Míriam Leitão: O batismo do Novo em Minas
Romeu Zema, do Novo, enfrentará um rombo ainda maior: Minas tem atraso de salários e de repasse para municípios, a Cemig antecipou impostos
O Partido Novo fará um batismo de fogo como administrador público. O governador eleito de Minas, Romeu Zema, vai assumir com um déficit maior do que o até agora divulgado. Além da dívida com o governo federal, dos atrasos de salários, o estado deve R$ 10 bilhões de repasses aos municípios, já sacou depósitos judiciais, a Cemig antecipou pagamento de imposto. “Estamos levantando todos os artifícios para que no dia primeiro de janeiro tenhamos condição de apresentar para o mineiro a real situação do estado”, diz Zema.
O governo Fernando Pimentel não quis negociar a entrada no Regime de Recuperação Fiscal e conseguiu liminar no Supremo para não pagar as parcelas da dívida. Assim, ele tem o bônus de suspensão do pagamento das parcelas mensais ao Tesouro, mas não teve que se submeter ao ajuste fiscal que faz parte do programa. Isso fez com que a situação se agravasse, principalmente por esses artifícios contábeis. Mesmo assim, o empresário Romeu Zema se diz animado.
— Estou animado. Eu digo que só para a morte não tem jeito. Minas tem um potencial muito grande, da mesma forma que o Brasil, e eu vejo que este atual governo errou muito. Então dá para reverter muita coisa que ficou a desejar nesses quatro anos, e é o que eu vou fazer com uma equipe muito boa — disse Zema.
Ele divulgou na quinta-feira que o ex-secretário do Rio Gustavo Barbosa será o secretário de Fazenda, que conhece já os caminhos para a entrada no Regime de Recuperação Fiscal. A dificuldade, contou Zema, é conhecer os dados reais. Ele afirma que a transição não está sendo tranquila, porque sua equipe não tem tido acesso aos documentos necessários. Isso é o oposto do que ocorre em outros estados. Recentemente, ouvi tanto de Wilson Witzel, governador eleito do Rio, quanto de Eduardo Leite, governador eleito do Rio Grande do Sul, que a transição está ocorrendo de forma tranquila.
Eu perguntei, nesta entrevista feita com o governador eleito de Minas para a Globonews, se ele está disposto a entregar a Cemig para a privatização, caso seja esse o pedido do Tesouro para a entrada do estado na recuperação fiscal. Do jeito mineiro, ele afirma, mas nega:
— Com toda certeza, sim, mas vale lembrar que a Cemig está subavaliada. Está com gestão longe de ser adequada. Perdeu 70% do valor dela por ingerências políticas, e eu gostaria de recuperar o valor dela, com outra gestão, para ela ser privatizada no momento oportuno.
Zema desistiu de unir as secretarias de agricultura e meio ambiente. Houve manifestações de contrariedades dos dois lados, e por bons motivos. Na Secretaria de Meio Ambiente, 85% dos processos são de outras áreas, como indústria e, principalmente, mineração. A Agricultura responde por um terço do PIB do estado e, por isso, precisa de uma atenção especial. Ponderei esses dois pontos, e Zema respondeu:
— Você está totalmente correta, o plano na campanha era juntar. Mas nestas duas semanas discutimos exaustivamente e é possível que tenha segregação porque cada uma tem seu trabalho. E depois do desastre de Mariana a Secretaria de Meio Ambiente se tornou mais eficiente e as pessoas de indicações políticas saíram.
Ele acha que a Samarco tem que voltar a operar, mas quer que as seguradoras monitorem os riscos das barragens.
Outro trabalho difícil será na educação, onde Minas já foi exemplo e agora está estagnada há dois Idebs. Ele diz que as escolas do fundamental que ainda são do estado devem deixar de ser, para que o foco seja no ensino médio. Não defende que os professores sejam fiscalizados e filmados pelos alunos, mas quer que as escolas mineiras priorizem o ensino de matemática e português. Diz que não é a favor de “caça às bruxas”.
Zema é de Araxá, sede da maior empresa de nióbio do país, a CBMM, mesmo assim ele não compartilha do entusiasmo que o presidente eleito manifesta sobre o nióbio:
— Ele tem características especiais, que tornam qualquer liga mais leve e mais resistente, mas existem metais nobres que são concorrentes do nióbio. Se acharmos que o Brasil tem a maior mina do mundo, pode aparecer um substituto que torne o nosso produto sem valor.
Encontrei o governador de Minas em São Paulo porque ele tem feito sucessivos encontros com empresários tentando atrair investimento para o estado. Perguntei em que área, ele disse que quer qualquer empresa que crie empregos.
Míriam Leitão: Governo se forma no meio de dúvidas
Governo Bolsonaro começa a tomar forma mas ainda não se sabe como será a articulação política nesta tentativa de reinvenção do modelo de coalizão
Começa a tomar forma o governo Jair Bolsonaro, com erros, acertos e dúvidas. As indicações se dividem entre militares, políticos e técnicos. A ideia de que ele não aceitaria indicação política já caiu por terra. Houve apenas a troca dos partidos por bancadas, o que levou a uma sobrerrepresentação do Democratas. Ainda não se sabe como será a articulação política nessa tentativa de reinvenção do modelo de coalizão.
Bancadas se unem por temas e se dividem a respeito de muitas outras questões. Como pensa a bancada ruralista sobre a reforma da Previdência? Depende do projeto. Se houver a cobrança da contribuição previdenciária do agronegócio, certamente a bancada inteira será contra. Se houver novas proibições de Refis, também. A ministra Tereza Cristina não garante os votos dos ruralistas para questões que individualmente os deputados divirjam. A liberação de armas agrada aos ruralistas e à bancada da bala, mas será que terá aprovação de todos os evangélicos? Esta semana o governo cedeu à pressão dos evangélicos na escolha do ministro da Educação, ao desistir de Mozart Neves Ramos. Ontem, acabou anunciando o colombiano Ricardo Velez Rodriguez. O fato de os indicados serem das bancadas não impediu que estivessem já sendo centro de desgaste como acontece com os futuros ministros da Agricultura e da Saúde.
O pacote anticorrupção que será apresentado pelo ministro Sérgio Moro deve encontrar resistência em vários partidos, se o parlamentar entender que isso o ameaça de alguma forma. Nenhum dos problemas normais na gestão da coalizão desaparece com essa forma de esquivar-se das direções partidárias e alguns outros podem surgir como a dúvida sobre como será a negociação dos projetos.
A prova de que a negociação com as bancadas cria desequilíbrios na relação entre o executivo e o legislativo foi a reclamação do próprio PSL, feita na quarta-feira, por não ter até aquele momento nenhum dos seus integrantes no governo. Gustavo Bebbiano é uma indicação do próprio presidente. Se há três ministros do DEM, que tem 29 deputados, qual será o espaço do próprio PSL? É essa a pergunta que chegou ao governo do seu próprio partido. O DEM, antes PFL, já esteve no grupo dos cinco maiores partidos da Câmara, mas perdeu essa condição na eleição de 2014. E como a indicação é dos grupos temáticos, a direção partidária pode não se envolver no esforço de aprovação.
De uma forma ou de outra, o governo estará negociando com os políticos. Isso não é necessariamente ruim. O que o país rejeita na política é o uso de recursos públicos como moeda de troca na construção da coalizão, e não a negociação em si. O partido do presidente elegeu 52 deputados, 10% da Câmara. Ele vai crescer com novas adesões, mas jamais conseguirá ter maioria sozinho, o que só aconteceu uma única vez de 1945 para cá, no governo do general Eurico Gaspar Dutra.
No início, qualquer administração tem mais força e os projetos são mais facilmente aprovados. No governo Bolsonaro, haverá um problema sobre o qual já escrevi aqui: o conflito de agenda. Qual será prioritária? O pacote anticorrupção, que está sendo preparado pelo futuro ministro da Justiça, as reformas a serem apresentadas pelo futuro ministro da economia ou as bandeiras que o presidente eleito defendeu com mais ênfase durante a campanha, como a liberação de armas, a Escola sem Partido, o excludente de ilicitude? Se for tudo ao mesmo tempo, a tendência dos parlamentares será fugir de assuntos mais impopulares, como a reforma da Previdência.
O resto do governo é formado por militares do Exército e por ministros que simbolizam as agendas liberal e de combate à corrupção. Paulo Guedes está se cercando de pessoas nas quais confia há muito tempo, formando uma equipe homogênea. Estendeu suas indicações até para além da área que ficará sob o seu comando, como a Petrobras. A força de superministros fará com que qualquer desentendimento com eles reverbere muito mais. Na economia, as informações divulgadas até agora são esparsas e ainda não permitem saber de que forma o governo pretende enfrentar a grave crise econômica e fiscal do país. As nomeações que o futuro ministro Sérgio Moro têm feito confirmam que a Lava-Jato, que começou com uma operação que fiscalizava o governo, agora tem um braço dentro do executivo.
Míriam Leitão: A renovação e o jovem político
A renovação nestas eleições de 2018 trouxe, em alguns casos, uma nova forma de se fazer política e estar conectado com os eleitores
Esta eleição teve muita renovação, mas os jovens são ainda pequena minoria nos partidos. Há mais filiados com mais de 79 anos do que gente entre 18 e 24, diz o cientista político Lúcio Rennó. Existem alguns casos animadores em que eles chegam não apenas com sua juventude, mas com novas formas de se relacionar com os eleitores. É o caso do mandato compartilhado, do mandato conjunto, ou até mesmo a convicção do eleito de que recebeu na urna uma orientação de trabalho.
Entrevistei recentemente três deputados de primeiro mandato e que decidiram disputar as eleições no movimento de renovação da política. Três casos exemplares, mas diferentes entre si. Felipe Rigoni foi eleito pelo PSB do Espírito Santo para a Câmara Federal. Ele perdeu a visão aos 15 anos por uma doença congênita, é engenheiro de produção, trabalhou no movimento de empresas juniores e foi para Oxford estudar com uma bolsa da Fundação Lemann e entrou no RenovaBR. Felipe quer uma relação constante com os eleitores e fará isso através de aplicativos que todo cidadão capixaba poderá baixar. Montou também uma rede de instituições com as quais vai discutir os projetos, e inclusive as emendas que apresentará. Ele é um defensor do empreendedorismo.
—Desde que participei de movimento de empresas juniores, aprendi que nada é mais poderoso que o momento em as pessoas se sentem donas de um projeto. Por isso, pensei no mandato compartilhado para que as pessoas e instituições possam interagir comigo —afirma Felipe.
Jô Cavalcanti é deputada estadual em Pernambuco pelo PSOL, mas fez a sua campanha com outras quatro mulheres, na ideia de exercer um mandato conjunto. Ela é ambulante, mas há uma professora, uma jornalista, uma advogada, uma trans. E Jô diz que é preciso, com movimentos assim, “reiventar a esquerda”. As cinco são ativistas de diversas causas e são todas feministas.
—O governo de Pernambuco é de esquerda, mas nós somos mais de esquerda. Haverá momentos de divergir, mas como o cenário nacional é bem extremo, haverá momentos também de convergir —diz Jô.
Daniel José foi eleito deputado estadual de São Paulo pelo Partido Novo. Ele é o caçula de 11 filhos de uma diarista e de um auxiliar de serviços gerais. Formou-se no Insper com bolsa e foi estudar em Yale apoiado também pela Fundação Lemann. É um dos líderes do movimento RenovaBR:
— Minha plataforma será a educação. Foi a educação que transformou minha vida, vindo de origem humilde e de uma realidade tipicamente brasileira. Mas, no Novo, outra bandeira que levou a gente a ser eleito é a do combate aos privilégios dos políticos e a da eficiência do gasto público.
Eles têm ideias concretas de como começar a trabalhar, sabem porque entraram na política e que bandeiras defenderão. Querem estar sempre em contato com os eleitores. O movimento ainda é incipiente, porque de acordo com o cientista político Lúcio Rennó a renovação que aconteceu nesta eleição foi grande mas não foi geracional, e foi muito marcada pela onda conservadora.
—Não é uma renovação que passa necessariamente por novas visões da política. Essas pessoas (os três jovens que entrevistei) são, de fato, exceções. Mas acho que esta eleição traz principalmente no eleitor jovem uma forma diferente de entender o mandato. Nesses poucos casos de sucesso, o jovem traz para a política uma forma nova de representação, muito mais próxima do eleitor, usando novas tecnologias e essa ideia de coletivizar os processos decisórios — afirma o professor da Universidade de Brasília.
Os jovens políticos que entrevistei na Globonews mostraram intimidade com a pauta pública. Daniel José disse que um desafio é tornar a Assembleia de São Paulo importante, porque 80% dos projetos são irrelevantes, e quer trabalhar para reverter a queda do estado no ranking do ensino médio. Jô terá desafio duplo, ficar em contato com as bases e manter a proposta de exercer, com as outras quatro mulheres, o que ela prefere definir com o feminino, a “mandata” que recebeu das urnas. Felipe Rigoni entende que faz parte de um momento decisivo da política:
— A renovação é de pessoas, de práticas e de princípios. E essa é a renovação que eu, o Daniel e a Jô lutamos para representar.
A mudança não é repentina, lembra Lúcio Rennó, mas, se esses casos derem certo, podem consolidar uma nova forma de se fazer política.
Míriam Leitão: A melhor reforma da Previdência
Proposta de Arminio e Tafner para a Previdência é a melhor sobre a mesa, e equipe de Bolsonaro faria um bem ao país se estudasse esse projeto
O Brasil terá que fazer uma reforma da Previdência no começo do próximo ano por razões objetivas e não ideológicas. A melhor ideia que apareceu até agora é a apresentada pelos economistas Armínio Fraga e Paulo Tafner. Ela propõe que a fórmula mude para todos, inclusive as Forças Armadas, ainda que elas estejam num projeto separado. Tira os parâmetros de aposentadoria e pensão da Constituição, porque não faz sentido que estejam.
A Previdência das Forças Armadas hoje não está na Constituição. Foi feita e pode ser alterada por Lei Complementar. E mesmo assim tem funcionado. Se diante de cada mudança de parâmetro, como a inclusão da idade mínima, o país ficar mais de duas décadas discutindo, seremos tragados pelo déficit. A primeira vez que o governo tentou aprovar a idade mínima foi em 1996. Ainda estamos rodando em torno disso.
A proposta surge descolada de qualquer grupo político. Quando alguns dos melhores especialistas em Previdência no Brasil se reuniram sob o comando de Armínio Fraga era fevereiro. Não havia candidaturas definidas, e o líder das pesquisas era Lula, que estava solto. Portanto, não foi feita sob encomenda para nenhum partido, mas de acordo com a necessidade de um país que gasta muito mais com aposentadorias e pensões, como proporção do PIB, do que o Japão, que têm o dobro do percentual de idosos que o Brasil tem.
Paulo Tafner explica que a proposta de reforma da Previdência do governo Temer é boa e elogia os trabalhos coordenados por Marcelo Caetano na PEC 287. Há pontos em comum entre as duas, mas, se a proposta atual mantém o assunto na Constituição, a nova proposta retira para ter mais liberdade para alterá-la conforme as mudanças na realidade do país.
O sistema brasileiro de pensões e aposentadorias tem dois problemas: um déficit crescente e uma enorme desigualdade. Qualquer reforma consistente tem que atacar as duas questões ao mesmo tempo. A proposta original de Marcelo Caetano era mais abrangente, mas foi sendo reduzida com a retirada dos policiais e bombeiros, por exemplo. A ideia agora é todos os trabalhadores do setor privado e todos os servidores civis terem o mesmo regime de aposentadoria, e as regras de transição são mais rápidas.
— Isso quer dizer que na década de 2030, se você comparar um servidor público e um da iniciativa privada, eles terão as mesmas regras. Primeiro, tem que unificar, padronizar todas as regras de modo que se possa juntar todos os trabalhadores privados e todos os servidores civis federais, estaduais e municipais — explica Paulo Tafner.
Há uma proposta em separado para policiais militares e bombeiros, mas muda as regras atuais em que eles se aposentam antes dos 50. A ideia de Armínio-Tafner é fazer uma ampla reforma de todos os parâmetros da atual Previdência do regime de repartição. Ao mesmo tempo, criar um sistema novo para quem nasceu a partir de 2014. Tafner me explicou que se o país estiver crescendo e resolvendo seus problemas fiscais, haverá a possibilidade, para quem nasceu a partir de 2000, de optar pelo novo sistema de contas individuais, para o qual o empregador continuará contribuindo.
— Esse sistema é tão equilibrado que a partir de 2050 talvez seja possível reduzir as contribuições — diz Tafner.
O governo Bolsonaro fará um grande favor a si mesmo e ao país se estudar esse projeto. Ele foi feito por pessoas que ou passaram pelo setor público ou são funcionários públicos, do Ipea, do BNDES, da assessoria do Congresso. Ela é ampla, mas não fora da realidade, porque são todos maduros especialistas no assunto.
Para as Forças Armadas, como para todos os servidores, vai acabar a integralidade e a paridade. Hoje, quem dá baixa cedo passa a receber o salário integral da ativa na sua patente. A baixa oficialidade e os soldados, cabos e sargentos representam o custo maior do déficit das Forças Armadas, que está em R$ 43 bilhões. Eles não terão idade mínima, podem ir para a reserva mais cedo. Porém, todos vão contribuir mais. Hoje, o militar contribui com 7,5% para si mesmo e 1,5% para as pensões.
A proposta enfrenta todas as questões como a da desvinculação do piso da Previdência do salário mínimo. São assuntos polêmicos, mas a melhor hora para tratar é no início de um governo que chegou falando em mudança e em um projeto liberal.
Míriam Leitão: Novo governo e o tempo do mercado
Bom humor do mercado financeiro com o governo Bolsonaro pode mudar se não for aprovada uma reforma da Previdência consistente
O governo Jair Bolsonaro terá menos tempo do que se pensava da confiança do mercado. Se não for feita uma reforma da Previdência consistente, o entusiasmo inicial dos investidores locais pode mudar de direção. Os estrangeiros sempre estiveram mais céticos em relação à aposta de que o novo governo fará um ajuste fiscal robusto e uma importante redução do tamanho do Estado. Isso é o que se pode ouvir em conversas com analistas de bancos e economistas.
Ninguém acha que reformar o sistema de pensões e aposentadorias seja a panaceia, mas o que os analistas dizem é que sem isso não há como se ter um programa realmente sustentável de redução dos gastos públicos em nenhum dos três níveis de governo.
— E se for uma reforminha não conseguirá enganar ninguém que sabe fazer contas — diz um economista de prestígio no mercado brasileiro.
Na verdade, entre os economistas que trabalham no setor financeiro há entusiasmo entre os mais jovens, que foram os primeiros a acreditar que ele representaria uma guinada liberal no governo, a despeito de, em toda a sua vida política, ter dado sustentação ao nacional-estatismo. Os mais sêniors nos bancos e consultorias têm visão mais completa do cenário e acham que tem havido excessivos curtos-circuitos na equipe do novo governo e há muitas contradições. A avaliação de um economista com muita experiência em setor público é que: “eles se prepararam para uma campanha e não para um governo”. Isso é que explica cenas explícitas e diárias de improviso. Os integrantes da futura administração têm que passar por um rápido período de aprendizado e, por isso, o resultado é incerto.
Um exemplo foi a promessa que o futuro ministro da área econômica, Paulo Guedes, fez de distribuir com os estados parte dos recursos da licitação futura de petróleo dos campos da cessão onerosa. Se o socorro aos estados ocorrer antes da aprovação da reforma da Previdência terá sido um erro essa promessa. E haverá um custo.
No mercado, já foi absorvido que a reforma da Previdência não será aprovada este ano, mas a expectativa é que seja no primeiro semestre de 2019. O problema é qual reforma seria aprovada. A do presidente Temer foi sendo desidratada ao longo do tempo, e no futuro governo fala-se em reduzir ainda mais seu alcance e ampliar a sua já longuíssima transição.
Investidores estrangeiros estão em compasso de espera e vão aguardar os primeiros movimentos do próximo período legislativo, para ver como será a relação do executivo com o Congresso. Este ano houve muita volatilidade nos mercados emergentes. Houve crises de confiança em relação à Argentina, Turquia e ao próprio México. Por isso, olham o Brasil com cautela. Eles não se deixam convencer pelo discurso ideológico antiesquerda. Querem ver o que o novo governo pode “entregar”.
O Brasil tem uma situação de fragilidade fiscal externa criada em grande parte pelos erros da administração econômica petista. O relato dos erros e da crise ocupou esta coluna durante anos, material que resultou em um livro meu de título “A verdade é teimosa”. E por ser assim, insistente, mesmo quando as narrativas dizem o contrário, é que a verdade está nos números da dívida pública, que cresceu perigosamente, e do déficit público, que permanece alto mesmo com as melhoras recentes conquistadas pela boa equipe econômica atual.
— Pouca gente do novo governo entendeu a dimensão da crise econômica e o esforço que terá que ser feito para enfrentá-la — disse um economista-chefe de banco.
Ninguém duvida que Paulo Guedes é um grande economista. A dúvida recai sobre sua capacidade de atuar no setor público com a habilidade e a efetividade adequadas. Seu estilo pode criar arestas entre os políticos. Ele conseguiu vitórias até agora em manter Mansueto Almeida e trazer Joaquim Levy de volta da diretoria financeira do Banco Mundial. Mas por mais influente que ele seja, haverá outros focos de poder no governo Bolsonaro com visão totalmente diferente e que podem conflitar com a área econômica. O futuro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, e parte da base do novo governo são adversários da ideia de reforma da Previdência defendida pela maior parte dos especialistas. O novo chanceler, Ernesto Araújo, tem visão diferente de Guedes no comércio internacional. O mercado, como bem sabe Paulo Guedes, é volátil e, como os ventos, pode mudar bruscamente de direção.
Míriam Leitão: Risco concreto na política comercial
Diplomacia comercial exige visão estratégica e pragmatismo. No clima, o risco é não ouvir a ciência. Nos dois casos há perdas econômicas
Não adiantará ter mantido separados os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente se a pessoa indicada representar uma visão idêntica à do ruralismo. Há um temor entre climatologistas de que se repita no MMA o que houve no Itamaraty. A mistura pode ser explosiva. Se o Brasil sair do Acordo de Paris, reduzir ainda mais a ação dos órgãos de controle e tiver uma política que estimule o desmatamento, o agronegócio brasileiro enfrentará barreiras comerciais aos seus produtos.
O temor entre cientistas, no governo ou fora dele, é que, depois de um chanceler que nega a mudança climática, possa ser nomeado para o Ministério do Meio Ambiente alguém com essa mesma visão. O nome que mais inspira preocupação é o do pesquisador da Embrapa Evaristo de Miranda. Ele é conhecido na área por apresentar estudos como se fossem científicos, mas com metodologia e dados questionáveis. Certa vez, divulgou um estudo sobre o impacto das APPs na agropecuária brasileira. Foi rebatido por um trabalho coordenado pelo climatologista Antonio Nobre, feito pelo Instituto de Pesquisas Espaciais e Instituto de Pesquisas da Amazônia, em que se comprovou que Evaristo de Miranda havia exagerado em 309% esse impacto das APPs. Ele não é controverso pelo que acredita, mas pela maneira como usa suas bases de dados para confirmar sua teoria.
O que parece, ao grupo que prepara o governo Bolsonaro, a vitória da ideologia de direita, consagrada nas eleições, pode ser, na verdade, o risco de problemas comerciais no futuro. Uma parte do agronegócio brasileiro sabe das ameaças, tanto que o setor se dividiu diante da proposta de acabar com o Ministério do Meio Ambiente e entregar o assunto para o Ministério da Agricultura. Mas os nomes que circulam, e não apenas o de Evaristo, mostram que se quer fazer a mesma coisa, de outra forma. O Ministério existiria mas seria submetido às teses do ruralismo mais atrasado.
No caso do Itamaraty, os custos do caminho já escolhido por Bolsonaro podem ser imensos. A ideologia já fez muito mal à política externa em tempo recente. O ministro Celso Amorim, no governo Lula, a despeito de sua carreira brilhante, submeteu os diplomatas ao absurdo da leitura dirigida. O então vice-chanceler Samuel Pinheiro Guimarães escalava os livros que tinham que ser lidos por todos os diplomatas. Essa doutrinação extemporânea acabou em 2007 quando o então ex-embaixador nos Estados Unidos Roberto Abdenur deu uma entrevista contra o que definiu como “uma coisa vexatória”. O ex-ministro Celso Lafer chamou de “lavagem cerebral”. Esse é um dos problemas que ocorrem quando se quer impor uma ideologia — naquele caso, a de esquerda — ao corpo diplomático. O pior prejuízo foi a decisão de desperdiçar em postos burocráticos alguns dos mais brilhantes diplomatas brasileiros que, supostamente, não se enquadravam na “ideologia”. O custo financeiro, pago pelo país, foram os calotes nos empréstimos concedidos a países sem condição de pagar.
O embaixador Ernesto Araújo tem posições das quais não se pode dizer que representem uma corrente no MRE. Ele é idiossincrático. Araújo é definido por um embaixador como “um Steve Bannon sem o maquiavelismo do ex-assessor de Trump, mas com um ingrediente místico”. O novo ministro tem o direito de pensar o que quiser, mas o problema é que quando vira política de Estado isso muda de figura. Suas posições contra a integração nas cadeias globais de produção vão no sentido oposto ao que o futuro ministro da Fazenda anunciou que fará. Paulo Guedes quer aumentar a abertura comercial para integrar o Brasil, ainda que tarde, à economia global.
Seguir os Estados Unidos cegamente tem vários riscos. Ontem, o presidente americano recuou em parte da guerra comercial com a China. Ou seja, se o Brasil embarcar na visão antiChina — que compra 23% de tudo o que exportamos — tem o risco de ficar falando sozinho, porque Trump muda de ideia frequentemente sobre tudo. No comércio internacional, Brasil e Estados Unidos são às vezes competidores. Na soja, por exemplo. Quando Trump aumenta o subsídio aos seus produtores, prejudica o nosso produto. Diplomacia comercial exige visão estratégica e pragmatismo. Na questão climática, a ideologia produzirá perdas econômicas concretas. E é esse o cenário que está ficando mais provável na formação do governo.
Míriam Leitão: A equipe começa a ser formada
Mansueto fica e Campos Neto é indicado para comandar um projeto de BC independente como defende Ilan, que está de saída
Ilan Goldfajn ficou fechado, em total silêncio, enquanto se especulava se ele permaneceria ou não. Havia interesse em que ele ficasse até pela convergência natural entre a defesa do Banco Central independente pelo futuro ministro da área econômica, Paulo Guedes, e por Ilan, que ontem prometeu em nota continuar a apoiar o projeto nesse sentido em tramitação no Congresso. Mas um dos critérios para seguir no cargo era demonstrar interesse em ficar, o que não foi o caso do atual presidente do BC. O secretário do Tesouro Mansueto Almeida fica e mantém toda a sua equipe. Ana Paula Vescovi tem dito a todos que a procuram que quer ir para o exterior estudar.
Com a escolha de Roberto Campos Neto para presidir o BC, a equipe econômica começa a tomar forma. A ideia de Paulo Guedes sempre foi aprovar o Banco Central independente, o que é um passo adiante na autonomia que tem havido no órgão em alguns momentos. Ilan Goldfajn teve total autonomia e entregou o excelente resultado, reconhecido na área econômica do futuro governo, e comprovado pelo menos em dois indicadores. A inflação que estava perto de dois dígitos caiu abaixo do piso da meta e, com toda a turbulência do processo eleitoral, chega ao fim do ano no centro da meta. O segundo é a queda da taxa de juros para o menor nível da história do real, uma redução consistente, que atravessou estável esse período tenso. Ilan foi também ágil e firme nos momentos de maior tensão no mercado cambial. Avisou que só os efeitos secundários da mudança do patamar do câmbio seriam combatidos, ou seja, não subiria juros na vã tentativa de criar um patamar para o dólar.
Dentro da equipe que prepara o governo Bolsonaro há dois critérios para os convites, segundo um desses integrantes. “É preciso ter feito um bom trabalho", o que é o caso de Ilan e estar com vontade de permanecer no novo governo. Ontem no fim do dia, o presidente do BC explicou que “seu afastamento do cargo se dá por motivos pessoais" e que ficará no BC até que a indicação de seu sucessor seja aprovada pelo Senado.
Roberto Campos Neto é definido com uma palavra na equipe de transição: “excelente”. Atualmente no Santander, ele tem bastante experiência no mercado financeiro e já vinha colaborando com a equipe do novo governo. Foi escolha pessoal de Paulo Guedes, como tinha que ser. Chega com o desafio de manter a política monetária, mas ao mesmo tempo criar as condições para o aumento da competição no mercado bancário. Paulo Guedes vem dizendo desde a campanha que tem interesse em reduzir o custo da dívida pública e a própria dívida. Chegou a falar, depois da eleição, em vender parte das reservas cambiais com esse objetivo. Esta não é uma operação trivial.
O nome foi bem aceito pelos investidores. O fundo que acompanha os principais papéis de empresas brasileiras em Nova York acelerou a alta durante o dia, com as notícias sobre a indicação de Campos Neto. O EWZ subia mais de 2% à tarde. Isso indica que a bolsa por aqui deve abrir a sexta-feira em alta.
A permanência de Mansueto no Tesouro é importante por inúmeras razões. É um grande economista, com sólido conhecimento da máquina pública, e está tocando assuntos complexos como o quadro fiscal nos estados. Ele acompanha com o cuidado devido as bombas fiscais que estão armadas no Congresso e sabe como lidar com temas espinhosos que normalmente suscitam reações políticas. Depois dos grandes erros cometidos pelo governo Dilma na Secretaria do Tesouro, Mansueto, e antes dele, a economista Ana Paula Vescovi, tiveram que resolver problemas de muitos anos antes.
Não haverá solução fácil para o rombo fiscal do governo federal e dos governos estaduais, mas a atual equipe melhorou a qualidade das políticas públicas, dos indicadores e está fazendo uma correta transição administrativa, só comparável à que foi feita entre os governos Fernando Henrique e Lula. No caso dos estados, a convicção na equipe do governo Temer é que sem a reforma da Previdência não haverá melhora duradoura. Mas há formas de atenuar, como se pôde ver no Rio de Janeiro.
O governador Luiz Fernando Pezão conta que reduziu os gastos de pessoal como proporção da Receita Corrente Líquida de 70% em 2017 para 46% em outubro de 2018. E garante ter cumprido 12 das vinte metas. No governo federal a expectativa não é assim tão boa, mas os técnicos estão convencidos de que o estado se enquadrará abaixo do limite de 60%. O caso do Rio é importante porque é o único estado que entrou no Regime de Recuperação Fiscal. O Rio Grande do Sul não conseguiu e Minas nem foi conversar, preferindo tentar as liminares na Justiça. A melhora no Rio é em parte pela alta do petróleo — que a propósito voltou a cair —, mas também porque a partir do enquadramento no RRF houve mais disciplina. Não são poucos os desafios que esperam a nova equipe econômica que está sendo formada.
Míriam Leitão: Moro no país das urgências
Moro deu entrevistas esclarecedoras, mostrou convergências com Bolsonaro, mas ainda há enigmas sobre como lidará com temas difíceis
Há uma enorme expectativa sobre como o novo ministro da Justiça e Segurança, Sergio Moro, vai lidar com questões inteiramente novas para ele, que vão dos índios às prisões, passando pela migração nas nossas fronteiras. Sobre os pontos polêmicos da agenda do presidente eleito, o futuro ministro já mostrou muitas convergências e algumas dissonâncias. Ontem, o Cade saiu da alçada dele, mas a lista do que ele terá que assumir é imensa.
Num governo que tem improvisado além do razoável na comunicação, e tropeçado demais na relação com a imprensa, Moro tomou a decisão correta, de dar, no primeiro momento, uma entrevista longa, organizada, clara e aberta a todos os veículos. Na entrevista do fim de semana, ao “Fantástico” ele esclareceu outros pontos das dúvidas levantadas pela ida dele para o governo Bolsonaro.
Nos dois momentos exibiu sua capacidade de pensar antes de falar, e de procurar palavras que arredondem as arestas. Mas não dá para contornar o incontornável. Disse que nunca viu de Bolsonaro “uma proposta de cunho discriminatório” contra minorias. Elas foram desrespeitadas em várias declarações do deputado. Ele foi bem explícito.
Nas entrevistas, Moro esclareceu suas convicções, para além da pauta sobre a qual ele sempre falou. Demonstrou que concorda que haja um reforço legal de proteção ao policial ou o militar nos confrontos com criminosos. Acha natural que o presidente eleito proponha a flexibilização da posse de armas já que defendeu isso em campanha, mas alertou para o risco de as armas servirem de suprimento para o crime. O futuro ministro disse que é favorável à redução da maioridade penal e do aumento do rigor na progressão de pena. Ele qualifica o que pensa. Diz que quem continua pertencendo a uma organização criminosa não deveria ter o benefício da redução da pena. E não concorda com a tipificação de movimentos sociais mais aguerridos como grupos terroristas, apesar de achar que não podem ser inimputáveis.
A grande pauta de Jair Bolsonaro jamais foi o combate à corrupção. Ele foi parlamentar de ideia centrada numa agenda de conservadorismo, político e de costumes, e de defesa do regime militar, mesmo dos seus piores erros. A luta anticorrupção é inclusão recente pela oportunidade aberta pela Lava-Jato, na qual ele surfou atrás de eleitores.
Moro entendeu o convite, como ele tem dito com clareza, como a oportunidade que se abriu para que ele salvasse a Lava-Jato, por assim dizer. "Passei os anos pensando que a mesa poderia ser virada a qualquer momento. Era uma realidade presente", disse. De fato, não faltou desejo em Brasília de barrar a Lava-Jato, mas a operação sempre teve muito apoio da imprensa, da opinião pública e de estudiosos de diversas áreas. Existem muitas ideias já amadurecidas em debate da sociedade civil, por isso não será difícil fazer o pacote anticorrupção. A dificuldade dele será negociar com alguns dos partidos que estarão na base de apoio do governo.
Há inúmeras outras questões esperando por Moro e não há qualquer informação sobre o que ele pensa de algumas delas. Quando perguntado sobre índios, ele deu uma não resposta. O Brasil tem uma extraordinária diversidade étnica, com mais de 200 povos, a maioria preserva a sua língua original, há grande cobiça de fazendeiros, muitos deles grileiros, em avançar sobre terras indígenas. Tudo o que o presidente eleito falou até agora sobre índios revela espantoso desconhecimento da complexidade do tema e ideias que, se transformadas em política pública, terão efeitos desastrosos. Esse assunto caberá a Moro.
Na edição de domingo, este jornal trouxe reportagem do excelente jornalista Antônio Werneck com a lista dos vários barris de pólvora que passarão a integrar a agenda do futuro ministro: a guerra entre facções criminosas em 14 estados, o tráfico de drogas através de fronteiras porosas, rotas marítimas e aéreas do tráfico de armas pesadas, regras para o contato de presos com parentes, amigos e advogados, relação com os estados que são, no fim das contas, os responsáveis pela política de segurança pública. Quando houver rebeliões em presídios o assunto sempre cairá sobre o colo do ministro da Justiça e Segurança.
Sergio Moro tem grande capacidade de trabalho como já mostrou na 13ª Vara Federal. Precisará dessa competência para não se perder em assuntos tão díspares. Ele vai descobrir que não poderá apagar algumas agendas para focar apenas no que elegeu como sua missão. O Brasil é o país das muitas urgências.
Míriam Leitão: A vitória da diversidade
Pode-se atrasar o futuro, mas não se pode impedir que ele aconteça. O recado das urnas americanas vale para outros países: este é o século da diversidade
O que houve de mais importante na eleição americana foi a vitória da diversidade. Em um governo hostil às diferenças, dirigido por um presidente intolerante com os imigrantes, o voto trouxe para a cena política pessoas de origens, religiões, orientação sexual, idades diferentes entre si. O recado que ficou é que o futuro inevitável é o do alargamento da representação política porque todas as vozes querem ser ouvidas e é isso que fortalece a democracia.
A nova maioria democrata na Câmara dos Deputados será fundamental para a continuidade da investigação sobre os subterrâneos da eleição do presidente Donald Trump e a nunca devidamente explicada participação russa na campanha na internet. É importante também por fortalecer os pesos e contrapesos da democracia, diante de um presidente que é capaz de afrontar a primeira emenda da Constituição, a da liberdade de imprensa, como fez com o jornalista Jim Acosta que cobria a Casa Branca. Depois de ouvir as acusações do presidente, teve sua credencial cassada. Curioso como a atitude de Trump lembra a do coronel Hugo Chávez. Ele também acusava alguns jornalistas e jornais de serem “inimigos do povo”, quando não gostava do que lia ou das perguntas que ouvia. As mentes autoritárias se parecem, independentemente da ideologia que afirmam ter. Os autoritários em qualquer país acusam seus críticos de serem contra o país e o povo. A diferença está na força das instituições que se contrapõem a eles. Infelizmente a Venezuela nunca teve uma democracia sólida e ela foi sendo demolida paulatinamente por Chávez e Maduro.
O que a eleição americana traz de mais importante é a força da diversidade. Duas “native americans”, ou indígenas, chegaram à House: Sharice Davids e Deb Haaland. A primeira é homossexual e filha de mãe solteira; a segunda, da tribo Pueblo Laguna, é ativista comunitária no Novo México. Duas outras congressistas são as primeiras muçulmanas eleitas. Ilhan Omar nasceu na Somália e Rashid Tlaib nasceu nos Estados Unidos, mas de pais palestinos. O Colorado elegeu o primeiro governador gay assumido. Jared Palis é casado e tem dois filhos. Vários outros estados elegeram pessoas negras. Massachussetts, por exemplo, mandará para a Câmara a primeira mulher negra a representar o estado. A juventude também teve avanços. Alexandria Ocasio-Cortez, de Nova York, é a deputada mais jovem a ser eleita. São muitos os casos de vitória de pessoas diferentes do padrão tradicional dos poderosos de Washington. Na campanha, o “The New York Times” já havia registrado que essa era a eleição com maior diversidade. Publicou uma coleção de rostos que mostrava o colorido e a beleza do painel humano que se oferecia ao eleitorado.
Pode-se atrasar o futuro, mas não se pode impedir que ele aconteça. Esse recado das urnas americanas vale para os muitos países onde cresce a onda conservadora, que tem a visão tradicional de família como a única possível e nos quais, por gestos e palavras, mulheres, índios, negros, homossexuais são tratados como inferiores. Este é o século da diversidade, da ampliação da representação democrática para todos os grupos, do diálogo entre pessoas diferentes entre si, da proteção do planeta por todos os meios possíveis.
Há quem acredite, ainda hoje que o melhor para tratar a desigualdade é não falar nela e repetir o bordão de que somos todos iguais. Somos, mas encarar as desigualdades e conhecer-lhes as causas é a única forma de superar as distâncias. Quem divide não é quem fala da desigualdade, é quem finge não vê-la. Essa política de avestruz ainda tem seguidores.
Não se pode avançar no século XXI carregando convicções arcaicas. Qualquer vitória do atraso é temporária. Trump ficou um pouco mais fraco essa semana, porque o partido Republicano perdeu a maioria na Câmara. Ele ainda é forte. Ampliou sua margem no Senado e fortaleceu a direita do partido que é a mais ligada a ele. Mesmo assim, sua real derrota é mais sutil e permanente. O seu ideal de América de maioria branca e conservadora ficou um pouco mais distante. O futuro não vem numa linha reta, sem hesitações. Pelo contrário, há momentos em que ele parece estar perdido. Mas os retrocessos são soluços da velha ordem, a antítese do futuro.
Míriam Leitão: O governo que é antes de ser
Novo governo não assumiu, mas já tem que fazer articulação no Congresso para evitar projetos que pesem mais nas contas públicas
O governo Bolsonaro tem o ônus de ser, antes do bônus de estar na Presidência. Os atos do Congresso agora afetarão o primeiro ano do governo Bolsonaro. A administração não assumiu, mas já anuncia decisões que têm efeitos políticos e, por isso, geram reações, mas a base ainda não se articulou para a defesa no Congresso, até pela grande renovação. Foi isso o que aconteceu no caso da aprovação do reajuste do Judiciário e do Ministério Público. O presidente eleito afirmou que não era o momento e que eles são os “mais bem aquinhoados" do setor público. Está certo. Mas por não ter feito qualquer articulação com o Senado, Bolsonaro teve sua primeira derrota.
Esta transição é diferente de todas as outras, por uma série de fatores, e a eles a equipe de Bolsonaro deveria estar atenta. Houve muita renovação nas duas casas, mas há um fato curioso: o reajuste teve o voto de senadores que serão da futura base. Já alguns que serão oposição votaram contra, como o senador Randolfe Rodrigues. O PSL era ínfimo e agora é a segunda maior bancada da Câmara e será a primeira com as adesões que receberá. O governo está em formação, mas vai conviver até fevereiro com o velho Congresso. O poder nascente é sempre mais forte do que o poente, portanto é a favor ou contra ele que as forças políticas agora se organizam.
A fala do futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, de dar uma "prensa neles”, bateu num Senado em que muita gente não voltará, a começar do presidente da casa, Eunício Oliveira. O reajuste já contou para a nova administração, que terá que pagar a conta. Ele aumenta os custos do governo federal, dos governos estaduais, e se torna uma despesa permanente. Tornará ainda mais difícil evitar o reajuste dado ao Executivo.
O governo Temer cometeu um erro logo que chegou e passou dois anos e meio se arrependendo. Deu aumentos a muitas categorias do Executivo em parcelas anuais, apesar de o país estar em recessão, com receitas encolhendo. Tentou adiar a parcela do reajuste de 2018 e foi derrotado por uma liminar do ministro Ricardo Lewandowski. Agora mandou nova proposta para adiar para 2020 o reajuste de 2019, que pode ser derrubada de novo.
Há pelo menos três outras bombas no Congresso: a revisão da Lei Kandir será votada este ano, e ela pode decuplicar o gasto do governo federal com a compensação para os Estados; a emenda 99 manda o governo federal financiar com juros subsidiados o pagamento de precatórios de estados e municípios e isso já foi aprovado, mas o dano pode ser contido na regulamentação; o Orçamento de 2019 está sendo votado e nele os parlamentares querem pendurar suas emendas.
Se não quiser começar os trabalhos no meio de bombas, o governo Bolsonaro terá que iniciar a articulação política antes de assumir o Palácio do Planalto. O governo está ferindo vários interesses com as suas mudanças nos ministérios, apesar de em muitos casos ter razão. Um exemplo são os empresários, principalmente os industriais, que pela primeira vez temem não ter um balcão no governo ao qual levar suas reivindicações, porque o Ministério da Indústria e Comércio será parte do novo ministério da economia. Eles têm muita conexão no Congresso. Não tem sentido dar a eles subsídios e proteção, mas estão corretos quando dizem que o custo Brasil é alto demais, o que torna a competição injusta. É preciso criar as condições para a mudança na política industrial.
Quem acompanha os tuites e outras formas de comunicação do grupo do presidente eleito, dos seus filhos e dos assessores, reais ou virtuais, já notou que um dos defeitos da turma é a mania de perseguição. Eles consideram inimigos todos os que não lhes fazem a corte. Qualquer reparo ao novo governo transforma o autor da crítica num “comunista”. Esse macartismo fora de época mira políticos, jornalistas, pensadores. Alvejar supostos adversários com um epíteto tão antigo assim é até cômico. Quando se dirigem a jornalistas e pensadores não causam maiores efeitos. Se tratarem o Congresso com o mesmo maniqueísmo terão como troco mais dificuldades para governar. Bolsonaro terá que fazer uma coalizão, mesmo que a chame de outro nome. E se quer fazer coalizões com bancadas temáticas, a cada votação, a articulação será ainda mais árdua. Democracia dá muito trabalho. Mas, felizmente, é o que temos.
Míriam Leitão: Constituição no país de Bolsonaro
O Brasil vive, nos 30 anos de sua Constituição, momento em que todos lembram ao presidente eleito que é preciso cumpri-la
Na sessão solene do Congresso, ontem, as autoridades se revezaram batendo na mesma tecla: é preciso respeitar a Constituição. Alvo de todos os recados, o presidente eleito, Jair Bolsonaro, disse que “na democracia só há um norte: o da nossa Constituição.” Se estavam todos de acordo em cumprir a Lei Magna promulgada em dia emocionante, há 30 anos, por que mesmo essa repetição? Porque esse é o maior teste que as instituições enfrentam.
O governo que se forma teve ontem dois momentos importantes e definidores. Pela manhã, cercado de representantes dos poderes, Bolsonaro ouviu que só há um caminho, o constitucional. De tarde, o futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro, respondeu pacientemente a uma hora e meia de perguntas de jornalistas. Ele definiu o presidente eleito com adjetivos que normalmente não estiveram associados a ele: “ponderado”, “moderado” e “sensato”. Moro disse que não vê “risco à democracia e ao Estado de Direito”.
Bolsonaro deu baixa no Exército no mesmo ano, 1988, da promulgação da Constituição e começou sua bem-sucedida carreira política que o levou da vereança aos sucessivos mandatos como deputado e agora chega, pelo voto, ao cargo maior do Executivo. Saiu do Exército desgostoso com o soldo e o tratamento recebido ao se insurgir, mas com todas as convicções políticas que tinham à época as Forças Armadas, nas quais entrou como oficial formado pela AMAN no ano em que o então presidente Ernesto Geisel fechou o Congresso.
Ele se notabilizou não pelos projetos, não pela liderança, não pela capacidade de negociação política, mas pelas declarações polêmicas e agressivas, várias delas de desprezo pela democracia. Na campanha, algumas de suas falas arranharam partes da Lei Maior, como a que estabelece, no artigo 3º, que entre os objetivos da República estão a igualdade entre gêneros, a luta contra a discriminação. O presidente do STF, Dias Toffoli, foi votar, no dia 28, com a Constituição na mão e passou o dia lembrando o artigo 3º.
Ontem, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, foi mais enfática. “Não basta reverenciá-la, é preciso cumpri-la.” Bolsonaro não aplaudiu a procuradora que o denunciou por racismo. Antes de Raquel, Ela Wieko, quando ocupava o cargo de vice-procuradora-geral, já o denunciara por apologia ao estupro, ação que ainda permanece na mão do ministro Luiz Fux. Raquel Dodge, lembrou, não por acaso, que a Carta Magna prestigia as minorias, a erradicação da pobreza, a proteção ao meio ambiente. “A Constituição repudia toda a forma de discriminação.”
Por que os líderes do país têm insistido tanto em lembrar o documento que encerrou oficialmente, há três décadas, um período de arbítrio, suspensão de direitos e garantias individuais, supressão do direito de voto para os cargos executivos? Porque é aniversário da Carta na qual foi escrito o pacto que nos uniu e nos trouxe até aqui.
Há um momento na trilogia tebana de Sófocles em que Teseu, rei de Atenas, diz a Creonte, governante de Tebas: “Terei de estar atento a essas circunstâncias para evitar que considerem a minha pátria tão fraca a ponto de curvar-se a um homem só.” Será que é esse temor que faz com que tantos lembrem que o Brasil jamais pode se afastar do texto pactuado há 30 anos?
O juiz Sérgio Moro mostrou ontem a outra face do governo. Sereno, mesmo diante das perguntas mais difíceis, ele defendeu a decisão de ir para o governo Bolsonaro porque tem a ideia de que conseguirá consolidar os avanços institucionais conseguidos nos últimos anos de combate à corrupção. Tentará aprovar um primeiro pacote nos primeiros seis meses. Admitiu ter divergências em alguns pontos com o presidente eleito, mas afirmou que sabe que estará subordinado a ele.
—Existem receios, a meu ver infundados, e minha presença no governo pode ter o efeito de afastar esses receios. Sou um juiz, um homem de leis. Jamais admitiria qualquer solução que não fosse lei —disse Moro.
Moro pode ajudar a moderar o governo em que várias pessoas já demonstraram tendências autoritárias, até em fatos como a tentativa de impedir a imprensa ontem no plenário do Senado? Moro é apenas uma peça nesse complicado xadrez. Os poderes moderadores da República serão todas as instituições nas quais temos investido o melhor dos últimos 30 anos.
Míriam Leitão: O que evitar na política externa
Se o Brasil adotar uma política externa à reboque dos EUA fará o contrário do que os próprios militares implantaram no período deles
Diplomacia é arte de delicada tessitura. Mesmo para endurecer é preciso saber como fazer e qual é o passo seguinte, como num jogo de xadrez. E só deve ter um norte: o interesse do Brasil. O próximo governo tem falado qual será a política externa antes de escolher o futuro ministro. Como candidato, Jair Bolsonaro fez declarações das quais teve que recuar. Como presidente eleito deveria evitar precipitações porque suas palavras têm enorme peso agora. Nos governos Geisel e Figueiredo o Brasil retomou a política externa não ideológica e não alinhada aos Estados Unidos, que, depois, foi seguida em governos democráticos.
Os ministros Azeredo da Silveira e Saraiva Guerreiro, nos governos Geisel e Figueiredo, conduziram o chamado “pragmatismo responsável". O Itamaraty retomou, naquela época, o caminho de uma política externa independente que havia sido abandonada no início do regime militar.
Um dos exemplos dessa política ocorreu em novembro de 1975 quando o Brasil foi o primeiro país a reconhecer o novo governo angolano que havia declarado a independência em relação a Portugal, e era comandado pelo MPLA, que se declarava marxista. Uma parte do país era dominada por outro grupo guerrilheiro, a Unita, que anos depois perdeu a guerra.
Geisel, em março de 1977, rompeu o acordo militar com os Estados Unidos assinado nos anos 1950. Era uma forma de o Brasil escolher seu caminho também nesta área. O então presidente chegou a pensar num rompimento de outros acordos, mas foi aconselhado pelos diplomatas a esperar a reação americana com cartas na manga. Tudo o que os Estados Unidos fizeram foi enviar o general Vernon Walters ao Brasil para tentar demover o país, missão que fracassou.
O voto antissionista na ONU em 1975 causou bastante polêmica. Ele considerava o sionismo uma forma de discriminação. A questão dividiu a ONU e os países, mas a decisão brasileira foi vista como autônoma. Foi uma etapa importante da aproximação com os países árabes com quem o Brasil tem um comércio vigoroso. Foram instaladas unidades especiais só para fornecer frango para os árabes.
A transferência da sede da embaixada do Brasil para Jerusalém pode ter como efeito bumerangue a retaliação comercial dos árabes ao Brasil. Mas principalmente é ruim por significar um retrocesso no não alinhamento automático com os Estados Unidos, um dos avanços conseguidos na diplomacia dos últimos governos militares. Só um país do mundo, a Guatemala, seguiu os Estados Unidos nessa decisão.
No período João Figueiredo, o Brasil se recusou várias vezes a entrar em conspirações e conflitos na região, nos quais os Estados Unidos de Ronald Reagan tentaram nos envolver. Em uma dessas vezes houve um fato que ficou famoso. O subsecretário americano Thomas Enders veio ao Brasil tentar convencer o país a participar da tentativa de derrubar o governo sandinista. O ministro Saraiva Guerreiro costumava fechar os olhos e respirar profundamente no meio das conversas, o que levava o interlocutor a achar que ele dormira. Enders explicava que o Brasil deveria integrar uma força militar para a intervenção contra o governo sandinista, e Guerreiro fechou os olhos durante a longa explanação, deixando o americano desconcertado. Quando parou de falar, Guerreiro perguntou:
— Do you believe in God, mister Enders?
O subsecretário, cada vez mais confuso, disse que sim, acreditava em Deus. Ao que Guerreiro respondeu em inglês:
— Então vamos rezar pelo povo da Nicarágua.
Com essas e outras o Brasil, diplomaticamente, evitou virar uma espécie de ajudante americano na região ou entrar em brigas dos Estados Unidos, como as sanções que o governo Carter tentou aplicar contra a União Soviética. O atual presidente Donald Trump cria arestas com todo mundo, inclusive aliados. Seria um erro estratégico enorme o Brasil aceitar ser caudatário dos Estados Unidos.
O pior que pode nos acontecer é depois de termos saído de uma política externa ideológica de esquerda, irmos para outra ideológica de ultra-direita. A diplomacia tem que defender os interesses do país, de forma equilibrada e pragmática. Quando outros elementos, como manias e idiossincrasias do governo de plantão, entram nas decisões algo dá sempre errado.