Míriam Leitão: Governo terá briga de agendas
Novo governo vai ter que enfrentar o dilema de escolher em qual das suas agendas pretende investir a lua de mel do começo de mandato
O mercado financeiro acredita que a agenda prioritária do presidente eleito Jair Bolsonaro será a de reformas econômicas e já comemora por antecipação. O juiz Sergio Moro foi para o governo convencido de que será possível tocar a agenda anticorrupção. Bolsonaro deu sinais de que continua focado nas suas ideias sobre segurança, como liberação de armas, redução da maioridade penal e o “excludente de ilicitude" para proteger policiais. Enquanto isso, tem feito anúncios na política externa.
Apenas 11 países, dos 193 da ONU, têm relações com todos os membros e o Brasil é um deles. É um dos orgulhos da nossa diplomacia. Bolsonaro quer sair desse simbólico clube rompendo relações com Cuba. Um ato sem maiores motivos e ganhos. Avisou que será o terceiro país do mundo a transferir a embaixada brasileira para Jerusalém. Deveria ser lembrado do relevante comércio com os países árabes. A Liga Árabe tem 22 membros e a Conferência Islâmica, 57. Recados diplomáticos estão desembarcando em alguns ouvidos de que pode haver retaliação comercial por parte de países com os quais temos superávit comercial. A falta de prioridade do Mercosul foi dita com ênfase bem audível pelo futuro ministro da Economia. A Argentina é o maior comprador de manufaturados do Brasil.
Enquanto o governo Bolsonaro exercita sua diplomacia, já vai ficando claro que haverá no Congresso, no ano que vem, pelo menos três agendas em conflito. Em qual delas, o presidente eleito Jair Bolsonaro pretende investir a sua lua de mel? A econômica, a do seu pacote de segurança, ou o combate à corrupção.
O cientista político Carlos Pereira, da FGV, lembra o grande capital político que ele terá ao assumir.
— Minha impressão é que ele aprovará tudo o que quiser no Congresso no curto prazo, porque é um governo inaugural e que terá uma maioria homogênea com partidos de centro-direita.
Essa também é a convicção do cientista político Jairo Nicolau, da UFRJ. Mas ambos lembram que ele promete governar formando maiorias eventuais conforme o tema, sem base de sustentação definida, o que pode aumentar a dificuldade da negociação, em geral árdua, no Congresso.
Governar é fazer escolhas. Bolsonaro terá que fazê-las e dizer qual é a prioridade. Sua maior ênfase durante a campanha foi o fim do estatuto do desarmamento para liberar o porte de armas, a proposta que amplia o respaldo jurídico a policiais que matam em serviço, a redução da maioridade penal, além da sua pauta de conservadorismo nos costumes. São propostas polêmicas sobre as quais nem se sabe qual é a opinião do novo superministro da Justiça, Sergio Moro. Não se vai para um governo pela metade. Moro terá que respaldar essas ideias ou então convencer o presidente do contrário.
O juiz fez a aposta de risco ao trocar a sua carreira jurídica pela ida a um governo que tem encontro marcado com várias controvérsias. Analistas com quem tenho conversado concordam que foi um enorme gol do governo Bolsonaro e que o risco ficou todo para Moro.
Ele, pelo visto, acredita que conseguirá tocar o que está resumido no livro que empunhava no avião: as novas medidas contra a corrupção. Elas nasceram de um movimento que uniu várias entidades num belo trabalho interdisciplinar e que deu origem a uma lista de 70 medidas de uma agenda anticorrupção. Especialistas que participaram do processo de preparação, acham que se escolher tocá-las o governo vai economizar de 6 a 12 meses porque essa discussão prévia já amadureceu as medidas. Resta a dúvida: como fazer isso com uma base que tem PTB, PP e outros menos investigados?
Empresários e economistas do mercado financeiro fazem a aposta geral de que Bolsonaro tocará as reformas na economia, começando pela Previdência. Nesses primeiros dias de governo eleito, o que se ouviu da equipe que se forma foi a mais ruidosa cacofonia sobre que reforma é desejável. O presidente fala em aprovar a atual proposta, da qual Onyx Lorenzoni sempre discordou. Paulo Guedes tem técnicos formulando um projeto, e o economista Marcos Cintra falou em acabar com a contribuição previdenciária patronal e criar a CPMF, ideia que Bolsonaro negou de novo. Se a economia não for a prioridade haverá uma reversão de tendência no mercado.
Míriam Leitão: Está tudo muito confuso, tá ok?
Boa comunicação faz parte da arte de bem governar, por isso o presidente eleito deveria migrar para outro estilo de transmitir suas ideias e decisões
O presidente eleito Jair Bolsonaro gosta de uma comunicação de frases curtas, vocabulário estreito, ideias simples e uma interjeição final. O seu “tá, ok?” costuma se seguir a ideias controversas e é posto muitas vezes como uma prévia interdição ao contraditório. Nessa primeira semana após a eleição tudo foi muito confuso. É natural. O governo nem começou. A decisão de barrar jornais numa coletiva mostra autoritarismo. A cena de Paulo Guedes e Sérgio Moro, na sexta-feira, desistindo da entrevista, em frente ao pelotão de jornalistas exibe o improviso.
Bolsonaro acredita na força do seu próprio canal de comunicação e se baseia no fato de ter sido com a mídia alternativa, criada pelo filho 02, que ele contornou a falta de recursos eleitorais tradicionais, como acesso ao fundo partidário e tempo de televisão. Só que agora tudo mudou. Ele é o presidente eleito e a boa comunicação faz parte de bem governar.
Após o primeiro turno, em vez de falar com os repórteres como fazem todos os candidatos que vencem essa etapa inicial, Bolsonaro fez um live no Facebook. Ao vencer o segundo turno, teve que fazer três falas de vitorioso para cumprir de forma incompleta o ritual democrático de qualquer eleição, que é se comunicar com o país após as urnas. Sua primeira fala foi ainda de conflito, via Facebook. Na segunda, que foi mais organizada pelo esforço dos órgãos de imprensa que se uniram para isso, ele preferiu ler um texto em que faltavam pontos importantes, como uma palavra indispensável aos eleitores que não votaram nele. Na terceira, Bolsonaro voltou ao Facebook para completar o que havia esquecido. No meio de tudo isso, uma oração, que seria normal sendo feita internamente, mas exposta como primeira cena do governante eleito parecia revogar a sadia separação entre Igreja e Estado, um dos primados da Reforma Protestante de 500 anos.
Tem havido ruído demais em todos os canais de comunicação. Na entrevista do Jornal Nacional, ele teve oportunidade de se comprometer com a imprensa livre e deu duas informações no sentido contrário. Primeiro, que pretende usar as verbas publicitárias como forma de punir e premiar segundo o critério do que considera ser o papel da imprensa. Segundo, que escolheu como primeiro alvo a “Folha de S.Paulo”.
Nas primeiras entrevistas que Bolsonaro deu na segunda-feira a várias televisões ele disse coisas que ecoavam à campanha e que não ajudam em nada nesse momento de olhar o futuro e governar. Ele afirmou à “Band” que não se arrepende de ter dito que a ditadura deveria ter matado mais, porque foram desabafos no contexto de um Congresso cheio de anistiados. Justificou a censura com uma explicação inusitada: as matérias censuradas teriam “a palavra-chave para executar um assalto a banco, ou até mesmo uma autoridade em cativeiro”. Sobre a morte de opositores pelo regime, ele disse que “como tinha a lei de vadiagem, tinha que ter o documento", e o “elemento” ia assaltar um banco, e por isso era morto. Ele tem direito a ter a sua opinião positiva da ditadura militar, mas em que serve, a esta altura, o uso dessas versões fakes para fatos históricos, como se estivéssemos na distopia orwelliana de um regime de força que reescreve o passado? O Brasil tem enormes dificuldades à frente e essa agenda deveria ocupar a mente do novo governante que saiu consagrado das urnas. Após ser eleito, ele deveria ampliar ao máximo o alcance do seu discurso. Afinal, isso aumenta as chances de sucesso do seu governo.
Se o clã Bolsonaro está convencido de que apenas os canais alternativos sob seu exclusivo controle serão suficientes para se comunicar está enganado. Não existe essa dicotomia de velhas e novas mídias no complexo mundo da comunicação atual. O presidente Donald Trump hostiliza parte da imprensa, elege veículos que não podem entrar em entrevistas, e usa o twitter para provocações agressivas. Bolsonaro pode estar escolhendo copiar esse modelo. Mas na sexta, os semblantes de perplexidade de Sérgio Moro e Paulo Guedes diante da natural pluralidade de perguntas da imprensa mostra que talvez eles precisem de menos improviso. Governar não é cavar trincheiras. A comunicação faz parte da arte de administrar bem o país.
Míriam Leitão: A decisão de Moro divide
Moro não virou político, mas estará em um governo que fez ameaças à democracia e tem em sua base partidos que ele condenou
A ida do juiz Sérgio Moro para o governo Jair Bolsonaro abre inúmeras dúvidas e polêmicas, mas não torna a Lava-Jato uma conspiração contra o PT. Ela tem serviços prestados ao país e atingiu políticos de diversos partidos. Moro, contudo, abriu o flanco para muitas críticas. Ele entra num governo que tem uma agenda que pode representar ameaça a direitos e garantias constitucionais e que governará com alguns dos partidos envolvidos em casos de corrupção.
O PT está dizendo que a ida de Moro é a prova final de que era tudo uma armação para tirar o ex-presidente Lula do rumo do Planalto e levá-lo para uma cela em Curitiba. Mas existem inúmeros fatos que mostram que a Lava-Lato é, e continua sendo, a mais bem sucedida operação anticorrupção do país. Ela condenou 130 pessoas, entre políticos, empresários e operadores, totalizando 1900 anos de prisão. Conseguiu recuperar R$ 12 bilhões. Puniu políticos do PMDB, do PSDB, e levou à prisão parlamentares de partidos que hoje estão indo para a base do governo Bolsonaro, como o PP. Expôs da forma mais explícita jamais vista os esquemas de corrupção dentro das empresas, como se pôde constatar na revelação da existência de um departamento dedicado à corrupção na Odebrecht. Não deixou nenhum pingo de dúvida de que diretores da Petrobras roubavam para si e para os partidos da base nos governos petistas.
O fato de o juiz Sérgio Moro virar ministro da Justiça não significa que ele “entrou na política”, como muita gente está interpretando. O cargo é técnico e pode ser exercido dessa forma ou ser ocupado por um político. Alguém ir para o governo não significa que virou um político. Inúmeras pessoas entram e saem e não viram políticos. O problema que Moro terá é com a agenda de Bolsonaro.
O presidente Bolsonaro, numa entrevista depois de eleito, reclamou de estar tendo que repetir sempre que vai respeitar a Constituição. “Parece que se não falasse isso (que respeitaria a Constituição) não seria um democrata. Você é obrigado a falar. Lamento ser obrigado a fazer isso e dizer que sou um democrata num sistema democrático.” É o caso de se pensar: por que será que perguntam? Porque ele deu sinais inequívocos em sentido contrário, ao fazer a apologia da ditadura, ao ter defendido tantas vezes soluções de força e ao ter seu filho, deputado Eduardo, dizendo que bastaria mandar um cabo e um soldado para fechar o Supremo. Nas primeiras entrevistas que concedeu após a campanha, ele reafirmou temores, como fez com as ameaças à “Folha de S. Paulo”. Moro colocou a carreira e a reputação dele em um governo que terá integrantes que já fizeram ameaça à democracia e um presidente recordista em declarações ofensivas às minorias.
Não foi outra a razão, a não ser esses temores, do tom e dos votos da sessão de quarta-feira do STF, presidida pelo próprio decano, Celso de Mello. Por nove a zero os ministros condenaram a ação policial nas universidades contra manifestações políticas. Um a um, os ministros enumeraram os direitos e garantias individuais, o compromisso com a liberdade de expressão, com a pluralidade de pensamento em ambiente acadêmico, com o respeito à Constituição. A ministra Cármen Lucia, no seu voto, invocou Ulysses Guimarães: “traidor da Constituição é traidor da Pátria”. Foram tão cristalinos os recados que é impossível não entendê-los como aviso prévio ao presidente eleito de que precisa desembarcar de algumas convicções se quiser bem governar.
Na Lava-Jato há também dúvidas sobre a decisão. O procurador Deltan Dallagnol apoia. Ele explicou, em postagem no Facebook, numa avaliação pessoal, que a decisão conseguiria consolidar os avanços, porque o combate à corrupção e ao crime organizado precisaria agora de leis mais favoráveis, como as que foram apresentadas no pacote das 10 Medidas, que ele levou ao presidente.
De fato, a Lava-Jato avançou muito, mas foi barrada em vários lugares. A Força-Tarefa de Curitiba mandou documentos para o Brasil inteiro e só houve avanço no Rio. Há muito trabalho ainda a fazer, mas em outras varas que não necessariamente a 13ª. A dúvida é o que acontecerá quando a Polícia Federal estiver investigando casos de corrupção no governo Bolsonaro? Eles podem acontecer. Moro sempre defendeu a autonomia dos órgãos de controle e da própria Polícia Federal. Espera-se que continue a fazê-lo no cargo de ministro da Justiça.
Míriam Leitão: Chances e riscos do superministro
Superministério da economia pode dar certo, mas submeter ao ruralismo as questões ambientais e climáticas é sair do século XXI
A união de ministérios da área econômica pode dar certo, a dos ministérios da agricultura e meio ambiente não tem essa chance. O superministério da Economia exigirá de Paulo Guedes capacidade administrativa no setor público. Ele só tem experiência no setor privado. Guedes defende Banco Central independente e ao mesmo tempo está falando sobre assuntos privativos do Banco Central. A briga com a indústria pode levar à modernização da economia brasileira, mas só se for bem feita.
O futuro ministro Paulo Guedes precisará de bons quadros nas áreas satélites, capacidade de gestão, foco nas principais tarefas e inteligência na comunicação. Terá que ter habilidade para desarmar as bombas do campo minado que é a administração pública. Além das muitas funções da Fazenda, estarão sob o controle dele orçamento, gestão, planejamento, indústria, comércio internacional. Pode agir como um bom maestro ou ser engolido pela máquina.
Houve duas experiências de superpoderes. Delfim Netto foi o czar da economia e os ministros setoriais se submeteram a ele, com alguns atritos. Na democracia, o mandonismo czarista não funciona. O que dá certo é liderança eficiente. No governo Collor houve a única experiência semelhante à que será tentada agora. Deu paralisia administrativa e uma gestão caótica. Tudo vai depender de como será feito.
O presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, superou durante a campanha momentos de estresse no câmbio com operações de swaps cambiais e não se ouviu uma palavra sobre o assunto do ministro Guardia. E isso porque, apesar de não ser independente de fato, o BC tem tido autonomia. O futuro ministro fala que sempre defendeu o BC independente, mas ao mesmo tempo deu entrevistas explicando como administraria as reservas em caso de crise cambial. Essa decisão caberia ao presidente do BC que não pode ficar sob a tutela do ministro, se for mesmo independente.
Paulo Guedes está correto quando fala que a indústria brasileira tema tendência de defender protecionismo e subsídios. Isso é mesmo uma agenda velha e persistente no Brasil. Atravessou incólume períodos autoritários e democráticos. Aqui neste espaço critiquei várias vezes as ideias de proteção e favorecimento de grupos. De fato, como diz Paulo Guedes, a ordem agora é a integração competitiva comas cadeias globais de suprimento. Isso é mais fácil falar do que fazer.
Produzir no Brasil tem um custo alto demais, por causa de impostos, burocracia, custos de capital e de trabalho. Ele tem prometido mudar tudo isso também, mas o que os industriais estão dizendo é que se forem tiradas todas as barreiras abruptamente as empresas podem não aguentar. Da mesma forma, os regimes especiais da tributação. A indústria diz que o risco é ficar sem eles e não ter uma ampla reforma tributária que reduza custos. No caso do velho lobby industrial brasileiro é preciso separar o que é choro do que vale ser avaliado.
Paulo Guedes terá que ter capacidade de separar o que é a trincheira da primeira guerra mundial e o que é reclamação procedente do setor produtivo. O potencial de conflito é enorme, a resistência dos lobbies é imensa. O governo. Temeres tá lutando há um ano para reduzir o subsídio ao xarope de refrigerante na Zona Franca de Manaus.
Juntar os ministérios da agricultura e meio ambiente, contudo, é de um risco extremo e pode ter efeito bumerangue. O país que for visto como desmatador, e atrasado na área ambiental, perderá mercado internacional. Por isso, submeter ao ruralismo as complexas questões ambientais e climática sé pedir para sair do século XXI. Mas essa transição está meio confusa. Abancada ruralista chegou a indica rum deputado do PP, deputado Jeronimo Goergen (PP-RS), para a pasta. Ele já chamou de “terrorismo” as multas do Ibama sobre agricultores e teve forte atuação para que o Congresso perdoasse dívidas do agronegócio no Funrural. O ideal seria a conciliação entre o agronegócio e o ambientalismo.
Mas durante a campanha o que foi dito pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro, e os seus assessores sobre o assunto não deixaram margem a dúvidas de que não sequer a conciliação, mas a submissão. Isso sem falar que parte da agenda ambiental é urbana. No início da noite, a informação era que a ideia de junção estava sendo abandonada.
A primeira lição que o governo Bolsonaro terá que aprender, em qualquer área, é quais são os limites legais para a vontade do administrador público. O poder ilimitado ficou, felizmente, no passado.
Míriam Leitão: Cada cabeça, uma reforma
Previdência já provoca bateção de cabeça entre a cúpula do futuro governo Bolsonaro. A boa notícia é que dizem que farão a reforma
A reforma da Previdência já provoca falas dissonantes no governo que nem começou de Jair Bolsonaro. A boa notícia é que dizem que farão reforma. A partir daí começa a Torre de Babel. A batida de cabeça entre Paulo Guedes e Onyx Lorenzoni era previsível. Aqui mesmo alertei que o cotado para chefe da Casa Civil, unido ao PT, fora um aguerrido adversário da proposta do governo Temer. Guedes lembrou ontem que sempre disse “aprovem a reforma”, e agora não pode dizer o contrário, e alfinetou: “é político falando de economia.”
São os políticos que aprovam as propostas dos economistas, portanto os dois precisam se entender. Há três ideias na mesa: aprovar a reforma de Temer, fazer um projeto mais amplo para o ano que vem, apresentar uma fórmula para mudar do regime de repartição para o de capitalização. Cada uma tem sua vantagem, mas também tem seu problema.
Se a decisão for aprovar a reforma do Temer, só será possível votar na Câmara, mas ganha-se tempo. No ano que vem, ela poderia ser modificada no Senado e teria que voltar à Câmara. Ela tem a vantagem de estabelecer a idade mínima, coisa que está se tentando no Brasil desde o primeiro governo Fernando Henrique. O problema é que a proposta perdeu substância em parte pela ação de políticos como Onyx Lorenzoni e o Major Olímpio, da base de Bolsonaro. Ontem mesmo, Olímpio avisou que, se o texto for a plenário, votará contra.
Aí viria a segunda proposta. A do político Lorenzoni. Ele diz que a atual é remendo e sugere que seja ampliada e que dure para os próximos 30 anos. Ótima ideia. O futuro chefe da Casa Civil pode começar por incluir de volta os policiais militares e bombeiros que foram retirados pela pressão dos defensores dessas corporações, entre os quais está o presidente eleito. Inclua-se também as Forças Armadas. Se é para valer por 30 anos precisa ser ampla, geral e irrestrita. O déficit das três Forças vai ser de R$ 42 bilhões no ano que vem. O valor foi retirado da conta da Previdência, e levado para a Defesa, sob a alegação de que militar não se aposenta, vai para a reserva e pode ser chamado a qualquer momento. Balela. Déficit é a despesa maior do que a receita. Mudar de nome ou de escaninho não resolve o problema.
A terceira ideia também é boa. É mudar do sistema de repartição, em que cada ativo contribui para o pagamento dos inativos, para o de capitalização, em que cada um contribui para si mesmo em contas individuais. Esse sistema foi muito falado pela campanha de Ciro Gomes, que se debruçou sobre a proposta, mas nunca ficou claro o custo dessa transição. E esse é o problema.
Se quiser preparar a migração de um modelo ao outro, Paulo Guedes precisará de meses de estudo e recomenda-se ouvir mais especialistas. Há várias questões sem resposta, mas a maior delas é que, se cada um vai poupar para si, isso reduz o financiamento para os que já estão aposentados. Aí o déficit aumenta no curto prazo. Guedes tem usado como parâmetro o modelo chileno de 1981. Só que ele foi implementado na ditadura de Pinochet e foi fácil cortar direitos adquiridos. Naquela época, a pirâmide etária era mais favorável e a previdência chilena estava bem mais equilibrada que a nossa. Tem que se escolher como, quando e com que velocidade se faria a migração. A propósito: a do Chile tem dado problemas.
O deputado Onyx Lorenzoni quer separar sistema de aposentadorias e pensões de seguridade social. Teria que mudar a Constituição, que criou dois orçamentos, o fiscal e o da seguridade. No primeiro, a fonte de renda são impostos, e quase todos eles são compartilhados com estados e municípios. O da seguridade social, financiado por contribuições, está dividido em previdência, saúde e assistência social. Nesse último estão Bolsa Família e benefícios para os muito pobres e mais velhos que nunca contribuíram (Loas e BPC). Mas o déficit da Previdência mesmo é o resultado do que os trabalhadores e patrões recolhem e o custo das pensões e aposentadorias. Portanto, separar previdência de assistência pode tornar os dados mais compreensíveis, mas não reduz em nada o déficit. Mesmo quando se tira da conta a saúde e a assistência social, há um enorme rombo. Quem não quer fazer reforma costuma falar que a mistura é que causa o déficit. Essas contas estão no vermelho quando estão juntas ou separadas.
Enfim, que reforma o governo Bolsonaro quer fazer e sob o comando de quem? Isso ainda não se sabe, mas, também, o governo não começou.
Míriam Leitão: Como acabar com o vermelho
Déficit este ano deve ser R$ 40 bilhões menor, ainda assim, não será fácil para o próximo governo acabar com o vermelho nas contas públicas
O governo Jair Bolsonaro vai assumir tendo que enfrentar um vermelho forte nas contas públicas, o ajuste que precisa ser feito é de quatro pontos do PIB ou R $300 bilhões. O espaço para corte de gastos existe, mas é pequeno. Haverá uma boa notícia, de certa forma, a atual administração deve terminar o ano comum déficit de R $120 bilhões, que é R $40 bilhões menor do que está previsto no Orçamento. Se a nova equipe quiser dar um sinal bom e realista poderias e comprometerem levar para R $100 bilhões. Mas o programa prometeu acabar como vermelho em um ano. Isso é mais difícil.
A análise detalhada das armas para vencer o vermelho, que se espalhou nas contas públicas a partir de 2014, mostra um caminho penoso. Nada mudará de cor apenas porque o governo será outro.
O economista Paulo Guedes falou durante a campanha que havia mais dinheiro do que se imagina em alguns lugares e deu exemplos.
Um deles é a privatização, mas agora as empresas que poderiam dar bons ganhos saíram da lista. O Orçamento do ano que vem prevê R$ 12 bilhões de receita com a venda das ações da Eletrobras, mas até isso o presidente eleito Jair Bolsonaro já disse que não fará. Bolsonaro fará o oposto do que quer: aumentará o vermelho, que já é bem tinto. Assim, se não vender a estatal, terá que cortar em outras despesas bem no começo do ano.
Outra ideia que o economista Paulo Guedes chegou a mencionar como arma contra o vermelho não vai funcionar: a devolução de parte do dinheiro que foi transferido para o BNDES. A devolução está sendo feita, isso é bom e uma parte virá no ano que vem. O problema é que o dinheiro só pode ser usado para abatimento da dívida. Isso ajuda indiretamente, e tem que ser mesmo a meta, mas não é arma para reduzir o vermelho no Orçamento.
Há uma grande expectativa em torno do leilão do excedente da cessão onerosa. Um mega leilão de 9 bilhões de barris. Coisa grande mesmo, que pode arrecadar R$ 100 bilhões. Porém —e os recém-chegados vão logo descobrir que há muitos poréns na luta contra os vermelhos — o TCU pode decidir que o leilão não seja feito na forma de concessão. O TCU tem entendido que qualquer área próxima de um campo que já foi licitado pelo regime de partilha tem que ser pelo mesmo regime. Pode parecer meio extraterreno esse argumento, mas foi assim no campo de Saturno. Sendo por partilha, reduz muito o ganho inicial. Qualquer que seja o regime, esse tipo de receita, extraordinária, na melhor das hipóteses vence o vermelho temporariamente. Para realmente atacar o vermelho será preciso fazer reformas mais permanentes.
O presidente eleito, Jair Bolsonaro, disse ontem, nas suas diversas entrevistas, que tentará aprovar este ano a reforma da Previdência. Mas em parte. Não disse qual. O futuro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, é contra quase todas as partes da atual reforma. De qualquer maneira, se fosse aprovada este ano na Câmara teria que ir ao Senado. E se tudo for aprovado terá pouco ganho de curto prazo. Mas, de fato, a reforma da Previdência é uma grande arma contra o vermelho de longo prazo.
Outra ideia que foi pensada no QG do novo presidente é a de reduzir o abono salarial para os que ganham um salário mínimo. Isso pode reduzir o gasto em R$ 20 bilhões por ano, mas se for aprovado no ano que vem só valerá em 2020 porque o que é pago num ano é o devido do ano anterior. Ou seja, o de 2019 já está garantido.
E cortar despesas pura e simples? Tesoura afiada nos gastos? Bom, o total do que o governo pode mexer é um percentual cada vez menor, como se sabe. O resto é despesa obrigatória. Tem uma ideia que fez muito sucesso na campanha eleitoral em todos os programas: acabar, ou diminuir, as renúncias tributárias. É difícil e dá muita dor de cabeça. Temer tentou acabar com o subsídio ao IPI de xarope de refrigerantes na Zona Franca de Manaus, que custa R$ 1,6 bilhão. Cortou e teve que recuar. Vai cair, mas mais devagar. O maior custo nessa lista é o Simples. Bolsonaro comprará essa briga?
Acabar com o vermelho —das contas públicas —é importante e beneficiaria o país. Mas é preciso um plano inteligente, uma estratégia de longo prazo, e operações táticas para desarmar as bombas fiscais que vão sendo armadas pelo fogo amigo no Congresso.
Míriam Leitão: Democracia nunca foi uma planície
Foi muito longa e penosa a estrada que nos deu o voto direto. Quem for eleito hoje governará nos limites da ordem democrática que construímos
Hoje, 147 milhões e 300 mil brasileiros farão História. São os que estão aptos a votar. Quem não for, ou votar nulo, também está dentro desse universo de decisão. Jamais deixarei de me emocionar em momentos assim. Foi muito longa e penosa a estrada que nos deu o voto direto. A democracia brasileira nunca foi uma planície. É como se tivesse que ser conquistada de novo a cada momento. Ela se expande, toma susto, é desafiada, volta a crescer, encontra obstáculo, supera. Sempre será essa incompleta obra coletiva. Como um tecido que fiamos juntos e os pontos às vezes se rompem.
Temia-se, desta vez, o desinteresse. Não foi o que tivemos. Houve momentos desta campanha em que parecia não haver outro assunto possível. O envolvimento é parte fundamental da renovação dos laços com o regime democrático. Saímos desta jornada exaustos, mas o país se engajou nesta escolha e o tema central passou a ser a própria democracia. Pelos cenários feitos, havia uma lista dos temas que certamente seriam os mais relevantes — e continuam sendo — segurança, educação, crise fiscal, desemprego. Mas o país se dividiu, discutiu, brigou pela democracia em si. Ela foi boa até aqui? Fez um bom trabalho? Tem defeitos? É frágil? É robusta?
A resposta é sim para todas as perguntas acima, apesar de parecer contraditório. É boa, fez um bom trabalho, tem defeitos. É frágil e robusta ao mesmo tempo. Fatos assustadores pareciam ser o prenúncio de volta do que o Brasil viveu. Sexta-feira foi o dia de ver de perto algo impensável. A repressão aos protestos em universidades. É da natureza dos jovens o debate acalorado que os mais velhos podem até achar radical, mas a ausência de liberdade de pensamento e manifestação nega a própria essência da universidade. O tempo cuidará de moderar o jovem, mas nada resgatará o que, alienado, não tiver olhos para nenhuma causa coletiva.
Tivemos, ao longo da República, períodos de democracia interrompidos por surtos autoritários. Foi assim no Estado Novo. Foi assim no regime de 1964-1985. Alguns preferem chamar de ditadura civil-militar. Respeito os argumentos, mas só os generais foram presidentes. O máximo a que um civil chegou foi à Vice-Presidência e o destino de Pedro Aleixo não nos deixa ter ilusões de que o poder fosse compartilhado.
Não falarei da dor dos que viram a face mais dura daquele governo, mas evidentemente a tenho em mente neste momento. O que parece mais relevante, contudo, foi o caminho que nos levou de volta à democracia. Houve fatos memoráveis. Falarei de um. O “Não” de Ulysses Guimarães e de Barbosa Lima Sobrinho, na anticandidatura de 1973-74, parecia um ato quixotesco, até exótico. Para que fazer campanha por todo o país para uma escolha que já fora tomada? Era uma luta tão perdida. O próximo presidente seria Ernesto Geisel. Estava decidido. Por que o deputado discursava pelo Brasil? Só quem, em momento pessoal de grande aflição, ouviu Ulysses prever a volta da democracia — “Alvíssaras, meu capitão, terra à vista” — pode entender o valor daquele ato político. As urnas se encheram de voto no antigo MDB na eleição seguinte. Além de acalmar os aflitos, o cálculo eleitoral do velho funcionou perfeitamente. Mas, depois, veio novo susto: o fechamento do Congresso, em 1977. E outros. E bombas no Riocentro.
Nunca houve planície. Foi de altos, baixos, solavancos e quedas a caminhada até a votação dentro daquele mesmo colégio eleitoral, usando a arma do regime contra o regime, que Tancredo Neves foi eleito. E, de novo, veio o susto. O que impediu as Forças Armadas e os porões ainda abertos a voltarem após a morte de Tancredo? A democracia já era forte ao nascer.
O Brasil fez então sua Constituinte. E, de novo, a palavra de Ulysses: “Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição. Trancar as portas do Parlamento. Garrotear a liberdade. Mandar patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério.”
A democracia renegociou a dívida externa deixada pelos militares, venceu a hiperinflação, aumentou a inclusão de brasileiros, ampliou o espaço de decisão, tem combatido a corrupção. Há ainda uma lista interminável de tarefas. Nunca será um caminho plano. Será sempre trabalhoso e desafiador viver a democracia. Mas a alternativa é o “caminho maldito”. O que for eleito hoje governará nos limites da ordem democrática que construímos.
Míriam Leitão: As idas e vindas de Bolsonaro
Todo líder pode e deve mudar de ideia depois de ser convencido. Mas é desconcertante a lista de idas e vindas de Bolsonaro nesta campanha
Ao longo dos últimos meses, Jair Bolsonaro disse o maior volume de coisas estranhas já ouvidas numa campanha. Em agosto ele prometeu tirar o Brasil da ONU, porque a organização seria “uma reunião de comunistas”. Dias depois, alegou que foi um ato falho. Afirmou inúmeras vezes que se eleito o país sairia do Acordo de Paris argumentando que “o que está em jogo é a soberania nacional, porque são 136 milhões de hectares que perderemos ingerência”. Esta semana voltou atrás. Disse que vai levar a embaixada do Brasil para Jerusalém, e a diplomacia já foi avisada que haverá retaliações dos países árabes.
O que ele fará de fato caso seja eleito? Não se sabe. O Brasil está no pior dos mundos: o líder das pesquisas por impedimento físico, por esperteza política, por estratégia deliberada esconde o que pensa. Bolsonaro mandou seus assessores e seu candidato a vice ficarem no máximo de silêncio até depois das eleições. Ele está pedindo ao país que vote no desconhecido.
A lista do disse-desdisse é enorme, em qualquer assunto. Na área internacional, ele revela um desconhecimento constrangedor. O Brasil foi um dos países fundadores da ONU. Como deferência é sempre o primeiro país a falar a cada Assembleia Geral, desde o chanceler Oswaldo Aranha. Como ele pode ter achado em algum momento que a ONU é uma “reunião de comunistas”? O Acordo de Paris foi resultado de negociação exaustiva, longa, depois de 21 Conferências das Partes, COP, um esforço que nasceu na Rio-92. Deixar o acordo é escolher ficar fora do mundo, como lembrou o embaixador Rubens Ricupero. É preciso ignorar muita coisa, não ter visto o que aconteceu em duas décadas de negociações, para achar que o Acordo de Paris é uma conspiração internacional para tirar a soberania do Brasil sobre o seu território.
Um embaixador brasileiro já foi informado por um representante de países árabes que se a embaixada brasileira mudar para Jerusalém o Brasil sofrerá retaliações comerciais. O país tem um superavit de US$ 7 bilhões com os árabes e nenhuma razão para se meter nessa briga na qual os Estados Unidos estão. É estupidez. A política externa brasileira nem no regime militar se alinhou aos Estados Unidos. Até isso ele não sabe?
Esta semana Jair Bolsonaro ouviu pedido de um grupo de vários setores da indústria e avisou que desistiria de unir ministérios da área econômica sob o comando da Fazenda. Parece um detalhe burocrático e era a derrubada da espinha dorsal do que tem dito na economia. Depois ele teria avisado que recuaria do recuo. O Ministério do Desenvolvimento sempre foi um centro de defesa da indústria brasileira como a conhecemos: com proteção e subsídios.
Uma coisa é querer ter uma indústria forte, inovadora, competitiva, isso é desejável e ótimo para o Brasil. Outra bem diferente é defender os velhos esquemas de proteção que há muito caducaram. O economista Paulo Guedes avisou que reduziria os mais de R$ 300 bilhões de incentivos às empresas por ano. O governo Temer conseguiu diminuir o Repetro, o incentivo à exportação. Os empresários foram pedir a Bolsonaro que aumentasse o Repetro e que não reduzisse barreiras ao comércio de forma abrupta. Ele disse que depois de ouvi-los entendeu melhor o assunto e prometeu recuar. Ou seja, Bolsonaro não tem qualquer compromisso com o que o economista Paulo Guedes andou dizendo sobre abrir a economia, reduzir os subsídios e enfrentar os lobbies.
Todo líder pode e deve mudar de ideia depois de negociar ou ser convencido. Isso é democrático. O problema é que o programa do candidato Bolsonaro defende uma coisa e ele diz outra. Na área social, tem um discurso de exclusão. Na política externa, de isolamento. Na política ele promete não governar com as forças das quais já está se cercando.
O lamentável esfaqueamento que sofreu — o mais trágico episódio desta campanha, do qual felizmente ele se recuperou — reduziu o grau de informação sobre o seu programa e suas ideias. Com as suas constantes mudanças de opinião e, principalmente, com a sua decisão de não esclarecer o que pensa para não afugentar eleitores, sua campanha ficou entre brumas. É líder das pesquisas, com grande vantagem ainda, apesar da queda recente, mas a escolha está sendo feita no escuro.
Míriam Leitão: Falsos problemas dividem o país
Na eleição em que tanto havia para se discutir sobre o país, o debate da campanha virou o perigo do “comunismo”, uma volta aos anos 1970
Todas as eleições são difíceis. Nem todas são infelizes. Ao fim, o verdadeiro vencedor não é necessariamente o que tem mais votos, mas o que, vencendo, consegue pacificar o país. Até agora não há sinal de que teremos isso. Não é o resultado que infelicita um processo eleitoral, mas sim o que acontece no meio do caminho. E houve muitas irregularidades que as autoridades não conseguiram coibir, e muitas fraturas que prenunciam um tumultuado depois.
O país havia se preparado para que essa eleição fosse uma oportunidade de mudança. Especialistas em várias áreas, dos tributos à educação, da indústria ao combate à corrupção, formularam projetos para apresentar aos candidatos. O Banco Mundial fez um estudo profundo das despesas públicas brasileiras e apresentou, também como oferta a todos, as ideias por um “ajuste justo". Houve até uma convergência. Vários programas de candidatos falaram em rever os subsídios e gastos tributários com setores empresariais. Mas não explicaram o que ou como fazer. Em alguns casos era apenas rótulo.
Mesmo que o próximo governo desperdice o esforço do país, as instituições seguirão com seu ativismo. A propósito: ativismo nunca foi uma palavra feia. Significa a mobilização de alguém por alguma causa coletiva na qual acredita.
O que torna essa eleição infeliz é a total falta de foco nos nossos reais problemas. As divisões e brigas entre os candidatos não se deram em torno do que nos aflige, mas por uma agenda artificial, fora do tempo e lugar.
O Brasil voltou aos anos 1970, em plena Guerra Fria, pelo esforço de Jair Bolsonaro de recriar a era do seu saudosismo. A propaganda no horário eleitoral fala de um suposto perigo do comunismo. Os mais velhos reconheceram o tom do marketing daquela época. O comunismo acabou no mundo por falta de quorum. Nem a China é mais. É bizarro que no Brasil tenha se recriado a divisão de mundo cujo último símbolo desabou com o muro de Berlim em 1989. O Brasil está cheio de inimigos reais — como o atraso na educação, a violência, a logística deplorável, a falta de saneamento, a emergência na saúde, o alto desemprego e a corrupção — e inventou que o importante é fazer uma extemporânea caça aos “comunistas”. Convenhamos.
As Forças Armadas recuaram décadas em seu esforço de serem instituições apartidárias. Nos últimos 30 anos elas serviram a todos os presidentes. É verdade que nunca aceitaram rever criticamente seu papel na ditadura militar, mas estavam comprometidas com o seu novo papel distante da briga política. O erro não é militares de pijama trabalharem nas campanhas e virarem candidatos a ministros. Se estão aposentados podem fazer o que quiserem de suas vidas. O problema foi a ambiguidade dos comandantes da ativa, especialmente do Exército. Diante de um silêncio aquiescente dos militares, Jair Bolsonaro sustentou ser o candidato das Forças Armadas, o que é uma aberração na democracia.
A Justiça Eleitoral falhou porque tardou a combater a mentira e a manipulação. Não é fácil fazer essa vigilância na era da mídia social. É um desafio para todos. Mas o TSE estava alertado que teria que enfrentar os que agem nas sombras, os que se escondem atrás de robôs, os que fingem ter um exército de voluntários, mas podem estar tendo o apoio ilegal de empresas. Demorou demais a agir. Só dias atrás negou a existência do chamado “kit gay”, mentira usada desde o começo pela campanha de Bolsonaro. Além disso o TSE fechou os olhos para várias assimetrias na exposição dos candidatos.
O ataque a Jair Bolsonaro em Juiz de Fora mostrou de forma aguda o pior lado dessa eleição em que se falou mais do ódio ao outro, do que do sonho para o país. Essa eleição é infeliz não pelo resultado que terá, seja ele qual for, mas pelo que houve no meio do caminho. Inúmeras pessoas se sentiram liberadas a assumir o preconceito ao outro, ao diferente de si, em plena era da superação de barreiras e da aceitação da diversidade.
Quem for eleito só governará bem se respeitar os limites institucionais e aceitar as críticas normais numa sociedade aberta. Dentro de uma semana o eleitor escolherá o governo, mas também a oposição. Quem perde uma eleição recebe do eleitor um papel: o de ser oposição. A democracia precisa que ambos saibam cumprir o seu papel.
Míriam Leitão: Do pouco que até agora se sabe
Economistas de Bolsonaro preparam programa em segredo para, se ele ganhar, ser divulgado ao eleitor apenas depois das urnas
O pouco que se sabe do candidato que está na frente das pesquisas já está causando preocupação em alguns empresários. Jair Bolsonaro tem mostrado reservas em relação à China, sem explicar o que isso significa. O país é o investidor estrangeiro mais ativo na economia brasileira com projetos em energia e agora na conclusão do Comperj. O presidente da Vale alertou para a importância do país asiático como parceiro para a empresa e o Brasil. A Unica está preocupada com o abandono do Acordo de Paris. A reforma da Previdência é uma incógnita.
O que se sabe sobre a economia num eventual governo Jair Bolsonaro é excessivamente vago e estamos a 10 dias das eleições. O programa está sendo preparado por grupos temáticos sob o comando do economista Paulo Guedes, mas pouca coisa sai, até porque a estratégia é falar o mínimo possível para não atrapalhar a campanha. O Brasil fica assim na estranha situação de estar prestes a escolher um presidente — ontem ele disse na Polícia Federal que está com a mão na faixa — e sua equipe prepara um programa que será surpresa pós-urnas. Isso se houver concordância entre o candidato e os economistas, coisa que até agora não parece haver. “Não queremos flertar com o desconhecido”, disse ele ontem, mas na economia é exatamente isso que o pacto de silêncio dele e de sua equipe está oferecendo ao país.
Do pouco que se sabe, há esse temor sempre repetido pelo candidato em relação ao investimento chinês no Brasil. A China estaria “comprando o Brasil”, segundo ele. O país é o maior comprador de produtos brasileiros, o maior mercado da soja brasileira, portanto o agronegócio precisa manter essa relação estável e sem ruídos. O presidente da Vale, Fabio Schvartsman, empresa que opera em 16 portos chineses, disse que há uma dependência mútua entre Brasil e China, e que em qualquer governo a Vale continuará tendo uma boa relação com eles. É ao capital chinês que a Petrobras está recorrendo para concluir o investimento no Comperj. A expectativa da estatal é concluir em dois anos as obras da refinaria de Itaboraí, a partir do momento em que fechar o acordo com a CNPC chinesa.
O medo que Bolsonaro nutre pela China remete a um pensamento nacionalista ultrapassado e está em total divórcio com qualquer ideia liberal. Se ela compra uma participação numa hidrelétrica, ou numa refinaria, em que isso nos ameaça? Ela levaria fisicamente as usinas para a China? Qualquer país precisa ter um quadro regulatório estável e transparente para os investimentos, mas discriminar alguma empresa pela origem do capital é um debate resolvido desde que no governo Fernando Henrique, em 1995, foi retirada da Constituição a diferenciação entre empresa nacional e estrangeira.
Os produtores de etanol estão preocupados com a possibilidade de rompimento do Acordo de Paris porque isso reduz as perspectivas dos biocombustíveis, segundo disse a presidente da Unica, Elizabeth Farina. A reação dos usineiros mostra como a economia de baixo carbono tem muito mais aliados do que se pensa.
Em entrevista à “Folha de S. Paulo” ontem, um dos economistas que estão trabalhando para o programa de Bolsonaro, Luciano de Castro, disse que será dada uma guinada de 180º no setor de energia. Esse é um setor que precisa mesmo de muitas mudanças e correções, mas a primeira parte do seu projeto, que é a diminuição da presença do Estado na geração e privatização da Eletrobras, bate de frente com a teoria econômica do galinheiro e do ovo defendida recentemente por Jair Bolsonaro. Ao falar que não quer a privatização da Eletrobras, ele disse que se vender as galinhas do quintal ficará sem o ovo cozido de manhã. Outra parte do programa de energia feito para Bolsonaro é a de manter a política da Petrobras de paridade de preços internacionais, proposta da qual o candidato discorda.
A reforma da Previdência é uma incógnita. A que está no Congresso foi muito criticada e combatida pelo que será o núcleo político de Bolsonaro. Tanto Onyx Lorenzoni quanto Major Olímpio acham que ela é dura demais, quando outros críticos acham o oposto. Afinal, a idade mínima de 62 e 65 anos só estará em vigor em 2038. Se não for feita alguma reforma não há possibilidade de pôr ordem nas contas públicas. O que Bolsonaro tem dito em economia é sobretudo desconexo.
Míriam Leitão: Os fios amarram Haddad e o PT
PT é vítima de mentiras nesta campanha eleitoral, mas o maior problema do partido são as verdades que não tem coragem de encarar
São muitos os fios nos quais o PT foi se aprisionando. A candidatura de Fernando Haddad, desde o início, tem tido dificuldade de rompê-los. O evento no Ceará é só a cena pública da incapacidade de o partido olhar com sinceridade para a corrupção que houve nos governos petistas e para o desastre econômico provocado pela adoção das suas teses. Nos dois casos, o PT preferiu a narrativa. Ela reconforta porque parte da ideia de que o inferno são os outros, mas é falsa, como várias das narrativas nesta campanha.
Agora, Fernando Haddad está indo em câmera lenta para algum ponto no centro, mas sem conseguir sucesso em formar a frente ampla. Vai devagar demais para a urgência da hora, porque os fios do núcleo duro do PT amarraram seus gestos e adiam suas palavras. O “assim você vai perder a eleição”, dito pelo ex-governador Cid Gomes, naquele jeito Gomes de ser, é o aviso sincero do desfecho mais provável deste processo eleitoral.
Haddad disse recentemente que os diretores da Petrobras foram deixados “soltos” e isso teria que ser enfrentado num futuro governo do PT. É um avanço em relação à resposta que vinha dando de que há corrupção na Petrobras desde o governo militar, o que é uma forma de fugir da pergunta. Mais do que soltos, os diretores viraram senhores de um compartimento estanque e autossuficiente, com divisões de compra, assessorias, centros jurídicos, tudo separado, como se fosse uma companhia à parte. Eram “babies petrobras”, como explica um dirigente. Eles ficaram soltos, no território de cada um, com muitos poderes internos e blindados contra um olhar externo e até de outra área da própria empresa. Essa governança que favorecia a corrupção já foi desmontada, felizmente.
Não foi só na Petrobras que houve corrupção, os casos são muitos, mas o PT preferiu a linha definida na frase infeliz dita pelo então presidente Lula logo após o mensalão. “O PT fez o que é feito sistematicamente neste país.” Quando outras siglas também foram atingidas pelo combate à corrupção, era a hora de abandonar a narrativa da perseguição “das elites” ao partido. Perderam o momento.
No caso da economia, a proposta da campanha foi de fazer o eleitor se lembrar do período de crescimento com inclusão do governo Lula. Parecia uma boa estratégia, foi capaz de levá-lo ao segundo turno, mas não é suficiente para ganhar a eleição. O partido saiu do poder depois de ter provocado uma alta da inflação para dois dígitos, uma grave recessão e uma escalada de desemprego. Jogar todos os problemas no impopular governo Temer é fácil, mas era de novo a forma de fugir das responsabilidades.
Para criticar a administração Dilma Rousseff, o PT teria que renegar o próprio programa econômico que foi formulado por esta campanha e deixar de seguir as ideias do desenvolvimento estatista com expansionismo fiscal. Preferiu apostar na fronteira entre os dois governos. Ficar com um e esquecer o outro. Mas em matéria de política econômica, os erros começaram com Lula e se aprofundaram com Dilma.
Quando perguntado sobre isso na Globonews, Haddad respondeu que a crise foi provocada pela “instabilidade institucional” criada pela oposição, que não reconheceu o resultado das eleições. Fora isso, ele e os economistas do PT admitiram erros apenas pontuais. As desonerações, por exemplo. Mas, evidentemente, houve muito mais. Haddad chegou a defender a política de campeões nacionais —ele não usa o termo —perguntando aos jornalistas quem havia perdido com a política? O contribuinte brasileiro certamente foi o grande perdedor.
A incompreensível defesa da Venezuela é um ponto no qual se vê o conflito entre uma visão que quer arejar o partido e os que o puxam para o desastre. Fernando Haddad teve que manter o discurso de que a oposição venezuelana é a culpada pela crise, porque ela discordou da “soberania popular”.
As fake news contra o candidato Fernando Haddad já chegaram, segundo uma fonte ligada ao partido, à casa do milhar. Elas têm reflexo na candidatura. O problema mais sério é que essas mentiras patrocinadas estão atingindo a própria democracia. O país terá que ter antídotos mais eficientes. Mas o PT errará de novo se acreditar que foram as mentiras que criaram o problema atual. Foram as verdades que ele não tem conseguido encarar.
Míriam Leitão: Os deserdados da terra do meio
PT cometeu erros que jamais deixei de criticar neste espaço. Mas reafirmo que considero o risco à democracia maior em Bolsonaro
É da natureza do segundo turno ser polarizado. São dois os candidatos que sobram da primeira disputa e eles precisam definir-se como lados claramente opostos, mesmo que não sejam tanto assim. Na terra do meio ficam os eleitores dos que perderam a eleição e vão procurar, por aproximação, o seu candidato. Desta vez, há muitos que andam confusos nesse terreno do meio que parece estar desaparecendo na polarização agressiva que toma conta do país.
A opinião que provocou a fúria dos seguidores de Jair Bolsonaro repito aqui: os riscos à democracia não são equivalentes nos dois cenários eleitorais. São maiores com Bolsonaro. O PT cometeu os erros que — os que seguem esta coluna sabem — jamais deixei de criticar, mas o partido de fato fortaleceu a Polícia Federal, escolheu o primeiro da lista para o Ministério Público, nomeou ministros do Supremo que em sua maioria tiveram e têm posições de independência. Aprovou a Lei da Delação, da Ficha Limpa e do Acesso à Informação. O partido acabou vendo seus dirigentes denunciados pelo MP e condenados pela Justiça. Em vez de fazer autocrítica pelo vasto esquema de corrupção no qual se envolveu, o PT preferiu dizer que o julgamento não foi justo e que é perseguido por procuradores e por juízes. Também não reconheceu os erros que cometeu na economia e que levaram o país à recessão e ao desemprego.
Jair Bolsonaro, porém, fez, de forma sistemática, na sua carreira política, a apologia do regime ditatorial, exaltando inclusive os seus piores crimes como a tortura e a morte de adversários políticos. Isso é incontestável. Há palavras demais dele confirmando essa visão. Durante esta campanha, vinculou sua candidatura às Forças Armadas e elas nada fizeram para desfazer essa vinculação e deixar claro que, como instituição, não têm candidato. Pelo menos não deveriam ter, mas o silêncio é bem eloquente. Para piorar, seu candidato a vice, general Hamilton Mourão, lembrou da possibilidade do autogolpe, ato em que um presidente se sentindo ameaçado aumenta os próprios poderes. Bolsonaro desautorizou o general. Na terra do meio, muita gente não quer nem um, nem outro, e oscila entre o branco, o nulo e a abstenção.
Os candidatos que perderam abriram mão de sua liderança e preferiram dizer a obviedade de que os eleitores são livres. São, mas para isso servem os líderes, para dizer o que pensam em momento difícil. Esse é o ônus da liderança. Ao se omitirem, eles deixaram abandonados os da terra do meio.
O normal no segundo turno é que os candidatos caminhem para o centro. O PT fracassou em formar a sua frente democrática, em parte porque nunca fez uma autocrítica convincente, não retirou pontos obscuros do seu programa, como a ameaça à imprensa. A declaração de José Dirceu, felizmente renegada pelo candidato Fernando Haddad, foi clara demais para ser esquecida. Ele disse que agora era hora de “tomar o poder”, e isso é diferente de ganhar eleição. É bravata do ex-ministro. Eles não têm os meios para essa tomada de poder, mas quem teme o risco PT viu nisso a confirmação de seus temores. Além disso, o PT tem a má prática de desqualificar e ofender seus críticos e isso torna difícil a construção de pontes.
Bolsonaro não tem feito esforço algum para atenuar os muitos excessos de linguagem que cometeu ao longo de sua vida, até porque acha que, por causa dessas posições, está em situação confortável nas pesquisas. Apesar do seu favoritismo, continua colocando em suspeição o processo eleitoral. Diante da pesquisa, após o resultado do primeiro turno, que dava a ele 16 pontos de vantagem sobre o adversário, Bolsonaro disse que as pesquisas eram preparação para a fraude. Esse tipo de desconfiança alimentada por ele em seus eleitores faz mal à democracia. Os atos de violência praticados por seus eleitores aumentam, mas Bolsonaro diz que não manda em 49 milhões de brasileiros que votaram nele. Felizmente, agora, passou a condenar esses atos mas, como líder, deve se esforçar mais para conter essa onda de agressividade na política, até porque já foi vítima dela.
Aterrado meio pode ser evitada na estratégia eleitoral, mas é inevitável na hora de administrar o país. Não se governa com sucesso com teses extremadas. Quem ganhar a eleição terá que buscar a moderação ou não terá sucesso no seu governo.