Míriam Leitão: Bolsonaro e o uso da religião
Usar Cristo para justificar a proposta de armar a população brasileira é subverter a sua mensagem pacifista
O candidato Jair Bolsonaro fez o sinal da cruz antes de entrar no local onde seria entrevistado e o repetiu no início das perguntas. Esse é um gesto católico, que não é feito por evangélicos ou protestantes. Ele se diz “cristão”, mas deixa a definição imprecisa para ser aceito pelos evangélicos, como um deles, e não sofrer rejeição de outros grupos religiosos. Ao citar a Bíblia, demonstra falta de intimidade com o livro que chama de “caixa de ferramentas”.
Bolsonaro tem usado a religião de diversas formas. Afirma que está cumprindo “uma missão de Deus”. Colocar-se como um ungido, com uma missão divina, é uma forma de tentar atrair setores religiosos mais extremados.
Suas citações da Bíblia parecem mais repetição de algum trecho que lhe dão, do que conhecimento advindo da leitura do texto sagrado. Isso ficou claro ao fim do debate da Rede TV!, quando ele responde a Marina. “Leia o livro de Paulo.” Não existe um livro chamado Paulo. Existem vários livros escritos pelo apóstolo, no seu trabalho de construir as bases doutrinárias do cristianismo. São as epístolas às várias comunidades, os livros aos Romanos, Coríntios I e II, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses e Tessalonicenses I e II. Há também as endereçadas a Timóteo (duas), Tito e Filemon. Uma frase como essa de Bolsonaro revela desconhecimento elementar. Existem dois livros de Pedro, quatro com o nome de João — um do Evangelho e três epístolas — mas nenhum dos 66 livros da Bíblia protestante, nem dos 73 da Bíblia católica, chama-se Paulo.
Ao explicar o que tentara dizer a Marina, naquela indicação de leitura, Bolsonaro errou um pouco mais. Disse que se referia a uma passagem que diz “venda suas capas e compre espadas” e que teria sido dita por Paulo. O GLOBO informou que isso estava em Lucas. Bolsonaro foi além. “É que naquele tempo não existia arma de fogo, senão seria ponto 50 e fuzil.”
Existem diferenças grandes ao longo da Bíblia, principalmente quando se compara o Velho Testamento com o Novo Testamento. Jesus inicia, pela fé cristã, um tempo de perdão e paz. Se no primeiro há o “olho por olho”, no segundo há o “dai a outra face”. A mensagem pacifista de Jesus Cristo é inescapável. Usar Cristo para justificar a violência ou a proposta de armar a população não faz sentido algum. No momento da fúria no Templo, contra os vendilhões, ele não usou armas, mas sua autoridade moral. Mesmo quem jamais leu a Bíblia entende que não é de guerra, mas de paz, a principal mensagem de Jesus Cristo.
Que importância tem isso para a eleição? Nenhuma. Afinal, o Estado brasileiro é laico e, felizmente, assim deve permanecer. Mas a busca do eleitorado evangélico fez com que cada vez mais candidatos usem a Bíblia como marketing. Certa vez, Garotinho disse que houve violência até no céu, “onde Caim matou Abel”. Como todos sabem, isso ocorreu fora do paraíso. O prefeito Marcelo Crivella fez pior: depois de eleito, quis criar um caminho mais curto para os fiéis da sua igreja terem acesso aos serviços públicos.
A diversidade religiosa brasileira é muito maior do que está nas estatísticas, porque sempre esteve em parte encoberta pelo sincretismo. Princípios do cristianismo fazem parte do conjunto de valores da nossa sociedade. Algumas das ideias-força já estão incorporadas à sabedoria geral, como a que Marina utilizou, “ensina o teu filho no caminho que deve andar”, orientação de bem educar. Bolsonaro cita sempre em seu favor João 8:32, “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. É soberba usar assim, como se a verdade dele, Bolsonaro, é que libertasse. Jesus está se referindo à verdade divina.
O TSE acabou de cassar dois deputados por pedirem voto em ato religioso. Religião e questões de Estado não devem se misturar. Este foi um avanço civilizatório e um dos legados da Reforma Protestante. Certos líderes evangélicos têm feito essa mistura nos últimos tempos. Alguns sabem separar. Marina é evangélica mas lembra sempre que o governo é laico. Geraldo Alckmin não faz convocação aos católicos, apesar de ser um. Contudo, muitos postulantes têm alimentado essa mistura, indo pedir a benção de pastores em atos públicos. Essa mistura jamais dará um bom resultado. Púlpito e palanque devem estar distantes. O uso da Bíblia e da religião serve para atemorizar ou enganar eleitores. Isso ameaça a soberania do voto.
Míriam Leitão: Rede: metas altas em busca de lastro
Rede tem metas ousadas para um partido que não tem base parlamentar. Dificuldade para implementar o seu projeto será maior
O programa da Rede é ousado, mas vago em como alcançar os objetivos principalmente para um partido quase sem parlamentares. O projeto de Marina Silva é apostar na reforma da Previdência, que apresentará logo no começo de um eventual governo, e na chegada de investimentos do setor privado. Há medidas impopulares ou difíceis como conter salários do funcionalismo e aumentar imposto sobre combustíveis fósseis, que implicaria acabar, de cara, com o subsídio ao diesel.
A Globonews encerrou a semana de entrevistas com os assessores econômicos dos principais candidatos sabatinando o economista Eduardo Giannetti, um dos formuladores do programa da Rede. Ele esclareceu que apenas as diretrizes foram entregues ao TSE e agora elas serão detalhadas em programas para cada setor. Mesmo sendo apenas linhas gerais, há lá propostas concretas e difíceis.
A reforma da Previdência será com o estabelecimento de idade mínima, de 65 anos para homem, um tempo menor para mulher, mas convergindo no futuro. O rumo é enfrentar a enorme desigualdade do sistema. “O benefício médio no INSS é de R$ 1,3 mil, no Executivo federal é R$ 7 mil, no Legislativo, R$ 16 mil, no Judiciário, R$ 27 mil médio. Isso é um escândalo. São castas”, disse Giannetti. Para reduzir desigualdades passadas, e que o tempo consagrou como direito adquirido, ele propõe aumentar a contribuição dos que mais recebem.
No documento, a Rede mira até o servidor que entrou no serviço público antes da reforma do Lula, em 2003, o que juridicamente é muito difícil atingir. Sobre salário do funcionalismo, Giannetti lembrou que eles são, em média, 67% acima do setor privado. É áspero o caminho de quem quer combater privilégios no Brasil. Exige uma grande coalizão. Com quem Marina fará alianças? Esse é o maior ponto de interrogação de um programa que quer enfrentar o estabelecido.
Perguntado sobre o financiamento das universidades públicas, Giannetti citou Marx, no texto “Crítica ao programa de Gotha”, em que o pensador alemão analisou as ideias do Partido Social Democrata. “Quando fizeram essa proposta, Marx disse que significava financiar o estudo dos ricos com um fundo geral de impostos.” Ele sugere cobrar dos que podem pagar. Criticou a expansão insustentável do Fies, instrumento que deve ser usado com lastro e critério na busca da expansão do acesso ao ensino superior.
Segundo Giannetti, a Rede se propõe a zerar o déficit público em dois anos, mas sem aumentar impostos. Contudo, falou apenas em alguns tributos que subirão. Imposto sobre herança, defendido, segundo ele, por John Stuart Mill, em 1848. Imposto sobre dividendos. Isso tem aparecido em várias propostas associado à queda do Imposto de Renda sobre Pessoa Jurídica, mas Giannetti não confirmou essa queda.
Outro tributo que poderá subir é o ITR sobre grandes propriedades que não façam esforço para a “transição ecológica”. Não ficou claro o que isso significa. Há também o imposto de descarbonização. O programa chega a citar uma pequena elevação na Cide para desestimular atividades e combustíveis de alta emissão de gases de efeito estufa. Além disso, haveria a redução das renúncias fiscais. “Existe uma pletora de isenções tributárias no Brasil. Pouca gente sabe que água mineral, queijos, motocicletas, barcos, aviões particulares estão isentos de alguns impostos.” Rever os absurdos das desonerações e dos incentivos fiscais no Brasil – que têm o dobro do tamanho do déficit público do país – é de fato um caminho, aliás defendido por outros partidos, mas enfrentar o lobby de cada setor é que são elas.
Apesar da proposta de zerar o déficit, a Rede quer mudar o teto de gastos. Acha que começaram a casa pelo teto, sem ter fundamentos. Quer revogar a reforma trabalhista, mas defende uma simplificação da legislação, com o negociado valendo sobre o legislado. Está escrito nas diretrizes que o governo buscará a universalização do saneamento básico, o que é missão tão desejável quanto impossível no curto prazo. Segundo Giannetti, o dinheiro viria do setor privado. Ele aposta no crescimento pela volta da confiança que ocorrerá com a troca de governo. A Rede quer desconcentrar recursos fiscais, o que exigiria a inversão da tendência que vem do período militar e se manteve na democracia. As metas são altas, o caminho não está claro.
Míriam Leitão: PSL: o liberal e o capitão
Convicção de ideias liberais do economista Paulo Guedes vem da vida toda, já a do candidato Jair Bolsonaro, ainda não se sabe se existe
A grande dúvida econômica em relação à campanha de Jair Bolsonaro é se as ideias liberais de Paulo Guedes entraram na cabeça do candidato do PSL à Presidência. “Não sabemos o quanto disso vai se converter em ideias liberais”, admitiu Guedes. “O economista vai propor coisas duras, o presidente vai dar uma amaciada, o Congresso vai dar outra amaciada, e vai sair de lá um negócio que não é o que o economista quis, mas também não é o que a turma queria.”
Qualquer processo de negociação altera o teor dos projetos, mas neste caso a dúvida é maior. Não há qualquer ponto de contato entre o liberal e o capitão. Ao longo da vida pública, o deputado Jair Bolsonaro votou contra todas as propostas de privatização, quebra de monopólio, previdência e até o Plano Real. Votou a favor de privilégios de parlamentares e entrou na carreira política em defesa do soldo de militares e policiais. Nada que nem remotamente lembre a pregação liberal de Paulo Guedes em toda a sua carreira de economista e empreendedor.
E o que está no programa, ou tem sido defendido por Paulo Guedes, é radical. Na entrevista que concedeu à Central das Eleições da Globonews, ele confirmou que calcula em R$ 2 trilhões o valor da venda de todas as participações do governo em estatais e de 700 mil imóveis da União. Na lista dos bens a serem privatizados está a Petrobras, o Banco do Brasil, a Caixa. Tudo. A Eletrobras, também. “Vamos fazer o que o Temer está fazendo, só que mais rápido do que ele. A convicção vem de muito tempo.” A convicção de Paulo Guedes é da vida toda, mas a de Bolsonaro não se sabe se existe.
O mais relevante são as contradições no presente. O candidato Jair Bolsonaro, na entrevista que concedeu à Globonews, havia defendido a recuperação do valor das aposentadorias e pensões em salário mínimo. Nos governos Fernando Henrique e Lula, houve sempre aumentos reais do salário mínimo. Por isso, muitos que se aposentaram com um múltiplo do mínimo hoje recebem menos, nessa conta, ainda que tenham tido correção pela inflação. Se fossem reajustados agora, nova bomba explodiria sobre a Previdência. Perguntado sobre se isso seria adotado, Guedes admitiu que há divergências. Disse que haverá uma coalizão de centro-direita que vai tentar “convergir os sistemas”. E avisou: “Ninguém terá superpoderes, muito menos um economista.”
Guedes disse que um eventual governo Bolsonaro manterá o teto de gastos, mas avisou que o teto vai cair porque não há parede. Ou seja, sem a reforma da Previdência ele é inviável. Afirmou que o sistema previdenciário está falido e comparou-o a um avião que está ficando sem combustível e vai cair, “e nós estamos tentando colocar nossos filhos lá, isso é um crime.” Com essa imagem forte, o que ele quer dizer é que tem de ser criado outro sistema de capitalização, de contas individuais. Quanto custará? Se os jovens vão contribuir para uma nova previdência, o combustível no velho avião acaba mais rápido. O programa fala em um fundo, mas não informa de onde sairá o dinheiro.
Na área trabalhista, ele quer também um novo sistema. O programa defende uma carteira de trabalho “verde e amarela”, em vez da azul, que cria um regime de trabalho sem CLT. Nele, as normas seriam negociadas entre patrão e empregado. Perguntado sobre os subsídios à agricultura, disse que o setor ficará fora de sua alçada, mas que se depender dele não haverá. Bolsonaro tem buscado apoio no agronegócio.
O programa do PSL promete zerar em um ano o déficit público e para isso Guedes faz contas de pegar recursos que estariam disponíveis, como o que pode vir da cessão onerosa com a Petrobras, o fim do abono salarial, a devolução do BNDES, redução de isenções fiscais. Mas para os anos seguintes ele acredita que conseguirá privatizar “em um ataque frontal”. Imaginando que houvesse acordo para privatizar Petrobras e Banco do Brasil, levaria tempo para preparar o processo. Perguntado sobre isso, ele diz que está “fora da caixa”, ou seja, do pensamento convencional. O dinheiro seria usado para reduzir a dívida pública e diminuir o gasto com juros.
Guedes defende tirar da Constituição todas as vinculações constitucionais para que se possa fazer o orçamento a partir do zero, inclusive saúde e educação. Mesmo quem acha que rearrumar as contas públicas exige decisões radicais tem noção da extraordinária dificuldade de fazer isso. Quando perguntado sobre a distância entre ele e Bolsonaro, Guedes diz que “todo mundo muda devagar”. Mas afirma que o candidato tem aprendido mais rápido do que os economistas brasileiros.
Míriam Leitão: O imenso rombo potencial do Fies
O estouro do Fies aconteceu no início do segundo mandato (Dilma), por isso começou a cair o número de novos financiados a partir de 2015
O potencial de perdas de receitas com o Fies, com os financiamentos concedidos entre 2010 e 2016, é de impressionantes R$ 116 bilhões. Crédito educativo é bom, mas o programa foi mal desenhado, sua expansão teve inúmeras distorções e ele foi usado eleitoralmente em 2014 quando teve o recorde de novos contratos. Em tempos de promessas de candidatos, e de verdades contadas pela metade,é importante olhar o caso de um bom projeto que ficou insustentável pelos erros no desenho e gerenciamento.
A forte elevação do programa no governo Dilma teve relação direta com a campanha da reeleição. Os novos contratos estavam entre 30 mil ou70 mil ao ano. Na primeira administração Dilma entraram numa escalada que levou a dar um salto de 10 vezes. Foi de 76 mil novos contratos no último ano Lula para 733 mil em 2014, ano eleitoral. Em 2015, ainda no governo da ex-presidente, caiu para 287 mil. Em 2017, o governo Temer o reformulou depois de um amplo estudo feito pelo Ministério da Fazenda que mostrou os erros.
Em 2010, foi criado o fundo garantidor e com base nisso o programa cresceu. O problema é que o fundo foi criado coma premissa errada. De que haveria uma taxa de inadimplência de 10%. No mundo inteiro é de 30%. No Brasil, se estima que os atrasos nos pagamentos dos empréstimos, entre 2010 e 2016, estejam entre 40% e 50%. Outro erro é que o calote era todo bancado pelo governo. E, de novo, em vez de ser um programa para os pobres,incluiu não pobres e virou uma fonte garantida de receita para as universidades privadas.
Os grupos maiores passaram a incentivar os alunos a procurar financiamento, porque achavam que isso reduziria o risco de não pagamento de mensalidades. Muito mais garantido era tudo ser pago por um fundo bancado pelo governo. Fizeram mais: aumentaram as mensalidades, cobrando mais dos beneficiários do programa.Virou uma bola de neve. O número de alunos era de 200 mil entre 2002 e 2010. Pulou para quase dois milhões.
Desses, 733 mil a mais só em 2014, não por acaso um ano eleitoral,em que este assunto foi objeto da campanha da reeleição. Os dados mostram que houve uma substituição de alunos pagantes por alunos financiados. São vários os custos do Fies. Ele é 100% financiado com emissão de dívida pública. Quando o financiamento não é pago, vira despesa primária do Tesouro.
E tem o custo financeiro do diferencial de juros.O orçamento do programa saiu de R$ 1,3 bilhão em 2010 para R$ 19 bilhões. O rombo potencial, se as projeções do calote se confirmarem, dá aquele valor escrito acima:R$116 bilhões. O estouro do Fies aconteceu no início do segundo mandato, por isso começou a cair o número de novos financiados a partir de 2015. Em 2016, já no governo Temer, o Ministério da Fazenda fez um amplo estudo do programa.
O desafio era como manter e fazê- lo sustentável. Foi criado um grupo de trabalho e durante seis meses foram chamados representantes das universidades privadas. Em seguida,ele foi alterado. O Fundo Garantidor do Crédito Estudantil agora é bancado pelos dois lados. O governo fará um aporte único de R$ 2 bilhões, e daí para diante as universidades privadas terão que pôr dinheiro, e as que tiverem mais taxa de inadimplência farão aportes maiores. Isso as obriga a melhorar a capacidade de empregabilidade dos estudantes.
Na contratação do empréstimo, a universidade tem que dizer quanto ele vai custar e qual será o indexador. Isso proíbe o aumento desordenado das mensalidades. E não poderá cobrar mais do aluno financiado que dos demais alunos.
Além disso, foi colocado um teto no valor que pode ser cobrado A concessão nova caiu para 170 mil em 2017. Ainda há um passivo a ser digerido, mas o programa entrou em nova rota.A lição que fica é que a demagogia e o uso político transformam um bom programa numa bomba fiscal.
Míriam Leitão: O que pesa sobre a lira turca
Brasil tem vulnerabilidades nas contas públicas, e risco da lira turca é virar uma crise em dominó que afete outros emergentes
Agora é o momento em que as autoridades econômicas vão lembrar que o Brasil não é a Turquia. E não é mesmo, há várias diferenças entre os dois países. A Turquia enfrenta os déficits gêmeos — fiscal e externo — e está sendo hostilizada pelo governo Trump. O Brasil tem uma boa situação externa e uma grande fragilidade fiscal. A questão é que quando há uma crise em país emergente todos os outros recebem olhares de desconfiança. O ideal era não sermos vulneráveis, mas somos.
Desde abril, quando começou este período de aversão a risco que pegou Argentina, Brasil e outros, a Turquia já estava com problemas. O real se desvalorizou, o Banco Central teve que vender dólares e fazer operações de oferta de garantia contra risco cambial. Logo depois a volatilidade foi controlada. Mas com a lira turca a situação continuou piorando. A Turquia tem problemas parecidos com os da Argentina: inflação alta, em torno de 16%, déficit nas contas públicas e uma grande exposição cambial.
O endividamento bruto do governo turco é baixo, de apenas 28% do PIB, segundo o FMI. Mas o problema é a dívida privada extremamente elevada que chega a 170% do PIB. Para se ter uma ideia, segundo a economista Monica de Bolle, diretora de estudos de mercados emergentes da SAIS/Johns Hopkins, nos EUA, as empresas privadas turcas têm US$ 66 bilhões em papéis para rolar nos próximos 12 meses, e os bancos, US$ 76 bilhões. As reservas cambiais turcas, que chegam a US$ 100 bilhões, ficam pequenas diante de um serviço de dívida tão alto e com prazos tão curtos.
— A Turquia precisa desesperadamente de entrada de dólares, e o que está acontecendo é justamente o contrário. A briga com Trump dificulta ainda mais as coisas, porque os EUA têm poder de veto no FMI. O país não tem a quem pedir ajuda, nem ao Fundo. Além disso, nos anos 2000 a Turquia recorreu ao FMI, mas não cumpriu nada do que estava no acordo. Portanto, o histórico não é bom — explica Monica de Bolle, que trabalhava no FMI nesse período.
A Turquia vive também uma profunda crise institucional. O presidente Erdogan fez um plebiscito para aumentar seus próprios poderes e o país se tornar presidencialista. Houve uma tentativa de golpe e a resposta dele foi uma violenta repressão. A prisão de um religioso americano, que está na Turquia, desencadeou a reação dos EUA. Trump incluiu o país na lista suja do comércio. Os turcos já têm déficit comercial com os americanos e agora podem ter parte de suas exportações, principalmente de aço e alumínio, barradas pelas sobretaxas impostas pelo governo Trump.
Mônica de Bolle explica que a crise tem um ingrediente ainda mais delicado que é o conflito com a própria União Europeia. Os países europeus têm todo o interesse em evitar a crise turca porque a entrada de imigrantes se dá pela Turquia. Ou seja, de novo EUA e UE estão com visões diferentes diante de um problema. A Alemanha particularmente tem boas e densas relações com a Turquia.
A política econômica do governo Erdogan, executada pelo próprio genro, nomeado ministro da Fazenda, é de crédito farto para estimular consumo e aumento do gasto público. Soa familiar? Mesmo com a desvalorização da lira turca, o Banco Central não sobe os juros porque Erdogan não deixa. Mas estimular consumo, via crédito, no meio de uma crise cambial, é como jogar gasolina no fogo. Apesar de o país ter crescido forte no ano passado, 7%, o desemprego está em 10%. O quadro é de desajuste e desequilíbrio.
A realidade da Turquia é bem diferente da nossa, mas o Brasil tem seus próprios riscos. O país enfrenta uma eleição de extrema incerteza e está no quinto ano consecutivo de déficit primário com a dívida pública crescendo. A dívida da Turquia é em grande parte junto a bancos europeus e por isso teme-se o contágio de outros países. Nossa dívida é interna, com uma parte muito pequena dolarizada. O Brasil não tem déficit importante em suas contas externas e tem reservas cambiais altas.
A inflação já foi reduzida e os juros caíram fortemente nos últimos dois anos. A Argentina ontem mesmo elevou de 40% para 45% a taxa de juros. Nosso maior desequilíbrio macroeconômico é o fiscal. Mas quando há um ambiente de crise em dominó, os fluxos de capitais se invertem e vão em direção a portos mais seguros. O risco da lira é virar uma crise em dominó.
Míriam Leitão: País de líderes desatentos
No próximo mandato, o Brasil vai completar 200 anos de vida independente e não há projeto sólido nas agendas dos presidenciáveis para superarmos nossos atrasos
O Brasil não está preparado, nem se preparando, para os desafios das próximas décadas, e os sinais são exibidos pelas pessoas que exercem o poder ou pretendem exercê-lo. A mudança climática já está acontecendo, mas o tema passa batido na agenda, que nesse assunto até retrocedeu. No próximo mandato, o Brasil vai completar 200 anos de vida independente e não há projeto sólido nas agendas dos presidenciáveis para superarmos nossos atrasos. O país está num mar de desemprego e os ministros do STF pedem pelos seus salários.
Na área fiscal, ambiental e de projeto para o país, a visão da maioria das nossas autoridades é pequena ou pelo espelho retrovisor. É urgente o olhar longo à frente. Os problemas são imensos, as propostas de solução, acanhadas. Muitas vezes, equivocadas.
Na área ambiental e climática, o Brasil teve um claro retrocesso desde que, em 2009, na COP-15, em Copenhague, exibiu um número bom de queda de desmatamento e uma atitude ativa de superação dos riscos do país e do planeta. Desde então, pioraram os dados e as atitudes dos governantes. Este está sendo o quarto ano mais quente da história. Os outros três foram nos quatro anos anteriores. A Califórnia enfrenta o seu maior incêndio. Nesses dados se baseou o “New York Times” para publicar, na sexta-feira, uma longa reportagem sobre os perigos deste tempo. “Para muitos cientistas, este é o ano que eles começaram a viver as mudanças climáticas, em vez de apenas estudá-la”, diz o jornal. Um dos cientistas ouvidos, da Nasa, alertou que não é mais o caso de fazer uma chamada de despertar, porque os fenômenos estão acontecendo neste momento com milhões de pessoas no mundo.
No Brasil, a agenda é flexibilizar as licenças ambientais, cancelar multas aplicadas aos desmatadores, reduzir áreas de preservação, subsidiar o diesel e chamar agrotóxico de remédio. Isso sem falar nas propostas do candidato Jair Bolsonaro para os indígenas, que seria prudente não considerar apenas exótico. É perigoso pelo apoio que ele tem.
A economia global pode viver um período de turbulências se o presidente americano continuar com sua guerra comercial. Quando o mundo tem problemas, o Brasil já sabe que precisa estar com indicadores econômicos mais sólidos. Nas contas externas, o Brasil está bem, mas o rombo das contas públicas é alto demais e nos fragiliza. Mesmo se não houvesse problemas externos seria urgente olhar para o nosso precipício fiscal. O Orçamento terá em 2019 o sexto ano de déficit primário, e o novo governante não terá o mínimo necessário para o funcionamento da máquina. Apesar disso, só na última semana dois novos gastos foram criados. O STF aprovou o aumento dos salários dos ministros e isso já desencadeou o efeito cascata. Calcula-se o gasto em R$ 4 bilhões. No Congresso, os parlamentares em passagem relâmpago por Brasília alteraram a MP da dívida rural para, de novo, aumentar a renúncia fiscal de R$ 1,7 bi para R$ 17 bilhões. É uma história longa, que conto de forma curta: a proposta original da renegociação da dívida dos pequenos produtores foi alterada para aumentar os benefícios dos médios e grandes. O governo vetou partes. O Congresso derrubou os vetos. A Fazenda consultou o TCU e decidiu mandar uma nova MP para que o benefício fosse apenas para os pequenos produtores. O Congresso, agora, mudou a proposta e incluiu uma novidade: a redução da dívida alcança até quem não pagar até dezembro. É perdão ao calote futuro.
A população brasileira chegou ao ponto da mais decisiva travessia demográfica. Daqui para diante vai aumentar rapidamente o número de idosos. Basta olhar os dados do IBGE. Diante disso, o país não faz a reforma da Previdência, não estabelece a idade mínima e alguns candidatos a governar o Brasil negam a existência do problema.
Tanto às questões imediatas, quanto às tendências de longo prazo, os líderes do país estão desatentos, quando não equivocados. O nível do debate político de agora, com raras e breves exceções, é uma exibição de bandeiras velhas. Como estará o Brasil ao fim do próximo governo quando completará 200 anos? O futuro deveria nortear os que tomam decisões ou pensam em governá-lo. E o futuro, como dizem os cientistas ouvidos pelo “NYT”, já está entre nós.
Míriam Leitão: Quem venceu o debate da Band
Lula venceu o debate por uma espécie de W.O. às avessas. Por estranha estratégia dos candidatos, o PT foi poupado de cobranças sobre o mensalão e o petrolão. Naquele mesmo dia havia acontecido um evento emblemático: o Ministério Público, que o ex-presidente acusa de perseguição, devolveu à empresa mais R$ 1 bilhão desviado da estatal. O partido foi poupado da crítica de o governo Dilma ter provocado a pior recessão do país, ter transformado 16 anos de superávit primário no maior rombo fiscal em duas décadas e iniciado a mais dolorosa onda de desemprego. Dilma foi invenção de Lula mas a ele nada é imputado.
Ele não estava presente no debate da Band, mas as acusações sobre as mazelas do país foram jogadas sobre o “governo atual”. O governo de Michel Temer está no fim, sem força e sem capacidade de alavancar seu candidato, o ex-ministro Henrique Meirelles. Era preciso deixar claro quem nos trouxe a esta situação. A impopularidade de Temer faz dele um alvo tão fácil quanto inútil. Na economia, ele pode ser acusado de não ter conseguido vencer o déficit público e de ter diminuído apenas ligeiramente o desemprego. Mas ele herdou os dois problemas. Como o atual presidente é carta fora do baralho, os candidatos que pretendem confrontar Lula ou Fernando Haddad não podem mais tratar o PT como se ele fosse uma abstração.
Exceto por alguns momentos, os candidatos foram muito fracos e imprecisos ao explicar em nome do que estão concorrendo para dirigir o país. Marina teve um desses bons momentos quando se definiu como “um milagre da educação”. Ao falar do programa da área, defendeu proposta que recebeu do “Todos pela Educação”, um dos vários movimentos que têm tentado aproveitar esse período eleitoral para entregar aos candidatos projetos específicos. Ciro, que tem o que dizer no assunto, acabou facilitando a vida de Jair Bolsonaro no elogio às escolas militares.
Alckmin falou do seu grande trunfo que é ter derrubado o número de homicídios em São Paulo no mesmo dia da divulgação dos dados anuais do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O país tem uma taxa de 30 mortos por 100 mil habitantes, e São Paulo tem a menor, 11,1. A do Rio Grande do Norte é 68. O Ceará teve o maior crescimento de homicídios, 48,6%. Apesar de ter uma boa história para contar, Alckmin soou burocrático e frio diante do tema dramático. Não aproveitou sequer para se contrapor à proposta de Jair Bolsonaro de armar a população. Ele poderia dizer que o Estado, quando faz bem seu papel, pode reduzir esses números. Alckmin precisa ter também uma boa resposta para o crescimento do poder da facção criminosa paulista.
Se não fosse por Guilherme Boulos, do PSOL, o candidato Jair Bolsonaro sairia sem passar por qualquer constrangimento. Foi acusado por Boulos de ser racista, homofóbico e machista e de ter funcionário fantasma pago pela Câmara cuidando de seus cachorros. Bolsonaro devolveu o tempo de resposta. Um erro. Não se devolve tempo, porque cada segundo é uma oportunidade de falar com o eleitor.
A falta de proposta concreta dos candidatos ficou evidente logo na pergunta inicial feita pelo jornalista Ricardo Boechat sobre a primeira ação que tomariam para enfrentar o gravíssimo problema do desemprego. Álvaro Dias, do Podemos, inaugurou as falas e foi o melhor exemplo do desrespeito ao eleitor. Em vez de responder a pergunta, ele falou de si mesmo. Deveria, ao menos, tocar no assunto. Os outros também não deram respostas satisfatórias, preferindo a própria retórica, mas pelo menos chegaram ao tema mesmo que superficialmente.
Meirelles, para falar bem de si e, ao mesmo tempo, fugir de elogio ao governo Lula, disse que o Banco Central nos oito anos em que foi presidente criou “10 milhões de empregos”. Lula foi o vencedor do debate por não ter se desgastado. Fechado numa cela em Curitiba, mantido pelo PT como o candidato ficcional, não teve seu legado atacado. Seu governo acertou na economia ao não destruir, no primeiro mandato, a herança que recebeu. A boa lembrança que evoca é por um crescimento forte de 2010, que, no entanto, se desfez nos anos seguintes, pelos erros da política econômica que iniciou no segundo mandato e pela má gestão da presidente cuja vitória garantiu. O PT deixou o país em recessão, com as finanças arruinadas e o desemprego disparado. E não tem sido cobrado por isso.
Míriam Leitão: Uma eleição nada normal
A eleição deste ano tem várias singularidades. Pela primeira vez vai se testar a dimensão da força do digital contra as formas convencionais de comunicação. A maioria dos candidatos fez chapa de pessoas da mesma tendência. Entre os mais competitivos, só Ciro é do Nordeste, que tem 27% do eleitorado, mas o Rio Grande do Sul estará como vice no PSDB e talvez no PT. A maior das singularidades é Lula, o pré-candidato preso, liderando as pesquisas e que pode ser declarado inelegível.
Essa não é uma eleição normal, diz o cientista político Cesar Zucco, da Fundação Getúlio Vargas. Conversei com ele e com o cientista político Lúcio Rennó, da Universidade de Brasília, na Globonews, sobre a situação atual da disputa que acontecerá em menos de dois meses.
Rennó acha que os debates, como o de ontem da TV Bandeirantes, sempre foram importantes para confirmar decisões, dar mais argumentos para a defesa do candidato que o eleitor já escolheu, mas desta vez pode ser diferente:
— Estamos entrando no período eleitoral com uma taxa muito elevada de indecisos e também de pessoas que dizem que não vão votar em ninguém. Há um desgosto, uma insatisfação com a classe política generalizada. Os debates servem para ativar o interesse pelas eleições.
Cesar Zucco falou do paradoxo da eleição nos Estados Unidos. É mais fácil prever o resultado muito antes da disputa, mas a campanha acaba embaralhando, e por fim confirma-se o previsto originalmente:
— Numa eleição normal, acredito fortemente que a gente poderia prever com bastante precisão o resultado, mesmo sem a campanha e com eventos de campanha aleatórios. Mas esta não é uma eleição normal.
Zucco nota que agora um debate pode ser editado por todo mundo, fazendo-se memes ou escolhendo-se os piores e os melhores momentos de cada candidato e usando isso como propaganda na mídia digital.
Rennó lembra que desta vez se poderá contrapor candidatos que não têm recursos tradicionais, tempo de TV, prefeituras, dinheiro de financiamento de campanha, mas têm uma base de apoio relativamente sólida, com os que têm esses recursos, mas podem não ter a base digital:
— Hoje não há como responder o que exatamente vai pesar mais, porque de fato não sabemos.
O mais inusitado dos fatos nesta eleição é haver um candidato preso com dois vices. A grande dúvida é se a estratégia do PT vai dar certo. Zucco acha que há riscos, mas também chances:
— Nunca antes na história deste país tivemos uma situação como esta. Se Lula pudesse ser candidato, se não houvesse dúvidas sobre a candidatura dele, muito provavelmente seria o mesmo cenário de sempre. Alckmin teria posto a banda dele na rua há muito tempo porque teria um adversário bem definido. E haveria o mesmo cenário das últimas eleições. Do ponto de vista estratégico, eu acho que a decisão (do PT, de manter a candidatura de Lula) faz sentido. Não tinha como fugir dela, e ela tem alguma chance de sucesso no primeiro turno. Dependendo de como ocorrer a transição de Lula para o candidato, há um alto grau de probabilidade de transferência. Do ponto de vista mecânico, basta votar 13. E é muito difícil sujar a imagem de quem não vai debater. Há um risco nessa estratégia, mas também chance de retorno.
A estratégia de Alckmin, de fechar com o centrão apesar das acusações de corrupção contra os partidos, tem como retorno óbvio o tempo de TV e recurso de financiamento de campanha.
— Até hoje são os dois recursos que mais importam para o sucesso eleitoral de uma coligação. Saber se vai continuar assim é o elemento mais importante desta campanha e que poderá mudar inclusive a maneira como se constrói a coligação eleitoral no futuro — diz Lúcio Rennó.
Os cientistas políticos argumentam que sempre existiu o antipetismo. Ele cresce com o crescimento do próprio PT. A novidade desta vez é ter surgido uma força que atrai esse movimento à direita do PSDB, que é Jair Bolsonaro.
Eles acham que este ano a formação das coligações e das chapas foi bem mais complexo, e num tempo bem menor, e é isso que, de certa forma, explica as composições feitas nas chapas, como Bolsonaro com um militar; e Marina com um verde; PT e PCdoB. Tudo nesta eleição é experimento. Por isso ela será um momento de intensa atividade para os cientistas políticos. Uma eleição nada normal, num tempo de mudanças e inusitados.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)
Míriam Leitão: O que é preciso saber sobre dívida pública
Até as eleições de 2002, o PT jogava a culpa dos problemas brasileiros na dívida pública. Essa bandeira, agora, foi levantada pelo candidato à Presidência pelo PDT, Ciro Gomes. A dívida é de fato alta e virou um problema, mas o caminho de reduzi-la é a penosa trilha do ajuste fiscal. Qualquer outra forma tem o potencial de criar muita perturbação na economia. E há soluções realmente perigosas.
A esquerda parecia ter entendido isso na Carta aos Brasileiros. O ponto óbvio é que o Tesouro não deve aos bancos, mas aos investidores de todo o país. Os fundos de pensão detêm 25% da dívida. Qualquer proposta voluntarista pode afetar essa poupança brasileira que está nas mãos das empresas, famílias, investidores institucionais e bancos. Afeta os aplicadores e o pagamento dos aposentados desses fundos de pensão.
Ciro Gomes já defendeu duas propostas. Estabelecer um teto para o pagamento da dívida. Além de um determinado valor não se aceitaria o custo financeiro. A segunda seria usar parte das reservas para comprar parte da dívida e reduzi-la.
A primeira solução provocaria uma crise de confiança. O investidor poderia temer pela segurança do seu ativo, da sua aplicação. Assim, procuraria outros ativos. O custo financeiro é de fato alto, mas o caminho para reduzi-lo é inverso a esse. O endividamento público está em R$ 5,2 trilhões, 77,2% do PIB. Desse total, R$ 1,1 trilhão são as operações compromissadas que o Banco Central usa para reduzir ou aumentar a liquidez do mercado, o dinheiro em circulação, e R$ 3,6 trilhões são a dívida mobiliária, ou seja, em títulos.
A dívida estava em 52% em 2014 e o que a fez subir para 77% foi o déficit primário no qual o país caiu no governo Dilma. O vermelho permanece. Quando o Tesouro fecha no negativo, precisa se endividar para fechar o ano. Isso eleva o endividamento. Durante muito tempo, ele caiu e ficou estabilizado exatamente porque o país teve superávit primário durante 16 anos.
As operações compromissadas vencem em prazo mais curto e por isso têm sido apontadas como o pior do problema. Mas não são em quatro dias, como tem sido dito. Vencem em até três meses, mas é curto prazo. Em 2006, eram 3% do PIB, e agora, 17%. O que fez aumentar foi exatamente a compra de reservas cambiais. No governo Lula, tomou-se a boa decisão de acumular reservas, mas quando o governo compra os dólares ele coloca reais no mercado e precisa depois vender papéis para diminuir os reais na economia, que poderiam alimentar a inflação. É isso que eles chamam de regular a liquidez.
E se o Tesouro decidir fazer a operação inversa, vendendo os dólares para resgatar a dívida? Vai trocar seis por meia duzia e ainda provocar um efeito colateral complicado. Se o governo vender os dólares em grande quantidade, o câmbio despenca. Ótimo para quem está endividado em dólar, ou tem uma viagem ao exterior, mas pode quebrar os exportadores se for um movimento brusco e superestimular a importação. Além disso, ao fazer a segunda etapa, que seria usar o dinheiro da venda das reservas para resgatar dívida antecipadamente, vai colocar mais reais na economia e precisará lançar títulos para enxugar.
O Brasil pagou nos 12 meses até junho, data do último relatório, R$ 397 bilhões de serviço da dívida, rolagem do principal e juros. É muito, mas já foi muito mais. O auge do custo do endividamento nos últimos seis anos foram os 12 meses terminados em janeiro de 2016, no governo Dilma, quando os juros estavam em 14,25% e a incerteza política cresceu com o processo de impeachment. Era 9% do PIB e agora é 6% do PIB, porque a Selic caiu. E só caiu porque antes foi derrubada a inflação.
Os caminhos da economia não podem ser tomados na direção inversa. É preciso primeiro zerar o déficit, porque o governo que tentar diminuir o endividamento ou seu custo na marra colherá inflação e pode provocar uma corrida para tirar as aplicações em título público. O voluntarismo, a demagogia eleitoral não cabem quando o assunto é a dívida, porque ela é a soma das economias de todos os brasileiros. Por mais antipatia que se possa ter dos bancos — e quem não tem? — eles não são os donos da dívida, são os intermediadores. O Brasil aprendeu dolorosamente isso no governo Collor. Não é possível tratar com leviandade esse problema 28 anos depois daquele trauma.
Míriam Leitão: Esboço dos programas
As propostas econômicas dos candidatos ainda estão muito embrionárias, mas tanto Marina Silva quanto Geraldo Alckmin e Ciro Gomes defendem a taxação de dividendos, com redução dos tributos sobre as empresas. Na semana de entrevistas com cinco dos candidatos na Globonews, foi possível ver convergências e muita imprecisão ainda sobre o que está sendo proposto na economia. O candidato Jair Bolsonaro falou em privatizar a Petrobras, mas por um motivo conjuntural: o preço do diesel.
A privatização da empresa ícone do Estado brasileiro não pode ser decidida assim por esse motivo. Segundo o candidato, já que o preço dos combustíveis está alto, é melhor privatizar a companhia. Disse e repetiu. Bom, ela ser vendida como está só transformará um monopólio estatal em privado. E quebrar o monopólio no refino, com venda de algumas das refinarias, pode ser o caminho mais seguro para quem quer competição nos preços. Isso foi defendido por Geraldo Alckmin.
O mais importante que fica da série de entrevistas em que, pela ordem, Álvaro Dias, do Podemos, Marina Silva, da Rede, Ciro Gomes, do PDT, Geraldo Alckmin, do PSDB, e Jair Bolsonaro, do PSL, falaram à Globonews é que ficou claro que alguns têm propostas econômicas mais definidas, mas há quem tenha apenas ideias desconexas.
O candidato Jair Bolsonaro teve que parar de se esconder atrás do economista Paulo Guedes e não soube muito bem explicar por onde vai nesse tema. Ninguém tem que ser economista, mas pessoas que se dispõem a governar o Brasil tem que saber o que estão oferecendo aos eleitores como projeto para tirar o país da bomba fiscal em que está. Eles é que tomarão as decisões.
Ciro Gomes tem propostas que no tempo da entrevista, duas horas, não conseguiu explicar muito bem, mas que embute riscos. Para o discurso político ele acusa “meia duzia de plutocratas banqueiros” de receberem os juros da dívida. Se fosse simples assim, bastava então não pagar. Mas a dívida é, como ele sabe, carregada por milhões de brasileiros e 25% dela está na mão de fundos de pensão. Acusar os banqueiros é fácil e soa bem na retórica eleitoral, porque há um consenso de que os spreads brasileiros são altos demais, e os lucros, exagerados. Mas decidir não pagá-la ou estabelecer teto para o pagamento é o caminho mais curto para o desastre.
Marina Silva repete o que já disse em outras campanhas, mas agora de forma muito mais segura, que o ajuste fiscal terá que ser feito e através do controle estrito das contas públicas, mas precisará detalhar mais, como todos os outros, o caminho do equilíbrio. Geraldo Alckmin e Ciro Gomes prometem zerar o enorme déficit público brasileiro em dois anos. Hoje, o déficit primário está em R$ 150 bilhões e o ano que vem, primeiro do próximo governo, será o sexto ano no vermelho no qual a presidente Dilma levou o país e do qual ainda não se sabe como sair. O rombo tem que ser enfrentado. Mas como? Ainda não ficou claro. A maioria fala em cortar incentivos e subsídios. Esse é de fato um dos caminhos, o de reduzir as transferências para o capital, mas ninguém diz que interesse vai contrariar. Ciro Gomes afirmou ao fim da entrevista que será um corte linear de 15% em todos os programas, mas ao mesmo tempo defendeu durante a entrevista a permanência e até o crescimento dos subsídios à indústria, o que é uma contradição.
O país está diante da mais difícil das suas eleições. A economia é um dos dilemas. Não é o único. É preciso saber como garantir a governabilidade, após as eleições. Geraldo Alckmin montou uma grande coalizão eleitoral, mas com partidos envolvidos no que houve de pior nos últimos anos. Marina Silva, Jair Bolsonaro, Ciro Gomes e Álvaro Dias estão em partidos pequenos. O PDT de Ciro é um pouco maior, claro. Mas nenhum deles tem dimensão para começar a organizar uma coalizão de governo. Ciro chegou à entrevista no dia em que o PT armara o plano de tirar dele o apoio do PSB, assunto que ainda provoca tremores no PT. Em Pernambuco, Marília Arraes mantém a candidatura ao governo pelo partido, e em Minas Gerais Márcio Lacerda se insurgiu contra a decisão do PSB.
Muito perto da eleição, sabemos pouco dos caminhos. Mas se Ciro ataca seres sem rosto como “o baronato” e os “plutocratas”, Jair Bolsonaro faz ofensas e ameaças diretas a parcelas do eleitorado: negros, mulheres, indígenas. Esta é a eleição que enfrentaremos.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)
Míriam Leitão: Desemprego exige solução inovadora
O desemprego não aumentou, mas está cronicamente alto. A crise no mercado de trabalho é mais desafiadora do que o país parece entender pela qualidade do debate em torno dela. Políticos terceirizam as causas, empresários alegam que gerarão empregos se receberem benefícios, sindicatos se mobilizam para ter de volta o dinheiro fácil do imposto sindical. As transições do Brasil e do mundo mostram que este desafio exige soluções muito mais inovadoras e disruptivas. Antes de tudo é preciso enxergar a dimensão do problema.
Há uma parte da crise que é estrutural. A recessão sugou empregos aos milhões. O pior momento da degradação, pelos dados do IBGE, foi dezembro de 2015, quando o desemprego saltou 40% na comparação com dezembro do ano anterior. Depois disso, continuou subindo, em percentuais menores, mas a base já era alta. De qualquer maneira, foram 12 trimestres consecutivos de aumento da taxa desde o fim de 2014 e o maior número absoluto de desempregados foi 14,17 milhões. No final de 2017 a desocupação começou a cair, mas a um ritmo tímido. De lá para cá foram três quedas de menos de 4%. Ou seja, subiu num ritmo frenético e cai muito lentamente.
O olhar nos dados mostra que mesmo neste tempo de escassez o emprego no setor público voltou ao recorde desde 2012, quando teve início essa série da Pnad. Chegou a 11,6 milhões em junho deste ano, 2,7% a mais do que no mesmo período de 2017 e se igualando a dezembro de 2014. Na outra ponta, onde estão trabalhadores mais vulneráveis, aumentou o número de empregados domésticos sem carteira. Hoje, para cada três domésticas, duas não têm direitos trabalhistas garantidos. São 4,39 milhões sem carteira, e 1,83 milhão registradas.
Nosso mercado de trabalho tem perversidades antigas, desigualdades crônicas e novos desafios. Pelo estágio atual das mudanças tecnológicas, a indústria cria menos emprego mesmo quando está crescendo. Mas ela é que recebe a atenção dos presidenciáveis e do debate público. O agronegócio também cria pouco emprego. Ambos, indústria e agricultura recebem muitos subsídios. O setor de serviços oferta mais vagas, mas é pulverizado em milhões de empresas e é visto como uma abstração.
O conceito de emprego mudou e vai continuar mudando, mas as leis estão desatualizadas. A reforma trabalhista flexibilizou pontos engessados da era varguista, mas teve uma tramitação atabalhoada, introduziu pontos grotescos, como o do trabalho insalubre da mulher gestante, e permanece sob insegurança jurídica. De qualquer maneira teríamos que entender melhor o caminho da organização do mundo do trabalho em países que têm enfrentado crises destruindo menos vagas. A Alemanha teve menos desemprego que o resto da Europa no auge da crise. Os Estados Unidos reduziram mais rapidamente a taxa após a superação da crise financeira de 2008. Cada estudo de caso pode nos ajudar a enfrentar a aguda crise que deixa 13 milhões de brasileiros procurando emprego sem encontrar. Isso sem falar nos milhões em desalento, que já desistiram de achar.
Neste último dado, divulgado ontem pelo IBGE, a população ocupada aumentou em 1 milhão de pessoas em abril, maio e junho, comparada com o mesmo trimestre do ano anterior. A população desocupada diminuiu em 520 mil pessoas. O número de empregados com carteira assinada diminuiu em 497 mil. Isso significa que a pequena melhora que houve foi mais uma vez por oferta de vagas na informalidade e no emprego por conta própria. Houve, desde o segundo trimestre de 2014, uma perda de quatro milhões de postos com carteira assinada no setor privado. E aumento de um 1,2 milhão de postos informais desde 2016.
Os números devem ser esmiuçados para se entender o presente porque ele é a aflição imediata. Mas é preciso entender a direção das mudanças no mercado de trabalho para preparar os jovens que estão batendo às portas do mercado. O percentual de jovens entre 18 e 24 anos que procuram e não encontram emprego está em 28% pelo último dado divulgado em março.
Os demógrafos nos alertam que a população em idade de trabalhar vai diminuir daqui para diante em relação à população na faixa que eles chamam de dependentes. A taxa de dependência vai aumentar. É urgente que o Brasil entenda como funciona a nova economia para ter políticas públicas e estímulos à geração de emprego. Por óbvio, a educação de qualidade é a primeira delas. Mas há uma lista de tarefas urgentes para preparar o país para a nova economia e o novo emprego. Ao mesmo tempo é preciso resgatar os atingidos por essa longa e dolorosa crise do mercado de trabalho.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)
Míriam Leitão: O futuro não pode esperar
Há 20 anos as teles foram privatizadas, mas os candidatos ainda são ambíguos em condenar o capitalismo estatal
O Brasil vai para esta eleição com agenda velha. Há 20 anos as telecomunicações foram privatizadas, pondo fim ao monopólio da Telebrás, e os candidatos ainda são ambíguos em condenar o capitalismo de Estado. Como teria sido enfrentar as vertiginosas mudanças do mundo das comunicações amarrado a uma estatal? A ruptura demográfica já aconteceu, e os políticos resistem a mudar a Previdência.
A abertura da economia começou há 28 anos, já passou da hora de o Brasil se integrar às cadeias econômicas globais, e ainda há candidatos falando em proteção à indústria nacional e elevação de tarifas. O início da privatização foi há quase três décadas, mas há batalha judicial até para a venda de empresas quebradas. O país tem 143 estatais, 42 delas criadas nos governos do PT. Dezenas das empresas públicas dependem parcial ou totalmente do Tesouro para fechar suas contas.
Um dilema agudo é o demográfico. O que querem os partidos, políticos e candidatos quando resistem a uma reforma da Previdência e tentam evitar a idade mínima? O IBGE nos informou esta semana que o bônus demográfico está no fim e o país o desperdiça na mais profunda crise de desemprego. Mesmo assim, a defesa das fórmulas velhas de contratos de trabalho, dos subsídios às indústrias poentes, e das castas do sistema previdenciário permanece embutida nas opacas e confusas declarações de campanha.
A reação contra a privatização da telefonia em 1998, em ano eleitoral, foi descomunal. Naquela época, havia fila de espera para comprar telefone fixo e cada linha custava uma fortuna. A estatal não conseguia atender à demanda. O número desse aparelho, que está caindo em desuso, dobrou no período. Era de 20 milhões e no ano passado estava em 40 milhões. A cobertura do celular era de 4,4 aparelhos por 100 habitantes e hoje é 113 por 100.
Em números absolutos, saltou de 7,4 milhões para 236 milhões. O setor investiu nestes 20 anos, segundo Eduardo Levy, presidente-executivo do Sinditelebrasil, R$ 1 trilhão. Mesmo que quisesse, o Estado não conseguiria acompanhar a rapidez da tecnologia da informação. As reclamações contra as empresas existem e o consumidor deve ser cada vez mais exigente. Antes não havia nem a quem reclamar. Problemas permanecem, contudo. Fundos criados para a universalização do serviço acumulam hoje R$ 80 bilhões que não são usados. A Anatel que foi instalada para ser uma agência reguladora ocupada por técnicos hoje tem diretores escolhidos por partidos. Mas há vitórias importantes, como a que disseminou o uso da comunicação celular.
— Somos a única área em que há queda de preços de serviços. O setor de telecomunicações é deflacionário todos os anos. Mas é claro que é preciso avançar, principalmente na legislação, que praticamente permanece a mesma desde 1998, com uma ênfase muito grande na telefonia fixa —diz Levy.
Esta é apenas uma das questões que o Brasil tem olhado pelo espelho retrovisor, nesta eleição em que o dinheiro público para os partidos aumentou, mas a distribuição dos recursos mostra que os dirigentes partidários querem manter o mandato dos mesmos representantes que nos trouxeram ao dilema atual.
Os dados de população revelam como as possibilidades do país estão se estreitando. Os demógrafos chamam de bônus demográfico o período em que a estrutura etária é mais favorável ao crescimento econômico, porque a população ativa aumenta mais do que a soma dos muito jovens e dos mais velhos. Este ano, um pouco antes do que o previsto, a relação começou a se inverter. Este período bom, de ter um percentual crescente de brasileiros em idade de trabalhar, está sendo desperdiçado num alto índice de desemprego. Era necessário que o emprego estivesse na ordem do dia do debate político e com propostas concretas.
Era hora de discutir o que fazer diante das rápidas mudanças na estrutura etária da população. Contudo, o Brasil acaba de adiar mais uma vez a reforma da Previdência. E em vez de tratar de temas sérios, alguns dos candidatos ocupam o espaço dedicado a eles ao show de horrores das declarações constrangedoras.
A tecnologia continuará transformando rapidamente o modo como produzimos e como vivemos. Seremos mais velhos. O Estado precisa proteger a juventude dos riscos da baixa escolaridade, do desemprego, da morte prematura. O futuro não pode esperar. E ele já deu a direção da História.