tivesse êxito na tentativa de suspender a condenação criminal no STJ. Do ponto de vista da política real, os efeitos desse impedimento de se candidatar estão acontecendo agora. Na política, como no mercado financeiro, tudo acontece antes do fato. Os possíveis candidatos em cada estado já estão formando suas alianças neste momento, e, portanto, vão querer saber quem será o candidato do PT.
Míriam Leitão: A tese da República
O centro da decisão de ontem do TRF-4 foi que o crime de corrupção é mais grave quando cometido pela pessoa que ocupa ou ocupou a Presidência. O que o ex-presidente Lula colocou em risco foi mais que o “patrimônio da Petrobras”, mas “o Estado Democrático de Direito”. Essa foi a tese do desembargador João Pedro Gebran Neto, reafirmada pelos desembargadores Leandro Paulsen e Victor Laus.
Quem preside a República enfeixa sonhos e esperanças, tem poderes concedidos pelos cidadãos através do voto, a autoridade de conduzir a Nação. É por isso que, se cometer crimes, ele tem “culpabilidade extremamente elevada”. Isso fez subir a pena de Lula. Num país com democracia em construção, em que dois presidentes sofreram impeachment no espaço de 24 anos, esse é um ponto fundamental.
A grande pergunta é o que acontece agora? A ordem do desembargador Leandro Paulsen foi a de que o juiz Sérgio Moro, assim que se esgotarem os recursos, determine o cumprimento da pena, ou seja, a prisão em regime fechado do ex-presidente. Fontes da área judicial, que acompanham o processo, acham que o STJ pode manter esse entendimento, mas o STF pode ser levado a reabrir a questão da prisão em segunda instância. O tema ronda o Supremo. A ministra Cármen Lúcia não colocou o assunto de volta porque a decisão foi tomada muito recentemente. Mas o ministro Gilmar Mendes quer que o assunto volte ao plenário. É mais uma ironia, da sempre surpreendente história brasileira, que Gilmar Mendes se transforme na esperança do PT.
Um ponto central do debate em torno do julgamento do caso do Triplex do Guarujá foi a existência ou não de provas. Os defensores de Lula sempre disseram que não havia provas, já que não haveria documentos da propriedade. Os desembargadores disseram que, ao contrário, existem provas abundantes, diretas, indiretas, materiais e testemunhais de que o apartamento estava destinado a Lula, foi reformado para atender às demandas da família e que estava no nome da OAS por um pedido para se esconder a propriedade. O que aconteceu ontem fortaleceu o trabalho do juiz Sérgio Moro, porque a sua sentença foi confirmada pelos três desembargadores que analisaram o recurso do ex-presidente. Toda a sua linha de raciocínio e suas decisões foram mantidas.
A estratégia da defesa, durante o processo, foi construída em cima de três movimentos. Primeiro, afirmar que não havia provas, segundo, arguir a suspeição do juiz Sérgio Moro e a falta de competência da 13ª Vara. Terceiro, apresentar Lula como uma vítima de perseguição política. Essa politização estimulou manifestações de militantes. A campanha antecipada aumentou as intenções de voto. Tudo parecia estar dando certo. Mas ontem ficou claro que a politização não melhorou a chance no tribunal. Como disse Gebran Neto, houve um momento em que Lula teve o direito de falar por vinte minutos diante do juiz Sérgio Moro e ele escolheu fazer afirmações “sem qualquer utilidade jurídica”.
Gebran começou seu voto derrubando todas as preliminares da defesa, e neste ponto mostrou os erros da estratégia dos advogados do ex-presidente. Cristiano Zanin insistiu em questões já julgadas pelo mesmo tribunal, em recursos que ele mesmo havia movido anteriormente. A queda das preliminares foi confirmada pelos outros juízes. Gebran Neto mostrou exemplos de falta de sentido nas teses da defesa. Um deles: os advogados, certa vez, quiseram recusar documentos da Petrobras alegando que foram fornecidos por meio eletrônico e não em papel. “Todo o processo aqui é eletrônico”.
Na discussão de mérito, além de derrubar as alegações de falta de provas, não foi considerado o argumento de que faltou um ato de ofício. Isso foi exaustivamente discutido no mensalão, o entendimento majoritário do Supremo neste caso é que não é necessária uma decisão específica que beneficie a empresa corruptora, mas o conjunto de decisões de quem tenha poder.
O grande princípio consagrado ontem foi o de que quem ocupa a Presidência da República tem que zelar com mais rigor para que não ocorram desvios de recursos públicos. “Sua excelência em algum momento perdeu o rumo”, disse Laus. Que isso sirva de aviso aos governantes.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)
Míriam Leitão: Dúvida derruba a tese
Não há perseguição a Lula: país luta contra a corrupção. A incerteza que cerca o julgamento de hoje derruba, por si só, a tese central da defesa do ex-presidente Lula, a de que existe uma guerra jurídica contra ele. O que o país tem é uma Justiça independente, e ele sabe disso. As inúmeras possibilidades de recursos, e que permitem construir os mais diversos cenários para desdobramento desta ação, mostram que não há uma perseguição judicial contra Lula.
O fato de que adversários históricos, ou aliados circunstanciais, estejam vivendo situações semelhantes à do líder do PT mostra que o país está diante de um processo de luta contra a corrupção e não uma perseguição a um indivíduo ou a um partido. Entre seus antigos aliados estão o ex-governador Sérgio Cabral e o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, agora presos. Entre seus adversários, o senador Aécio Neves. A lista de políticos investigados por corrupção é enorme, nos mais variados campos políticos. O que acontece no Brasil é um processo maior e mais profundo do que está sendo simplificado pela retórica política. Os líderes do PT sabem disso, mas disputam, como sempre, a narrativa mais conveniente.
A narrativa terá que ser repetida muitas vezes. Ele tem outros processos a responder, como o do apartamento que usa ao lado do seu, ou o do sítio de Atibaia. Isso em Curitiba, mas em Brasília, ele foi denunciado em outros processos como os investigados na Operação Zelotes. No caso atual, o do apartamento do Guarujá, um dos argumentos da defesa é que o imóvel nunca foi dele, e que Lula o visitou como um potencial comprador. Por esse raciocínio, teria que ter havido a ocupação para então ficar claro que o apartamento fora dado a ele. O artigo 317 do Código Penal define corrupção de forma bem mais ampla. É “solicitar ou receber para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumila, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”.
Se aquela foi uma visita apenas de um pretendente comprador, que depois desistiu, é preciso explicar muita coisa. Por que a OAS refez todo o projeto, e apenas para aquele apartamento, indicando a personalização do imóvel? Por que os móveis da cozinha vieram da mesma loja que forneceu para o sítio de Atibaia e pagos da mesma maneira? Qual a origem da escritura rasurada? Havia uma conta-corrente, em cada empreiteira com negócios com a Petrobras, para pagar aos políticos e aos funcionários em postos estratégicos. A acusação diz que foi daí que saiu o dinheiro para o apartamento.
Há muitas outras dúvidas razoáveis. E sobre elas os juízes do TRF-4 construíram seus votos que vão divulgar hoje. A defesa, ao lado do argumento político, de guerra judicial, construiu também uma argumentação técnica para responder à acusação. No dia de ontem, ninguém tinha certeza da decisão final dos três juízes que vão julgar o caso. E isso é bom. Palpites, havia muitos. Mas essa dispersão de possibilidades dá a certeza de que a Justiça está fazendo seu papel e julgando segundo os autos. Se eles forem fracos, a sentença será reformada.
No dia 26 de setembro, o tribunal de Porto Alegre absolveu pela segunda vez o ex-tesoureiro do PT João Vaccari. Ele estava condenado a nove anos, numa ação, e 15 anos, em outra. O PT soltou uma nota em que disse que “a segunda absolvição do companheiro João Vaccari no TRF-4 mostra que o Judiciário pode sim corrigir as arbitrariedades da Vara de Curitiba”. Quarenta e dois dias depois, em outra ação, a sentença contra Vaccari foi reformada. Para mais. Em vez de dez anos de prisão, a pena foi para 24 anos. O desembargador Leandro Paulsen, um dos julgadores de hoje, que havia votado pela absolvição nas duas ações anteriores, disse que condenou porque pela primeira vez havia provas.
É dessa incerteza, das dúvidas, das possibilidades de recursos e das mudanças de sentenças que se faz uma Justiça independente. O dia de hoje é importante não pelo resultado do julgamento, mas porque o Brasil tem uma democracia forte o suficiente para investigar, denunciar, julgar políticos suspeitos, de qualquer partido. Até mesmo um líder popular e que por duas vezes ocupou a Presidência do país. Ninguém está acima da lei.