Míriam Leitão: As duas guerras da Previdência

Grande batalha da Previdência ainda nem começou e se dará no Congresso. Por isso, preocupa a falta de sintonia interna sobre o projeto no governo Bolsonaro

A principal batalha da reforma da Previdência ainda nem começou. A briga para valer será depois da posse do novo Congresso, em fevereiro, e da eleição da nova CCJ, que deve acontecer no final de março. Só aí os lobbies entrarão em campo. O que houve até agora é disputa interna, que tem emitido péssimos sinais. No governo passado, Temer, Padilha e Meirelles jogavam afinados a favor da reforma e tiveram que suar a camisa atrás dos votos que a fizesse avançar. No atual, há desencontros no trio: o presidente e os ministros da Economia e da Casa Civil.

A opção de começar do zero é a pior ideia que surgiu. Por isso no Ministério da Economia bate-se para que seja aproveitado o projeto que já caminhou contra todas as críticas do então deputado Onyx Lorenzoni. A tramitação, no caso de ter um novo projeto, seria longa demais e desperdiçaria o período de lua de mel com o Congresso, o mercado e o eleitorado. Neste caso, a discussão só teria início após a formação da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), no final de março. Depois, seria constituída uma Comissão Especial para discutir a PEC. O primeiro semestre seria perdido refazendo-se os passos da reforma de Temer.

Esse é o argumento mais forte do ministro Paulo Guedes. Ele sempre diz que a reforma do Temer é “remendo em calça velha”, porém esse remendo será o veículo para a proposta de Bolsonaro avançar. Quem já esteve negociando no governo passado explica que há uma margem de manobra enorme para se mexer no texto. Mais de 200 emendas foram apresentadas ao projeto original, na Comissão Especial que analisou a PEC. Essas emendas servem de base para alterações no substitutivo do relator Arthur Maia (PPS-BA), incluindo a capitalização. O próximo passo então seria a votação em plenário.

Será preciso contornar o fato de que o chefe da Casa Civil e o presidente fizeram duras críticas à reforma de Temer. Bolsonaro chegou a dizer que ela era dura demais e que não se podia “matar idoso” para salvar o Brasil. Onyx se juntou ao PT, na época, para negar a existência do déficit. A oposição e os lobbies contrários às mudanças vão usar isso contra o governo.

Há vários grupos com muita força que são adversários da reforma. Os funcionários públicos de alto escalão, inclusive alguns servidores legislativos que assessoram os parlamentares e que conhecem como ninguém o funcionamento do Congresso. Junto deles, os funcionários do poder judiciário e as forças de segurança. A bancada de servidores aumentou nesta eleição.

Outro grupo é composto pelos ruralistas, influentes no atual governo. Eles não são exatamente contra a reforma mas não querem alteração que afete os privilégios do setor rural. E há também os militares, que continuam falando em alto e bom som que são diferentes. Na verdade, Bolsonaro em si é representante desse grupo. Ele fez sua carreira política defendendo interesses corporativos das Forças Armadas e dos policiais. No caso dos policiais é fundamental para os estados que eles se aposentem mais tarde. Hoje muitos deles se aposentam antes dos 50 anos.

O economista Fábio Giambiagi, especialista em Previdência, avalia que propor o regime de capitalização será um erro, porque vai causar muito ruído e gerar pouca economia para se combater a crise fiscal. Pelas suas contas, se for aprovado o projeto sugerido pelos economistas Armínio Fraga e Paulo Tafner, que tem uma transição de regimes lenta, apenas 1,5% das despesas do INSS seriam afetadas.

—Das duas uma: ou se faz uma capitalização mais rápida e aí o custo é alto demais, praticamente impagável. Ou se faz uma capitalização mais lenta, e aí o ganho é muito pequeno e não vale a pena —argumenta. Giambiagi também vê com preocupação a estratégia política de negociar com as bancadas e não com os partidos. A maioria dos cientistas políticos concorda que ignorar os partidos vai aumentar o custo da aprovação de medidas difíceis como a Previdência.

Paulo Guedes quer uma capitalização mais rápida. A proposta de só estar disponível para quem nasceu após 2014 é lenta demais, na opinião dele. O problema é que sobre esse assunto a Casa Civil tem projeto pronto. Em suma, o governo está ainda em plena guerra interna para saber que reforma afinal apresentará. A segunda grande guerra será no Congresso.


Míriam Leitão: Embraer nas asas da Boeing

Até o próximo dia 16, quarta-feira que vem, o Ministério da Economia terá que dar o seu parecer sobre a operação da Embraer com a Boeing. Ele foi consultado em dezembro, com 30 dias para dizer se o acordo fere as regras previstas na golden share. A impressão até agora é que não fere. Pelas regras da ação de classe especial é o Ministério que diz isso, e não a Presidência, mas evidentemente a palavra final será a do presidente Jair Bolsonaro.

Até agora, na área técnica, a convicção é que a primeira proposta feita pela Boeing era muito ruim. O governo Michel Temer deixou claro que não havia gostado. A nova proposta, contudo, tem sido vista com bons olhos pelos economistas do governo.

A primeira informação relevante é que não faz sentido falar em desnacionalização da Embraer porque em torno de 85% das ações já são detidas por investidores estrangeiros. Como tenho escrito aqui desde o começo desta negociação, os maiores acionistas da empresa brasileira são fundos americanos. Mesmo assim, como escrevi em coluna recente, dados do BNDES mostram que a companhia nos últimos 15 anos recebeu bilhões do banco, em diversos tipos de operação. Foram R$ 1,95 bilhão de financiamento tecnológico, R$ 6 bi para pré-embarque de exportações e US$ 22 bilhões para financiar compradores estrangeiros de seus produtos.

A golden share nas mãos do governo pode ser exercida para impedir: 1) mudança de nome da companhia e mudança de objeto social; 2) alteração da logomarca; 3) transferência de controle acionário; 4) risco de afetar programas militares, como reposição de peças para as aeronaves brasileiras e capacitação de terceiros em tecnologia para programas militares.

A primeira proposta era a compra integral da Embraer. Mas depois o plano evoluiu. Agora, a parte comercial da empresa será vendida para a Boeing, e 20% das ações permanecerão nas mãos da Embraer, que poderá vender essa participação em cinco anos para a gigante americana. A Embraer com esse nome continuaria a existir, mantendo a unidade de defesa. O que está sendo analisado agora é se essa divisão das áreas da companhia, com um pedaço sendo vendido para a Boeing e o resto nesta remanescente Embraer, garante a reposição de peças e manutenção das aeronaves e não há transferência para terceiros da tecnologia na área de defesa.

Pela maneira como foi desenhado, o acordo contorna a golden share porque não há previsão de que o governo tenha o poder de veto no caso de venda da parte comercial. E é isso que está sendo proposto. Se tudo for sacramentado, o que fica no Brasil é apenas 15% da companhia original. O que passa ao controle da Boeing, com 20% de participação da Embraer, representa 85% do faturamento da empresa.

A Embraer sempre esteve no imaginário brasileiro como prova da nossa capacidade industrial. Ela nasceu como estatal, cresceu com fortes investimentos e subsídios do setor público, além das encomendas da Aeronáutica. Tornou-se uma das grandes no seu nicho de mercado. A partir da privatização em 1994, no governo Itamar Franco, quando o ministro era Ciro Gomes, ela deixou de ser estatal para ser uma empresa de capital pulverizado, e assim suas ações entraram no portfólio de muitos fundos estrangeiros. Hoje, de fato, ela já foi desnacionalizada. Ao governo cabe dizer se a operação como foi arquitetada permite que seja acionada a golden share, que daria ao Brasil o poder de veto. Pela análise feita até o momento, não fere. A semana que vem será decisiva. Mas que ninguém tenha dúvida, o que está acontecendo não é fusão, nem mesmo a criação de uma outra empresa como foi apresentado. Trata-se da Boeing comprando a maior parte, a fatia mais rentável, da companhia que um dia foi brasileira.

A vantagem para o Brasil é que a Embraer remanescente ficará capitalizada, com o valor da venda da unidade comercial, e ainda passará a receber dividendos da nova companhia que será formada, 80% da Boeing e 20% da Embraer. Como a golden share não dá o direito ao governo brasileiro de impedir a operação como ela foi desenhada, deve ser aprovada pelo Ministério da Economia. Depois disso, o Conselho de Administração da empresa vai chamar uma assembleia de acionistas e só ela é que poderá aprovar ou impedir o negócio.

(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)


Míriam Leitão: O risco da volta do ‘nunca antes’

Caixa, Banco do Brasil e BNDES já vinham passando por grandes mudanças de governança no governo Temer, Bolsonaro seguirá mesmo caminho

O novo governo chega com boas ideias na economia, mas certas mudanças que ele anuncia como sendo novidade absoluta já estavam em curso. Nos bancos federais, por exemplo, os presidentes tiveram liberdade de escolher seus diretores nos últimos três anos. Tudo o que não deveria acontecer é repetir-se no governo Jair Bolsonaro a mesma ideia que estava no discurso de “nunca antes” do ex-presidente Lula. Quando o ministro Paulo Guedes diz que a Caixa foi vítima de assaltos está certo, mas precisa dizer em que tempo. Nos últimos três anos, a Caixa melhorou controles, governança e cobriu um rombo de R$ 20 bilhões.

A cerimônia de posse dos presidentes de bancos públicos foi um bom momento para demonstrar harmonia entre o presidente e seu ministro da Fazenda. Era necessária por causa dos ruídos da última sexta-feira. Bolsonaro voltou a falar do seu “namoro” com Paulo Guedes. Teria sido mais bem-sucedido esse esforço para espantar os temores da última sexta se houvesse algum esclarecimento sobre a Previdência, assunto sobre o qual o presidente Bolsonaro falou em fazer uma reforma mais fraca do que a que tramita no Congresso. Teria sido melhor se fosse dado o recado inteiro. Bolsonaro preferiu falar que vai mudar a distribuição de verbas publicitárias — o que tem todo o direito — ou afirmar que o governo não pode errar, porque do contrário “vocês sabem quem volta”. Na campanha, funcionou apresentar-se como o antiPT. Isso explica o que não fazer. Mas agora, no governo, é preciso dizer o que se pretende fazer.

O ministro Paulo Guedes disse que a Caixa foi tomada de assalto, que foram concedidos “subsídios para os amigos do rei”, e que os bancos públicos foram dominados por “piratas privados, burocratas corruptos e criaturas do pântano”. Ele é excelente em imagens fortes. Mas isso está meio datado. Operações como Greenfield, Sepsis e Cui Bono desbarataram vários desvios na Caixa e revelaram como se davam as perigosas transações quando reinavam na Caixa pessoas como Eduardo Cunha, Fábio Cleto e Lúcio Funaro. Há boa descrição dos abusos que aconteciam nos relatos das operações. Houve também empréstimos e operações abusivas tanto na Caixa quanto no BNDES para os amigos do rei, um deles, Joesley Batista. Tudo isso remonta aos governos petistas. Nos últimos anos, a realidade é que a Caixa passou por um processo de avanço na governança e no redirecionamento do crédito, sob o comando da então presidente do conselho de administração Ana Paula Vescovi. Havia um rombo de R$ 20 bi que foi resolvido sem aporte do Tesouro. Os últimos integrantes do conselho de administração foram escolhidos por head hunter. Vescovi inclusive foi com o novo presidente apresentá-lo aos representantes de órgãos de controle.

Os bancos vêm mudando há muito tempo. O BNDES está aumentando a transparência dos seus atos e já aprovou a TLP que reduz o diferencial de juros. A TLP foi proposta pela Medida Provisória 777 editada no período em que a presidente do BNDES era Maria Silvia Bastos Marques. Ela também escolheu sua diretoria inteira. O Banco do Brasil vem se tornando cada vez mais eficiente. Guedes disse que isso ficará claro quando abrirem a caixa-preta desses bancos. Ecoava assim a palavra “caixa-preta” que havia sido usada pelo presidente no seu tweet matinal. Sempre haverá como elevar o grau de transparência sobre os empréstimos do banco, mas já foi superado aquele tempo em que se negou ao TCU informações sobre os financiamentos de Belo Monte. Em que o BNDES dizia que eram sigilosos os empréstimos para países estrangeiros ou dizia que feria o sigilo bancário dar detalhes das operações. Houve um avanço grande nesses pontos.

É bom saber que o esforço vai continuar. Ninguém duvidaria que este seria o caminho, por exemplo, de Joaquim Levy no BNDES, que faz parte da modernização do Brasil desde o governo Fernando Henrique Cardoso. Um fato positivo é a devolução ao Tesouro do dinheiro que fora transferido ao BNDES. Já foram devolvidos mais de R$ 300 bilhões. E agora Levy completará. O importante é que o processo de aperfeiçoamento continue. Muita coisa já foi feita. Muita há por fazer. O governo Bolsonaro não está inaugurando o Brasil.


Míriam Leitão: O rosto da direita que chega ao poder

Direita no poder: a luta pela agenda liberal será dura, as ideias de alguns ministros são constrangedoras, militares têm sido o poder moderador dentro do governo

Nossa democracia estava capenga, afirmou o ministro da Economia, ao dizer que só a centro-esquerda havia governado o Brasil. Mas que direita é essa que chegou agora? Nos muitos discursos e certas decisões da última semana, o novo rosto do poder começou a ser esboçado. A economia perseguirá a agenda liberal, o que será uma guerra, na qual o front mais ingrato será o interno. Em outras áreas, como direitos humanos, educação e relações exteriores, os ministros mostraram um desconcertante alheamento da realidade. Os militares nomeados parecem ser a força moderadora dentro do próprio governo. A agricultura recebeu poderes indevidos e que levarão a conflitos de interesse.

A democracia pressupõe alternância de grupos e ideias no poder. Até agora, houve o governo de direita de Fernando Collor, de curta duração e final infeliz. Depois o pêndulo oscilou entre o centro, tucano, e a esquerda, petista. Houve uma administração tampão do MDB, que se pode definir como centro-direita. E agora chega ao poder um governo assumidamente de direita.

No Brasil, os conceitos políticos são bem imprecisos. A esquerda fez coisas como aumentar as transferências para o capital, ainda que tenha também ampliado os programas sociais. Vamos entender nos próximos anos o que realmente significa uma administração de direita no Brasil. Destes pouquíssimos dias extrai-se pouca informação. O presidente, Jair Bolsonaro, garantiu que cumprirá promessas de campanha, como a de liberar a posse de armas. O ministro das Minas e Energia, almirante Bento Albuquerque, surpreendeu favoravelmente anunciando que a Eletrobras será privatizada, o que levou a uma alta de 20% nas ações em um único pregão. Houve também momentos constrangedores. As ideias da ministra Damares sobre divisão de cores por gênero são principalmente infantis, as do ministro Ernesto Araújo, confusas.

No Ministério da Justiça, o que se tentará é, a partir da experiência da Lava-Jato, reforçar o arcabouço legal contra a corrupção. Na posse, o ministro Sérgio Moro explicou que “um juiz de Curitiba pode pouco”. Um erro de interpretação dos fatos. Foi um juiz em Curitiba, no caso, ele mesmo, que permitiu, com suas decisões, que a Operação Lava-Jato alcançasse a dimensão que tem tido na vida nacional. Moro assumiu com projeto pronto para o combate à corrupção, mas não parece ter propostas para todos os outros assuntos que agora estão sob seu comando.

Na economia, o ministro Paulo Guedes tem ideias consolidadas. Ele é um homem de ideias, um pensador. A vida real dentro de um gabinete ministerial pode ser mais árdua do que ele imaginava. O que fazer diante de um presidente que anuncia de forma confusa e contraditória pedaços da “primeira e maior” das reformas econômicas? E quando o presidente anuncia que subirá o IOF e o secretário da Receita precisa desmentir? Confusos esses primeiros dias na área econômica.

A hora do espanto foi a do discurso barroco do ministro das Relações Exteriores. Depois de citações em grego e latim, ele desculpou-se: “Não conheço tantas línguas antigas assim. Não conheço hitita nem sânscrito”. O problema do chanceler é respeitar a linguagem diplomática, que requer mais cuidados do que ele demonstra ter ao falar de outros países. Ele os escolhe pelo governo que está agora no poder. Elogiou a “nova Itália, a Polônia, a Hungria”. Demonstra encantamento com Donald Trump. Como qualquer aluno do Instituto Rio Branco sabe, os governos são temporários, por isso as relações são entre os países. Ele propõe que o Itamaraty lute contra a “teofobia”, sem esclarecer o que essa cruzada contra problema inexistente tem a ver com os interesses do Brasil.

Na reorganização da administração, o governo acabou com o Ministério do Trabalho, enfraqueceu a Funai e tirou poderes do Ministério do Meio Ambiente. Tudo isso está dentro do ideário da direita. A redução do número de ministérios é bem-vinda. O problema é entregar o poder de demarcar as terras indígenas ao Ministério da Agricultura e transferir o Serviço Florestal Brasileiro do Meio Ambiente para a Agricultura. Isso certamente dará muito conflito.

Foram apenas as primeiras pinceladas no novo rosto do poder. Seria bom que as confusões e os delírios desses primeiros dias dessem lugar ao entendimento da verdadeira natureza dos problemas nacionais.


Míriam Leitão: Hora da clareza na Previdência

Se o risco é de colapso, como disse corretamente Bolsonaro, já passou da hora de o governo saber o que fazer para reformar a Previdência

Está na hora da clareza sobre a reforma da Previdência e nesta primeira semana de governo ela ficou mais obscura. O ministro Paulo Guedes, na posse, deu a entender que há uma alternativa à reforma, e todos sabem, inclusive ele, que não existe. O presidente Jair Bolsonaro na entrevista ao SBT criou mais dúvida quando falou de uma idade mínima menor do que a que está na reforma do ex-presidente Temer. O ministro Onyx Lorenzoni disse que era para ser mais suave, mas, na verdade, ela pode até ser mais dura dependendo do que se entender do que o presidente disse.

Não há mais tempo para o improviso e as falas conflitantes. O próprio presidente disse que a questão é urgente:

— Mais dois, três anos, vamos entrar em colapso. Nós não queremos que o Brasil chegue na situação da Grécia e todos vão contribuir um pouco para que ela seja aprovada.

Se o risco é de “colapso”, o governo precisa saber o que fazer. O que Bolsonaro disse é que a idade mínima será de 57 anos e 62 anos para a entrada em vigor em 2022. Bom, se for isso, é mais dura do que a de Temer, que previa 62 e 65 anos apenas em 2038. Na proposta que está no Congresso, a idade mínima de 62 anos, para homem no INSS, só seria atingida em 2032. Se na de Bolsonaro vai ser em 2022, então é dez anos antes. Agora, se ele está dizendo que essa será a idade mínima ao fim do processo, então está enfraquecendo a reforma.

Esses improvisos de Bolsonaro em assunto que ele não domina criaram ontem uma crise com a área econômica. Ele anunciou de manhã aumento de IOF e mudanças no Imposto de Renda e foi desmentido pelo secretário da Receita, Marcos Cintra. O ministro Paulo Guedes ficou em silêncio apesar de a confusão ter estourado em sua área.

Está aí um assunto que não precisava de dúvidas. Houve muita bateção de cabeça na época da transição. Bolsonaro indicou que vai aproveitar a reforma que já está na Câmara, mas com mudanças:

— Pretendemos, ao colocar num plano a reforma da Previdência, é nós passarmos um corte até o final de 2022. Isso seria aumentar para 62 os homens, 57 as mulheres, um ano a partir da promulgação e outro ano em 2022, e o futuro presidente reavaliaria esta situação para passar para 63 ou 64.

Quando ele fala “aumentar”, parece estar se referindo ao servidor público porque o Regime Geral não tem idade mínima. O funcionalismo tem idade mínima de 55 e 60 anos. E em 2022 seria 57 e 62. Quando Bolsonaro diz que o próximo presidente “reavaliaria”, levanta outra questão. Todos sabem que uma reforma da Previdência não pode estar contida dentro do curto tempo de um mandato. Precisa haver regras válidas para décadas.

Bolsonaro não é o único a gerar dúvidas sobre o tema de crucial importância para a solidez da economia. O próprio ministro Paulo Guedes no seu discurso levantou uma grande interrogação quando disse que se a reforma não fosse aprovada haveria outra PEC a ser enviada desvinculando as receitas. Admitiu haver alternativa para a reforma, o que é um erro, e além disso acenou com um projeto ainda mais difícil de aprovar.

O Brasil está diante do seguinte fato. A primeira vez que o governo propôs a idade mínima foi na reforma do então presidente Fernando Henrique, há 23 anos. Não foi aprovada e desde então estamos rodando em círculos nesse assunto. O déficit cresce de forma vertiginosa. Em 2019, a projeção é de R$ 218 bilhões no INSS, de R$ 44 bi nos servidores civis federais e de R$ 43 bilhões nas Forças Armadas. Soma-se tudo, chega a R$ 305 bilhões, sem contar os estados. E crescerá ainda mais nos próximos anos. A reforma não é panaceia. Ao contrário do que disse Paulo Guedes, ela, sozinha, não é a garantia de que o país cresça durante 10 anos. Uma agenda de reformas, com esta e outras mudanças, pode sim dar um impulso novo à economia brasileira. Nessa agenda, a reforma da Previdência é indispensável. Sem ela não dá para começar o trabalho de elevar a confiança.

Em fevereiro assume o novo Congresso e até lá o governo terá que se organizar para falar de forma única sobre esse assunto. A Previdência, além de ter um rombo insustentável, é, como disse Guedes, uma fábrica de desigualdades. Cristalizou-se a ideia de que reformá-la prejudica os pobres, quando é exatamente o oposto. Quanto mais o governo se contradiz e bate cabeça, mais fica difícil convencer o país.


Míriam Leitão: O tempo da política e o da economia

Prolongamento da lua de mel de Bolsonaro com o Congresso dependerá da recuperação da economia e de melhora na segurança

O jeito Paulo Guedes de ser ministro é diferente de qualquer outro que se tenha visto, avisa o economista Gustavo Franco. O cientista político Carlos Melo acha que na política não há uma forma nova de montar a coalizão, como o governo tem dito. Franco acredita que a equipe econômica tem muitas medidas na mão para divulgar e, com isso, manter o otimismo na economia. Melo acha que a duração da lua de mel política vai depender do que acontecer na economia.

Reuni os dois, o economista e o cientista político, no meu programa na Globonews, para entrevistá-los sobre o governo Jair Bolsonaro e a realidade que ele enfrentará nas duas áreas. Gustavo Franco, que fez parte da equipe do real, explica que até improvisar no discurso de posse, como Guedes fez, não é usual:

— Não conheço nenhum outro ministro da Fazenda que tenha assumido falando de coração, com essa espontaneidade e com todos os riscos que isso traz. Dá uma legitimidade ao que ele fala que é impressionante. A grande dúvida é a latitude que ele tem para levar isso adiante no ambiente político aonde ele se insere.

Gustavo Franco diz que no governo está tudo ainda confuso, porque seus integrantes são pessoas diferentes entre si, mas “unidas pelo antipetismo”:

— Estranhamente organizou-se uma agenda positiva através da negação. Fazer o contrário do que o PT fez tornou-se o programa, quando não se tem uma ideia precisa do que fazer.

Carlos Melo, do Insper, não acredita que na política funcione a tentativa de fazer diferente, ou seja, de negociar a coalizão através das bancadas:

— Vamos ver se vai funcionar, até hoje não funcionou. Se vier a dar certo ele inaugura algo novo que nós ainda não sabemos qual a dinâmica que vai assumir. A dificuldade é que tudo no Congresso nacional se dá através dos partidos. A definição das comissões, quem vai presidir, quem serão os relatores dos projetos, tudo passa pelo colégio de líderes, pelos partidos. Os partidos podem estar em crise, mas ainda não se inventou algo que os substitua.

O cientista político lembra que, como o nome diz, as bancadas temáticas se unem por temas muito específicos, mas se dividem em outros assuntos. Melo não acredita que se possa prescindir dos partidos e apostar em uma nova forma de fazer acordo no Congresso.

Gustavo Franco acha que o ministro Paulo Guedes não quis falar em plano B quando apontou o projeto de desvinculação das receitas, na eventualidade de não se aprovar a reforma da Previdência. Ele entendeu que Guedes apenas estava raciocinando por absurdo:

— Acho que ele estava mais especulando do que falando em um plano B. Era uma forma elegante de dizer que, como tem o teto de gastos, se não for aprovada a reforma da Previdência será o caos orçamentário. Era um artifício retórico para dizer que não tem outro jeito de fazer.

O primeiro desafio político a ser enfrentado pelo governo Bolsonaro é a eleição para as presidências das Casas do Congresso. Carlos Melo lembra que a informação de que o PSL apoiou a candidatura de Rodrigo Maia, e que para isso teria recebido a promessa de vários postos na mesa e nas comissões, foi dada apenas pelo PSL. Maia não confirmou:

— Rodrigo Maia está numa situação confortável. Se o governo o apoia, ele faz maioria e ganha. Se não apoia, com 157 votos da oposição e mais o centrão, ele faz maioria e ganha a eleição.

Para Carlos Melo, o que está em curso é, na verdade, um movimento de adesão do governo à candidatura de Maia. Mas que o PSL tem que dizer para a bancada, para o eleitor de Bolsonaro, que eles saíram ganhando na negociação. Ele acha pouco provável que o Rodrigo Maia tenha oferecido tanto em troca dos votos do PSL:

— Não é o governo que quer menos toma-lá-dá-cá? Por que o Congresso daria a faca, o queijo, o guardanapo, o copo de leite, tudo na mão do governo logo de cara?

Gustavo Franco acha que a equipe econômica pode soltar medidas que não dependem do Congresso e que consigam criar um ambiente de recuperação econômica, uma primavera. Se esse cenário positivo ocorrer, diz Melo, e houver melhora na segurança, “a rua ficará simpática” e vai pressionar o Congresso em favor das propostas do governo. Mas se o cenário não for de melhora rápida na economia, e na segurança, a lua de mel se encurta.


Míriam Leitão: As divisões até na hora de somar

Bolsonaro atribuiu o ato do criminoso que atentou contra a sua vida aos “inimigos da pátria”, insinuando serem seus adversários políticos

O presidente Jair Bolsonaro poderia ter só somado ontem, mas preferiu dividir. Era momento de festa cívica, o da posse de um presidente eleito, resultado da oitava eleição consecutiva desde a redemocratização. Mas ele escolheu restringir em vez de ampliar. Isso ficou claro até no momento mais tocante, quando, no Parlatório, a primeira dama Michelle falou aos deficientes auditivos usando a linguagem de libras para incluí-los na cerimônia. Logo depois, Bolsonaro afirmou que iria acabar com o politicamente correto. O gesto que sua mulher acabara de fazer era politicamente correto. E lindo.

Nos seus discursos, Bolsonaro deu sinais em sentidos opostos. Convocou o Congresso para ajudá-lo a reconstruir o país e resgatar a esperança. Num improviso, brincou que estava “casando” com o Congresso. Falou em dar mais poderes aos estados e municípios. Disse que reafirmava seu compromisso de construir uma sociedade sem discriminação e sem divisão.

Ele afirmou que queria a ajuda do Congresso para libertar a pátria da “irresponsabilidade econômica”. Precisou ser lembrado pelo presidente do Senado, Eunício Oliveira, de que ele não começava do zero, que vários avanços econômicos foram conseguidos na gestão do ex-presidente Temer.

Sua insistência no que chama de “ideologia de gênero”, ou “viés ideológico”, é a repetição do que disse na campanha, mas é contraditório. Esse é um governo com viés e ideologia. Foi eleito entoando discurso de direita. Governará com estas ideias. Isso é natural. O que ofende os fatos é dizer que agora o país estará “livre das amarras ideológicas”. Está trocando amarras, pelo visto.

No ponto mais perigoso do seu discurso no Congresso, Bolsonaro coletivizou o ato do criminoso que atentou contra a sua vida ao dizer: “quando os inimigos da Pátria, da ordem e da liberdade tentaram pôr fim à minha vida, milhões de brasileiros foram às ruas”. Nessa narrativa ele joga o epíteto de “inimigos da pátria” aos seus adversários políticos e os mistura com o autor do atentado. Cria uma ambiguidade perigosa. Disse que foi eleito a partir da reação da sociedade a esses “inimigos”. O Brasil conhece o risco das narrativas que distorcem os fatos. Conhece também o perigo dos líderes que se apropriam da bandeira nacional como sendo expressão de uma ideologia, em vez de ser o manto que nos une.

Na economia, o presidente Bolsonaro alinhou uma série de bons objetivos. O país pode de fato entrar num círculo virtuoso, como ele disse, se houver aumento da confiança depois de reformas e medidas que elevem a eficiência da economia. “Realizaremos reformas estruturantes, que serão essenciais para a saúde financeira e sustentabilidade das contas públicas”. Bolsonaro diz que, na economia, seu governo trará a confiança “no cumprimento de que o governo não gastará mais do que arrecada”. É importante que ele reafirme esse compromisso, mas será preciso união em torno de medidas impopulares para que a promessa do ministro da economia, Paulo Guedes, de zerar o déficit público em um ano, vire realidade. Essas “reformas estruturantes” realmente acontecerão caso o presidente Bolsonaro tenha muito mais convicção do que tem demonstrado. Em geral, suas falas sobre economia são hesitantes.

Um ponto destoante foi o do tratamento à imprensa nacional e estrangeira credenciada para cobrir a posse. Os cuidados com a segurança do presidente eram necessários, sem dúvida. Mas isso foi usado como pretexto para cercear o trabalho da imprensa. Eu estive na cobertura de posses em Brasília, desde a do presidente João Figueiredo. Jamais me deparei com os absurdos que aconteceram ontem, como o de exigir que jornalistas chegassem sete horas antes do evento para ficar confinados em cercados. O confisco das maçãs foi só um toque a mais de nonsense no meio de uma coleção de abusos.

O presidente Bolsonaro disse que uma de suas prioridades é “proteger e revigorar a democracia brasileira”. Isso é animador, principalmente vindo de quem, no passado, elogiou regimes de força. A democracia pressupõe uma imprensa livre e atuante. Que os excessos de ontem não sejam o prenúncio de uma relação autoritária, mas apenas um erro a ser corrigido.


Míriam Leitão: O Brasil concreto espera o governo

Após a campanha dominada por falsos problemas e uma transição confusa, começa o tempo das medidas concretas para os que assumem esta semana

O Brasil tem inúmeros problemas, mas não os que foram criados pela pauta montada para fazer sucesso eleitoral. Encerrada a disputa das urnas, ela continua sendo alimentada pelos vencedores e assim vamos cada vez mais longe dos dilemas reais que temos de enfrentar para ter sucesso como Nação. O país tem uma enorme pobreza, índices educacionais medíocres, déficit habitacional, poluição dos rios e das cidades, falta de saneamento, rombo nas contas públicas, saúde pública em colapso, estagnação do crescimento, alto desemprego. A eleição era uma oportunidade de discutir estes temas, mas em 2018 nós perdemos a chance.

Prisioneiros de um falso dilema, que remonta a meados do século XX, como explicou na sexta-feira a esclarecedora coluna de Pedro Dória neste jornal, revivemos a batalha ideológica da Guerra Fria, como se o país tivesse voltado na máquina do tempo. Para o grupo vencedor era preciso aniquilar os “comunistas”, para o adversário do segundo turno, os “fascistas”. O delírio eleitoral da cruzada contra infieis permaneceu nas entrevistas da transição que não ajudaram a esclarecer a realidade que havia sido deliberadamente sonegada durante a campanha.

O problema da educação brasileira não é a educação sexual nas escolas. É preciso investir na qualificação dos professores, aumentar a capacidade de aprendizado dos alunos, reter os adolescentes que abandonam os estudos cedo demais, tornar atraente o aprendizado, preparar os estudantes para um tempo de mudança acelerada, aperfeiçoar todo o sistema. A educação é a mais decisiva das batalhas, e o debate se perdeu em escaramuças sobre ficções e delírios. Os especialistas fizeram sua parte. Organizações como o Todos pela Educação, entre outras, prepararam propostas para apresentar aos candidatos, com a lista do mais urgente a fazer.

Os agudos problemas da saúde brasileira também foram deixados de lado. A Constituição de 88 deu um passo decisivo e civilizatório quando criou o Sistema Único de Saúde. Todos sabem que é preciso resgatá-lo com uma gestão mais eficiente. É fundamental dar uma resposta para a crise que continuará fazendo vítimas à porta de hospitais. Pouco se falou sobre esse tema que define a fronteira entre a vida e a morte, como se o país pudesse ignorar urgência dessa dimensão. A Previdência esteve presente em debates e entrevistas por insistência dos jornalistas, apesar de ser assunto inadiável.

Metade do esgoto do Brasil não é tratado e isso aumenta as doenças, destrói as águas de rios e praias, empesteia as cidades. Como o governo eleito vai enfrentar o déficit civilizatório do saneamento? Outra das perguntas sem resposta.

O problema ambiental brasileiro não é a “indústria da multa”, ou o suposto “viés ideológico” dos órgãos de fiscalização e proteção, muito menos uma conspiração internacional, mas o fato de que ainda hoje assistimos inertes a um desmatamento irracional feito com correntão, por bandidos armados ocupando terra pública. Os bons produtores do agronegócio, que já entenderam a lógica do tempo atual, sabem que é preciso derrotar os crimes ambientais pelo nosso futuro comum.

O combate à corrupção precisa continuar para proteger os recursos públicos, para melhorar a política, para tornar mais transparentes as relações entre agentes públicos e empresas privadas. O país aprendeu que os erros podem acontecer em qualquer partido. O dilema, porém, foi tratado como uma cruzada dos supostos “puros”, um reducionismo comparável à vassourinha de Jânio Quadros. Na segurança, os altos níveis de homicídios no Brasil não tiveram proposta inteligível, apenas o gesto com os dedos a simular uma arma.

Na economia será preciso pôr as contas em ordem, retomar o crescimento e a geração do emprego. Somado tudo o que foi dito na campanha, com os esboços divulgados durante a transição, não se consegue dizer, sinceramente, qual é o projeto econômico do novo governo. Há apenas uma grande torcida para que a nova equipe acerte e uma ideia genérica de um projeto liberal.

Esta semana o novo governo assumirá e será o tempo das medidas concretas e reais para superar os diversos déficits brasileiros. Os vencedores terão a oportunidade de fazer o que não explicaram durante o confuso ano de 2018.


Míriam Leitão: Os que falam a mesma língua

Mourão revela sintonia com a equipe econômica ao apoiar a flexibilização do Orçamento e o projeto de reforma que já está no Congresso

O que se ouve de mais lógico na equipe de transição foi dito pelo vice-presidente eleito Hamilton Mourão na entrevista ao “Valor”. O governo prepara um projeto de emenda constitucional para desengessar o Orçamento e será aproveitada a proposta para a reforma da Previdência que já tramita no Congresso. É o que também tenho ouvido de integrantes do novo governo.

Mourão fala a mesma língua que a equipe econômica, mas isso não significa que haja unidade no futuro governo. Até o ponto mais lógico, que é aproveitar a atual reforma da Previdência que já cumpriu etapas longas de tramitação, não tem o apoio de todos. Por isso, a primeira batalha na reforma será a unidade interna. Aproveitar a atual proposta criará para o chefe da Casa Civil, ministro Onyx Lorenzoni, o constrangimento de ter que defender o que atacou na Comissão Especial. Onyx montou uma equipe sobre o assunto e tem suas próprias ideias.

O vice-presidente falou ao “Valor” em uma abertura “lenta, gradual e segura”. O vocabulário geiselista foi adaptado aqui à área do comércio exterior para dizer que a indústria enfrentará maior competição com o produto importado pela redução das tarifas externas, a ser feita em fases. Durante uma de suas falas na transição, o futuro ministro Paulo Guedes criticou a indústria que estaria ainda em suas “trincheiras da primeira guerra”, e prometeu “salvar a indústria, apesar da indústria”. A despeito do tom forte, a tendência é não fazer uma abertura drástica.

Em entrevista que me concedeu no último dia 6, o general Mourão defendeu com entusiasmo a ideia de um desengessar do Orçamento. Com isso também sonha o economista Paulo Guedes. Para realizá-lo será preciso convencer o Congresso a retirar todas vinculações constitucionais, a começar as da saúde e educação. Um projeto que permita começar o Orçamento do zero sempre foi o sonho de inúmeros economistas. O problema não é ter a ideia, é como aprová-la porque ela pode atrair a oposição dos grupos de interesse, principalmente as bancadas da saúde e da educação. Fácil chegar ao diagnóstico de que o engessamento do Orçamento inviabiliza o país, difícil é mudar isso. O argumento do general Mourão na entrevista que me concedeu foi que o Congresso ganharia mais poderes se isso for aprovado porque poderia verdadeiramente formular a proposta de destinação das receitas a cada ano.

Como em outras democracias, o parlamento faria o orçamento, em vez de disputar os valores residuais. Isso convencerá o Congresso? Neste momento de aguda crise fiscal, cada setor está convencido de que, se abrir mão do mínimo constitucional, ficará sem qualquer garantia.

O general falou da necessidade de enfrentar as “igrejinhas”, como definiu as corporações do serviço público. Sempre foi difícil mesmo. Uma dessas ideias em defesa do grupo ao qual pertence se vê na própria entrevista, quando Mourão insiste na tese de que não há uma previdência dos militares e sim “um sistema de proteção pelas peculiaridades da profissão”. Chame-se do que for, a previdência dos militares tem um déficit de R$ 42 bilhões.

Sobre o custo da dívida pública, o vice-presidente propõe algo que não é factível. Ele repete o número do qual Paulo Guedes não se separa, que o Brasil gasta R$ 400 bilhões de juros por ano. O general acerta quando diz que se forem feitas as reformas, esse custo pode cair. No resto da solução ele erra. Acha que se fizer esse dever de casa, pode “chegar para os meus credores e dizer ‘vamos fazer uma negociação’”.

Segundo o general, o governo poderá repactuar essa dívida, alongar os títulos e reduzir os juros para diminuí-los, por exemplo, para R$ 350 bilhões, e usar esse dinheiro para investir. A redução do custo da dívida não acontece via negociação com credores, mas sim naturalmente se o governo fizer as reformas. A despesa caiu no governo Temer pelos acertos da equipe. Isso não libera dinheiro para qualquer outro uso. Apenas reduz a trajetória de crescimento da dívida. O vice-presidente mostra uma compreensão imprecisa da política monetária com essa sugestão de negociação com credores da dívida interna. E nesse ponto qualquer mal-entendido é arriscado.


Míriam Leitão: O maior desafio na economia

Equipe econômica terá que lidar com o desafio da lenta recuperação do emprego, sempre o último indicador a sair das crises

O superministério que será chefiado pelo ministro Paulo Guedes terá vários desafios a partir de 1º de janeiro. Para nenhum deles haverá resposta fácil, mas o pior será o drama do desemprego. O mercado de trabalho é sempre o último a reagir aos ciclos econômicos e mesmo no melhor cenário o efeito sobre a criação de vagas será limitado. Paulo Guedes terá que administrar essa cobrança, ao mesmo tempo em que tenta implementar medidas duras para apagar o incêndio que consome as finanças públicas.

O mercado de trabalho formal em novembro abriu 58 mil vagas, o melhor resultado para este mês desde 2010. A questão é que entre 2015 e 2017 o país fechou 259 mil postos em meses de novembro. Ou seja, o saldo é negativo de 201 mil. O ritmo de melhora é lento e isso ajuda a entender por que os brasileiros ainda sentem os efeitos da recessão. Em qualquer indicador que se faça a conta, a história será parecida. Há uma melhora na ponta, mas que não recupera a perda que se acumulou nos anos recessivos.

Mesmo nos cenários mais otimistas para o PIB, os economistas admitem que o desemprego permanecerá elevado. O Departamento de Estudos Econômicos do Bradesco soltou relatório há poucos dias prevendo "aceleração disseminada entre os setores no próximo ano". O tom do banco é otimista em todo o relatório. Acha que, com exceção dos gastos do governo, todos os demais componentes do PIB ficarão no azul, com destaque para o investimento, que deve crescer 6,5%. Na média, a economia fecharia 2019 com alta de 2,8% do PIB. Sobre o mercado de trabalho, no entanto, o banco fala em "queda apenas gradual da taxa de desemprego".

A estimativa do Bradesco é de redução do desemprego de 12,3%, da média de 2018, para 11,9%, em 2019. O Itaú projeta que cairá para 11,6%, e a Confederação Nacional da Indústria (CNI) tem um número mais otimista, de 11,4%. Em todos os três cenários, a taxa permanece na casa de dois dígitos.

O consultor econômico da Acrefi (Associação Nacional das Instituições de Crédito, Financiamento e Investimento), Nicolas Tingas, concorda que os efeitos sobre o mercado de trabalho serão limitados, mesmo que o seu cenário se confirme, de crescimento entre 2,5% e 3% do PIB no ano que vem. Mas ele pondera que a sensação das famílias será de melhora, com aumento gradual da confiança.

— Um dos principais motores do PIB será o crédito às famílias, que deve crescer de 10% a 12% nos recursos livres. Mesmo que o desemprego não caia tão rapidamente, o país deixa definitivamente para trás o risco de recessão —explicou.

Tingas tem uma visão diferente da maior parte dos economistas de mercado. Ele não acredita que a aprovação da reforma da Previdência no primeiro semestre seja crucial para o sucesso da economia em 2019. Enxerga na nova equipe econômica um perfil de administração que veio do mercado de capitais, com uma preocupação grande de reequilibrar o fluxo de caixa. Ou seja, pode encontrar novas formas de melhorar as finanças públicas no curto prazo, e com isso ganhar mais tempo para reformar a Previdência.

— Essa equipe vai buscar maneiras de reduzir gastos e aumentar a arrecadação. Então a aprovação da Previdência não é o ponto principal no meu cenário. Muita coisa pode ser feita: abertura comercial, reforma tributária, medidas que vão aumentar a competitividade e gerar receita. Se der certo, o governo ganha tempo e mantém a confiança dos credores —diz.

Outros economistas, no entanto, acham que a reforma da Previdência passou a ter também um valor simbólico. Aprová-la seria fundamental para que as planilhas de projeções do crescimento da dívida pública sejam refeitas. Isso seria o primeiro ponto para a retomada da confiança.

Seja como for, permanece a velha regra de que o emprego é o último indicador a piorar na entrada de uma recessão, e o último a melhorar na saída da crise. Oficialmente o país já está fora da recessão, mas o desemprego continua alto e, nos primeiros meses do ano, essa taxa sempre sobe. Com o fim do antigo Ministério do Trabalho e a absorção de grande parte de suas funções pelo Ministério da Economia, quem responderá pelo assunto, dando explicações e projeções, será a equipe econômica. Neste assunto as boas notícias vão chegar lentamente.


Míriam Leitão: ‘Nova’ diplomacia é velha e ruim

Depois de nomeado ministro, Ernesto Araújo poderia ter encontrado o equilíbrio para exercer o cargo. Mas continua sem nexo e histriônico

O futuro ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, continua se esforçando muito para produzir mais desatinos do que os governos petistas naquela pasta. E tem conseguido. O principal erro da diplomacia é quando ela se dispõe a representar uma parcela do país, desprezando ou ofendendo o resto. Agora ele diz que representará o agronegócio, porque o PT o fez com o MST. Talvez fosse bom ele entender que a Casa de Rio Branco deve espelhar o país e não um grupo, por mais importante que seja para a economia.

Durante os dois anos e meio do governo Temer, tentou-se corrigir as inclinações indevidas e a paralisia decisória do período anterior. Houve desde a mudança em relação ao governo chavista até a redução de pendências burocráticas. Só o atual chanceler, Aloísio Nunes Ferreira, aprovou quase mil remoções que estavam pendentes. O custo da política externa do PT pode ser quantificada pelos calotes no BNDES que o Tesouro terá de cobrir. Aconteceram também os vexames, como instalar o então presidente Lula numa tenda para ter aulas de geopolítica de Muamar Kadafi ou a imposição aos diplomatas de leitura obrigatória de textos de esquerda. A grande virtude no governo Temer foi a busca da normalidade.

Agora volta-se o pêndulo para o sentido oposto, com igual equívoco. Como se parecem. A diferença é que o embaixador Celso Amorim, apesar dos erros que cometeu, era um diplomata com carreira consolidada. O embaixador Ernesto Araújo é o equivalente a um general de divisão chamado a comandar o Exército.

Uma das decisões acertadas no período Temer foi a iniciativa de suspender a Venezuela do Mercosul, com base na cláusula democrática. O governo Maduro não é democrático, portanto, não cumpre o pré-requisito. Qualquer histrionismo em relação a ele só vai municiá-lo. O mais sábio com relação ao governo da Venezuela é não dar a Nicolás Maduro o que ele quer: um “inimigo” externo. Quando Maduro faz ameaças de armar as milícias, é bom ignorar. Algumas pessoas sabem disso no novo governo brasileiro, mas entre elas não está o nosso esbravejante chanceler com seus tuítes voadores.

Araújo soltou várias notas definindo o que ele chama de “nova política externa”. Disse que o Brasil vai exportar soja, frango, carne e açúcar, mas “também esperança e liberdade”. Segundo o novo chanceler, “a velha política e a velha mídia” querem “usar o agro como pretexto para reduzir o Brasil a um país insignificante”. A palavra “ridícula” é a mais apropriada para definir essas e outras manifestações do futuro ministro.

Os textos que ele assinava em seu blog sempre foram rasos. Mas naquele tempo ele era apenas uma pessoa se esforçando para ganhar espaço no futuro governo. Depois que atingiu o objetivo almejado, ser nomeado ministro, Ernesto Araújo poderia ter encontrado a centralidade necessária para o exercício eficiente do cargo. Contudo, permanece histriônico e sem nexo.

Sua mistura inusitada de despropósito político, fundamentalismo religioso, palavras intempestivas podem provocar um estrago grande nas relações do Brasil com o mundo. O clima de revolta entre diplomatas se espalha. Não por discordarem do futuro governo. Há pessoas com convicções políticas diferentes entre si e a mesma preocupação porque sabem que o futuro ministro tem ferido um a um os princípios de uma boa diplomacia.

A sua “nova” política externa será, na verdade, a diplomacia errada. Na economia, os governos do PT criaram a “nova matriz econômica”. Não era nova, estava equivocada e levou o país à recessão. Proclamar a adoração ao governo Trump vincula o país a uma administração, que é passageira, em vez de ser ao país, que é permanente. Além disso, representa um retrocesso de meio século na política externa, ao tempo do alinhamento automático.

As várias espetadas em diversos parceiros comerciais, cometidas por ele e por outros do futuro governo, têm o mesmo componente. São gratuitas. O Brasil nada ganha com isso e pode perder. Os perdedores são os mesmos que Ernesto Araújo alega que defenderá porque são, segundo ele, “a essência da brasilidade”, os empresários do agronegócio. Sendo o Brasil um dos mais eficientes produtores de alimentos do mundo, a militância fervorosa e maniqueísta do novo chanceler pode fechar portas que hoje estão abertas.


Míriam Leitão: Anúncios vazios minam confiança

Faltam dias para o novo governo assumir e seria bom que começasse a ir além das ideias voluntaristas que marcaram essa conversa inicial

O anúncio de que o governo Bolsonaro pensa em desonerar a folha de salários tem a mesma marca de improviso de todos os outros ditos da nova administração. É excelente a ideia, só não é original nem trivial. Para fazer isso será preciso saber de onde tirar pelo menos os R$ 200 bilhões que vão para a Previdência. Alguém precisa contar para as autoridades entrantes que governar é diferente de ter teses na academia, no mercado financeiro ou em palestras.

Para ir além da ideia é preciso explicar como fazer. Se não houver o caminho dos projetos até a sua realização é apenas balão de ensaio. Até agora, a lista de intenções anunciadas e abandonadas pelo governo Bolsonaro é enorme. A transição está se completando e a grande marca da preparação do novo governo é o anúncio precipitado de medidas que depois são desmentidas, para darem lugar a outras que também acabam indo para o rol das propostas arquivadas.

Para desonerar a folha é preciso saber o que pôr no lugar, porque passa de meio trilhão de reais o que se arrecada hoje. O que o futuro secretário da Receita, Marcos Cintra, propõe é a criação de um imposto sobre transações financeiras. Essa proposta é a recordista das idas e vindas. Foi dita, desdita, desmentida, negada, abjurada, e sempre reaparece. Cintra é conhecido por sua militância de décadas em defesa do imposto único. Uma ideia que tem nele um defensor único. Nunca impressionou os colegas de qualquer corrente na economia porque não fica em pé. Até ele traiu suas próprias crenças e chegou a defender que houvesse duas e não uma CPMF.

Todo mundo concorda que existem impostos e taxas demais sobre o emprego. Como reduzi-los é que são elas. O governo Dilma deu desonerações a setores. Vimos o resultado. Rombo, distorções, aumento do déficit da Previdência. Foi preciso fazer o caminho da reoneração, ainda incompleto. Portanto, o centro da questão é o “como”. Se a equipe econômica não tiver pensado no caminho prático da realização das ideias, elas são palavras vazias que servem apenas para minar a credibilidade de quem fala. Faltam dias para a nova administração assumir e seria bom que começasse a ir além das teses voluntaristas que marcaram essa conversa inicial.

Já se falou em reduzir os gastos tributários, o que significa eliminar as isenções, incentivos fiscais, programas especiais. Até agora não se apontou um único gasto tributário que vá ser extinto ou reduzido. O presidente Jair Bolsonaro prometeu ao agronegócio a anistia das dívidas passadas do setor com o Funrural. O governo Temer havia proposto um refinanciamento dessa dívida e deu muita confusão. O Congresso aumentou os descontos, foi negociada nova versão, mas tem havido pouca adesão porque os devedores estão de olho no perdão completo dessas dívidas prometido por Bolsonaro. Isso significa um gasto de R$ 17 bilhões e contradiz o que o economista Paulo Guedes disse durante a campanha sobre as bondades fiscais para setores.

A própria “faca no Sistema S” foi lançada aos comensais da Firjan sem qualquer explicação. Aqui comentei ontem sobre a importância da revisão do Sistema. Mas o relevante no caso é dizer que, se há alguma proposta, que seja apresentada com alguma concretude. Governar é mais do que lançar ideias, soltar balões e encantar plateias.

Cintra disse que a desoneração da folha será agora “definitiva e universal”. Isso é para ser diferente da que foi feita no governo petista e que foi seletiva e deixou um custo de R$ 108 bilhões de 2012 a 2019. A proposta é que o benefício não seja concedido discricionariamente a alguns, mas estendido a todos. Deu para entender, só não deu para saber como isso será feito.

Quem dirige a economia de um país complexo como o Brasil tem que expor os números e simulações que levaram à convicção de que uma proposta é viável, antes de anunciá-la. Se não o fizer, é apenas especulação. Além de serem medidas descalçadas de números, elas costumam frequentemente se chocar com o que é dito em outra ala do governo.

Faltam poucos dias para o início da nova administração. Que os senhores da equipe econômica — integralmente masculina, a propósito — pensem, calculem, analisem e estudem alternativas antes de apresentá-las. Se não fizerem isso, perderão credibilidade.