Míriam Leitão: Parte da crise

STF está deixando de ser solução para virar parte do problema. O STF ficou mais difícil de entender. Ou mais fácil. O ex-ministro José Dirceu é reincidente específico. Já foi condenado pelo mesmo crime no Mensalão e na Lava-Jato. O que leva o ministro Dias Toffoli a soltá-lo em um habeas corpus não pedido pela defesa? O ministro Ricardo Lewandowski interferiu numa área de competência do Executivo às vésperas do recesso, repetindo manobra já usada.

No dia 18 de dezembro de 2017, Lewandowski suspendeu a MP que adiava os aumentos do funcionalismo. O argumento do ministro não poderia ser menos jurídico: “Não se mostra razoável suspender um reajuste de vencimentos que, até cerca de um ano atrás, foi enfaticamente defendido por dois ministros e o presidente da República.” Ele é livre para não gostar de uma mudança de opinião do governo, mas isso não é base para a liminar. Como tomou a decisão um pouco antes do recesso, o governo teve que dar o aumento e a liminar virou decisão definitiva. Agora, em nova interferência em área do Executivo, proibiu a venda de qualquer estatal.

Na terça-feira, na 2ª Turma do STF, o ministro Dias Toffoli não poderia simplesmente acolher o argumento da defesa do ex-ministro José Dirceu porque ela confrontava a condenação em segunda instância. Toffolli, então, deu o que a defesa não pedira: habeas corpus de ofício, afirmando que havia “plausibilidade” no recurso sobre a dosimetria da pena. Ou seja, como pode ser que o STJ considere a pena alta, apesar de ele ter sido condenado em dois escândalos pelo mesmo crime, ficará em casa.

Quando Toffoli foi nomeado houve um debate entre especialistas sobre se ele estava ou não impedido de julgar o Mensalão. Pareciam mais convincentes os argumentos dos que consideravam que sim. Afinal, fora advogado do PT nas campanhas eleitorais de 1998, 2002 e 2006, depois trabalhara diretamente com José Dirceu, que como chefe da Casa Civil fazia a articulação política. O ex-ministro estava sendo julgado, e o que se discutia era exatamente caixa 2 nas campanhas do partido e a compra de apoio político no Congresso. Toffoli não se declarou impedido.

Na terça-feira, ele conduziu o voto dele na sessão da 2ª Turma que libertou José Dirceu. Votou também a favor do relator Gilmar Mendes no trancamento da ação contra o deputado tucano Fernando Capez. Alguém pode considerar que isso mostra isenção já que trata petistas e tucanos com a mesma régua. O problema é que um dos seus auxiliares até recentemente era o irmão de Capez.

Ele não é o único a não entender as regras de impedimento. O ministro Gilmar Mendes já foi várias vezes criticado pelo mesmo motivo. Talvez só saiamos desse impasse importando do futebol a estratégia de bandeirinhas. O que diriam os bandeiras das constantes reuniões do ministro Gilmar Mendes com integrantes do governo e parlamentares investigados da Lava-Jato? Impedimento.

Há quem diga, inclusive no STF, que tudo é culpa da presidente Cármen Lúcia porque ela não pautou as ações diretas de inconstitucionalidades (ADI) que estão nas mãos do ministro Marco Aurélio e poderiam definir o mérito da prisão após condenação em 2ª instância. Recapitulando: de 1941 até 2009 vigorou o entendimento da prisão após a confirmação da sentença por órgão colegiado. Em 2009, o STF reformou essa decisão num voto do ministro Eros Grau. Em 2016, ela foi discutida três vezes no Supremo — em um habeas corpus, em uma negativa de cautelar, e em um recurso extraordinário, relatado pelo ministro Teori Zavascki. Sempre foi a favor da prisão. Essa última tinha repercussão geral, ou seja, era vinculante. Os derrotados querem que o assunto seja votado até que um dia vençam. Em setembro, a ministra Cármen Lúcia sai da presidência e virá exatamente Dias Toffoli. Os condenados por corrupção têm esperança de dias melhores.

João Claudio Genu, do PP, é um reincidente específico também. Condenado no Mensalão e na LavaJato. Só na Lava-Jato ele já foi condenado 11 vezes. Foi solto. Talvez por seu caso ter sido julgado no mesmo dia de Dirceu, argumenta um especialista tentando achar alguma coerência no Supremo.

O país vive uma crise grave e múltipla. O Supremo com seus votos, suas contradições, com a agenda de alguns dos ministros, está virando parte da crise, em vez de ser solução.


Míriam Leitão: Tentativa de Meirelles

O ex-ministro e ex-presidente do Banco Central Henrique Meirelles tem muito a dizer na economia, o candidato Henrique Meirelles dá os primeiros passos num partido cheio de divisões e que nega, na sua essência, parte do seu discurso. Ele diz que a primeira pessoa que quis que ele fosse candidato foi o senador Romero Jucá, e em seguida diz que defende a Lava-Jato.

Jucá disse que a Lava-Jato era uma sangria que precisava ser estancada. Portanto, essa é uma contradição insanável do entorno político de Meirelles. E não é a única. Na entrevista que concedeu ao “Valor”, ele foi perguntado sobre como seria seu apoio no Rio. A resposta foi: “Eu trato com o governador Pezão e com o deputado Leonardo Picciani”. Com essas companhias, fica estranha a frase: “Acho importante fortalecer e solidificar a Lava-Jato. É importante que o país conclua essa fase de fortalecimento das instituições.” O MDB é apenas um dos vários partidos envolvidos nas investigações da Lava-Jato, mas a resposta soa estranha dentro do partido de um presidente investigado.

Seu maior risco é permanecer com 1% das intenções de voto. Na entrevista se vê que ele ainda está tentando convencer o interlocutor de que é mesmo candidato. Na economia, ele tem a dizer que quando foi para o governo Lula ajudou a afastar o medo que se tinha de uma política populista que colocasse a perder o Plano Real. E que agora, ao voltar ao governo, fez parte do trabalho que reduziu drasticamente a inflação. Quando fala de economia, ele se sai bem, mas mostra, nas outras perguntas, a falta de traquejo político.

Sua tese é a de que o país saiu da recessão e que portanto não é candidato para propor “uma fase de sangue e lágrimas”. Essa fase já acabou, segundo ele. “O problema era atravessar a recessão que a Dilma criou. Só que já saímos dela. O ponto é não voltarmos para ela.” Meirelles contava desde o início com o cenário de que durante o ano o país iria acelerar o crescimento e que isso daria conforto econômico às pessoas. Mas não é isso que está posto como futuro próximo. O Brasil patina. A última previsão de crescimento pelo Focus é de 1,55%. O desemprego permanece alto e não há qualquer esperança de que ele caia fortemente. De fato o Brasil está melhor agora do que na recessão iniciada no governo Dilma e que consumiu 11 trimestres de 2014 a 2016. Mas essa é uma saída claudicante.

O Banco Central na Ata do Copom divulgada ontem disse que a perda do ritmo de recuperação é temporária e que no segundo semestre a economia pode voltar a ter indicadores melhores, como teve em abril. Pode ser que o pior tenha ficado em maio e junho, meses atingidos em cheio pela greve do setor de transporte de carga. Mas houve também, por outros motivos além da greve, uma queda de confiança do consumidor e do empresário e uma redução de investimentos. Isso levou à redução geral das previsões de crescimento do ano.

Meirelles tem algumas boas respostas para perguntas difíceis, como, por exemplo, como ele fará para não ser confundido com o presidente Michel Temer. “Me orgulho do que eu fiz no governo Temer, como me orgulho muito do que eu fiz no governo Lula. Eu nunca temi ser confundido com o governo Lula nem com o Temer.”

Ele defende que se o país eleger um governo populista, que não tenha compromissos com a reforma, enfrentará uma crise de elevação da dívida. Concentra suas críticas no governo Dilma, e não no governo Lula do qual participou, e quer se vincular aos bons períodos da economia. “Eu fui presidente do Banco Central por oito anos e o Brasil cresceu, gerou renda, gerou capacidade de consumo. Saí do governo, entramos em recessão. Voltei para o governo, o Brasil saiu da recessão.”

O problema desse discurso é que a boa fase de crescimento não é atribuída a ele. E a saída da recessão agora é muito fraca e lenta e num ambiente de forte desemprego. A campanha está só começando e Meirelles ainda precisa convencer o seu próprio partido de que tudo isso valerá a pena. A última vez que o PMDB teve candidato foi em 1994. Nas últimas cinco eleições preferiu aderir a alguma candidatura.


Míriam Leitão: Ciro e o tempo

Ciro Gomes chega à terceira disputa presidencial confirmando certos defeitos e algumas qualidades. Continua sendo um atirador a esmo, como mostrou nos últimos dias quando mirou em um vereador de primeira legislatura. O tempo não conteve seu temperamento. Ele tem se preparado para o cargo e pode mostrar bons trunfos como gestor, mas suas ideias econômicas permanecem com muitos equívocos.

No Ceará, Ciro e depois seu irmão Cid, como governadores, fizeram uma revolução na educação e, curiosamente, ele tem falado pouco disso. Hoje são inúmeras as cidades cearenses que constam entre as mais bem avaliadas nos anos iniciais e finais do ensino médio. Em Sobral, onde ele foi prefeito, há várias escolas com as melhores avaliações. Esse bom desempenho se espalhou pelo estado. No excruciante problema da educação, há um caminho que passa pelo Ceará no fundamental, como há um caminho que passa por Pernambuco no ensino médio. Sei de visitar escolas nos dois estados.

Na economia, o ex-ministro da Fazenda continua confuso e com propostas mal explicadas. A ideia que ele defende de estabelecer um teto para o gasto com a dívida é a mais perigosa das que já defendeu nesta campanha. Segundo ele, seria um mecanismo parecido com o que existe nos Estados Unidos. Lá quando bate no teto, como se viu, ou o Congresso o eleva ou o governo fecha as portas. Mas o que espanta é ele não ter entendido ainda o que é ser emissor da moeda mais desejada do mundo, e da dívida que mais atrai investidores, e ser um país que sequer tem grau de investimento. Ao mesmo tempo que diz que sabe que a dívida é a poupança dos brasileiros, Ciro aproveita as entrevistas para defender a ideia, fácil e errada, de que os juros da dívida pública são pagos apenas aos banqueiros. Foi exatamente desse erro que o PT fugiu quando quis se tornar viável em 2002. Tantos anos depois, Ciro comete o mesmo equívoco. Limite para pagamento do serviço da dívida pode ser o primeiro passo para um calote.

Na Previdência, ele não nega o déficit, mas quase. Usa números para o rombo que não fazem sentido algum. Aliás, Ciro e números são seres que estão sempre em desencontro. Ele os confunde e mistura, mas fala com uma convicção que quem não entende acredita, quem entende se cansa se for discutir um por um.

Há muito tempo ele propõe como solução fazer uma reforma na Previdência que a leve do regime de repartição para o de capitalização. Desta vez, ele já demonstra entender que há “dificuldades monstruosas” para essa transição. Mas seu modelo ainda não ficou de pé.

A sua proposta de política de preços para a Petrobras repete, sem dizer, a mesma prática do governo Dilma. Ele quer que a estatal receba apenas a seguinte quantia: “quanto custa produzir um litro de gasolina, mais a remuneração do investimento, mais a depreciação, mais o lucro em linha com os competidores estrangeiros.” Ou seja, Ciro está propondo aquilo que critica, controle de preços. Quem dirá quanto é cada parcela do preço? O governo?

São inúmeras as confusões que ele tem feito, mas o que é espantoso é o fato de o tempo não ter dado a ele nem um pouco de temperança. O ataque ao vereador Fernando Holiday — a quem chamou de “capitãozinho do mato” e do qual disse que “a pior coisa é um negro que é usado para estigmatizar” — foi absolutamente gratuito. A jornalista da Jovem Pan até alertou que ele falava aquilo “sem ninguém ter perguntado”. Como ele é ex-prefeito, ex-governador, ex-ministro da Fazenda, ex-ministro da Integração, candidato à Presidência pela terceira vez, o que o faz atirar gratuitamente em um iniciante na política e nestes termos?

Há analistas que consideram que Ciro nunca teve tantas condições, como agora, de disputar de forma competitiva a Presidência da República. Outros acham que ele não mudou e continuará sendo o seu maior adversário. Nesta pré-campanha ele tem confirmado a segunda visão. Cid Gomes, cuja principal função é apagar os incêndios do irmão mais velho, disse que o Brasil quer alguém assim “franco e sincero”. É uma versão. A verdade é que a maturidade chegou em vão para Ciro Gomes.


Míriam Leitão: Esqueletos fósseis

A conta de R$ 17 bilhões que a Petrobras foi condenada a pagar a 51 mil funcionários ativos e aposentados é mais um esqueleto deixado pela gestão petista. A quantia é uma enormidade. Para se ter a ideia, toda a receita estimada pelo estado do Espírito Santo este ano é de R$ 16,8 bilhões. É equivalente a 23 vezes o Orçamento do Ministério da Cultura, antes dos cortes impostos pelo governo.

O acordo foi feito pela Petrobras quando ela era presidida por José Sérgio Gabrielli e tinha um sindicalista na diretoria de Recursos Humanos. Foi considerado muito generoso na época e os dois lados comemoraram os resultados da Remuneração Mínima de Nível e Regime. Os jornais dos sindicatos explicaram como se calculava o piso e era exatamente como a empresa estava executando. E ao contrário do que foi dito por alguns ministros do TST, não trata o trabalhador em área de risco da mesma forma que o do escritório. Há diferenças de pisos. O acordo coletivo foi confirmado em 2009 e só virou um problema três anos depois de assinado, quando os sindicatos perceberam que o texto continha brechas que permitiriam outro entendimento. E, obviamente, passaram a requerer mais. Esse é o papel dos representantes sindicais.

A empresa deveria ter analisado o problema, redigido um bom acordo, feito o balanço dos riscos de maneira mais acurada ao longo dos últimos anos. O comitê que decide sobre provisionamento inclui as áreas jurídica, contábil e de conformidades e riscos. Esse comitê avaliou que não era provável que a empresa perdesse a ação. Era apenas “possível”. Assim recomendou que a estatal não fizesse a provisão. E ela deveria ter feito, tanto que perdeu a ação no TST.

A Petrobras vai recorrer e diz que tem esperança de conseguir inverter o resultado. Continua confiando na vitória apesar de o presidente do TST, ministro Brito Pereira, ter lembrado que o tribunal é a última instância em questões trabalhistas e avisado que a sentença terá que ser cumprida tão logo o acórdão seja publicado. Resta à Petrobras recorrer ao próprio TST, mas que argumentos levariam os ministros a mudar o entendimento? A empresa poderá recorrer ao STF, se houver uma questão constitucional envolvida.

Essa quantia despenca sobre a companhia quando ela se esforçava para reduzir os custos e resolver conflitos e passivos que haviam ficado das gestões anteriores do governo do PT. A empresa foi atingida pela corrupção que provocou entre outros problemas ações no exterior contra a companhia e que já custou um enorme volume de recursos para serem resolvidos. Teve também que suportar o ônus de investimentos decididos por razões políticas e que foram abandonados por serem inviáveis. Tudo teve que ser lançado a prejuízo. Aguentou por anos o custo do subsídio aos preços dos combustíveis. E agora, se for confirmada a derrota nessa ação bilionária, terá que pagar o preço de um acordo mal feito, mal redigido e mal executado. São muitos os esqueletos que ficaram da gestão petista na estatal e eles ainda não foram todos equacionados.

Os erros cometidos na administração do governo passado custaram no mínimo US$ 80 bilhões. Metade disso foi o custo de ser obrigada a vender combustível com preço controlado muito abaixo da paridade internacional. No Comperj, foram investidos US$ 13 bilhões sem retorno. O custo de Abreu e Lima que não será recuperado é calculado em US$ 10 bilhões. As duas refinarias premium que foram lançadas a prejuízo representaram US$ 1,5 bi. Tem ainda o que foi lançado como perdas por corrupção de R$ 6,2 bilhões. A compra de Pasadena representou uma perda de US$ 800 milhões a US$ 1 bilhão. Na compra da refinaria Okinawa no Japão foram queimados outros US$ 400 milhões. Esses são apenas alguns dos esqueletos deixados na companhia. Bilhões em passivos tributários têm sido equacionados. Essa ação trabalhista é mais um desses esqueletos.

Apesar de a Petrobras não precisar desembolsar os recursos imediatamente, a avaliação de especialistas é de que isso cria uma insegurança jurídica para novas ações trabalhistas contra a companhia. No entanto, a empresa permanecia ontem confiante de que conseguirá provar que cumpriu exatamente o que foi negociado na ação coletiva.

(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)


Míriam Leitão: Projeto de demolição

O Congresso não vota medidas de ajuste de despesas e ainda aumenta os gastos. A Câmara aprovou um pacote de bondades para o transporte de carga com oito diferentes tipos de renúncia fiscal. O Senado aprovou o regime de urgência para o projeto que mantém benefícios para o setor de bebidas. As duas Casas decidiram que o Tesouro terá que financiar o pagamento de precatórios de estados e municípios.

Basta acompanhar a marcha da insensatez. Diariamente o Congresso faz uma despesa nova e manda para o Executivo, como se os cofres públicos não tivessem limites. O Judiciário também faz das suas, quando dá sentenças que oneram estatais ou governo. Ontem, aqui neste jornal, o jornalista Ascânio Seleme contou a decisão do TST que manda o Serpro pagar R$ 20 milhões a 10 funcionários. A Petrobras também sofreu uma derrota histórica na maior ação trabalhista já vista no país. Terá que pagar aos seus funcionários R$ 17 bilhões por um acordo feito na época do governo Lula.

É exatamente desta forma que se destrói a estabilidade e se contrata uma nova onda de inflação e crise. A inflação descontrolada parece improvável diante de taxas tão baixas. A divulgada ontem, do IPCA-15, é um ponto fora da curva. Ela voltará a cair. O problema, como sabem os economistas, é que um rombo fiscal deste tamanho, uma dívida com esta trajetória, e decisões amalucadas podem desembocar numa crise de insolvência ou inflação, ou ambas.

O governo errou quando concedeu subsídio ao diesel. Amedrontado com a greve, cedeu. Para não desrespeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal, cortou alguns benefícios, como forma de compensar. O Congresso quer restabelecer os benefícios retirados e aumentar as vantagens concedidas ao setor transportador. Na quarta-feira, o Senado aprovou o regime de urgência para o projeto que desfaz o corte do governo nos incentivos fiscais concedidos à indústria de bebidas de Manaus. Só dois senadores votaram contra essa urgência, Ana Amélia Lemos e Lasier Martins, do Rio Grande do Sul. E por que tanta pressa? Difícil entender os lobbies porque 80% da renúncia fiscal serão para a Coca-Cola e Ambev. Faz sentido subsidiar essas duas empresas?

No mesmo dia, enquanto no Senado se preparava essa bebida difícil de engolir, a Câmara pavimentava as estradas das transportadoras. As empresas poderão dizer que valeu mesmo a pena fazer a greve. Os empresários não foram punidos pelo locaute e serão agora recompensados. O projeto estabelece inúmeras vantagens como a isenção total de IPI, Pis/Cofins para toda a compra de caminhões e equipamentos novos pelo setor. Além disso, poderão abater no Imposto de Renda os gastos com pedágio, o que significa que a sociedade pagará o pedágio, na prática. As multas por evasão de fiscalização rodoviária serão transformadas em advertência. Eles querem também anistia para as multas concedidas durante a greve. O relator desse caminhão da alegria foi — vejam vocês — um dono de transportadora com 120 caminhões: o deputado Nelson Marquezelli. O mesmo que durante a paralisação gravou um vídeo chamando os caminhoneiros de heróis e prometendo que em 15 dias aprovaria benefícios para o setor. Foi em 20 dias. O governo nem pode dizer que é vítima porque mandou sua base votar a favor, com medo de nova greve dos “caminhoneiros”.

Na terça-feira, o jornal “Valor” trouxe reportagem dos jornalistas Ribamar Oliveira e Cristiano Romero informando que, ao aprovar a Emenda 99, o Congresso embutiu um dispositivo que determina que o Tesouro financie com juros baixos os estados e municípios no pagamento de precatórios. As dívidas não pagas por estados e municípios estavam em 2012 em R$ 94 bilhões. A emenda tratava do aumento do uso dos depósitos judiciais para pagar os precatórios, mas o Congresso usa qualquer projeto para colocar os seus jabutis.

A ideia de que a União é uma terra de ninguém que tem um cofre inesgotável resiste contra todas as provas em contrário. As mais estranhas alianças se formam no Congresso quando é para tirar dinheiro do Estado. Se o projeto é aprofundar a crise fiscal, os parlamentares estão indo bem. É exatamente assim, criando despesas, distribuindo benefícios fiscais, rejeitando ajustes, que se destrói uma economia.

(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)


Míriam Leitão: Risco da guerra comercial

O governo americano escolheu um caminho que é um tiro no seu próprio pé. Se ele fosse o único a se ferir, não haveria problema. Mas sempre que há uma guerra comercial todos perdem. Para o Brasil, o confronto entre Estados Unidos e China significa a briga entre os nossos dois maiores parceiros. O protecionismo quando se generaliza reduz o crescimento mundial e espalha prejuízos.

A Casa Branca disse que na opinião do presidente Donald Trump a China tem mais a perder e que serão os chineses que piscarão primeiro. É assim, com essa superficialidade, que Trump vê a intrincada questão comercial. A escalada foi rápida. Na sexta-feira passada o escritório comercial da Casa Branca anunciou que seriam impostas tarifas sobre exportações chinesas no valor de US$ 50 bilhões. Como os chineses disseram que iriam retaliar, a ameaça agora é de atingir US$ 450 bilhões. Em situações como essa, os investidores fogem de ativos de risco e compram ouro e moedas como o dólar e a libra esterlina, considerados reservas de valor. Para o Brasil, a situação é ainda mais delicada porque o país está vivendo uma crise interna.

A economista Monica de Bolle, diretora do programa de Estudos Latino-Americanos e de Mercados Emergentes da SAIS/Johns Hopkins, nos EUA, chama a atenção para o fato de que o Brasil pode ser obrigado a escolher um lado na disputa. Ela lembra que o vice-presidente americano, Mike Pence, fará uma visita ao país na próxima semana e que esse assunto poderá ser abordado na pauta.

— Entre portas fechadas, o governo brasileiro poderá sofrer pressão dos americanos. Temos uma guerra comercial escalando entre os nossos dois principais parceiros — diz Monica.

José Augusto de Castro, presidente da AEB, dá a dimensão do que está acontecendo:

— Os Estados Unidos são o maior importador do mundo e a China, o maior exportador. Por aí se pode ver a dimensão da briga. Se as sobretaxas forem de fato adotadas, haverá menos comércio, menos demanda e isso derruba os preços das commodities.

Os desdobramentos podem atingir também outras áreas além do comércio e da produção. Há uma simbiose econômica entre os dois países que vem dando certo nos últimos 20 anos e que funciona da seguinte forma: os chineses têm elevado superávit comercial com os americanos, na casa de US$ 360 bilhões por ano, mas, em compensação, usam parte desses dólares para comprar títulos do Tesouro dos EUA. Com isso, o governo americano consegue financiar o seu déficit fiscal de forma mais barata porque conta com o apetite chinês pelos seus papéis. A China, explica Monica, carrega reservas de US$ 3,4 trilhões, em grande parte títulos dos EUA.

— Esse jogo vem funcionando. Se os chineses pararem de comprar os títulos, eles vão se desvalorizar, com efeitos também sobre os países emergentes. O governo brasileiro, por exemplo, tem títulos dos Estados Unidos para compor as suas reservas — disse.

Silvio Campos Neto, da Tendências Consultoria, explica que essa relação foi benéfica para americanos, chineses mas também para o resto do mundo. Os chineses conseguiram diversificar sua indústria, exportando mais produtos industrializados para os americanos. O governo dos EUA, por sua vez, conseguiu financiar o seu déficit, enquanto consumidores e indústria compraram produtos mais baratos da China. Já o resto do mundo ganhava com mais crescimento econômico, mais importações chinesas e, no caso dos emergentes, aumento do preço das commodities.

— A compra de títulos do Tesouro americano pelos chineses manteve os juros desses títulos baixos. Isso foi bom para o mundo todo. Agora, há dois riscos: de os juros subirem por uma diminuição da compra pelos chineses, mas também por aumento da inflação nos EUA, como resultado da guerra comercial. E isso vem em um contexto de crescimento acelerado nos EUA, com desemprego já baixo. Por isso o movimento de proteção do mercado financeiro — explicou.

Ontem foi um dia de baixa nos mercados do mundo inteiro, e a alta da bolsa brasileira foi considerada um ajuste técnico depois de muita queda. Nos Estados Unidos vários setores empresariais, do varejo, tecnologia e indústria, protestaram. O que está claro é que o risco ainda não está dimensionado, até porque Trump tem agido como um aprendiz.


Míriam Leitão: Mudanças de cenário

O Banco Central deve manter a taxa de juros na reunião desta semana, mas espera-se alguma indicação sobre o futuro da relação entre o câmbio e a política monetária. Na reunião em que os juros caíram para 6,5%, o dólar estava cotado a R$ 3,29. De lá para cá, houve a greve do transporte de carga que pressionou os preços. A incerteza internacional também subiu. Tudo está em alteração na economia.

Desde que os juros caíram para 6,5% em 21 de março, o dólar já subiu 13,9%. No dia 21 de maio, quando teve início a greve, o mercado financeiro ainda esperava crescimento de 2,46% para o PIB de 2018, de acordo com a pesquisa feita semanalmente pelo Banco Central junto a bancos e consultorias. Ontem, o número já havia caído para 1,76%. Alguns economistas sustentavam, quando começou a paralisação, que os efeitos seriam pontuais e reversíveis.

Quem subestimou esse impacto já teve tempo de rever suas previsões. Primeiro porque aumentou a fragilidade fiscal do governo com as concessões feitas ao setor e as contas de 2019 ficaram ainda mais nebulosas. Depois porque os choques secundários permanecem na economia provocados pela novela do frete, que tem gerado um desdobramento por dia. A circulação de mercadorias não voltou completamente à normalidade e certos preços ainda não recuaram ao patamar anterior, o que tem provocado a retração do consumo.

Com isso, as projeções para o crescimento do PIB têm desabado. Normalmente, a mediana das projeções cai devagar. Desta vez em duas semanas mudou completamente a previsão do ano. Nem tudo é efeito da greve, nesse meio tempo, o IBGE também divulgou o PIB do primeiro trimestre, com um crescimento de apenas 0,4% sobre o quatro trimestre de 2017. Na comparação com o mesmo trimestre do ano anterior houve forte desaceleração, de 2,1% para 1,2%. Os números já mostravam que a economia havia perdido fôlego nos três primeiros meses do ano.

A sondagem dos investimentos feita pela FGV apontou uma forte queda de 7,6 pontos no segundo trimestre, em relação ao primeiro. A confiança dos empresários e dos consumidores também caiu pelo segundo mês seguido, no último indicador divulgado pela FGV, de maio, e deve continuar em queda. Os índices de confiança do mercado financeiro, ou seja, dólar, bolsa, juros futuros, também apontaram para essa direção. O risco-país, medido pelo CDS de cinco anos, subiu de 141 pontos, na mínima do ano em janeiro, para 269 pontos, na máxima, atingida ontem.

Algumas instituições do mercado financeiro chegaram a apontar a possibilidade de os juros subirem, porém o grupo que prevê isso é minoritário. De todo modo, há uma expectativa em torno do que será o comunicado do Banco Central para o futuro da política monetária.

Esta semana sai a prévia da inflação de junho, e a previsão é que o IPCA-15 deve ficar em torno de 1%. Os índices de junho vão captar inteiramente a inflação provocada pela greve, mas certamente o patamar voltará a cair nos meses seguintes. Esse choque pegou a economia com a inflação bem abaixo do centro da meta, portanto não é isso que preocupa, e sim o fato de que a partir dos últimos eventos — a greve, a volatilidade do dólar, o impasse da tabela de fretes — houve uma redução da confiança de empresários e consumidores e a economia se enfraqueceu novamente quando estava no caminho de uma recuperação, ainda que lenta.

O início do processo de barreiras tarifárias impostas pelos Estados Unidos às importações de produtos chineses tem efeitos imprevisíveis, mas certamente não serão bons para a economia mundial. Até porque o governo Trump tem também espalhado conflito entre outros parceiros. Os Estados Unidos exportam mais para o Canadá do que para a China. E também impuseram tarifas sobre alguns produtos canadenses. Para piorar, o presidente Trump reagiu de forma grosseira à declaração do primeiro-ministro Justin Trudeau de que pode retaliar. A perspectiva de uma guerra comercial, ou uma série de conflitos entre a maior economia do mundo e seus principais parceiros comerciais não é boa. Quando o comércio mundial se retrai, por elevação do protecionismo, o ritmo de crescimento econômico global também diminui. E isso afeta todos os países, ainda que pontualmente possa haver ganho para um ou outro país.


Míriam Leitão: Durma-se com esse barulho

Em apenas uma semana, Donald Trump conseguiu brigar com aliados do G-7, defender a Rússia, fazer uma cúpula-espetáculo com Kim Jong-un e iniciar uma guerra comercial com a China. Na quarta-feira, postou no Twitter: “durmam bem esta noite, não existe mais a ameaça nuclear”. Na sexta, o escritório comercial da Casa Branca, USTR, anunciou a lista de 818 produtos chineses que pagarão sobretaxa.

Em apenas uma semana o Banco Central brasileiro vendeu US$ 24,7 bilhões para tourear o dólar que ficou indócil durante todos os dias. A economia americana crescendo, os juros do Fed subindo, a incerteza presente no Brasil e no mundo, tudo isso foi batendo na relação entre as moedas. Nesta copa cambial, o peso argentino teve uma queda na quinta-feira de quase 7%. O mundo está um lugar cheio de riscos e complexidades e o “líder supremo americano” é aquele fator imprevisível.

A cúpula com a Coreia do Norte atraiu todos os olhares, obviamente, porque o presidente Trump atravessou meio mundo para falar de igual para igual e chamar de líder o ditador que era tratado como o mais desprezível dos governantes. Cúpulas históricas como a de Ronald Reagan e Mikhail Gorbachov, em 1986, e de Richard Nixon e Mao Tse- Tung, em 1971, foram preparadas com várias reuniões de assessores e seguidas por outras tantas reuniões antes que se pudesse dizer que haviam sido um sucesso. Esta foi instantânea. Pouca preparação e imediata comemoração como sendo o fim da ameaça nuclear.

Toda a pose de Kim Jong-un e sua inegável vitória nesse encontro não esconde o imenso desastre que tem sido a opção da ditadura dinástica que herdou do pai e do avô. Nos anos 1980, as duas Coreias tinham o mesmo PIB per capita. O crescimento da Coreia do Sul nos últimos 30 anos foi dos mais fortes em todo o mundo. Hoje, o PIB per capita da Coreia do Sul é estimado em US$ 32 mil enquanto na Coreia do Norte é de apenas US$ 1,8 mil. Mais de 80% dos sul-coreanos têm acesso contínuo à internet, no Norte o percentual é menor que 0,1%, segundo o jornal inglês “The Guardian”. As exportações dos norte-coreanos são de US$ 4 bilhões por ano, contra US$ 552 bi do Sul.

Ao ir até Cingapura e nem tocar na questão de direitos humanos da Coreia do Norte, o governo americano mostrou mais uma vez a relatividade dos seus valores. Dependendo da conveniência, os Estados Unidos podem denunciar os excessos das ditaduras ou ignorá-los. A família Saud, por exemplo, pode fazer coisas das arábias que não será cobrada.

A cúpula que atraiu os olhares não terá grande efeito na economia. A crise com os parceiros do G-7 pode acabar sendo contornada, apesar dos maus modos com que Trump tratou o premier do Canadá, em particular, e todos de forma geral. Aquela foto, Trump emburrado e sitiado, já nasceu histórica. Mas o que mais afeta a economia mundial é a perspectiva de guerra comercial com a China, que ficou mais concreta com o comunicado do USTR. Ao todo, exportações chinesas no valor de US$ 50 bilhões serão afetadas. A China já disse que retaliará os americanos.

É neste mundo que o Brasil vive a sua crise. O Banco Central prometeu vender mais US$ 10 bi para a semana que vem. Tem conseguido evitar uma alta mais forte do dólar. No dia 7 de junho, antes da entrevista do presidente do BC, Ilan Goldfajn, o dólar bateu em R$ 3,90. Ontem, fechou em R$ 3,73. Ilan disse que não haveria limites para o programa de swaps cambiais, que chegou ao recorde de US$ 110 bilhões no governo Dilma. A diferença é que a inflação está abaixo da meta e não se defende uma cotação, apenas tenta-se amenizar a volatilidade.

Serão meses difíceis até o fim das eleições em outubro. O dólar quando sobe desta forma torna todos os ativos mais instáveis, derruba os preços das commodities e impacta a inflação. O Brasil fará sua transição para o próximo governo num mundo que tem velhas confusões e um ingrediente novo: um presidente como Trump no comando da principal economia. Ele pode, numa mesma semana, fazer uma diplomacia pirotécnica, brigar com os amigos, e fechar o mercado para seu principal parceiro comercial.

(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)


Míriam Leitão: As renúncias

O problema do Brasil não é exatamente a carga tributária alta. Ela é alta, mas tem desconto para alguns e acaba sendo menor do que parece. A solução para o Brasil não é apenas cortar os gastos, é reduzir as despesas que são feitas em favor do beneficiário errado. É nesse ponto que o Tribunal de Contas da União (TCU) tocou. As renúncias fiscais são 30% da receita líquida, sem elas o país teria superávit.

OTCU olhou para o ponto certo do nó fiscal brasileiro e vários ministros falaram em tom forte sobre o assunto. Segundo Vital do Rego, as renúncias são de tal magnitude que afetaram o equilíbrio das contas. Para José Múcio, são “o novo vetor da desigualdade”. E na opinião de Bruno Dantas, o país tem “um encontro marcado com esses benefícios fiscais concedidos sem critério, sem análise de custo-benefício”.

Em função disso, o relator colocou ressalvas nas contas do governo em 2017. Pode haver muitos motivos para ressalvas, mas as renúncias fiscais em sua maioria foram herdadas. Algumas têm caráter plurianual e não podem ser simplesmente extintas. O ministro Vital do Rego disse que se o governo tivesse limitado as renúncias à média de 2003 a 2008 (R$ 223 bilhões) teria tido superávit. Mas no gráfico que acompanha o voto está claro que o total das renúncias fiscais era de 3,4% do PIB em 2008 e foram para 6,7% em 2015. Quem elevou o volume dos benefícios aos empresários após 2008 foram os governos Lula e Dilma. O governo Temer reduziu os gastos tributários para 5,4% em 2017, ano que está sendo examinado, principalmente os concedidos através do BNDES. A criação da TLP reduzirá ainda mais, no futuro, o gasto com subsídios financeiros do banco.

Temer errou quando fez um Refis e não conseguiu conter sua base que aumentou as vantagens para os devedores da Receita. Errou nas concessões à bancada ruralista no perdão às dívidas do Funrural. Concessões feitas a partir da crise que atingiu seu governo com as denúncias do Ministério Público. Mas os dois governos anteriores é que realmente aumentaram o total das transferências para os empresários entre 2008 e 2015.

No Brasil, o mesmo empresário que reclama da carga tributária alta é o que pede um programa de desconto para o seu setor. Assim, o governo acaba cobrando muito de todos os contribuintes e transferindo uma parte para determinados setores, lobbies e programas. E desta forma o Estado cria desigualdades.

Acabar com isso é uma dificuldade. Na atual crise do diesel, o ministro Eduardo Guardia elegeu um desses benefícios para serem cortados: o Reintegra. O programa iniciado em 2011 concede ao exportador o benefício no valor de 2% das suas exportações. A decisão foi reduzi-lo para 0,1%. O que já aconteceu? A Justiça mandou adiar a mudança do Reintegra. Só uma única empresa de Santa Catarina acha que perderá R$ 130 mil. O setor de rochas no Espírito Santo perderá R$ 14 milhões. A soma geral do que exportadores ganhariam com a manutenção desse benefício chega a ser bilionária. Por isso já estão na Justiça à caça das liminares.

A Zona Franca de Manaus custa R$ 25 bilhões em renúncias, e se o governo resolver reduzir um só dos setores beneficiados, como aconteceu agora com bebidas, o lobby se organiza.

Os programas de benefício fiscal são uma teia de vantagens que foram sendo distribuídos como sesmarias. Pelo relatório, 85% das renúncias foram estabelecidas sem prazo de vigência e 44% não têm qualquer órgão que avalie os resultados.

Subsídio pode ser concedido. É uma decisão de política pública. Mas tem que ter objetivos e critérios. Deve ser dedicado a atividades com vantagens intangíveis, como a cultura, ou beneficiar os grupos mais vulneráveis da sociedade ou se dirigir a setores que precisam de um estímulo temporário e cujo desenvolvimento represente um ganho social.

Mas qualquer renúncia fiscal é gasto, portanto precisa ser fiscalizado e avaliado constantemente. No Brasil, ocorre o oposto: eles se dirigem em geral aos mais ricos, às regiões mais desenvolvidas, não são avaliados e são concedidos de acordo com a força de cada lobby. Assim acabam aumentando as desigualdades do país.


Míriam Leitão: Pontos de incerteza

A alta dos juros nos EUA agrega um ponto a mais de incerteza numa conjuntura que já tem muitas complicações. Além de subir a taxa, o Fed comunicou novas altas, o que dará mais impulso ao dólar e elevará a volatilidade. Mas a economia brasileira estaria com problemas mesmo se nada estivesse mudando no mundo das moedas e dos juros. Nunca houve uma recuperação tão difícil quanto essa.

Nas outras recessões, o país saiu do negativo para o forte positivo. Desta vez, sucessivos golpes têm atingido a economia, minando as forças necessárias para o retorno. A greve do setor de transporte de carga acabou e deixou conflitos que ainda paralisam partes da atividade econômica.

A alta dos juros americanos já era esperada e se sabe como os mercados reagem: diante do aumento da rentabilidade dos papéis do Tesouro dos EUA, os capitais saem de países emergentes e considerados de risco. Mas ontem o Fed também mudou sua comunicação e avisou que fará mais duas elevações da taxa. Tenta evitar a inflação que pode vir de um mercado de trabalho aquecido. A Fitch prevê que o desemprego nos EUA vai cair para 3,4% no ano que vem, o que, se acontecer, será o mais baixo em 65 anos. Isso produz oscilações de valor de ativos no mundo inteiro. Muito mais num país que enfrenta suas próprias dificuldades políticas e econômicas como o Brasil.

A greve dos caminhoneiros terminou, mas deixou a economia em suspenso. Negociadores permanecem tentando desfazer os nós que se formaram dentro da cadeia produtiva, mas com pouco sucesso. A Abiove, Acebra e Anec, que dizem representar “quase a totalidade da comercialização de soja, farelo de soja e milho”, divulgaram nota dizendo que não estão participando de negociações nem com o governo nem com caminhoneiros. A Associação Brasileira de Produtores de Soja entrou na Justiça contra o tabelamento. Ou seja, a notícia de que o setor de grãos tinha fechado um acordo com os caminhoneiros foi negada pelas organizações que representam uma parte importante do agronegócio. Por enquanto, o que tem acontecido é o aumento da judicialização. Na política e na economia, tudo tem ido parar na Justiça.

Há quem no governo assegure que as negociações avançam, mas o fato é que a esta altura a greve do transporte de cargas se transformou numa espécie de tremor com choques secundários. Ela parou o país, provocando desabastecimento, espalhando prejuízos aos produtores e elevando os preços. A normalização é aparente. Há combustíveis nos postos e mercadorias nos supermercados, mas há também muitos setores parados na queda de braços sobre o valor do frete.

Os indicadores começam a apontar melhoras depois de terem sido unânimes em decepcionar no primeiro trimestre. Ontem, o IBGE divulgou dados positivos sobre as vendas do varejo em abril, com 1% de alta, e 1,3% no varejo ampliado. Na comparação com o mesmo mês do ano anterior, foi a 13ª alta consecutiva, mas foi menos acentuada. A economia vai assim contando os grãos de boas notícias, porque elas não são frequentes.

Em fevereiro, a projeção do mercado para o crescimento de 2018 era de quase 3%, e esta semana caiu para 1,94%. A inflação tinha felizmente um colchão para absorver o choque e por isso deve ficar, segundo o Banco Central, na meta. Há vários choques ao mesmo tempo: o da greve dos caminhoneiros, o do conflito do frete, o do dólar, o das incertezas políticas. Todos atingem a perspectiva de crescimento do país.

É neste contexto que entra o impacto provocado pela alta dos juros americanos. Esse movimento em quatro atos do Fed está atraindo capitais para os EUA e vai provocar queda do valor das commodities, o que afetará também a economia brasileira.

Mas nada do exterior é mais forte do que os fatores internos que mantêm a economia brasileira em ambiente de crise. Um governo fraco está nos seus últimos meses e o quadro eleitoral não podia estar mais embolado. A vantagem que resta é a de o país estar em boa posição cambial, com baixo déficit em transações correntes e altas reservas para, com isso, enfrentar a turbulência.

(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)


Míriam Leitão: Estrada de erros

O acordo feito pelos caminhoneiros com o setor de grãos, mesmo sendo parcial, é a primeira boa notícia nessa sucessão de erros cometidos durante e após a greve do transporte de carga. Abre o caminho para que o setor privado negocie entre si e consiga resolver o conflito entre o caminhoneiro que quer um preço mais justo para o seu trabalho, e o empresário que precisa reduzir seus custos.

Tudo isso resulta de um erro inicial. Os custos brasileiros de logística são altos porque o país há décadas erra no planejamento do setor de transporte. Depende demais das rodovias mesmo para o transporte de longas distâncias, o que não é a vocação do modal. E, apesar de depender em quase 70% do transporte de mercadorias pela via rodoviária, tem péssimas estradas.

É a má qualidade das estradas que reduz a competitividade do setor produtivo e não o preço mais justo pago ao caminhoneiro. O país ficou no pior dos mundos, não estruturou modais alternativos e fez uma opção incompleta pelas rodovias. Uma espécie de rodoviarismo sem estradas. Um dos obstáculos que impedem o aumento da produtividade e competitividade da economia brasileira é exatamente o gargalo do transporte.

O caminhoneiro autônomo tem um custo duplo pela má conservação das estradas. Gasta mais tempo do que deveria para cruzar as distâncias e deprecia mais rapidamente o seu capital, no caso, o caminhão. O produtor do agronegócio costuma dizer que ele é competitivo da porteira para dentro da propriedade, e vai perdendo essa eficiência no lento e difícil escoamento da sua produção para o consumo interno ou exportação. É um jogo de perde-perde.

Com a greve, o governo decidiu interferir estabelecendo a tabela de frete e foi o começo de uma sucessão de trapalhadas que o Brasil tem assistido desde então. Uma coisa é certa: quando o governo decide interferir na formação de preços dentro da cadeia produtiva, ele provoca distorções. Essa regra é antiga e já foi testada à exaustão na era dos tabelamentos e congelamentos dos anos 1980. O Brasil viveu as últimas semanas a sensação de estar sendo obrigado a rever filme velho e ruim.

O governo Dilma enfrentou suas greves do transporte elevando o subsídio ao diesel às custas da Petrobras. Desta vez se tenta subsidiar sem passar a conta para a estatal, mas até agora não ficou claro qual será a engenharia fiscal e financeira para que tudo funcione como foi negociado para o fim da greve. Os remendos para que a paralisação terminasse resultaram numa série de desajustes que vão aparecendo em bases diárias desde então.

A Cide foi pensada para ser um imposto com destino certo. Os recursos deveriam ser usados para o investimento na melhoria e conservação das estradas. Se fosse assim, e houvesse estradas melhores, o caminhoneiro teria mais produtividade. Mas no governo Dilma foi zerada a Cide para subsidiar o diesel e agora novamente ela foi eliminada para reduzir o preço do diesel. Como o imposto estava sendo cobrado com uma alíquota menor do que no passado, foi preciso diminuir também o PIS/Cofins. E mesmo isso não será suficiente para pagar o custo de subsidiar o diesel. E que diesel? Um dos piores usados no mundo. O produto brasileiro tem alta concentração de particulados e de enxofre. Polui, adoece e mata. O Brasil está estimulando o uso de um produto nocivo à saúde humana. Não tem fim a estrada da irracionalidade brasileira no transporte.

Se for confirmado o acordo entre os caminhoneiros e os produtores de grãos e se ele for seguido por outras negociações bem sucedidas, o país poderá afastar temor imediato da volta da greve. Mesmo que se confirme o melhor cenário, o dos acordos, haverá muito a fazer no Brasil para começar a acertar o passo nessa estrada. Não será trabalho para o atual governo. Se o país tiver sorte, o próximo governo poderá começar a mudar essa história. Isso se os candidatos estiverem estudando o assunto. Na época da greve deram declarações superficiais que não autorizam o otimismo. Mas não custa ter esperança em um futuro mais racional.


Míriam Leitão: Risco concreto

O mercado fala por ordens de compra e venda, mais do que por declarações. Pelo movimento das últimas semanas, está claro que não tem confiança nos candidatos que estão na frente. É possível encontrar defensores do deputado Jair Bolsonaro nos bancos, mas as próprias cotações do dólar e da bolsa mostram que os formadores de opinião, e de preços, no mercado não acreditam que ele seja o liberal que finge ser.

O importante não é na verdade o que economistas de alguns poucos bancos do concentrado mercado bancário brasileiro ou de meia dúzia de grandes gestores de ativos pensam ou deixam de pensar. O relevante são os riscos concretos da economia brasileira. Ela tem uma sólida posição cambial, mas uma extrema fragilidade fiscal. Como resultado da desastrada administração Dilma Rousseff, o país saiu da posição confortável de ter uma dívida pública estabilizada. Ela subiu 25 pontos percentuais do PIB desde o início da administração da ex-presidente até os dias de hoje. O superávit primário mantido por 16 anos virou um rombo enorme. O governo Temer, ao perder o rumo em maio de 2017, enterrou a reforma da Previdência que daria alguma redução a esse desequilíbrio fiscal. O que ameaça o país não é a volatilidade deste ano eleitoral, mas o risco de uma crise de confiança na dívida pública se os candidatos viáveis não apresentarem propostas coerentes para enfrentar os problemas fiscais do país. E crise de confiança na dívida atinge todos os poupadores e investidores.

A pesquisa Datafolha deste fim de semana mostra, como escreveram os diretores do Instituto, Mauro Paulino e Alessandro Janoni, um eleitor letárgico. Nada de muito relevante aconteceu desde a última pesquisa, exceto que o nome de Lula na espontânea caiu sete pontos percentuais desde janeiro. O que cresceu na espontânea foi o não voto. Quando perguntados em quem votarão, sem a cartela de candidatos, 23% de pesquisados dizem que o voto será nulo ou em branco. Eram 18% em janeiro. Essa rejeição do processo eleitoral é preocupante, mas pode mudar ao longo da campanha. Qualquer comemoração de candidato agora é realmente prematura porque 46% não sabem ainda em quem vão votar. E há um ano este número estava em 48%. Ou seja, quase metade do eleitorado permanece indiferente aos postulantes presentes. E quase um quarto dos eleitores se dispõe a votar nulo e branco. Na pesquisa induzida subiu de 28% em abril para 32% agora os que não têm candidato. Esses números tornam o quadro completamente indefinido.

A incerteza eleitoral alimenta o clima de instabilidade dos ativos financeiros. Não se sabe o que acontecerá no país em que Lula permanece em primeiro lugar, mesmo sendo inelegível e estando preso, e em segundo lugar está um candidato do qual se pode esperar qualquer coisa. Alguns políticos evoluem e mudam de ideia ao longo da carreira. Não parece ser o caso de Jair Bolsonaro. Na economia, ele decidiu fingir ser o que não é. Ao longo dos seus vários mandatos votou e discursou em defesa de teses intervencionistas e estatizantes, de forma coerente. Agora quer um biombo liberal.

Na área social o que espanta não é o seu conservadorismo, mas o muito que ele não sabe. Bolsonaro defendeu a esterilização dos pobres, como publicou ontem a “Folha de S. Paulo”. Dentro de pouco mais de duas décadas, a população brasileira vai começar a diminuir porque está havendo uma queda da taxa de natalidade em todas as classes sociais. Inclusive entre os mais pobres. Ele deveria estudar um pouco a demografia brasileira. O Brasil tem inúmeros problemas, mas a explosão demográfica não está entre eles. A população está reduzindo seu ritmo de crescimento, e em breve deve estabilizar. Depois, começará então a encolher o número de habitantes. Quem quer governar o Brasil deveria estudar minimamente o que se passa no país.

No mercado financeiro o obscurantismo social de Bolsonaro não incomoda. Lá os valores são outros. Mas engana-se quem pensa que por isso ele é aceito. O problema é a sua sistemática rejeição de todas as medidas de ajuste fiscal, como a reforma da Previdência. Nada indica que ele tenha alterado convicções ou reduzido sua profunda ignorância de assuntos elementares da gestão pública.