Míriam Leitão: Os truques do último dia
Usando truque do último dia, Marco Aurélio tentou impor sua vontade aos demais ministros do STF sobre a prisão em 2ª instância
O que houve ontem no Supremo apequena a Justiça. Não faz sentido o ministro Marco Aurélio tomar uma decisão monocrática sobre assunto controverso faltando uma hora para começar o recesso. Felizmente, o ministro Dias Toffoli cassou a liminar. Esse truque do último dia foi usado ontem por dois ministros. Em uma de suas liminares, Marco Aurélio quis impor sua vontade aos demais no caso da prisão em segunda instância, tema que divide a corte e será apreciado em abril. Em outra, interferiu no programa de desinvestimento da Petrobras. O ministro Ricardo Lewandowski usou a mesma artimanha do ano passado para impor o aumento de salário dos servidores. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, aproveitou uma viagem do presidente Temer para sancionar uma lei polêmica que a área econômica sugerira vetar. Que fase!
Ninguém no país desconhece que a questão do início do cumprimento da pena é polêmica e sobre ela o STF está dividido. Portanto, uma decisão monocrática não caberia por mais arraigadas que sejam as convicções do ministro. O que está valendo é ainda a última decisão tomada pela corte, que permitiu a prisão após a segunda instância. A data para rediscussão está marcada para 10 de abril. Sendo assim, por que o ministro Marco Aurélio tomou uma decisão de último dia? “Aguardei o crivo do tribunal e nada. Encerrou-se o ano e, então, surgiu campo para a decisão individual”, me disse ele. O presidente do STF no fim do dia restabeleceu a normalidade. Agora é aguardar a decisão do colegiado.
O ministro Ricardo Lewandowski repetiu o mesmo truque de 2017. No último dia do ano jurídico, forçou o reajuste aos servidores públicos. O aumento havia sido dado aos servidores em parcelas anuais até 2019. Não pode ser anulado. Mas pode ser adiado. E foi isso que a área econômica fez. O gasto extra de R$ 6 bi ficaria para 2020. Lewandowski derrubou a decisão do executivo e elevou despesas do Orçamento.
O ministro Marco Aurélio também decidiu suspender os efeitos do decreto do presidente Temer que facilitava a venda de ativos pela Petrobras. Com isso, o plano de desinvestimentos da empresa fica em suspenso. O ministro concordou com a tese do PT de que cabe ao Congresso decidir sobre o assunto. A questão é que o Congresso, há 23 anos, aprovou uma emenda acabando com o monopólio do petróleo, não faz sentido que a empresa tenha que consultar o parlamento em cada compra ou venda.
Sobre o momento do início do cumprimento da pena, há uma controvérsia no STF. De um lado, alguns ministros pensam que só após o julgamento do último recurso na última instância o réu pode cumprir a pena. Outro grupo considera que a partir da confirmação da sentença por um órgão colegiado pode haver a execução provisória. Quem conhece o Brasil sabe que se prevalecer esta infinita estrada recursal os beneficiados serão os ricos e poderosos. Por isso, os procuradores da Lava-Jato ontem disseram que se não houver prisão após condenação em segunda instância não há punição para crime do colarinho branco.
Há dúvida também se uma decisão tomada em 2016 deve ser novamente apreciada em tão pouco tempo. O ministro Marco Aurélio argumentou que o ministro Gilmar Mendes mudou de ideia e a ministra Rosa Weber indicou que votará contra a prisão após a segunda instância. Ora, se ele acha que formou-se nova maioria nada mais normal que espere até abril, em vez de tomar uma medida estouvada. A única frase convincente da sua decisão solitária aplica-se à sua própria liminar: “Tempos estranhos os vivenciados nesta sofrida República.”
Houve outras estranhezas. O deputado Rodrigo Maia esperou sentar-se na cadeira da Presidência para sancionar a possibilidade de que os municípios descumpram a Lei de Responsabilidade Fiscal. Todo mundo sabe que essa interinidade não é para ser usada para tomar decisões dessa envergadura.
Nesse dia, ainda houve mais um fato grave. Fabrício Queiroz, assessor do senador eleito Flávio Bolsonaro, não foi depor sobre suas movimentações bancárias. O próprio senador havia dito que suas explicações eram plausíveis e não tinham ilegalidade. Foi marcada nova data. Enquanto Queiroz continuar se escondendo, a dúvida permanece depositada no colo dos Bolsonaro.
Míriam Leitão: As instituições testam o país
Poderes da República colecionam erros, reativam privilégios, aprovam pautas-bombas e ameaçam as minorias
As instituições brasileiras têm escolhido errar sistematicamente, como se quisessem testar os limites do país em diversas áreas. Depois de usar o auxílio-moradia como moeda de troca para ter um aumento em época de crise, o Judiciário aprovou ontem o novo auxílio-moradia. O governo Bolsonaro nomeou um ruralista para cuidar de índios, quilombolas, licenciamento ambiental e reforma agrária, para três horas depois recuar, mas deixar ameaças no ar. O Congresso tem usado as últimas sessões do ano para aprovar medidas que ampliam os gastos públicos e limitam o espaço da administração que nem começou.
Um juiz enviado temporariamente para uma comarca na qual ele não mora, pode ter auxílio-moradia, claro. Mas são casos específicos e poucos. A ideia que vigorou nos últimos anos, de que todos os juízes tinham direito a que o estado lhes pagasse a moradia, porque não receberam reajustes, é espantosa. O Brasil está em crise, teve dois anos consecutivos de queda do PIB. Está saindo dolorosamente da recessão que encolheu a receita e devastou o mercado de trabalho. Há 12 milhões de brasileiros neste momento procurando emprego e sem encontrar, e outros cinco milhões desalentados. Os que têm estabilidade, os servidores públicos, pressionam o Congresso e conseguem reajustes. O Judiciário que está na elite do funcionalismo aprovou para si mesmo o aumento de 16,38%, e não se deu por satisfeito.
A cassação da liminar do ministro Luiz Fux, por ele mesmo, e o aumento do Judiciário foram apresentados como se um anulasse o custo do outro. É um engano. O aumento impacta a despesa de pessoal e foi concedido também aos inativos. Um mês depois volta agora o auxílio-moradia. Eles avisam que é com restrições. Mas é só uma questão de tempo para as interpretações se alargarem. E já há outro movimento em marcha, o de compensação pelo fato de que quando era auxílio não se pagava imposto de renda sobre esse valor. Sendo salário, há incidência do IR.
A preparação do governo Bolsonaro não poderia ser mais tumultuada. Diariamente lança-se uma ideia, como se o Brasil fosse um campo de teste. Foi isso que aconteceu com a defesa da pena de morte feita pelo deputado Eduardo Bolsonaro, desmentida horas depois pelo pai. Tem sido feito sistematicamente. O presidente eleito lança afirmações como fez esta semana sobre a reserva Raposa Serra do Sol sem explicar como, de que maneira e com que instrumentos legais pretende reverter uma decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal. Só consegue criar intranquilidade.
Pior do que as afirmações sem substância têm sido as decisões sem sentido. A escolha do ruralista Luiz Nabhan Garcia para cuidar da identificação e demarcações de terras indígenas, do licenciamento ambiental, das terras quilombolas e da reforma agrária foi uma ideia tão ruim que bateu o recorde: sobreviveu a apenas três horas. Foi desmentida pelo próprio Ministério da Agricultura que a havia divulgado. Mas ficaram dúvidas no ar. Afinal, para onde vão as áreas responsáveis pela política indigenista? Depois de vagar entre vários ministérios na Esplanada, a Funai foi destinada ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Mas ontem foi o Ministério da Agricultura que soltou nota anunciando e, depois, desanunciando o ruralista Nabhan Garcia como o responsável pelas questões indígenas e quilombolas e de licenciamento ambiental. Há um conflito de interesses insanável em nomear ruralistas para cuidar da questão fundiária brasileira. Há também um risco enorme de entregar o assunto indígena a uma pessoa, no caso a ministra Damares Alves, que tem a convicção de que a religião deve governar o país.
No Congresso em fim da legislatura, com tanta renovação, é um absurdo a aprovação de pautas-bombas que vão recair sobre o próximo governo. E foram muitos os projetos ruins que avançaram nos últimos dias. O Congresso aprovou uma medida permitindo que municípios excedam o limite de gastos com pessoal, renovou os incentivos fiscais do Norte e Nordeste e incluiu o Centro-Oeste, fez novas concessões nas dívidas rurais. E há outras bombas engatilhadas. O país está entrando no sexto ano de déficit primário e com a dívida pública em nível alto.
Nos três poderes são tomadas decisões que desconhecem a crise econômica, os conflitos de interesse e os riscos que o país corre.
Míriam Leitão: Embraer, Boeing e os mitos do negócio
Mesmo depois de privatizada, a Embraer voou com a ajuda do Estado: só no BNDES foram US$ 22 bi para exportação e R$ 8 bi de outros financiamentos
É preciso derrubar os mitos que cercam a operação entre a Embraer e a Boeing. Não é uma parceria, ao contrário do que disseram os presidentes das duas empresas. Os negócios da Embraer vão se dissolver na nova empresa, quando ela for englobada por uma companhia muito maior. Não há outro caminho neste mercado de gigantes, mas é bom usar as definições certas. Mesmo depois de ser privatizada, a fabricante de aviões sempre voou com a ajuda do Estado, só do BNDES foram R$ 8 bilhões de financiamentos e mais US$ 22 bi de crédito à exportação.
Sobreviver produzindo aviões comerciais de médio porte num mercado cada vez mais concentrado em gigantes globais seria muito difícil, por isso a negociação faz todo o sentido. O que não convence são os eufemismos e os clichês de sempre do mundo corporativo.
“Essa aliança fortalecerá ambas as empresas e está alinhada com a nossa estratégia de crescimento sustentável de longo prazo”, disse o presidente da Embraer, Paulo Cesar de Souza e Silva, no comunicado após a informação de que o acordo havia sido feito, do ponto de vista das empresas, faltando apenas a aprovação do governo brasileiro.
Não é uma aliança, nem parceria. A Boeing está comprando a parte mais lucrativa da Embraer, através da criação dessa empresa na qual a brasileira será minoritária. Isso significa que a companhia está se desnacionalizando? Ela já era, na verdade. Seus maiores acionistas são, há muito tempo, dois fundos estrangeiros, um americano e outro inglês. A gigante Boeing passa a deter 80% do capital da empresa formada com os departamentos dos jatos comerciais. É comum as empresas, em casos assim, chamarem de fusão ou de parceria o que é na verdade uma compra.
A parte militar será uma firma à parte e que terá como carro-chefe, aliás avião chefe, o KC-390. Nela, a Embraer terá 51% do capital. Esse segmento representa apenas 20% do faturamento e tem como grande negócio a encomenda da própria Força Aérea Brasileira: 28 cargueiros ao valor de R$ 7,2 bilhões. A perspectiva de crescimento desse mercado de defesa é boa. A Embraer tem produto novo e o grande concorrente, a Lockheed, tem modelos já velhos. Como os militares estavam mais preocupados com esse segmento do mercado, os 51% do capital na mão da Embraer ajudaram a tranquilizar as Forças Armadas.
Havia uma dificuldade grande com o negócio da compra dos caças Gripen e com os sistemas de controle do espaço. A Embraer, apesar de ter sido privatizada em 1994, sempre esteve misturada ao Estado brasileiro. Ela desenvolveu o sistema de controle de espaço, o satélite SGDC, participou do submarino de propulsão nuclear da Marinha e do Sisfron. Um argumento apresentado pelo governo Temer é que nada disso poderia ficar submetido ao Congresso americano. Segundo o governo há “um núcleo duro intransferível” no setor de defesa. Além disso, o negócio com a Suécia inclui transferir tecnologia para o Brasil e para nenhum outro país.
A Embraer é sem dúvida um caso de sucesso. Mas o dinheiro estatal sempre a financiou de forma subsidiada pelo BNDES, antes e depois da privatização. Só nos últimos 15 anos, a empresa recebeu R$ 1,95 bilhão de financiamento tecnológico e mais R$ 6 bi para pré-embarque de exportações. Além disso, suas exportações também receberam US$ 22 bilhões de crédito, quando o recurso financia o comprador estrangeiro dos seus produtos.
Esse tema esteve em debate na campanha entre os que eram adversários e favoráveis à negociação. O maior adversário do negócio com a Boeing foi o candidato do PDT, Ciro Gomes, mas a privatização ocorreu quando Ciro era ministro da Fazenda. A venda propiciou a pulverização do capital de tal forma que hoje os maiores acionistas não são o BNDES ou a Previ, mas o fundo americano Brandes, com 14,4% da empresa, seguido pelo inglês Mondrian, com 9,9%. O BNDESPar tem apenas 5,4%, um pouco mais que outro estrangeiro, o Blackrock, com 5%. Há mais ações negociadas na Bolsa de Nova York do que na Bovespa.
O governo brasileiro ficou com a golden share, por isso ele está sendo consultado sobre a negociação entre as duas companhias. Muito provavelmente o governo vai concordar, tanto o atual quanto o próximo, porque o presidente eleito sempre falou favoravelmente, e os pedidos dos militares foram atendidos.
Míriam Leitão: Tensão no mundo complica cenário
Guerra comercial, Brexit, desaceleração na China e crise fiscal na Itália são pontos de incerteza para a economia mundial em 2019
A aposta de que o real se valorizaria com a eleição de Bolsonaro não se concretizou. Desde as eleições, o dólar subiu 7%, com um salto de R$ 3,63 para R$ 3,90. Abriu o ano em R$ 3,26. O futuro governo tem sido contraditório sobre a Previdência. Se não houver a reforma em curto prazo, haverá alta do dólar e dos juros. Mas essa elevação que houve agora tem explicações que vêm de fora: o ano de 2019 deve ser um ponto de inflexão, com menos crescimento do PIB mundial, menos comércio entre os países e vários focos de incerteza.
Esse é o pano de fundo no qual o governo Bolsonaro definirá sua política econômica, quando o mundo já tem pontos de estresse. Três eventos têm causado preocupação entre investidores. A guerra comercial entre Estados Unidos e China, o Brexit, ou a saída da Inglaterra da União Europeia, e o risco de um calote do governo italiano, a terceira maior economia da zona do euro e megaendividada. Há sustos frequentes, sucedidos por momentos de otimismo. Esta semana, a premier britânica, Theresa May, conseguiu um voto de confiança do Parlamento, mas não tem ainda um plano claro para a saída do bloco.
A pedido da Câmara dos Comuns, o Bank of England produziu um estudo sobre os efeitos do Brexit e a mensagem é clara: a economia inglesa vai perder competitividade, haverá aumento de inflação, desvalorização da libra e retração do PIB. A intensidade do impacto vai depender de como o processo será conduzido e em que velocidade. No pior cenário, o PIB inglês, em 2023, pode estar 10% abaixo de ponto em que estaria se não tivesse votado o Brexit em 2016. O desemprego pode saltar rapidamente de 4% para 7,5%, e a inflação, de 2% para 6,5%.
“A saída da União Europeia já está tendo consequências para a economia. A produtividade desacelerou, a libra perdeu valor, e o aumento da inflação corroeu ganhos reais de salários”, afirmou o banco central inglês.
Por isso, a ameaça de uma saída não negociada coloca os mercados financeiros em modo de alerta, com aumento da aversão ao risco. O Brasil é afetado porque, quando tudo o mais é incerto, os investidores buscam refúgio em economias com menos problemas. A Europa também é fonte de outras causas de preocupação. A Itália, há poucos meses, encaminhou ao Parlamento um orçamento com previsão de déficit de 2,4% do PIB para o ano que vem. Esta semana, melhorou o número para 2%. A ameaça de crise fiscal na zona do euro voltou a assustar, porque os italianos tem dívidas que correspondem a 130% do seu PIB e sua economia é 10 vezes maior do que a da Grécia. O país é a terceira maior economia do bloco, atrás apenas de Alemanha e França, e o Banco Central Europeu teria muito mais dificuldades para conter uma crise com o epicentro na Itália.
Há ainda um outro motivo de atenção global, explica David Beker, chefe de economia e estratégia do Bank of America no Brasil. A China está desacelerando e há receios de que o PIB cresça menos do que 6% no ano que vem. Ontem mesmo, dados da indústria e do comércio vieram abaixo do esperado.
— Olhando para 2019, chamaria atenção para a China, que deve desacelerar de 6,6% para 6,1%. É uma redução mais robusta da taxa, com incerteza grande para as commodities. Vai ser um ano volátil, com guerra comercial, Brexit, e governo Trump em gridlock, ou seja, perdendo a Câmara para os democratas e tendo mais dificuldade de implementar a sua agenda — explicou Beker.
Apesar da trégua recente entre EUA e China, o comércio internacional deve desacelerar em 2019 e isso vai afetar o PIB mundial. O diretor-executivo da International Chamber of Commerce, Gabriel Petrus, lembra que haverá eleições na Alemanha e que o presidente francês, Emmanuel Macron, está perdendo popularidade com os protestos dos coletes amarelos:
— Já temos Trump com uma agenda anticomércio mundial. Há o Brexit. Agora temos Macron mais fraco e eleições na Alemanha sem a participação de Merkel. O receio é que se fortaleçam líderes nessas duas economias que preguem contra o comércio mundial.
Aqui no Brasil, um grande banqueiro, ouvido esta semana, disse que está otimista em relação à capacidade de o economista Paulo Guedes aprovar reformas, principalmente a da Previdência. Mas se em três meses o cenário for de não aprovação, o dólar e os juros podem disparar. O novo ministro sabe que tem pouco tempo, prepara-se para dar sinais claros logo após a posse. Se não conseguir, o cenário global tornará o custo muito maior.
Míriam Leitão: Novo governo quer fugir da CLT
O futuro governo está elaborando uma proposta de novo regime trabalhista, fora da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Ele seria apresentado como uma forma de contrato no qual só estarão garantidos os direitos constitucionais previstos no artigo 7º da Constituição, mas em que todos os outros itens serão negociados entre trabalhadores e empregadores.
Durante a campanha, o programa do PSL falava em “carteira verde e amarela”, mas sem entrar em detalhes. A ideia com a qual trabalham agora é a de oferecer uma nova forma de contrato que seria negociado diretamente entre as duas partes. Isso seria uma opção à CLT.
Foi isso que levou o presidente eleito, Jair Bolsonaro, a falar na quarta-feira em reunião com partidos políticos: “A legislação trabalhista, no que for possível, eu sei que está engessada no artigo 7º, mas ela precisa se aproximar da informalidade”. O artigo 7º garante o 13º salário, férias, seguro-desemprego, entre outros direitos.
A preocupação do governo com o mercado de trabalho é legítima. Esse é um grande problema. A dúvida é se esse é o remédio certo na atual conjuntura de extrema fragilidade dos trabalhadores. Apesar de o país ter superado a recessão, o emprego ainda não reagiu, e sob todos os aspectos a situação é preocupante. O número de desempregados é elevado, 12,3 milhões em outubro, último dado divulgado pela Pnad do IBGE. O ritmo de melhora é muito lento. Em relação ao mesmo período de 2017, a queda nesse indicador foi de apenas 400 mil.
O país até tem criado vagas. Nesse período de um ano — novembro de 2017 a outubro de 2018 — a população ocupada aumentou em 1,2 milhão de brasileiros. Mas o emprego é de baixa qualidade, em geral informal ou por conta própria. Pelo Caged, ou seja, o registro no Ministério do Trabalho dos que são demitidos e contratados com carteira, houve um aumento de 790 mil postos de janeiro a outubro, mas isso é pequeno para o mar de desempregados.
E há também um outro grupo de pessoas sem trabalho. Gente que nem procura porque não tem esperança de conseguir vaga agora e por isso sai do índice. A dimensão desse problema é captada na estatística de desemprego por desalento. São 4,7 milhões e saltaram 10% em um ano. Em uma crise desse tamanho, a liberdade de negociação dos termos do contrato é nenhuma. Ou seja, o empregador imporá suas condições. O presidente eleito falou em aumentar a informalidade. A expressão assusta porque a ideia é que haja uma redução da informalidade, até porque o trabalhador, nesse caso, não contribui para a Previdência. Além disso, o que o separa do trabalho precário é, algumas vezes, muito pouco.
O que os especialistas dizem, com razão, é que economias que têm regras mais flexíveis de contratação têm taxas de desempregos menores e se recuperam mais agilmente das crises. Isso se pôde ver após a crise financeira de 2008 que levou a um aumento do desemprego no mundo todo. Nos Estados Unidos, a recuperação do mercado de trabalho foi mais rápida e mais forte do que na Europa. E, dentro da Europa, o desemprego é menor na Alemanha, que já fez reformas trabalhistas, do que na França, que é mais refratária à mudança.
Não está detalhada ainda a proposta, mas a ideia é ter os dois tipos de contrato no mercado de trabalho: o da CLT e o do novo regime que seguirá as obrigações constitucionais que, aliás, são muitas e bem detalhadas. Décimo terceiro, férias, FGTS, adicional noturno, seguro-desemprego, irredutibilidade do salário, não discriminação por gênero, licenças maternidade e paternidade, reconhecimento da convenção coletiva, entre outros. Há muito a explicar, contudo. Nesse novo regime não valerá a CLT. É um aprofundamento da reforma de Temer que já admite que o negociado prevaleça sobre o legislado.
Outro grande problema do governo Bolsonaro será quantas mudanças urgentes ele tentará fazer no começo do seu mandato para aproveitar o momento da lua de mel. Ontem, o Ibope trouxe bons números para o futuro presidente. Como é normal, no período pós-eleitoral e antes da posse, a confiança é elevada e 75% acreditam que ele e sua equipe estão no caminho certo. Ao tomar posse, terá que escolher suas reformas, e a primeira da fila deveria ser a da Previdência.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)
Míriam Leitão: Tarefas difíceis na economia
Equipe econômica do futuro governo ainda trabalha com a ideia de aprovar a reforma da Previdência que já está em tramitação no Congresso
O presidente Jair Bolsonaro, diplomado ontem, terá de enfrentar batalhas duras na economia. A primeira delas será a reforma da Previdência. O futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, defendeu várias vezes, mesmo antes de integrar a campanha de Bolsonaro, que o Congresso aprovasse a proposta do presidente Temer. E continuou repetindo que era melhor aproveitar o texto que já está em tramitação. É com essa ideia que ainda se trabalha na equipe econômica do novo governo. Mas não será só isso.
Ao mesmo tempo, o futuro governo prepara outra reforma mais ampla e com transição para o regime de capitalização. A ideia não é aprovar só a idade mínima num primeiro momento e, depois, ir votando aos poucos os novos parâmetros. Há entendimento de que isso levaria ao risco de uma contrarreforma. O que se defende é que a atual proposta seja apenas o começo de uma mudança mais profunda do sistema de pensões e aposentadorias do país.
Ainda não se sabe qual será o custo desta transição de um regime da repartição, como é atualmente, para o de capitalização, que é o que será sustentável no futuro. No estudo feito pelo economista Armínio Fraga, entraria em vigor apenas para os que nasceram a partir de 2014. No futuro governo, há quem defenda que esteja disponível bem antes.
Paulo Guedes, durante a campanha, usou a expressão de “avião em queda” para explicar o que pensava sobre o atual sistema. A reforma proposta pelo atual governo serviria apenas para retardar a queda. Ou seja, ela precisa se sustentar até que uma nova previdência, de contas individuais, esteja disponível. O desafio será evitar que o avião fique sem combustível mais cedo, porque a capitalização fará com que os que entrarem no mercado de trabalho a partir do início do novo modelo deixem de contribuir para o regime de repartição.
Se quiser uma mudança rápida para a capitalização, o futuro governo terá que conseguir outra fonte de financiamento para a Previdência. E isso encomenda mudanças na área tributária. Nada fica em pé, contudo, se não houver a aprovação da primeira das reformas, a que já está no Congresso e que cumpriu etapas importantes de tramitação. Durante a primeira fase da transição foram feitas declarações conflitantes sobre o assunto tanto pelo presidente eleito quanto pelo futuro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni. Mas na equipe que trabalha preparando o novo governo há diversos estudos sendo feitos. Eles convergem para uma estratégia em vários passos. Algumas mudanças infralegais poderão ser feitas num primeiro momento, até que o novo Congresso tome posse. A reforma do atual governo deve ser aproveitada e uma mudança mais ampla está sendo formulada.
Tudo dependerá, contudo, da capacidade de articulação no Congresso, porque todas as tarefas que precisam ser cumpridas na economia são difíceis. O teto cria um limitador para as despesas que a qualquer momento pode ser estourado. E o que se fará neste caso? Se a futura equipe econômica aceitar simplesmente ampliar o teto estará perdendo credibilidade.
Mas, para não ampliar o teto, terá que reduzir despesas. Isso é impossível num país com tanta rigidez orçamentária. Por isso, a proposta que tem sido defendida por integrantes do futuro governo — inclusive o vice-presidente, Hamilton Mourão, na entrevista que me concedeu na semana passada — é a de buscar mais flexibilidade no Orçamento.
Apesar de isso dar mais autoridade ao Congresso, que passaria pela primeira vez a formular a destinação dos recursos, haverá uma forte oposição ao que se convencionou chamar de “Orçamento base zero”. O problema é que, se as despesas permanecerem indexadas, o desequilíbrio aumentará. Além disso, outra urgência espera o novo governo na área econômica: a crise fiscal dos estados e municípios.
Paulo Guedes sempre defendeu a descentralização de recursos, por isso, quando ele falou recentemente em dividir parte da arrecadação do leilão das áreas da cessão onerosa do pré-sal era a essa ideia que se referia. Só que isso foi visto dentro da atual equipe econômica como um risco de estimular gastos em vez de sinalizar para a necessidade de ajuste. Além de não haver tarefas fáceis na economia, uma mudança levará à outra. Por isso a prioridade terá que ser a sucessão de reformas. Ou isso, ou a economia continuará em crise.
Míriam Leitão: Precisamos falar sobre os livros
Crise das livrarias pode virar um problema sistêmico e atingir um produto que tem um valor intangível
Há um problema rondando o Brasil, enquanto o país está totalmente dominado por suas muitas emergências e um novo governo está se formando: o risco de uma crise sistêmica na indústria do livro. As duas maiores livrarias estão em recuperação judicial e devem R$ 360 milhões às editoras. Juntas, são 40% do varejo do setor, e a crise estreitou o canal de venda. Restam as redes menores, mas hoje há 600 livrarias a menos do que antes da recessão. Esse setor tem impacto para além da economia e chega ao intangível da vida do país.
— Imagine o fechamento da loja do Conjunto Nacional da Paulista? Seria uma tragédia não apenas econômica —afirma Marcos da Veiga Pereira, do Sindicato Nacional das Editoras de Livros (SNEL), citando a megastore ícone da Livraria Cultura.
Como em todas as crises, não há uma razão só, nem soluções simples. A lista das causas que derrubam o setor é longa. Na Saraiva e na Cultura, houve erros de gestão. Livro tem um giro baixo, e o setor trabalha com pouco capital.
O país viveu nos últimos quatro anos a pior recessão da sua história, as vendas despencaram e só agora começam a subir. A tecnologia e a mudança de hábitos impõem mudanças do modelo de negócios. A venda online é uma realidade e tende a crescer, mas os editores afirmam que descontos agressivos acabaram dando prejuízo a todos.
— A venda online não tem margem e parte do princípio da captura do cliente. Para Saraiva e Cultura, que têm participação grande nessas vendas, isso foi minando o negócio. A própria Submarino, que antes da Amazon entrar era a grande vilã dessa história, saiu do negócio da venda de livros — diz Marcos Pereira.
O SNEL fez a proposta de fixar um limite máximo para o desconto no preço do livro, por um tempo. Isso significa intervenção na era do mercado livre. Eles sabem que é polêmica, mas argumentam que descontos predatórios podem matar o negócio. O consumidor que se beneficiou da queda do preço quer livro ainda mais barato.
O número de livrarias caiu porque o Brasil inteiro sentiu um impacto da recessão, acha Bernardo Gurbanov, presidente da Associação Nacional de Livrarias, mas o mercado se renova.
— Houve uma queda forte do número de lojas, mas, ao mesmo tempo que algumas fecharam, temos novas livrarias abrindo, a maioria delas por profissionais que começam com proposta nova, às vezes com uma loja única, mas que trazem fôlego renovado — diz Gurbanov.
Ele também define como “absurda” a guerra de preços que levou alguns livreiros a comprar por internet, evitando a editora. “Guerra fratricida”. Ele diz que a livraria é mais do que uma loja:
— Tem que ser um centro cultural, de curadoria, de livros expostos, eventos que podem ser desde lançamentos de livros a debates. Uma volta às origens.
Gurbanov informa que há redes crescendo de forma cuidadosa e cita a mineira Leitura. Contudo, na proximidade do Natal, as duas redes que são 40% do mercado e têm as maiores lojas estão desabastecidas.
Fábio Astrauskas, sócio e diretor da Siegen, especialista em recuperação judicial, diz que isso não é o fim da linha para as duas redes.
— Recuperação judicial tem o objetivo contrário, é para evitar a quebra da empresa, é para recuperar — diz ele.
Os caminhos são poucos. Astrauskas acha que, ao fim, Cultura e Saraiva terão novo dono. Só não sabe se um ou dois.
No filme sul-americano Severina, do diretor brasileiro Felipe Hirsch, a história se passa na Montevidéu dos tempos atuais, mas o clima é atemporal e a conjuntura política é apenas insinuada.
Numa livraria reúnem-se apaixonados por livros para debates e leituras conjuntas. O filme fala da força imaterial do livro. Até que ponto é irreal e romântico imaginar isso num mundo que se torna digital de forma avassaladora? A venda online e os novos hábitos reduzem o número de lojas no mundo. Tudo está em mudança, mas o livro ainda é predominantemente físico. Em qualquer formato, é mais do que mercadoria.
Luiz Schwartz, da Companhia das Letras, lançou dias atrás a sua “Carta de Amor aos Livros” com uma sugestão simples, que não resolve a crise, mas pode ser uma alegria: dar livro como presente neste fim de ano. Enquanto o setor encontra suas saídas, é bom pensar nos livros e seu valor intangível. Sem eles, fechados em bolhas digitais alimentadas por algorítimos, somos presas frágeis no tempo distópico que vivemos.
Míriam Leitão: Cenários e receita para o país crescer
Estudo do Ipea mostra que o Brasil tem potencial para crescer o PIB per capita em 50% em 12 anos. Mas será preciso aprovar muitas reformas
O país cresceu no terceiro trimestre e retomou o ponto em que estava em 2012. Esse é o tamanho do atraso provocado pelos erros de política econômica no governo Dilma. Ainda há um caminho a fazer para chegar ao ponto em que a economia estava quando despencou. Os serviços puxaram, o investimento cresceu, mas nada foi suficiente para imprimir um ritmo maior. Desde que parou de encolher, o PIB se expande em ritmo moroso.
Os números do terceiro trimestre vieram mais fracos do que o esperado pelo mercado. O crescimento acelerou na comparação com o segundo trimestre, de 0,2% para 0,8%, mas o que houve foi uma recuperação dos efeitos da greve do setor de transportes, que paralisou o país no mês de maio. Quando a comparação é feita com o mesmo trimestre de 2017, a alta foi de apenas 1,3%. No acumulado em 12 meses, subiu 1,4%. No começo do ano o país achou que cresceria 3%. Não vai dar.
O Ipea divulgou esta semana, no meu programa na Globonews, os cenários preparados para o país nos próximos 12 anos, até 2030. Bom para quem quer ver o Brasil avançar. “Cenários de longo prazo podem ser uma ferramenta importante para avaliação de custos, benefícios e riscos de alternativas”, alertam os economistas do Ipea.
No cenário “de referência”, o país cresceria em torno de 2,2% ao ano, o que daria 30% ao longo do período. Mesmo para esse ritmo moderado, será preciso fazer a reforma da Previdência. Sem ela, alerta José Ronaldo de Souza, diretor de Macroeconomia do Instituto, as receitas serão engolidas pelos gastos com pensões e aposentadorias. No cenário “década perdida”, o país entra em desequilíbrio fiscal, e o final será o default da dívida interna, ou seja, o Tesouro não conseguirá honrar sua dívida, que é a espinha dorsal da poupança do país. Neste filme de terror, que o país viu no Plano Collor, todo mundo perde.
O cenário “transformador” é o mais interessante. Aumentar o crescimento é o desejável. O país cresceria 3,9% já em 2020 e, dois anos depois, 4,8%. Ao longo de 12 anos a taxa acumulada chegaria a 60%. Para isso será preciso fazer as reformas que reequilibrem as contas, mas também uma série de mudanças que aumentem a produtividade da economia. Será preciso ter um sistema tributário mais eficiente e leve, abrir a economia, investir em qualificação de pessoal, ter uma regulação mais lógica, um custo menor de capital, ambiente de negócios mais favorável. São reformas macro e micro para mudar a economia.
— É uma projeção e não uma previsão. O interessante é que temos o potencial, é possível. O país pode aumentar em 50% o PIB per capita — diz José Ronaldo.
— O Brasil só tem três caminhos: reformas, reformas e reformas. Não há um quarto caminho. Temos que resolver gargalos porque sem isso a gente não consegue crescer, gerar emprego, gerar renda para a população que demanda uma retomada depois de anos de recessão — diz a economista Ana Carla Abrão, da Oliver Wyman.
Ele diz que é preciso acrescentar na lista das tarefas a mudança do Estado, que é 40% do PIB, uma máquina inchada, que gasta muito e não presta bons serviços. Ela sugere mudar carreiras e melhorar a qualidade dos serviços públicos. Para essa e outras mudanças, será preciso desagradar os grupos de interesse:
— O Brasil é hoje um país dominado pelas corporações — disse Ana Carla.
Se não optar por reformas vigorosas, o país de qualquer maneira terá que mudar a Previdência, do contrário o teto de gastos não se sustenta. O pior cenário, de não reformar nada, é flertar com o abismo do calote. Os dois economistas se disseram até otimistas, dado que a situação chegou a tal ponto que ou o país terá o pior dos mundos ou enfrentará a lista das grandes tarefas. Uma delas é abrir a economia.
— Essa é uma agenda que ficou abandonada nas últimas décadas e se formos falar de eficiência temos que ter abertura. O país continua muito fechado. Quando se soma exportação e importação o Brasil está abaixo dos países pares — diz Ana Carla Abrão.
— A economia brasileira ainda é voltada até hoje para substituição de importação, escolha feita há várias décadas. Os países só avançam com mais competitividade — afirma José Ronaldo.
A atual equipe econômica tirou o país da recessão, mas o PIB não engrena. A futura equipe diz que fará reformas e a abertura da economia. A receita está certa. Aplicá-la é mais difícil do que pensam alguns dos que assumirão o comando em janeiro.
Míriam Leitão: Rio de Janeiro e da dúvida
É quase uma aberração, uma corrupção resiliente, que resiste a tudo. Destemida. É isso que temos no Rio se mais esse caso for confirmado
O estado amanheceu ontem diante de um rio de dúvidas. E o mês de janeiro, quando haverá troca de governo, ainda nem começou. O governador Luiz Fernando Pezão, preso logo cedo, foi acusado pelo Ministério Público Federal (MPF) de ter sido sucessor do ex-governador Sérgio Cabral no comando da mesma organização que tirou recursos dos cofres públicos. A prisão teria sido necessária, 32 dias antes do fim de sua atormentada administração, porque provas estariam sendo destruídas, segundo disse o MPF.
A dúvida econômica do Rio de Janeiro é se ele conseguirá ficar de pé depois do longo tombo que sofreu em suas finanças nas últimas administrações. Nelas esteve Pezão. Primeiro, como vice-governador e homem de confiança de Sérgio Cabral e, depois, como governador.
O Rio é o único estado que conseguiu entrar no Regime de Recuperação Fiscal e o governador Pezão estava reduzindo a relação da despesa como proporção da receita corrente líquida. Em parte, pelo esforço do ajuste, empurrado pelo Tesouro, em parte, pelo petróleo. E agora? O Rio entrará num desvio? A informação de Brasília é de que o acordo não é com uma pessoa, mas com o estado. A questão é que tem que ser cumprido.
— Se o vice-governador, ou o novo, não cumprir o acordado, o estado do Rio perde o direito de continuar no Regime de Recuperação e perde todos os benefícios — informou uma autoridade federal.
Sem o benefício da suspensão do pagamento dos juros da dívida à União, o Rio se afundará ainda mais na crise. E ontem mesmo, no vazio de poder que houve logo após a prisão, o novo governador Wilson Witzel disse que não concorda com a privatização da Cedae porque acha que só as empresas deficitárias devem ser vendidas. A venda da Cedae é parte do acordo para sanear as finanças do Rio.
O problema é que o Rio tem uma enorme dívida. Os números mais recentes são: R$ 15,3 bilhões de dívidas refinanciadas e R$ 6,3 bi de honras de aval, que são dívidas que o estado não pagou e que a União teve que honrar. Ao todo, um endividamento de R$ 21,6 bilhões. Como houve aumento da receita, e ajuste nas despesas, o Rio está chegando ao fim do ano atingindo algumas metas, entre elas a de gasto de pessoal. Mas tem que continuar cumprindo as obrigações do acordo para permanecer no regime de recuperação fiscal.
A grande dúvida em relação ao Rio de Janeiro é como foi que ele chegou nessa situação? O ex-governador Sérgio Cabral é multicondenado, dois outros ex-governadores já foram presos. O presidente da Assembléia Legislativa cumpre prisão domiciliar, depois de um tempo em regime fechado, e cinco dos seis conselheiros do Tribunal de Contas do Estado foram presos. Isso sem falar em ex-secretários e deputados que foram presos ou respondem a processos. A corrupção no Rio foi imensa. E ontem soubemos que os esquemas estavam ainda ativos e operantes. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, disse que o crime não cessou, e em razão da “atualidade do esquema” é que foi necessário pedir a prisão para “garantir a ordem pública”.
O governador do Rio, mesmo diante das provas cabais de que o crime do seu ex-chefe Sérgio Cabral não compensou, já que ele foi condenado em sucessivos julgamentos e permanece preso, estaria mantendo o esquema. Essa é a acusação que faz o Ministério Público. Se isso for comprovado, é quase uma aberração. A corrupção resiliente, que resiste a tudo. Destemida. É isso que temos no Rio se mais esse caso for confirmado.
Há não muito tempo, nos primeiros anos de Cabral, então governador, o Rio parecia ter encontrado a trilha que o levaria ao sucesso. Houve queda dos homicídios, a política de pacificação das favelas tinha avanços importantes, e na educação, ele saltou de 26º lugar no Ideb para o quarto lugar. Os investimentos chegavam, e os royalties enchiam os cofres públicos. Ele se preparava para sediar eventos esportivos com obras pela capital. Aquele momento parecia ser o fim de um longo período de decadência, o início da reunificação da cidade partida. Parecia um sonho.
O Rio acordou ontem em mais um dia do nosso pesadelo. Lindo e ensolarado Rio de Janeiro, cercado de vergonha, dívidas e dúvidas.
Míriam Leitão: Indulto de Temer em julgamento
Indulto com desconto de 80% da pena beneficiará acusados de corrupção e irá diminuir qualquer interesse em delação premiada
O Supremo se encaminha para aprovar o indulto do presidente Temer de 2017. Isso se conclui do tom dos apartes ao voto do ministro Alexandre de Moraes que considerou improcedente a ação da Procuradoria-Geral da República contra o decreto de Temer. O ministro relator Luís Roberto Barroso fez um vigoroso voto a favor da ação e, portanto, contra o indulto. “Esse decreto esvazia o esforço da sociedade e das instituições” no momento em que “travam batalha contra a corrupção”.
Duas teses se confrontaram. Barroso disse que o presidente exorbitou de suas atribuições porque fez uma redução de pena maior do que existe no sistema penal. Alexandre de Moraes acha que o indulto é direito do presidente e não faz parte da política criminal, mas sim dos freios e contrapesos entre os poderes da República.
Barroso argumentou que vários países estão abolindo o indulto coletivo, como Alemanha, Estados Unidos, Reino Unido, Espanha, Itália, França e Portugal. O Brasil vai no sentido contrário. O benefício tem se ampliado e para condenados apenas cada vez maiores. Do governo Sarney ao governo Dilma, a exigência era o cumprimento de um terço da pena. Mas no período Sarney só tinham direito os condenados a no máximo quatro anos. Esse limite foi subindo e chegou a 12 anos no período Dilma. Temer diminui upara 20% a exigência de cumprimento depena e acabou com o limite de anos de condenação para ser beneficiado, além de perdoar as multas. O Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) havia recomendado a Temer que excluísse os crimes de corrupção. Ele não excluiu.
Alexandre Moraes era ministro da Justiça em 2016 e fez a mesma recomendação ao presidente Temer, que tirasse do decreto os crimes contra a administração pública. O motivo dessa orientação, como foi dito pelo CNPCP, era o “atual momento de luta contra a corrupção.”
No voto em que divergiu do relator, Alexandre de Moraes disse que o indulto é uma “realidade constitucional”, portanto, não estava sendo julgado se o presidente tem ou não essa prerrogativa. O STF pode dizer se é constitucional ou não, mas não pode corrigir o decreto presidencial porque aí estaria legislando:
— É ato privativo do presidente da República. Podemos gostar ou não gostar.
O que na verdade estava em jogo era o futuro da Lava-Jato e não que poderes tem o presidente da República. Um desconto de 80% da pena vai alcançar alguns dos presos por corrupção. Ou agora ou no próximo decreto. Além disso, pode diminuir qualquer interesse em delações premiadas, porque bastaria esperar o indulto de Natal. E esta é a luta do momento: a que se trava contra a corrupção, como lembrou o ministro Barroso: “Corrupção é crime violento.”
O ministro Celso de Mello, em aparte a Alexandre Moraes — no qual demonstrou concordância com vários pontos dos seus argumentos — contou que em 1985, quando ele estava na Casa Civil, aconselhou o presidente José Sarney no decreto do indulto. Naquela ocasião, o decreto excluiu os crimes contra a economia popular. Era época da luta contra a inflação. Cada tempo, sua batalha.
Os sinais dados pelos ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowsky, Marco Aurélio e até Celso de Mello foram de que concordam com o todo, ou pelo menos em parte, das teses de Alexandre de Moraes. A conferir. Eles ainda não votaram. Vários argumentos foram arrolados, desde as raízes históricas desse poder presidencial até a tese de que desta forma se combate a superlotação dos presídios. O mais curioso foi o que disse Lewandowski. Na semana em que o presidente Temer sancionou o aumento dos salários dos juízes, ele argumentou que existe uma razão fiscal para o indulto: custa caro manter os presos na cadeia.
Houve tempo para uma alfinetada do ministro Edson Fachin. Ele ponderou que se o indulto é privativo do presidente e não pode ser corrigido pelo Judiciário, por que a nomeação de um ministro pode ser impedida? Era uma referência ao caso da nomeação de Lula para a Casa Civil, que foi impedida por uma liminar do ministro Gilmar Mendes. No momento final da sessão, Barroso perguntou a Celso de Mello se o indulto continuaria sendo constitucional se a redução da pena fosse para 10% ou 1% da pena. Não houve resposta. A prerrogativa do presidente é ilimitada? Eis a questão que permanece no ar.
Míriam Leitão: Termos de troca no Judiciário
Imagem do STF sai arranhada pelo acordo que permitiu aumento do próprio salário. Ficará pior se a corte derrubar liminar sobre o indulto de Temer
A imagem do STF fica arranhada com o acordo feito de trocar a aprovação do aumento salarial pela cassação da liminar do auxílio-moradia pelo ministro Luiz Fux. Primeiro, porque o aumento, ao contrário do que o Supremo tem dito, vai representar um custo muito maior do que se tem com o auxílio-moradia. Segundo, porque se o auxílio não era devido, tanto que o ministro Fux cassou a própria liminar, como se permitiu que ele fosse pago a tantos durante tanto tempo?
A imagem do STF ficará ainda mais arranhada se na quarta-feira, como se comenta nos meios jurídicos, for derrubada a liminar contra o indulto de Natal concedido pelo presidente Michel Temer e que libertaria muitos acusados de corrupção. O indulto, que o escritor Fernando Veríssimo definiu com propriedade como sendo insulto de Natal, causou uma grande revolta na época. Foi suspenso por uma liminar da ministra Cármen Lúcia, que estava de plantão e que atendeu a uma Ação Direta de Inconstitucionalidade interposta pela Procuradoria-Geral da República. Depois, o tema foi distribuído para o ministro Luís Roberto Barroso, que manteve a liminar concedida pela então presidente do STF.
Na semana passada, o presidente Dias Tóffoli pautou para ser julgado o mérito do indulto. O julgamento será retomado na quarta. Há o temor de que ele seja aceito pela maioria dos ministros sob o argumento de que conceder o indulto é prerrogativa do presidente da República. Esse benefício foi pensado para ser concedido a quem está em situação de fragilidade, no período final de cumprimento de pena, em crimes mais leves.
O decreto de Temer abriu a possibilidade de ele ser concedido também a crimes do colarinho branco e pessoas que tenham cumprido 20% da pena. Foi feito sob medida para beneficiar presos da Lava-Jato. Se o STF aceitar o indulto do ano passado, abrese o caminho para um decreto mais permissivo ainda para este ano, que poderia alcançar até o ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Será difícil convencer o país de que tudo isso acontece na mesma semana por uma simples coincidência.
De fato, é uma das atribuições do presidente conceder o indulto de Natal, mas a PGR sustentou que o decreto de Temer havia extrapolado todos os limites em que normalmente se circunscreve esse instrumento e havia na verdade aberto a porta para a impunidade. A PGR não questionou o direito do presidente, mas sim a abrangência. Para a PGR, houve interferência do Executivo no Judiciário. “O chefe do Poder Executivo não tem poder ilimitado de conceder indulto, se o tivesse, aniquilaria as condenações criminais, subordinaria o Poder Judiciário, restabeleceria o arbítrio e extinguiria os mais basilares princípios que constituem a República Constitucional Brasileira”, escreveu a procuradora.
Um dos argumentos que se usa em favor do decreto é que crime de colarinho branco não é cometido com violência. Depende do que se entende por essa palavra, porque roubar recursos públicos que, de outra forma, iriam para a saúde, a educação, é sim uma violência.
No caso da decisão de ontem do presidente Temer, de sancionar essa alta para o Judiciário, ele passou por cima de toda a orientação que recebeu dos ministérios da Fazenda e do Planejamento, que era de vetar esse gasto. O Judiciário defende o aumento dizendo que é devido porque eles estão desde 2016 sem reajuste. A questão é dar aumento numa época de crise desta dimensão e para a elite do funcionalismo. Um reajuste de 16,4% no meio de um rombo como este será desastroso porque impacta as contas da União e dos estados e as da Previdência.
Os defensores do reajuste no STF alegam que ficaria elas por elas porque o acordo é para que fosse cassada — como foi — a liminar do ministro Luiz Fux que concedia o direito de auxílio-moradia a todos os magistrados. Isso não é verdade, porque o auxílio inicialmente foi pensado apenas para quem estivesse fora do seu domicílio temporariamente, a liminar ampliou o benefício a todos os juízes.
De qualquer maneira, mesmo sendo a todos, não incluía os aposentados. Virando salário, os aposentados e pensionistas terão a mesma alta por causa do direito de paridade e integralidade. Tudo ficará ainda pior se o Congresso não aprovar o projeto do extrateto, que proíbe ganhos além do teto. O assunto está para ser votado.
Míriam Leitão: Momento de abrir o comércio externo
Nova equipe econômica irá enfrentar fortes obstáculos na abertura comercial, mas o país precisa avançar nessa área
A ideia de abertura comercial no país enfrenta os mesmos desafios que a reforma tributária. Todos são a favor, até que se comece a discutir os detalhes. São vários os indicadores que sugerem que a economia brasileira é fechada, mas não existe consenso sobre a melhor forma de aumentar a nossa integração com o mundo. Quem já esteve no governo e sentou na cadeira responsável pelo assunto avisa: o tema não é apenas econômico. Envolve o direito internacional e exige muita negociação política.
A proposta do futuro ministro da área econômica Paulo Guedes é fazer uma nova abertura da economia. Isso é desejável por várias razões. Mas os especialistas alertam para alguns pontos. O governo eleito Jair Bolsonaro já ameaçou retirar o Brasil do Mercosul para ampliar os acordos bilaterais do país. O risco dessa estratégia, diz o especialista Welber Barral, que foi secretário de Comércio Exterior entre 2007 e 2011, é fazer a indústria nacional perder o seu principal cliente, que é a Argentina, maior compradora de produtos manufaturados brasileiros.
— O Mercosul é extremamente vantajoso para o Brasil, principalmente para o produto industrializado. Se a gente sair do bloco, vai ficar vendendo soja para a China. Não acho que vai acontecer. Existem formas de pressionar e flexibilizar as tarifas comuns do bloco. Os mecanismos já existem, não precisa sair — afirmou.
Barral diz que comércio externo envolve 30% economia, 30% direito internacional e 40% negociação política. Por isso, acha que a futura equipe econômica ainda vai enfrentar os desafios práticos de abrir a economia, depois que de fato assumir o governo:
— Se fizer abertura radical, tem custo social alto e custo político que te obriga a retroagir muito rápido. Não é factível, não consegue fazer. O que acontece é que a pressão política aumenta e depois volta tudo como era antes.
Ele cita como exemplo acordos que foram firmados pelo Brasil na área têxtil, dentro da OMC, e que depois foram derrubados pelo Congresso. Os setores industriais se organizam, pressionam as bancadas e conseguem impedir e atrasar a tramitação dos projetos. O grande problema da nossa abertura comercial, explica, é que o Brasil é extremamente competitivo na área agrícola, justamente o setor mais protegido em todo o mundo.
— Por que o Brasil tem dificuldade de fechar acordo com a União Europeia? Porque eles não querem abrir a parte agrícola. Então a gente sofre pela nossa competitividade na área que é a mais sensível no mundo. A mesma coisa acontece com o México, que o Brasil poderia fazer acordo bilateral por fora do Mercosul. A bancada agrícola mexicana trava a negociação no Senado — explicou.
A indústria brasileira diz que é a favor da redução das barreiras, mas alega que antes é preciso reduzir impostos, melhorar a infraestrutura e baratear o crédito, do contrário, não conseguirá competir. A pesquisadora Lia Valls, do Ibre/FGV, diz que, de fato, é preciso em paralelo atacar o Custo Brasil, mas acredita que o governo pode avançar na abertura com um cronograma claro de redução de tarifas, para que os setores tenham tempo para se adaptar:
— O Brasil, quando comparado a outros emergentes, é o único que praticamente manteve as mesmas tarifas médias de importação de 20 anos atrás. Nos últimos anos, houve aumento de regras de conteúdo local, que é uma forma de barreira comercial. O país apostou muito na Rodada Doha, que não avançou, e a valorização do real, nos anos 2000, de certa forma facilitou as importações e esfriou o assunto.
Lia cita três indicadores que sugerem que a economia brasileira é pouco integrada com o resto do mundo, na comparação com outros países similares. Nossa corrente de comércio em relação ao PIB é baixa, em torno de 25%, o percentual de importados dentro da cadeia da indústria de transformação também é pequena, em torno de 20%, e também é reduzida a participação de componentes importados nos produtos industrializados que o Brasil exporta.
Por inúmeros motivos, o país precisa avançar no projeto de abrir a sua economia e nada como um liberal, como o futuro ministro Paulo Guedes, para iniciar a tarefa. Ele precisará estar atento a todos os obstáculos e ao contexto internacional, que é de uma guerra comercial entre Estados Unidos e China, e que pode deflagrar uma onda protecionista no mundo. O momento é difícil, mas o Brasil já se atrasou demais.