Míriam Leitão: O real e o abstrato
O mercado tende a olhar o último evento para explicar movimentos que foram formados por questões bem mais estruturais. Isso vale para qualquer tipo de mudança brusca de valor. A queda das ações do Facebook foi explicada como decepção com o desempenho do segundo trimestre, mas o que acontece com a rede é bem mais amplo. Ela enfrenta uma crise de reputação e de incerteza sobre o futuro.
Há dúvidas mais agudas pairando sobre a empresa de Mark Zuckerberg. Seu valor caiu uma Petrobras e um Bradesco, mas ela permanece sendo uma gigante de meio trilhão de dólares. A perda fez com que seu criador apenas descesse dois degraus na lista dos mais ricos do mundo, com seus US$ 70 bilhões.
O mundo aprendeu na crise das pontocom, no fim dos anos 1990, portanto há duas décadas, que sim, tudo que parece sólido desmancha no ar. Durante o período de alta das empresas de internet, as bolsas americanas chegaram a níveis nunca vistos antes, e a impressão era de que o valor das companhias de alta tecnologia, comércio eletrônico e todas as novidades do então admirável mundo novo, teria crescimento infinito. Até o dia em que a bolha estourou como tulipas.
As empresas do mundo da tecnologia voltaram mais fortes e mais concretas, mas têm na sua natureza a volatilidade e o efêmero. O Facebook nasceu de saltos tecnológicos, mas não é o fim da história. Outras redes surgiram e surgem a cada momento. Fenômenos como ele podem se repetir e ser superados. Essa riqueza abstrata é parte da nova economia, completamente diferente da lógica de outrora onde só havia o mundo físico. A Amazon, outra gigante, tem ponte bem mais direta com o real das coisas. O curioso caminho do seu fundador, Jeff Bezos, o levou do comércio eletrônico de livros à mais clássica das mídias, o jornal impresso.
O Facebook nos últimos tempos enfrentou a acusação — e investigações — de ter sido a plataforma para manipulação de eleições nos Estados Unidos e do plebiscito no Reino Unido. Este ano, ele se prepara para dar garantia aos eleitores de vários países, como o Brasil, de que aumentaram as defesas contra seu uso indevido nas escolhas políticas. Mas os critérios não estão claros. As mudanças de algorítimo não agradaram. Eles parecem estar sempre correndo para corrigir o erro já ocorrido e não o que pode vir a acontecer. Até que ponto os novos filtros limitarão a liberdade dos usuários e quanto essa tem sido uma liberdade vigiada desde sempre?
Questões reputacionais são mais importantes do que um pequeno declive no número de usuários na Europa ou um crescimento menor da base de usuários. Na quarta-feira, a empresa anunciou que a base de usuários ativos por dia ficou em 1,47 bilhão em junho, e os analistas calculavam que seria 1,48 bilhão. Essas minúcias não explicam o tombo histórico. Com o Facebook, como ocorre também com empresas da economia real, o panorama mais amplo é mais relevante para explicar a criação ou a destruição de valores.
O escândalo ainda não dissolvido do uso irregular dos dados dos usuários pela Cambridge Analytica é o que está por trás do movimento das ações. Ele colocou vários dilemas para a empresa, seus usuários e seus anunciantes. Os novos filtros e regras de privacidade darão o conforto que os usuários querem ou apenas reduzirão o apelo da rede? E se agradarem seus adeptos, diminuirão o interesse dos anunciantes? O uso da rede na disseminação de notícias falsas ameaça o que há de mais caro no processo civilizatório, as escolhas democráticas.
Por trás do tranco que as ações levaram permanece também uma velha questão de todas as fases da economia e dos negócios com papéis de qualquer empresa. Nada se valoriza para sempre. Até quando ela poderá continuar agregando valor?
O Facebook amanheceu um pouco menor, mas as notícias ontem cedo já eram outras. A economia americana cresceu 4,1% no segundo trimestre e isso é mais do que o projetado. Cresce, mas o déficit americano chega a US$ 1 trilhão — pelo corte de impostos das empresas decidido pelo presidente Donald Trump — e as sombras de uma guerra comercial com seu maior parceiro permanecem no horizonte. O equilíbrio de empresas e países é precário nesse mundo em que o abstrato e o concreto se misturaram tão completamente.
Míriam Leitão: Algo de novo no front
O anúncio surpresa de que EUA e União Europeia fizeram um acordo para pôr fim à guerra comercial entre eles desarma pelo menos uma das frentes de batalha. O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, e o presidente Donald Trump afirmaram que reduzirão tarifas a começar de aço e alumínio que haviam sido elevadas pelos americanos. Isso desanuvia, mas não encerra a guerra comercial.
A tensão com a China continua elevada e todos os movimentos dos dois lados até agora são perigosos para nós. Os ganhos brasileiros com a guerra comercial Estados Unidos-China são passageiros, as perdas podem ser mais prolongadas. O Brasil vende neste momento mais soja para a China, mas a escalada do subsídio aos produtores americanos, anunciada por Trump na terça-feira, deve deslocar o país em terceiros mercados. No extremo, o risco é de queda da atividade no mundo inteiro e de perda da função da OMC, o que instauraria a lei do mais forte.
O entendimento entre EUA e seu tradicional aliado foi o lado bom de ontem. Na véspera, a notícia de que a China iria elevar incentivos à economia local foi comemorada no mercado, mas é um movimento defensivo que pode ter efeitos negativos.
Nesse aumento da incerteza e da instabilidade internacional, como estamos? O Brasil está lentamente recuperando a corrente de comércio. Este ano será melhor do que o que passou, mas US$ 90 bilhões abaixo do pico de 2011. O cenário do comércio internacional tem boas e más notícias, todas derivadas do tempo presente. E é ele, o presente, que está ficando mais fluído e incerto.
Os dados do comércio externo brasileiro este ano têm surpresas e problemas antigos. Apesar de o PIB estar patinando, as exportações cresceram 5,58% e as importações aumentaram 17,19%. Na média, a corrente de comércio saltou 10%. Principalmente o dado da importação é positivo, porque indica que o consumo está um pouco mais forte. As importações de bens de capital dispararam 53% e isso é sinal de que as empresas estão voltando a investir ou repondo a depreciação de máquinas e equipamentos. É surpreendente diante da queda do índice de confiança empresarial.
As exportações de produtos manufaturados cresceram 9%, com aumento na venda de aviões, tratores, motores e vários outros produtos industrializados. Poderia ser melhor, se não fosse a crise na Argentina, que impactou a venda de veículos. O saldo comercial foi de US$ 29,9 bilhões nos seis primeiros meses do ano, e a projeção da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB) é de que chegue ao final do ano em US$ 56 bilhões. Um valor muito elevado, apesar de ser 15% menor do que em 2017.
Ao mesmo tempo, os velhos problemas persistem. Três produtos, soja, minério de ferro e petróleo, concentram 30% de toda a pauta exportadora, e 9 entre os 10 principais itens vendidos são commodities. Isso quer dizer que o país continua exposto às oscilações de preços nos mercados internacionais. Mesmo com toda a desvalorização do real, a exportação de manufaturados parece estagnada quando se olha a série histórica. Pela estimativa da AEB, ficará em US$ 82 bilhões este ano, contra US$ 80 bilhões do ano passado e US$ 83 bi de 2007, há mais de 10 anos. E o que chama atenção é que o dólar, naquele ano, caiu a R$ 1,73, enquanto neste ano disparou a R$ 3,92. Mais uma vez, fica demonstrado que a perda de valor da moeda, por si só, não é suficiente para fazer o país ser competitivo internacionalmente.
A indústria brasileira tem enorme dificuldade de vender para além do Mercosul. E o nosso principal parceiro na região, a Argentina, está atravessando novamente uma crise econômica que está tendo impacto sobre as nossas exportações. O peso já perdeu mais de 50% do seu valor e isso, por si só, retira poder de compra dos importadores argentinos.
Pelas estimativas da AEB, o Brasil continuará representando apenas 1,1% do exportação mundial. Chegaremos ao final do ano no 25º lugar entre os maiores exportadores e na 27ª posição na importação.
Se o caminho for desmontar as barricadas, como aconteceu ontem na Europa, melhor. Se a tensão se elevar como aconteceu entre a China e EUA os desdobramentos serão imprevisíveis e difusos. Péssimo ambiente para o Brasil sair da sua crise.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)
Míriam Leitão: O difícil retorno
País não criou antídotos contra a mentira, e enganos já estão sendo distribuídos aos eleitores. Em época de eleição, candidatos mentem ou simplificam situações complexas. Em 1990, Collor iria derrotar a inflação com um tiro, em 1998, Fernando Henrique adiou o ajuste do câmbio, em 2014, Dilma Rousseff negou que o país estivesse entrando em recessão. Quem diz agora que será fácil resolver a crise fiscal e retomar o crescimento sustentado está vendendo gato por lebre.
Em 1990, o tiro de Collor saiu pela culatra e atingiu o país inteiro. Com o plano do sequestro da poupança, houve uma recessão de 11 trimestres, e a economia precisou de sete trimestres para voltar ao ponto em que estava em 1989, como mostrou a reportagem de ontem de Cássia Almeida neste jornal. Em 1998, Fernando Henrique adiou o ajuste do câmbio que explodiu em 1999. Em 2014, Dilma em todas as entrevistas negava a crise, explicava que os “indicadores antecedentes” mostravam que a economia não estava em crise, como fez no Jornal Nacional. Que nada! Os erros que ela cometeu durante o primeiro mandato estavam cobrando a conta já em 2014. Os números vieram depois, mas os sinais eram visíveis e uma propaganda cara, e paga com dinheiro sujo aos marqueteiros João Santana e Monica Moura, criou o biombo que enganou milhões.
Era o começo da mais longa das nossas recessões. Olhando o passado, dos nove períodos recessivos desde 1980, só dois têm o tamanho do que entramos no último ano eleitoral. A recessão da crise da dívida nos anos 1980, nos estertores do regime militar, e a do Plano Collor. A atual consumirá ao todo, segundo a FGV, que fez o estudo citado na reportagem, 16 trimestres na lenta caminhada de volta ao ponto de partida, ou seja, ao começo de 2014.
A mentira de 2014 não criou antídotos no Brasil e enganos já estão sendo distribuídos aos eleitores. A versão muda conforme a conveniência de cada grupo. Entender o passado só é importante para preparar a cura do presente. O país saiu oficialmente da recessão em 2017 mas está prisioneiro do baixo crescimento e das expectativas cadentes.
Há um conjunto de motivos para explicar a lentidão da retomada. Na saída da recessão do Collor, havia uma proposta eficiente de reorganização da economia no governo Itamar, com o Plano Real. Em 1998-1999, a recessão derrubou o PIB, mas a taxa anual continuou levemente positiva (0,3% e 0,5%) e o país estava com superávit primário. Desta vez, o governo Michel Temer conseguiu administrar o país por um ano, mas em maio de 2017, com a delação de Joesley Batista, ele perdeu o rumo. Hoje ainda tem uma equipe econômica séria, mas no Congresso tem perdido todas as batalhas fiscais.
A crise tem camadas: o desajuste fiscal é grave demais e não foi revertido, a base parlamentar está aprofundando o buraco das contas, a greve do setor de transporte de carga abateu o pouco de melhora no índice de confiança de empresários, está havendo um aumento dos juros de longo prazo e do risco-país, o desemprego é alto demais e trava o consumo das famílias. A arrecadação vinha aumentando este ano todos os meses, mesmo quando se desconta as receitas extraordinárias, como o Refis, mas a melhora é insuficiente. Quando se olha para o futuro não há razões para se confiar na superação da crise.
O cientista político Carlos Mello, em entrevista publicada ontem no jornal, enumerou as vezes em que os economistas erraram na análise recente, quando previram o fim da crise. Não há mais espaço para o autoengano. A crise é grave. O buraco fiscal no qual o país caiu exigirá, como disse o secretário do Tesouro, Mansueto de Almeida, em entrevista que me concedeu, um ajuste de 4% do PIB. E vários candidatos, mesmo quando falam em ajuste e mudança da trajetória de crescimento da dívida, apresentam soluções mágicas. Nenhum dos nossos problemas é simples ou terá solução fácil.
Os candidatos seguirão sua natureza de culpar o adversário, simplificar o complexo e prometer a virada rápida caso sejam eleitos. Mas a dolorosa verdade é que reorganizar a economia brasileira, para sair da crise fiscal e retomar o crescimento com geração de emprego, é um trabalho difícil e vai levar anos. Dependendo de quem for eleito, o que pode acontecer é o país afundar ainda mais na crise que ainda não superamos. Mentira sobre a economia em 2014 não criou antídoto e enganos já estão sendo distribuídos aos eleitores
Vários candidatos, mesmo quando falam em ajuste fiscal, apresentam soluções mágicas Nenhum dos problemas é simples ou terá solução fácil, reorganizar a economia levará anos
Míriam Leitão: Na visão do Tesouro, país precisa de ajuste de R$ 300 bilhões
O Brasil tem que fazer um ajuste fiscal de 4 pontos do PIB, ou R$ 300 bi, diz Mansueto de Almeida, secretário do Tesouro. O Brasil tem que fazer um ajuste fiscal de quatro pontos do PIB, ou R$ 300 bilhões, diz o secretário do Tesouro, Mansueto de Almeida. Este ano a arrecadação está crescendo, subiu até em junho, e o déficit será menor do que o previsto. As estatais têm resultados bons e os ministérios não gastaram o que podiam. “Mas não é possível comemorar num país que está no quinto ano de déficit primário”, diz.
Ele defende que o curto prazo está controlado e que essas pautas-bomba no Congresso terão efeito no próximo governo. Mas podem ser desarmadas:
— Agora haverá apenas mais três semanas de votação, uma em agosto, outra em setembro e outra em outubro. Depois disso o país terá dois governos lutando pela agenda fiscal. O governo que vai entrar terá um grande incentivo para não deixar evoluir esses projetos.
O grande problema, na visão dele, é o tamanho do ajuste que precisará ser feito:
— Desde a Constituição, o único ajuste desta magnitude foi feito entre 1998 e 2002, no final do primeiro governo Fernando Henrique e durante o segundo. Mas foi principalmente com aumento de carga tributária. Agora não será mais possível fazer isso porque a carga é muito alta. Terá que ser corte de despesas. O Brasil é um país que tem um desequilíbrio fiscal muito grande, já tributa muito, tem uma carga tributária mais alta.
Mansueto acha que algum ganho se conseguirá com a redução dos benefícios tributários. Uma parte deles cairá até 2020 com a reoneração da folha de pagamentos. Mas há outros a serem corrigidos. Ele cita o Simples, e explica:
— No mundo todo se tem uma tributação especial para pequena empresa, mas em geral esta faixa não passa de US$ 150 mil dólares. O Simples no Brasil inclui empresas com faturamento acima de US$ 1 milhão por ano. Estamos falando de um país em desenvolvimento em que o regime especial para pequena empresa é mais benéfico do que o dos países ricos.
Nas desonerações de cesta básica há produtos que não fazem parte do consumo dos mais pobres, como salmão, ovas de peixe, filé mignon e todos os tipos de queijos. Isso tem que revisto. Mansueto defende que se reveja também a forma de cobrança de impostos por lucro presumido e dá um exemplo:
— No mundo todo o que se paga de imposto de renda, depende da sua renda. No Brasil não é assim, depende do seu regime de trabalho. Um advogado que ganha R$ 30 mil por mês, se ele for celetista, paga 27,5%, se estiver no Simples, a carga é 9%, se estiver no lucro presumido, a carga é 14,5%.
Segundo Mansueto, todos esses ajustes permitiriam um ajuste de 1% a 1,5% do PIB. O total dos benefícios chega a 4% do PIB, mas ele não acredita que se possa reverter tudo. O grande ajuste terá que ser feito pelo lado da despesa, na opinião do secretário:
— Se a gente fizer esse ajuste, sem controlar o que determina o crescimento da despesa, isso logo vai embora. O primeiro desafio é mudar a dinâmica do crescimento do gasto público. Quando se tem um ano como 2015, de inflação alta, causa um enorme estrago, porque as despesas estão indexadas. Essas regras precisam ser revistas.
O aumento de gastos com o INSS torna a reforma inevitável, na visão do secretário:
— As despesas do INSS eram 5,9% do PIB em 2002. Doze anos depois eram 6,8%. Nos anos de 2015 e 2016 saltaram para 8,1%. Em dois anos aumentou mais do que em 12 anos. Quando se tem recessão com inflação alta isso cria uma rigidez fiscal que leva anos para reverter. A gente não tem alternativa, vai ter que lidar com a reforma da previdência e com os reajustes das outras despesas. A Constituição determina que todo ano funcionário público tem aumento, mas não diz de quanto. Nos últimos anos, com o país em recessão, eles tiveram aumento real. O próximo governo terá que ver isso.
O déficit da previdência, somando INSS e servidores federais, dará, segundo o secretário do Tesouro, R$ 294,5 bilhões este ano. Ele não vê possibilidade de se evitar essa reforma. A DRU é R$ 90 bilhões, mas não incide em cima de receita previdenciária. Não há mágica que explique a subestimação desse problema.
Míriam Leitão: Elas julgam
Por um breve período de duas semanas, mulheres estarão nos principais postos do Judiciário. Quando a ministra Rosa Weber assumir em 15 de agosto o Tribunal Superior Eleitoral, as mulheres estarão no STF, TSE, STJ, PGR e AGU. Esse alinhamento das estrelas tem muito a dizer sobre o avanço das mulheres no Judiciário e no país. E esta semana, uma delas, Laurita Vaz, brilhou nos autos.
Foi uma semana de ressaca de uma crise que estourou no domingo com a decisão do desembargador de plantão Rogério Favreto, de mandar soltar o ex-presidente Lula. Favreto não aceitou esperar segunda-feira, nem ouvir o relator da ação e repetiu a ordem, até que o presidente do TRF-4, Carlos Eduardo Thompson Flores, encerrou a discussão na sua instância. A situação foi pacificada durante a semana graças à atuação de várias dessas mulheres do Judiciário, principalmente de Laurita Vaz. Na sexta-feira, neste jornal, a presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, escreveu que o país tem assistido “perplexo” a cenas de “contradições entre decisões judiciais”. Ela explica que o “contraditório dá-se entre as partes”. E lembra um ponto central da nossa insegurança jurídica do momento. “Juiz que toma partido, juiz já não é”.
Da mesma forma que a capacidade não é monopólio masculino, os erros também não são. Contudo, as mulheres que estão nos postos de comando têm currículo e chegaram ao topo após fazerem uma carreira e não através de um pulo pela janela partidária. Isso é que unifica as trajetórias de Cármen Lúcia no Supremo Tribunal Federal, Laurita Vaz no Superior Tribunal de Justiça, Raquel Dodge na ProcuradoriaGeral da República, Grace Mendonça na AdvocaciaGeral da União, e Rosa Weber que assumirá em um mês o Tribunal Superior Eleitoral na mais difícil das eleições presidenciais que o Brasil já teve desde a redemocratização.
Esse domínio feminino será breve, mas emblemático. No dia 15 de agosto, Rosa assume, mas no dia primeiro de setembro vence o mandato de Laurita, e no dia 12 completam-se os dois anos de Cármen na presidência do Supremo Tribunal Federal. Seria a hora de o ministro Dias Toffoli assumir, mas ele escolheu o dia 13 para a sua posse.
Durante o domingo da batalha judicial, ou “chicana” como juristas denominam esse tipo de demanda sem cabimento, a presidente do Supremo estava de plantão, mas apenas emitiu uma nota. Esteve em contato com quem de direito, mas quis que o problema se resolvesse onde surgiu, na segunda instância, para não atropelar quem tinha os poderes de tomar a decisão naquele domingo.
A palavra definitiva foi dada pela ministra Laurita Vaz, do STJ, onde estão os recursos em favor do ex-presidente Lula. E ela não economizou palavras. Disse que a decisão de Favreto causou “perplexidade”, “insegurança jurídica” e que houve um “tumulto processual sem precedentes na história do direito”. A decisão de Favreto, segundo ela, foi “inusitada” e repetiu a palavra que costuma encerrar discussões no Judiciário, “teratológica”. Ou seja, foi absurdo na visão da ministra a decisão do desembargador Favreto de mandar libertar Lula sob o argumento de que como ele é pré-candidato à Presidência deveria sair para participar com equidade dos debates e entrevistas. Laurita respondeu que é “óbvio e ululante que o mero anúncio do réu preso de ser candidato a cargo público não tem o condão de reabrir a discussão acerca da legalidade do encarceramento”. Esse ponto da ministra é simples e fundamental. Imagina se Favreto cria jurisprudência. Bastaria que os presos filiados a partidos se declarassem candidatos. Estariam todos soltos.
No dia seguinte, Laurita Vaz recusou de uma só vez 143 habeas corpus em favor de Lula. Eles tinham o mesmíssimo texto, ainda que apresentados por pessoas diferentes. Ela defendeu a garantia de qualquer cidadão de apresentar demandas à Justiça, mas disse que o Poder Judiciário não pode ser “o balcão de reivindicações ideológico-partidárias”.
As mulheres ainda têm presença muito menor do que deveriam em todos os espaços da vida brasileira. Mas nesta semana foram fundamentais para organizar o tumulto jurídico. E, nas duas últimas semanas de mês de agosto, estarão sentadas em cinco poderosas cadeiras.
Míriam Leitão: Caminho da facilidade
Uso do poder para beneficiar grupo religioso é desvio igual a corrupção. O prefeito Marcelo Crivella está tentando agora se salvar do processo de impeachment e pode ser que, com a moeda dos cargos, ele consiga. Se for vitorioso no seu processo de manipulação da Câmara de Vereadores, não deixará de ter cometido crime de responsabilidade. O que ele fez é corrupção, porque usa recursos públicos para oferecer vantagem a um grupo específico, no caso, religioso.
A impressionante revelação feita pela reportagem de Bruno Abbud e Berenice Seara comprova o que já se suspeitava. O uso do poder político para privilegiar o seu grupo religioso. E o faz de forma tão escancarada que choca. Para os outros munícipes ele oferece a espera, a burocracia, as dificuldades, para os evangélicos ali reunidos ele oferece a D. Márcia e o Dr. Rubens, o caminho das facilidades.
— Sem o Dr. Rubens seu processo vai demorar, demorar, demorar — disse ele, referindo-se à isenção de IPTU para igrejas.
A isenção para igrejas é constitucional, mas neste caso ele estava se referindo a imóveis alugados e não próprios. E oferecia uma via expressa. Quem não conhece esse caminho das pedras tem que ver seu processo “demorar, demorar, demorar”:
— Nós temos que aproveitar que Deus nos deu a oportunidade de estar na prefeitura para esses processos andarem.
O uso de Deus para fins políticos é condenável sob todos os aspectos, inclusive religioso, mas o que interessa à gestão pública é que a atitude do prefeito do Rio fere os princípios da República. O poder laico é um dos avanços civilizatórios do Ocidente. Ele foi escolhido pelos eleitores para ser o prefeito de todos, independentemente do credo. A impessoalidade, a igualdade entre os cidadãos, a transparência na distribuição dos recursos públicos, a ampla publicidade da oferta dos serviços, tudo isso foi ferido naquela reunião feita com alguns escolhidos.
Não cabe dúvidas sobre o que aconteceu naquele “Café da Comunhão”. O prefeito acha normal convidar seus amigos e dizer que eles terão vantagens em relação aos outros cidadãos da cidade na espera para a realização de cirurgias de catarata, varizes, vasectomia, solução para problemas tributários, e acesso a quebra-molas, sinais de trânsito e pontos de ônibus.
Crivella pediu para todos ficarem de olhos abertos para “vigiar a corrupção”. Bastava abrir os olhos naquela sala. Ali estava acontecendo exatamente um ato explícito de desvio de recursos públicos para atender a um grupo privilegiado, no caso, os que pertencem às igrejas ali representadas.
Qualquer que seja a religião do governante, é absolutamente inaceitável que os que comungam a sua mesma fé tenham qualquer tipo de vantagem. O prefeito se defendeu dizendo que estava divulgando os programas da área da saúde como o mutirão da catarata ou das varizes. Ótimo que ele faça esses mutirões. Mas a divulgação teria que ser ampla e não para um grupo fechado, escolhido por qualquer critério que seja, e além disso recebendo uma senha especial, “a Dona Márcia”. Só aqueles que falassem com a Dona Márcia é que teriam a vantagem de esperar apenas uma semana ou duas para a realização da cirurgia.
“Nós temos que mudar esse país”, conclamou o prefeito na reunião, sustentando a tese de que só o “povo evangélico” pode fazer isso. Ele estava exatamente confirmando o pior que existe neste momento de desvirtuamento da política brasileira. Ao oferecer aquelas vantagens para alguns e por esse motivo, ele confirmava o que tem ocorrido de mais lesivo no país. “Não importa se vai ser um trauma no princípio, se as pessoas vão reclamar, criticar”, disse ele referindo-se à ascensão política daquele grupo. Ou seja, não é religião, é projeto de poder.
A Constituição proíbe tratamento discriminatório seja qual for o motivo, inclusive religioso. Pessoa de qualquer religião pode almejar o poder no Brasil, mas não é correto que o busque para distribuir vantagens para seu grupo. É tão absurdo quanto distribuí-las para os amigos, a família, os do mesmo partido. Além disso, o prefeito usou espaço público para pedir votos para um candidato. O prefeito se diz vítima de intolerância religiosa. É uma desculpa fácil para acobertar um comportamento inaceitável.
Míriam Leitão: A pena de plantão
O que houve no domingo não foi uma crise no Judiciário, mas sim um evento destoante prontamente resolvido no próprio tribunal regional e que nem chegou à última instância. As idas e vindas da ordem de soltura de Lula ficará como ato sem cabimento de um desembargador que tentou usar de forma equivocada o período em que respondeu pelo tribunal como plantonista. A questão do Judiciário é mais grave.
Hoje o temor que existe é de politização das decisões de alguns dos magistrados de instâncias superiores. O sinal mais revelador desse risco foi dado pelo ministro Dias Toffolli, que vai assumir em setembro a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF). O que pesa sobre o país é a dúvida sobre a sua primeira lealdade. Se será às leis e à Constituição ou às convicções com as quais foi para o STF. O evento de Porto Alegre é apenas um alerta de como se pode usar de forma errada um poder temporário dado à instituição e não à pessoa que exerce o cargo.
É óbvio para qualquer iniciante em Direito que o assunto da prisão de Lula já estava afeto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Esta era a instância. Está também claro de que o argumento que sustentava a tese da urgência da decisão do desembargador Rogério Favreto não fazia sentido. O ex-presidente Lula já se declarou pré-candidato há muito tempo, não é de hoje, portanto não se justifica que o desembargador use a manhã de um domingo, no qual ele respondia pelo tribunal, para desfazer o que fora feito. O TRF-4 julgou Lula, analisou todos os recursos, e o assunto subiu ao STJ.
O evento foi resolvido não sem muito ruído. O juiz Sérgio Moro é de primeira instância e portanto não tem poder para desfazer uma ordem de desembargador, mas o que ele fez foi alertar que o juiz natural teria que ser ouvido, no caso o desembargador João Pedro Gebran Neto, que se pronunciou, sim, a favor da manutenção do preso em custódia. Mais espantoso foi o outro passo de Favreto, de insistir na libertação de Lula. O presidente do TRF-4, Thompson Flores, restabeleceu a ordem em sua jurisdição. O evento poderia se esgotar aí, uma decisão extemporânea de um desembargador, que foi corrigida a tempo pelo presidente do tribunal regional. Porém os fatos recentes alimentam a preocupação com os rumos do Judiciário no Brasil.
Ser juiz de primeira instância é resultado de concurso. Daí para diante, a escolha começa a ficar cada vez mais política. Presidentes escolhem desembargadores e indicam ministros de tribunais superiores. Tudo funciona perfeitamente quando o indicado não acha que deve pagar com a toga o posto a que chegou. A independência do Judiciário é para que o magistrado possa tomar suas decisões, desconsiderando a conjuntura política que sempre será mutante.
O problema, como disse o ministro Carlos Velloso, são os exemplos dados no Supremo Tribunal Federal, em que alguns ministros têm tomado decisões à despeito do que foi decidido pelo plenário. Além disso, há as decisões controversas. É difícil explicar a libertação de Paulo Vieira de Souza, ex-diretor da Dersa, suspeito de ser o operador do PSDB, decidida pelo ministro Gilmar Mendes. É igualmente difícil entender o voto do ministro Dias Toffolli no caso do exministro José Dirceu, condenado duas vezes pelo mesmo crime de corrupção, no Mensalão e na LavaJato, através de um habeas corpus de ofício. O temor do país é que alguns dos ministros do Supremo estejam decidindo de acordo com convicções e lealdades políticas. Isso precisa ser esclarecido porque em pouco mais de dois meses o ministro Dias Toffolli ocupará a presidência do STF em momento de muito conflito político no país.
O país não pode viver no sobressalto da pena de plantão. Tem que confiar na segurança do Estado de Direito. Não pode temer ou ter esperança no desembargador de plantão ou no ministro ao qual caberá a presidência do STF. Todo o poder que têm juízes, desembargadores e ministros não emana de quem os indicou ou do grupo com o qual ele pessoalmente se identifica, mas sim das leis e da Constituição do país. Se isso se perder, o país terá tido um aprofundamento fatal de sua crise. O fundamental é que cada magistrado saiba qual é a sua primeira lealdade.
Míriam Leitão: BC e as eleições
O segundo semestre será de mais volatilidade cambial, e o presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, afirma que não defenderá uma taxa de câmbio, vai atuar apenas quando houver “disfuncionalidade” ou “pânico” no mercado. Seja na queda ou na alta brusca. Goldfajn, numa entrevista que me concedeu ontem, explicou como atuará nesse período de maior estresse na economia com a proximidade das eleições.
Ilan assumiu o Banco Central com a inflação em 9,5% e ela caiu para menos de 3%. Hoje sobe em parte pelo impacto da greve do transporte de carga, que deve levar a taxa de junho para cerca de 1%. A previsão geral é que ela voltará a cair. O dólar que estava em R$ 3,15 em 25 de janeiro foi a R$ 3,90 no começo de junho, o Banco Central ofereceu US$ 30 bilhões de operações de swaps, o câmbio cedeu um pouco e voltou esta semana ao patamar de R$ 3,90. Os assuntos monetários estão no meio do debate eleitoral, há motivos internos e externos para a instabilidade. O que o Banco Central vai fazer?
— Vamos oferecer para o Brasil o uso dos nossos amortecedores, para gerar mais tranquilidade, sem fixar o câmbio ou outros preços que dependam do que as pessoas acreditam que vai ser o futuro. Vamos oferecer tranquilidade — disse Ilan Goldfajn na entrevista que foi ontem ao ar na Globonews.
Ele disse que toda vez que não houver liquidez, que houver disfuncionalidade, quando não houver condições para a formação de preços, porque um acontecimento não foi ainda inteiramente absorvido, nesses momentos haverá intervenção do Banco Central. Ele deixou claro que não vai defender um teto do dólar. “O câmbio é flutuante”, disse ele, explicando que essa é uma das defesas, junto com o volume de reservas. Aliás, esse volume, segundo ele, é sempre considerado alto quando está tudo calmo, mas é usado nestes momentos de dificuldades.
Disse que não se encontrou com representantes de candidatos, exceto em ocasiões coletivas, mas defendeu insistentemente a tese de que, qualquer que seja a proposta, o importante será a garantia de continuidade do ajuste das contas públicas e das reformas.
A dívida pública está no meio do debate. Há candidatos que criticam o volume pago de juros, há quem defenda um teto para o custo do serviço da dívida. Ele acha que o caminho é pelo fiscal:
— Eu considero essencial é nossa visão futura sobre responsabilidade fiscal, sobre nossa capacidade de colocar as contas públicas em ordem. Isso é que vai dar tranquilidade, e permitirá juros menores. Todos nós somos detentores da dívida pública, nós todos investimos em fundos, em Tesouro Direto. Todos nós nos beneficiaremos de um juro menor ao longo do tempo, mas para isso é preciso fazer reformas, principalmente as fiscais, isso vai dar solidez. Quanto menos sinalização a gente tiver sobre o futuro, mais turbulência a gente vai ter no curto prazo.
Outro ponto da entrevista foi sobre os altos juros bancários. No último Relatório da Economia Bancária, o Banco Central defende, na minha visão, argumentos muito parecidos com os dos bancos para justificar os juros altos em todas as linhas de crédito. Ele discorda dessa minha avaliação sobre o Relatório. Contudo, diz que não é a concentração a responsável pelos juros altos, mas outros problemas da economia brasileira, como a capacidade de recuperar o crédito concedido, que é muito baixa em comparação a outros países. Ele sustenta que a gestão dele tem tomado uma série de providências para estimular a competição, como a portabilidade dos salários, o fortalecimento das fintechs, e o incentivo dos bancos médios onde o custo regulatório é menor. Ele acha que isso tem tido resultados:
— São medidas importantes, tanto que a taxa do rotativo que estava em 15% caiu para 10%. Claro que 10% é alto, mas vamos continuar trabalhando.
Quis saber também se há um cartel do câmbio no Brasil. Grandes empresas exportadoras estão na Justiça acusando os bancos de terem atuado como cartel entre 2007 e 2013. Ele não acredita que haja um cartel:
— Isso foi uma questão específica levada ao Cade, mas acho que não houve maiores influências no câmbio. O Cade vai se pronunciar a respeito.
Sobre a transição política, ele diz que vai depender “da capacidade de todos nós de oferecer o melhor futuro para os brasileiros”.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)
Míriam Leitão: Indústria deve se recuperar em junho, mas a confiança foi abalada pela greve
O tombo da produção industrial já era esperado, por causa da greve do setor de transporte de carga. Mas há, nos últimos indicadores, sinais de uma economia em transição. Estava se recuperando e volta a perder vigor. Mais do que o efeito localizado, a greve foi o ponto que levou o país para outro ritmo. Não apenas pelo movimento, mas pela soma de vários problemas em que se destaca a incerteza política.
A produção industrial caiu 10,9% em maio. Uma queda que fez o país recuar anos. Mas, ao mesmo tempo, no acumulado de janeiro a maio, o setor de bens de capital teve alta de 9,5%, o que é sempre indicação de investimento. Os dados da balança comercial de junho mostram uma retração de 7,7% na importação de combustíveis e lubrificantes, em decorrência da dúvida sobre os preços do diesel. Mas as importações gerais cresceram 17%, e as de bens de capital subiram 33,8%.
Há retrato e filme. O retrato é de um país que em maio despencou o nível de atividade e teve um salto nos preços por causa do violento impacto da greve que uniu caminhoneiros e empresários do setor. A inflação de junho deve ficar em 1,1%, dado que será divulgado na sexta-feira. Nos preços, o efeito pode ser mais temporário, mas no nível de atividade, não.
O Itaú Unibanco estima que a indústria voltará a crescer 10,9% em junho, recuperando a perda de maio. Mas não há consenso no mercado. O UBS, por exemplo, estima crescimento de 7%. O banco ressalta que só houve três momentos piores do que a queda de maio: no plano Collor, em 1990, na greve dos petroleiros, em 1995, e na crise financeira de 2008.
São muitos os choques neste ano sobre uma economia já fraca. A volatilidade cambial, o temor de uma guerra comercial entre as grandes economias do mundo e o cenário opaco sobre a economia e a política brasileira. Toda eleição é incerta porque só as urnas dirão quem é o vencedor. Isso é natural.
Mas a nossa eleição é muito mais incerta que todas as outras. O candidato que encabeça as pesquisas está preso e deve ser declarado inelegível. Os outros candidatos, como raras exceções, ainda não deixaram claro suas opções econômicas e políticas. Muitos falam apenas por frases de efeito ou com demonstrações de voluntarismo e tudo isso turva o horizonte.
A economista-chefe da Reag Investimentos, Simone Pasianotto, conta que dois grandes projetos de investimentos que seriam conduzidos pela gestora de recursos foram adiados por clientes após a greve. O mais grave, explica ela, foi a mensagem de insegurança institucional que o país transmitiu aos investidores pelos efeitos da paralisação.
— Temos clientes que investem em grandes projetos, como construção de shoppings, arenas, ativos ligados a construção. Eles são mais conservadores e preocupados com o longo prazo. Depois da greve, dois clientes grandes adiaram investimentos porque a paralisação expôs a fragilidade institucional do país. Agora, só no ano que vem, dependendo de quem ganhar as eleições — disse.
Pasianotto explica que esse perfil de cliente, ligado a obras e à economia real, exige que a Reag seja mais cautelosa em suas projeções. Por isso, a estimativa de 1,7% para o PIB deste ano já está em viés de baixa. Mas a grande preocupação é se o próximo presidente terá força e vontade para conduzir o ajuste fiscal.
— O desafio é muito grande, e ainda não vemos os candidatos demonstrarem esse nível de urgência com a questão fiscal. O Congresso também parece estar desconectado da gravidade da situação — afirmou.
A greve teve o efeito de ser o catalisador do pessimismo que já vinha reduzindo indicadores desde o começo do ano. Os dados do PIB do primeiro trimestre já vieram abaixo das projeções. E continuou pairando o temor de novo movimento. O governo acabou se comprometendo com novos gastos para interromper a greve e fez promessas que dificilmente conseguirá cumprir, como a tabela do frete. O governo se enfraqueceu ainda mais no Congresso.
Os indicadores mostram esse filme: o país teve uma enorme recessão, saiu dela de forma hesitante, vinha melhorando e agora voltou para um patamar mais fraco. Portanto, essa queda da produção industrial é apenas um evento, mas ajudou a enfraquecer a economia como um todo.
Míriam Leitão: O descaminho
O empresário Eike Batista escolheu ficar em silêncio na maioria das perguntas feitas pelo juiz Marcelo Bretas. Algumas, eles respondia. “Emprestou algum avião a ele?” “Emprestei sim excelência. Na época eu tinha três aviões, e as pessoas sabiam que meus aviões estavam parados e as pessoas têm liberdade de falar me empresta o avião, e é difícil você dizer não a um governador”.
Não foi apenas o avião. O aparelho é um detalhe que mostra, segundo Bretas, a intimidade entre os dois. Como, evidentemente, não eram todas as pessoas que podiam dizer ao poderoso Eike Batista “me empresta seu avião”, essa liberdade que Sérgio Cabral usava decorria do fato de ser governador. Se fosse só isso seria já indecoroso. Mas houve muitos mais, segundo sustentou o juiz em sua sentença. Ele cita por exemplo um dos pagamentos de propina de US$ 16 milhões ao ex-governador. Quem comprovou isso foram os doleiros que fizeram a delação, Marcelo e Renato Chebar. O pagamento foi feito por meio de contrato fictício da empresa Golden Rock Foundation.
Essa empresa, Golden Rock, foi a mesma que pagou a Mônica Moura, mulher de João Santana. Quando foi feita a busca e apreensão na casa de Eike Batista, foi encontrado um documento em que havia a transferência da Golden Rock para a Arcádia e uma anotação “Renato”. Como Renato era um dos irmãos Chebar, Sérgio Cabral chamou o doleiro e disse que o documento havia sido encontrado e “podia dar problema”. Quem contou foi o Renato em sua delação. Nem ele nem seu irmão Marcelo sabiam a origem do dinheiro, mas acham que só pode ser dinheiro sujo já que foram contratados para fazer o “branqueamento” dos recursos.
Por aí vai a história de Eike Batista, ontem condenado a 30 anos de prisão. Um avião emprestado. Aliás, várias vezes. O pagamento indevido ao governador, e usando o canal dos doleiros para lavar o dinheiro. Um contrato cheio de empresas falsas e prestação de consultoria fictícia para justificar o tal depósito na Arcádia. Histórias fantasiosas como uma mina que seria comprada. Como sempre, nestes casos de corrupção, os caminhos são tortuosos, múltiplos e difíceis de serem desvendados.
E o ato de ofício? O que fez o governador Sérgio Cabral em troca do dinheiro e dos favores? Bretas recorre ao que disse o então ministro Sepúlveda Pertence no julgamento do Collor. Pertence lembrou que pelo artigo 317 do Código Penal basta “a dádiva e a promessa de vantagem” porque elas são feitas “na expectativa de uma conduta própria do ocupante da função pública”. Mas ao longo do seu governo não foram poucos os benefícios obtidos pelo empresário.
Sérgio Cabral tem optado por falar bastante e negar quase tudo. Disse por exemplo que recebeu R$ 29 milhões de Eike Batista mas era só para a campanha eleitoral, pelo caixa 2. “Eu gastei quase a totalidade dos recursos de caixa 2 com campanhas eleitorais”, disse Sérgio Cabral. Isso, segundo o juiz, desafia a lógica, porque o dinheiro foi pago mais de um ano depois das eleições.
A sentença do juiz Marcelo Bretas de ontem foi mais uma das várias que já pesam sobre Sérgio Cabral e seus assessores diretos. Mas é a primeira condenação de Eike Batista. Ele vai recorrer e há um longo caminho antes que vá para a prisão, se a sentença for confirmada.
A grande questão é como usar toda essa enorme infelicidade vivida pelo país — de ter estado exposto às relações tão promíscuas entre autoridades e empresários — para construir barreiras que impeçam a repetição de tudo isso. Eike Batista tinha tudo: dinheiro, talento, tino para os negócios, capacidade empreendedora, ousadia. Sérgio Cabral tinha muito: uma carreira política em ascensão, um eleitorado fiel, capacidade administrativa. Um podia ajudar a modernizar o capitalismo brasileiro, o outro poderia ser um expoente de uma nova geração de políticos. Preferiram se imiscuir em sujeiras, em negociatas, em um mundo de sombras. Hoje, um deles está preso e condenado em vários processos, o outro foi preso e solto, teve seu passaporte apreendido e pode voltar para a cadeia. E, por fim, o que é mais trágico, o Rio ainda paga um alto preço pelo descaminho escolhido pelas suas lideranças.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)
Míriam Leitão: Em tempo de eleição
Em ano eleitoral, país tem que debater seus problemas crônicos
O Brasil tem imensos problemas e nenhum momento é melhor do que o ano eleitoral para pensar neles. A população carcerária aumentou 707% em 26 anos e a segurança piorou. Mais da metade do esgoto do país não é tratado. Na educação, 55% das crianças com oito anos são analfabetas. A concentração de renda no Brasil é maior do que se pensava. Esses são apenas quatro dos temas principais.
Escolhi esses assuntos para dedicar os programas de junho na Globonews. Deles saíram dados tão interessantes que quis dividir aqui com os leitores da coluna. O sociólogo Sérgio Adorno, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, mostrou que em 1990 a população carcerária era de 90 mil brasileiros, em 2016 havia saltado para 726 mil. E quem são os presos? Jovens de 25 a 29 anos são 25%. Pretos e pardos são 64%.
— Precisamos oferecer proteção para os mais vulneráveis para que isso resulte na proteção da sociedade como um todo. Precisamos ir às áreas onde o conflito é mais intenso — diz Adorno.
No programa com ele estava o jornalista Edu Carvalho, de 20 anos, do site Favela da Rocinha. Diante desses dados e dos que mostram que jovens negros da periferia, como ele, são as principais vítimas de homicídio, Edu fez a seguinte reflexão:
— Diferentemente de uma pessoa que estuda esses dados e tem um certo distanciamento, eu me defronto com eles e tenho medo. A pergunta que me faço é em que curva eu “errei” para conseguir fugir da estatística?
A concentração de renda no Brasil é maior do que tem sido medida. Os novos estudos cruzam as pesquisas do IBGE com dados do Imposto de Renda dos mais ricos. Um dos pesquisadores é o jovem Pedro Ferreira de Souza, do Ipea. A conclusão dele é que o 1% mais rico no Brasil detém 23% da renda. Na França é 11%. Na maioria dos países é 15%. Katia Maia, da Oxfam, uma Ong inglesa que está no Brasil há 60 anos, disse que se for mantido o ritmo da diminuição da desigualdade de salários entre brancos e negros dos últimos 20 anos a paridade salarial ocorrerá em 2089. Como resolver isso? Os dois acham que é preciso ir nos impostos e ver de onde vêm os recursos públicos e para onde vão.
— O Brasil tem muito imposto sobre consumo, tributo indireto e pouco imposto sobre a renda e o patrimônio. E é preciso acabar com as exceções, os regimes especiais de tributação — sugere Pedro Ferreira.
— O Brasil estabeleceu um teto de gastos que vai comprimir despesas sociais e permanece com benefícios, isenções para quem está no topo — diz Katia Maia.
Naércio Menezes, coordenador do Núcleo de Políticas Públicas do Insper, e Priscila Cruz, do Todos pela Educação, foram entrevistados sobre educação e mostraram a conexão entre os temas.
— O Brasil ficou para trás no século XX, enquanto outros países avançaram, e isso resultou em desigualdade e criminalidade — diz Naércio.
Pedi à Priscila que dissesse por onde começar a atacar o problema. Ela apontou duas frentes: primeira infância e valorização do professor.
Há dados bons: em 1990, apenas 25% dos jovens chegavam ao ensino médio, agora de 75% a 80% chegam. De 2005 a 2014 triplicou o gasto por aluno no ensino médio. Há também muitos casos de sucesso que podem ser multiplicados. E há dados terríveis.
— A maior vergonha do Brasil é que 55% dos alunos de 8 anos são analfabetos — disse Priscila.
No último dos quatro programas entrevistei Paulo Barrocas, da Fiocruz, e Paulo Canedo, da Coppe, sobre saneamento básico. Mais da metade do esgoto brasileiro não é tratado e isso equivale a 5.556 piscinas olímpicas por dia de rejeitos, de acordo com o Trata Brasil. Os números são ruins e mostram desigualdade: 70% de esgoto tratado no Sudeste, de 10% a 20% no Norte. Mas o que os professores disseram é que pode ser pior. Mesmo quando há rede em toda a cidade, nem todas as casas e prédios estão ligados a ela. E dos que estão ligados nem sempre o esgoto vai para uma estação de tratamento.
Em segurança, desigualdade, educação e saneamento há muito fazer. Em época de eleição temos que discutir solução para esses e outros problemas brasileiros. Que nos próximos meses o país aproveite as eleições para se debruçar sobre tudo o que tem impedido o nosso desenvolvimento.
Míriam Leitão: O enigma JBS
A maior fonte de faturamento do grupo JBS vem das receitas em dólar e, neste momento, a alta do câmbio o favorece. A empresa só se internacionalizou com a ajuda dos recursos oferecidos pelo Estado. Sua delação mostrou que essa ajuda foi irrigada por dinheiro dado pelo grupo, a maioria de forma ilegal, para as campanhas políticas, principalmente do PT. A dúvida é: valeu a pena?
Joesley Batista costumava dizer que sem ele e o irmão Wesley no comando as empresas da holding J&F entrariam em crise. Não foi o que aconteceu. O mercado viu com bons olhos o resultado trimestral. O grupo vendeu alguns ativos, como Alpargatas e Eldorado, para fazer caixa, e se focou no negócio principal, tentando superar a crise que a atingiu a partir do momento em que os irmãos Joesley e Wesley e outros executivos do grupo fizeram suas delações.
O economista Rafael Passos, da Guide Investimentos, confirma essa avaliação positiva do mercado sobre a empresa neste começo de ano, em grande parte porque o grupo tem se beneficiado das operações nos Estados Unidos, de onde vêm 80% da sua receita.
— A gestão do grupo foi na direção correta após a crise. Eles venderam ativos, concentraram no setor de carne, fizeram caixa e conseguiram manter aberta as portas dos bancos — diz, ressaltando que a alavancagem (dívida) caiu de 4,2 vezes o fluxo de caixa para 3,2, um valor aceitável pelo mercado financeiro.
A grande questão quando se analisam os dados do grupo JBS é a dúvida: qual foi o custo-benefício da corrupção? A série estatística da receita do grupo mostra um estonteante crescimento exatamente nos anos em que o Brasil foi governo pelo PT. Joesley passou a ter acesso direto aos governantes e aos recursos do BNDES. Em 2004, as receitas foram de R$ 3,5 bilhões, em 2016 haviam saltado para R$ 163 bilhões, multiplicando-se por 46. Já era um grupo grande e bem sucedido, mas virou um gigante mundial graças ao dinheiro público.
Esse salto foi conseguido com a compra de ativos no exterior e no Brasil. Pelos dados oficiais do BNDES, somente entre 2007 e 2011 foram R$ 8,1 bilhões investidos no grupo principalmente através de debêntures. Para se ter uma ideia de como funcionava: a compra da Pilgrim's Pride, um dos maiores produtores de frango dos Estados Unidos, foi integralmente realizada com o dinheiro do banco. Do total do capital necessário, 99,9% foram fornecidos pelo banco na modalidade de debêntures conversíveis em ação. Houve outras operações para compra de outros ativos. O TCU e a Polícia Federal já mostraram irregularidades em algumas delas. Além disso, o banco favoreceu e financiou a concentração do setor dentro do Brasil, como no caso da compra da Bertin, onde o BNDES acabara de pôr R$ 2,5 bilhões em empréstimo.
A empresa cresceria de qualquer maneira, mas com o acesso aos fundos públicos foi muito mais rápido. A construção da empresa de celulose Eldorado recebeu também recursos do FI-FGTS, exatamente daquelas operações que estão sendo investigadas por terem sido facilitadas por Cleto Falcão e Lúcio Funaro.
Segundo levantamento feito para a coluna pela Economática, hoje o grupo tem R$ 8,8 bilhões a menos de valor de mercado. Era R$ 34,4 bilhões em 2015 e hoje é R$ 25,6 bilhões, mas, em compensação, reduziu o endividamento.
Nesta semana, Joesley virou réu numa das ações contra ele, o que derruba o que ele tentou, quando fez a delação, que era ficar inimputável. Se desse certo, o balanço do custo-benefício da corrupção seria totalmente favorável. Ele não teria custos e ficaria com o enorme benefício de ter se tornado um player global com faturamento em dólar. Antes de fazer a delação, o grupo tentou transferir a sede para a Irlanda. O BNDES, na gestão de Maria Silvia, impediu. Se ele tivesse conseguido seria o crime perfeito. Teria crescido com a ajuda do Estado, através da sociedade com o BNDES, depois transferiria seus negócios e sede fiscal para fora. Aí negociaria a delação pedindo para não ser responsabilizado criminalmente por nada.
A empresa é grande, fatura em dólar, tem conseguido superar a crise vendendo ativos, alguns financiados pelo Estado, mas seus donos já estiveram presos e enfrentam a Justiça. Ela teria crescido sem corrupção. A ganância foi maior do que o medo.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)