Míriam Leitão: Jabutis e ruídos na Previdência
Reformar a Previdência é difícil, e fica pior se o governo embute truques, não se explica, e ainda decreta sigilo de documentos
O governo colocou pontos na reforma da Previdência que aumentaram a vulnerabilidade de um projeto que em si já é bastante polêmico. Os jabutis incluídos para serem usados como moeda de negociação ajudaram os setores mais fortes de oposição ao texto, que são os servidores públicos. A proibição de acesso aos dados preparatórios não tem justificativa alguma e também cria um ambiente que fortalece a resistência. Têm havido vários erros estratégicos na formulação e na defesa da PEC 6/2019.
Não há motivo razoável para não permitir o acesso aos dados e estudos que levaram à preparação da reforma, se eles estão convencidos dos números, dos cálculos e das propostas que fizeram. Ontem, no meio da crise, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, anunciou que eles serão divulgados na quinta-feira. Enquanto uma parte da oposição queria judicializar a proposta.
Evidentemente cada número precisa ser entendido no seu contexto. Um exemplo disso: o governo sempre coloca que o déficit dos militares é de R$ 20 bilhões, mas isso é apenas o déficit do pagamento de pensões. O rombo de todo o sistema é mais do que o dobro disso. O que subestima o dado negativo é que os militares não aceitam o conceito de que estão aposentados. Dizem que estão na reserva, à disposição do país. Se não se aposentam não há déficit, na interpretação deles. Os formuladores da proposta decidiram aceitar essa versão dos fatos, mas isso evidentemente não elimina o desequilíbrio que existe no sistema previdenciário dos militares.
O erro mais gritante na formulação da proposta foi em relação ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) porque ele tem servido como biombo para que os servidores enfraqueçam a reforma. As várias categorias de funcionários têm ganhos mais altos do que os trabalhadores do setor privado e eles é que serão mais afetados pela reforma. É difícil sustentar o argumento de que eles estão defendendo o “direito” de receber até R$ 39 mil hoje, que é uma possibilidade para quem entrou no serviço público antes de 2003. Mais fácil é dizer que a reforma atinge os miseráveis. Para que dar a eles esse argumento? Nos dados divulgados no dia de apresentação da reforma, o ganho com o BPC mais a mudança do abono salarial será de R$ 41,4 bilhões em quatro anos e R$ 182,2 bilhões em dez anos. O governo diz que a mudança do BPC é neutra e que esse valor é apenas porque está misturado com a redução do abono, que passaria a ser concedido apenas para quem ganha até um salário mínimo. Se é neutra, é preferível que os cálculos sejam mostrados.
Há muitos indícios de que há fraude na aposentadoria rural, mas eles nunca conseguiram explicar bem a razão das propostas que fizeram. Sendo assim, ficou de novo sendo uma ótima desculpa para se atacar a reforma.
Outra medida é a de aumentar as alíquotas da contribuição dos servidores. Só que ela será aplicada de forma progressiva. A alíquota de 22% é apenas nominal. A efetiva é de 16,79%. Esse foi outro ponto que deu argumento à oposição, porque o que fica valendo para efeito do debate é o número 22%.
Durante todas as apresentações feitas pela equipe para defender e explicar a reforma gastou-se tempo demais com o debate em torno da capitalização, que no final das contas não foi ainda apresentado. Chegam a falar em minúcias como a de que há uma possibilidade de que seja o sistema “nocional” usado na Itália, Suécia ou Polônia, em que se a poupança da pessoa não for suficiente para o pagamento de um mínimo mensal, o Tesouro complementa. Mas como não foi formulada a proposta ainda, todo esse tempo de debate é ocioso e diminui o espaço de discussão da reforma realmente apresentada.
O governo propôs a desconstitucionalização dos parâmetros da Previdência porque a maioria das constituições do mundo não trata desse tipo de detalhe das regras e dos parâmetros. O problema é que ao incluir a idade máxima para aposentadoria compulsória, o projeto entra em campo minado. Foi entendido como uma forma de mudar a PEC da Bengala que, se for alterada por lei complementar, poderá dar ao atual presidente o poder de nomear mais ministros para o Supremo. Isso aumentou a resistência à reforma.
Há pontos que não há motivo para terem sido incluídos, como o que acaba com o FGTS para quem já está aposentado e volta ao mercado de trabalho. Reformar a previdência no Brasil é brigar com muitos interesses. Se quem propõe comete erros estratégicos fica mais difícil ainda. Tomara que o governo tenha sucesso em se explicar e em tirar os jabutis do projeto.
Míriam Leitão: PGR não pode espelhar governo
Mandato de Raquel Dodge na PGR confirmou temores sobre ela, e um sucessor de fora da lista tríplice pode aprofundar crise institucional
Havia muitas esperanças em Raquel Dodge, várias se frustraram. Havia alguns temores e eles se confirmaram. Seu mandato terminará dentro de cinco meses, e não deve ser renovado, mas a dúvida é o que virá depois. Se o presidente Jair Bolsonaro ficar dentro da lista tríplice do Ministério Público Federal tem mais chances de acertar. Se buscar um espelho seu no MP encontrará. Sempre haverá quem se disponha a ser um aliado do Executivo, mas não é papel da PGR defender o governo.
Se Bolsonaro escolher alguém do Ministério Público Militar para a PGR estará produzindo um monstrengo institucional, porque quem escolhe o procurador-geral militar é o procurador-geral da República. Se buscar um, fora da lista tríplice, que se encaixe na ideologia que ele professa, vai encontrar, porque existem procuradores que defendem coisas como a escola sem partido e transformação de terras indígenas em centros de mineração. Nesse momento o MP está em plena campanha com procuradores buscando votos. Outros correm por fora e fazem acenos para o presidente. Quem for escolhido, só fará bem seu papel se entender que na democracia os poderes são independentes, e o pressuposto é que haja pesos e contrapesos.
Toda instituição tem a defesa dos interesses corporativos, mas também a defesa dos valores comuns. A lista tríplice é muito mais a segunda vertente, mas é acusada de ser uma distorção sindical. Têm lista tríplice os 26 Ministérios Públicos estaduais, o MPDF, o MPM. E, portanto, o MPF.
O procurador Geraldo Brindeiro ficou com a pecha de ser o engavetador-geral. O PGR precisa ser pessoa de estado e não de governo. Brindeiro é acusado de ter sido de governo. Os escolhidos na lista, a partir de 2003, pelo governo do PT, não foram servis aos interesses do poder daquele momento e isso foi fundamental para o avanço da democracia. Basta conferir o que fizeram os procuradores-gerais. Antonio Fernando denunciou o mensalão, Roberto Gurgel conduziu, instruiu e pediu a condenação dos envolvidos no mensalão. Rodrigo Janot pediu a execução das penas, começou a Lava-Jato e fez a força-tarefa. Raquel Dodge, contudo, fez menos do que poderia contra o governo que a indicou. É criticada por inação e algumas atuações discutíveis.
Primeira mulher a ser PGR, Raquel foi saudada por ter atuado com desassombro no caso Hildebrando Cabral, por ter sido boa chefe das Câmaras Criminais, e por um histórico de defesa de minorias, principalmente indígenas. Temia-se que pudesse enfraquecer a Lava-Jato. Ela tentou. Em um evento recente, Raquel entrou com uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) contra a Força-Tarefa de Curitiba pelo caso da fundação para gerir recursos da Lava-Jato. Foi um erro da Lava-Jato. Mas em vez de tratar disso internamente, ela entrou no Supremo contra procuradores. Só que duas horas antes o assunto já estava resolvido. Os procuradores de Curitiba haviam soltado nota recuando do projeto.
Pouca gente tem dúvida de que foi um erro pensar nessa fundação. Mas essa prática de direcionar dinheiro recuperado de crimes para projetos sociais já ocorreu várias vezes. Um exemplo disso, que recebeu até o prêmio Innovare de 2011, foi o destino do dinheiro pago pela CESP em um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) pelos erros na construção de uma hidrelétrica em Presidente Prudente. O MP direcionou os recursos para projetos de redução do impacto ambiental causado na região e para a construção do Hospital Regional do Câncer.
Raquel errou ao ficar em silêncio na sessão do dia 14 de março, quando o ministro Dias Toffoli anunciou que estava abrindo um inquérito contra as críticas virtuais. Só depois de pressionada é que ela perguntou qual era o fato determinado para a abertura do inquérito. Na última semana, após a censura à revista digital “Crusoé” ela pediu o arquivamento do inquérito. Mas isso ocorreu às 14h, quando o MP inteiro se perguntava por que a PGR ainda não se pronunciara. Errática é o adjetivo mais usado em relação a Raquel. Fechada numa concha, disposta a ser a anti-Janot, ela acabou pecando por omissão.
Em setembro, Bolsonaro vai escolher a próxima pessoa a ocupar a PGR. Quer ignorar a lista tríplice e achar alguém que espelhe o governo. Dependendo da escolha, vai aprofundar a crise da democracia brasileira.
Míriam Leitão: A intervenção é o que parece
Áudio de Onyx esclarece que houve sim intervenção na Petrobras e em duas etapas: na periodicidade dos reajustes e na revogação da alta
O ministro Onyx Lorenzoni, ao mandar a mensagem para caminhoneiros dizendo que o presidente daria uma “trava” na Petrobras, estava queimando as possibilidades de convencer o país de que a estatal é livre para fazer seu preço. O ministro Paulo Guedes e o presidente da Petrobras bem que tentaram persuadir os interlocutores de que nada havia acontecido, mas a divulgação, ontem, do teor do áudio mostra que tudo é o que parece.
Esta semana inteira foi dedicada ao esforço de desfazer a impressão de que acontecera uma intervenção. O ministro da Economia disse e repetiu que foi apenas um telefonema do presidente da República ao dirigente da estatal para levantar uma dúvida e dizer uma frase espirituosa: “quando eu comemoro os 100 dias, você quer jogar diesel no meu chope?”. E o presidente teria ligado apenas porque não entendeu o aumento. Se toda vez que Bolsonaro não entender algo ele provocar tanta confusão como dessa vez o país viverá aos solavancos.
A divulgação ontem da mensagem do chefe da Casa Civil liquidou a fatura. Houve intervenção e em duas etapas. Primeiro ele “deu uma trava” determinando a periodicidade, e depois revogou uma alta já anunciada.
Quando entrevistado na GloboNews, em 3 de agosto, durante a campanha, o então candidato Jair Bolsonaro disse que poderia privatizar a Petrobras. Na última quinta-feira, falou à jornalista Natuza Nery que tem “simpatias” pela ideia. Sua convicção é volátil. Vai de um extremo ao outro. Da intervenção à simpatia pela privatização.
O governo apresentou uma série de medidas para desfazer o nó criado com a crise do preço do diesel e as ameaças de paralisação dos caminhoneiros. Algumas decisões são boas, mas não são novas. Anunciou R$ 2 bilhões para uma série de obras de melhoraria das estradas, como a BR-163, em termos parecidos com o que houve nos PACs. Quando foi perguntado sobre o fato de outros governos terem prometido as mesmas obras, o ministro da Infraestrutura Tarcísio Gomes de Freitas disse que agora é diferente.
— Porque estamos aqui, só por isso. Vai acabar porque vamos acabar. Fizemos 23 leilões em 100 dias, simples assim.
Essa nova versão do “la garantía soy yo” ficou ainda mais enganosa porque o ministro Tarcísio foi diretor do DNIT no governo Dilma. Ou seja, ele está lá há bastante tempo. Outro detalhe: os leilões feitos nesses 100 dias iniciais foram preparados pelo governo Temer.
A intenção de melhorar a qualidade das estradas sempre será boa, para os caminhoneiros e todos os que trafegam nas perigosas e mortais estradas brasileiras. Torçamos para que dê certo. O problema é o anúncio ter vindo no meio de tanta demagogia. O ministro Onyx Lorenzoni disse, na coletiva em que foram apresentadas as medidas para agradar os caminhoneiros, que “este é um governo diferente, um governo do diálogo, dialogamos com o parlamento e com todos os setores. Eles têm sido ouvidos”. Como prova falou que havia sido criado o Fórum de Transporte Rodoviário de Carga. A verdade é que este é o governo que mandou dissolver inúmeros foros de diálogo. Só quer conversa com os seus. “A questão é que os caminhoneiros têm carinho e consideração pelo presidente e o presidente tem carinho e consideração por eles”, disse o chefe da Casa Civil.
Os caminhoneiros são fundamentais num país desta dimensão, que depende tanto do modal rodoviário. E é importante que eles sejam ouvidos. Governos democráticos ouvem setores. Todos. Não apenas aqueles pelos quais têm carinho e consideração.
As outras medidas, como a linha de crédito para a compra de caminhão, também não são novas. Se alguém tivesse dormido nos últimos quatro anos, e acordasse em meio à coletiva da manhã de terça-feira com o ministro Tarcísio ficaria convencido de que era o governo Dilma anunciando mais um daqueles pacotes de dinheiro do BNDES.
“O capitão aqui jamais vai abrir mão de defender e proteger os caminhoneiros”, disse Onyx no aúdio ao grupo. Em vez de negociar uma saída, o ministro promete adesão. Esse é um assunto incandescente. Os caminhoneiros não querem aumento, mas a intervenção do presidente na formação de preços da Petrobras tem o poder de desmontar todo o projeto de atrair grandes investimentos privados para o setor de petróleo.
Míriam Leitão: Planos ousados de Paulo Guedes
Paulo Guedes tem feito promessas ousadas ao país, mas parte do seu projeto ainda está em estudo ou são ideias embrionárias
O ministro Paulo Guedes faz promessas ousadas. Fala em acabar com a contribuição patronal à Previdência e mudar radicalmente os impostos no país. Diz que isso pode criar 10 milhões de empregos. Acha que pode superar o déficit fiscal que seu próprio ministério previu no projeto de Orçamento para 2020, porque conseguirá uma “enxurrada de dinheiro”. Promete também “um choque de energia barata”.
Em uma hora e meia de entrevista, ele desfilou para uma equipe de jornalistas da Globonews seus projetos, suas ideias, algumas ainda embrionárias, e novas reformas. Mas avisou que tudo depende de vencer — e bem — esta etapa da reforma da Previdência. Se a reforma for fraca, resolve-se apenas o problema do atual governo. Se ela for forte, pode-se passar para o que ele realmente deseja, que é a capitalização. Ele admite que a reforma enfrenta problemas na CCJ e dá um sinal de que alguns pontos podem ser mudados, como o dispositivo que trata da idade de aposentadoria compulsória de ministros do Supremo. O artigo manda essa alteração para lei complementar. E isso está sendo visto como um movimento para que o presidente Bolsonaro nomeie mais ministros. Ele nega que esse seja o objetivo, mas admitiu que há “jabutis” no texto.
Uma das declarações já estava ontem causando problemas. Foi a que ele se referiu à Zona Franca de Manaus. Perguntei sobre a reforma tributária que ele tem dito que fará, a começar do IVA federal, que uniria o IPI, Pis/Cofins, uma parte do IOF e talvez até a Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL). Uma dificuldade é como unir impostos com bases de incidência tão diferentes, a CSLL incide sobre lucros, o IPI, sobre produção industrial. Ele disse que tudo isso tem sido estudado. Outro ponto é o futuro da Zona Franca de Manaus. Hoje ela existe com base nas isenções e reduções de impostos que ele pensa em extinguir ou fundir. Na prática, isso acabaria com as vantagens:
— Quer dizer que o Brasil agora não pode ficar mais eficiente porque tem que manter a Zona Franca? Ela vai ficar do jeito que ela é, ninguém nunca vai mexer com ela. Agora, quer dizer que não vou simplificar impostos no Brasil? Eu tenho que deixar o Brasil bem ferrado, porque senão não tem vantagem para Manaus?
A declaração do ministro já provocou forte reação dos políticos do Amazonas. O que ele quer dizer é que o projeto de simplificação de impostos não pode ter como objetivo manter uma vantagem tributária de uma região. Minha pergunta foi apenas para mostrar um ponto da enorme complexidade que cada mudança no Brasil provoca.
Ele quer também acabar com as contribuições patronais para a Previdência e substituí-las por um novo imposto sobre pagamentos. O ministro usou palavras fortes para criticar a carga que recai sobre a empresa em cada emprego que cria. Disse que tributar o trabalho é “o mais perverso de todos os impostos, um absurdo, um contrassenso, uma injustiça social, ineficiência, um negócio completamente detestável”. Na hora que derrubar esse imposto, o país estará com capacidade de criar 10 milhões de empregos em três anos, ele disse. Esse caminho de tirar os impostos sobre o trabalho é desejável, sem dúvida, o difícil é saber como fazer. Recentemente o país tentou apenas reduzir e teve enormes problemas.
Diante da pergunta sobre como pretende zerar o déficit público como prometeu, Paulo Guedes falou que há muitas fontes. Disse que a cessão onerosa já trará R$ 73 bilhões para a União, o BNDES devolverá R$ 126 bilhões, as privatizações serão R$ 80 bilhões. Falou também do retorno de outras operações feitas no governo Dilma com os bancos oficiais, os instrumentos híbridos de crédito.
— Eles pedalaram não só o BNDES, pedalaram a Caixa, Banco do Brasil. Estou botando todo mundo para pagar isso, vem uma enormidade de dinheiro — disse o ministro.
Anunciou também mudanças na burocracia. O ministro falou em criar uma nova fiscalização sobre os fundos de pensão:
— Vamos fazer uma agência forte, que vai rever a governança dos fundos, hoje tem a Susep e a Previc, que visivelmente falhou. Se fosse apenas um fundo (com problema), mas não. Teve Postalis, Petros, todos tiveram destruição de recursos.
Sobre o improviso do governo ao tratar do reajuste do diesel pela Petrobras, tema que é discutido desde a campanha eleitoral, Guedes deixou no ar uma possível privatização da empresa. Disse que Bolsonaro “levantou a sobrancelha” quando tocou no assuno. Planos não faltam ao ministro da Economia. O diabo, como sempre, estará nos detalhes da execução.
Míriam Leitão: A América Latina e o populismo
A América Latina não se cansa de perder sonhos e repetir os mesmos enredos trágicos. Alan García, quando assumiu em 1985, com apenas 35 anos, era parte de um movimento de renovação do continente que passara por ditaduras. O populismo econômico fez com que ele terminasse seu primeiro mandato com o país em hiperinflação. A América Latina daqueles anos 1980 viu a inflação destruir os sonhos de inclusão social como agora vê a corrupção sepultando projetos políticos. O suicídio de Alan García é emblemático de uma época.
Na Argentina, o presidente Mauricio Macri, que chegou à Casa Rosada defendendo o projeto liberal para se contrapor ao intervencionismo dos Kirchner, decidiu repetir ontem um velho erro já cometido na região: o congelamento de preços para lidar com a inflação resistente que herdou e não conseguiu domar. O populismo ocorre em qualquer lado do espectro político, e é um dos erros recorrentes da região.
— De uma certa forma, é um ciclo que se fecha. O García começou com medidas populistas e foi em direção à políticas mais ortodoxas. Já o Macri era um liberal que agora adota uma medida heterodoxa para tentar ganhar fôlego e chegar até as eleições de outubro — afirmou a economista Monica de Bolle, diretora do Programa de Estudos Latino-Americanos da Johns Hopkins University.
Macri mostra que, seja de direita ou de esquerda, há um momento em que o governante latino-americano acha que é possível resolver tudo com uma canetada, um congelamento, ou um telefonema para o presidente da estatal. Macri ontem congelou preços e disse que tudo foi feito depois de negociação com grandes empresas e avisou que é por seis meses. Tenta corrigir com uma medida artificial o que não conseguiu fazer com sua cartilha liberal que ele, aliás, usou muito mal.
Aqui no Brasil houve um sinal de que o intervencionismo está vivo e jamais saiu do coração do presidente. Na última sexta-feira, Jair Bolsonaro interferiu na formação de preços da Petrobras. Esta semana, o ministro Paulo Guedes tentou minimizar os efeitos da atitude do presidente. Guedes disse que Bolsonaro apenas ligou para Roberto Castello Branco, para entender o preço, não para interferir. Ontem, a Petrobras anunciou quase o mesmo reajuste, disse que a decisão será exclusivamente dela, mas a fórmula do cálculo continua sem transparência e não haverá periodicidade definida. No mercado, há desconfiança porque a atitude de Bolsonaro lembrou aos investidores as convicções que ele sempre defendeu ao longo de sua vida política.
O suicídio de Alan García mostra o fim melancólico de uma era, dos anos 1980, onde havia muita esperança de superação dos atrasos da região através de uma política de esquerda. Ele cumpriu parte do enredo de sonhos sepultados da América Latina. Esteve duas vezes no governo. Na segunda, em 2006, deu passos à direita, fez um discurso liberal para se diferenciar do seu oponente Ollanta Humala, mas sua carreira acabou da pior forma. Deu um tiro na cabeça quando bateram à porta e era a polícia para levá-lo preso. A acusação era de corrupção, e o corruptor, a empresa brasileira Odebrecht.
Alan García era um dos quatro ex-presidentes do Peru investigados por suspeitas de receber favores da Odebrecht. Alejandro Toledo, Ollanta Humala e Pedro Pablo Kuczynski também o são. E o ex-presidente Alberto Fujimori, que governou por 10 anos com discurso liberal e poderes ditatoriais, foi condenado a 25 anos de prisão por corrupção e crimes contra a humanidade, em 2000. Recebeu indulto que foi posteriormente revogado. Apesar de ser um país com cinco ex-presidentes condenados ou investigados por corrupção, o Peru tem feito avanços importantes na investigação dos desdobramentos da Lava-Jato.
Há vários males na América Latina. O mais persistente deles é acreditar em salvadores da Pátria e poções mágicas contra os problemas que precisam ser superados com persistência e boas políticas. Não há mágica contra a pobreza ou a corrupção, contra a inflação ou a recessão. Os que chegam dizendo que mudarão tudo isso que está aí — seja à esquerda, seja à direita — acabam ficando muito parecidos uns com os outros e repetindo os mesmos erros.
Uma das lições a se tirar das tragédias da América Latina é que não há substituto para um governo eficiente, que procure resultados e não se apresente como aquele que vai salvar o país. O combate à corrupção ou à pobreza não pode ser instrumento para que se repita os velhos erros do populismo.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)
Míriam Leitão: A crise agora é dentro do Supremo
Toffoli e Moraes levaram a crise para dentro do STF. Outros ministros querem o caso no plenário para condenar o ato de censura
A crise se instalou dentro do Supremo. A reação à censura contra a revista Crusoé aumentou a rejeição de alguns ministros do STF a todo o processo iniciado pelo presidente da corte, Dias Toffoli. O pedido de arquivamento feito pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge —e rejeitado pelo presidente do inquérito —, foi visto com estranheza por alguns integrantes do STF. O ministro Marco Aurélio Mello verbalizou isso. Chamou de “inconcebível” a censura e de “inusitado” o ato da PGR.
O pedido de arquivamento foi rejeitado por Moraes, mas o curioso é que o ato da PGR foi mal visto inclusive por aqueles que discordam da abertura do inquérito e rejeitam frontalmente a decisão de retirar as matérias com referência a Dias Toffoli da revista Crusoé e do site O Antagonista. Um dos ministros explicou assim a sua visão:
—O meu medo é que se o inquérito terminar nenhum de nós vai falar porque o assunto não será levado a plenário. Nós temos que condenar de público a censura para não se repetir. Por isso defendo que isso vá a julgamento. E dada a gravidade da decisão tem havido questionamento. Vários ministros estão querendo que isso seja levado a plenário. Se formos autorizados a falar, o peso de ter decidido censurar uma informação não ficará sobre todos. Se houver votação ficará claro que o Supremo não é um todo coeso.
O país está num nó institucional. A preocupação com o combate a fake news é legítima. É um desafio para as instituições democráticas em qualquer país do mundo. São preocupantes os ataques quando vão além da crítica normal e disseminam injúria contra alguém e ameaças frontais às instituições democráticas. Até porque, como se viu durante a campanha eleitoral, o incentivo ao fechamento do Supremo foi feito publicamente pelo deputado Eduardo Bolsonaro, pessoa com mandato público e filho do presidente.
Como reagir às fake news ou ao assédio virtual. Esse é o ponto central. Ficou claro neste episódio que a maneira como o ministro Dias Toffoli reagiu ampliou o fato.
— Em época de crise, temos que ser um pouco ortodoxos, observando o figurino. Houve uma precipitação que provocou o desgaste da própria instituição do Supremo. É preciso temperança —diz Marco Aurélio Mello.
O primeiro dos erros foi abrir o inquérito, mas o maior deles foi determinar a censura. E por fim, Toffoli confundiu o assunto que o atingia pessoalmente com um atentado à instituição:
— Tudo começou mal. Quando vemos algo em que possa haver crime nós submetemos ao Ministério Público. O Estado acusador é o MP, não é o Supremo. O presidente (Toffoli) resolveu instaurar o inquérito. O primeiro equívoco ocorreu aí. O segundo erro foi quando, ao invés de levar à distribuição, ele designou um relator, o ministro Alexandre de Moraes. Eu não aceitaria nunca porque foi a quebra da organicidade do próprio tribunal. Agora se partiu para uma censura, o que é inconcebível de um guardião maior da Constituição. Temos que observar acima de tudo a lei das leis, que é a Constituição. Ficou tudo mais estranho com essa postura do Ministério Público, porque se houvesse o respaldo maior iria desaguar numa ação penal e o titular seria o MP. O complicador é que nesse caso da liberdade de expressão tudo se fez visando proteger um dos integrantes do Supremo.
O ministro Marco Aurélio definiu como inusitada a decisão da procuradora-geral de arquivar o processo porque —como ficou claro pela reação do ministro Alexandre de Moraes —ela não foi provocada para isso. Outro integrante da Casa lembrou que, quando o ministro Dias Toffoli comunicou que abriria o inquérito, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, estava ao lado e permaneceu em silêncio. Só mais tarde, pressionada pelo MP, ela fez a pergunta-chave: qual é o objeto, o fato determinado. O que mais irrita outro ministro é que tudo tem sido atribuído ao “Supremo” como se tivesse sido uma decisão colegiada. E esse ato radical de mandar retirar o conteúdo de uma publicação foi tomado exatamente numa semana em que não está havendo sessão do STF e a maioria dos ministros nem está em Brasília.
O fato é que a tentativa de censurar provocou o oposto. Ampliou-se a visibilidade do fato que Toffoli tentou eliminar das publicações.
Míriam Leitão: Quando o poder para de pensar
No Brasil, a adesão a um projeto de poder tem impedido que autoridades tenham senso de justiça diante de crimes e dores
A capacidade de pensar das autoridades brasileiras parece estar seriamente comprometida. Diante de fatos dramáticos e dilemas difíceis, o que eles têm dito parece sempre fora do tom. Em alguns casos são inadequações, em outros casos é muito mais grave. No país em que os governantes pensam tão mal, o que será dos governados? Com as mortes, os desastres dos últimos dias, o problema ficou mais visível.
Governantes se solidarizam com as dores dos cidadãos do país que administram. Vão até ao local do evento quando o acontecimento é mais grave. Pode parecer um gesto inútil, mas muitas vezes a ida ao ponto onde a dor é mais aguda permite à autoridade agir de forma mais rápida, e dá à pessoa atingida o conforto de saber que o poder público está ao seu lado.
O silêncio e as hesitações do presidente Jair Bolsonaro são eloquentes. Ele demorou sete horas para falar sobre o massacre de Suzano, nada disse sobre chuvas que mataram no Rio e, principalmente, fez silêncio por dias sobre o covarde assassinato de Evaldo Rosa. Só na tarde da sexta-feira, cinco dias depois, falou, mas usou a palavra errada para definir o crime. “Um incidente”. O silêncio do Exército também foi desconcertante. Bolsonaro disse que era preciso concluir a perícia para que o ministro da Defesa se pronuncie. Evidentemente não é preciso esperar perícia alguma para condenar um crime bárbaro, o fuzilamento de um inocente na frente da família. Até para que não paire sobre a tropa a ideia de que ela tem licença para matar. As evidências falam por si. O que o Exército tem que se perguntar é que sinais estão sendo dados aos seus soldados para que tenham esse comportamento.
Bolsonaro disse que “o Exército não matou ninguém”. Nove integrantes de suas tropas atiraram 80 tiros sobre um cidadão indefeso e usando as armas que são dadas pelos cidadãos para a defesa da sociedade. O Exército tem muitas qualidades, inúmeros trabalhos meritórios, é uma instituição do país da maior relevância. Mas errou demais neste caso. Não pode cercar de silêncio os seus quadros sem compactuar. Não pode usar palavras brandas para um crime brutal. Não pode deixar de se solidarizar com a família da vítima. Não basta prender os soldados e colocá-los sob o guarda-chuva da sua própria Justiça. É preciso garantir que fatos assim jamais ocorrerão.
Outras autoridades não souberam como se comportar diante do fato. O governador Wilson Witzel e o ministro Sérgio Moro usaram eufemismos ou desculpas para definir o que houve. Depois tentaram consertar elevando um pouco o nível dos adjetivos. Mostram que não sabem separar sua adesão a um projeto de poder do senso de justiça que deveriam ter.
Sobre os desastres causados pelas chuvas na cidade onde o presidente Bolsonaro tem seu primeiro reduto eleitoral, ele não pode ser responsabilizado. Mas podia ter dito que ajudaria a cidade, poderia ter se mostrado presente. Ele veio ao Rio na semana, mas para uma reunião com pastores. Já estava marcada e é natural que ele seguisse a agenda. Difícil é entender a presença do presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, num ato que foi sobretudo político, um agradecimento de Bolsonaro aos seus cabos eleitorais.
Na semana das palavras indevidas pronunciadas pelas autoridades, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, foi muito infeliz quando disse na Câmara que as milícias começaram com “boa intenção”. Jamais se pode aceitar a existência de organização paralela para garantir o que é dever do Estado: dar segurança aos cidadãos. Não existe boa intenção quando forças policiais, ou saídas do setor de segurança, se organizam fora do guarda-chuva institucional para vender proteção aos cidadãos. Só o Estado pode ter o controle do território e por isso deve rejeitar que milicianos declarem como sendo suas algumas partes das cidades.
Certas palavras erradas podem ser só deslizes, como essas do ministro Azevedo e Silva, mas o general deveria repensar o que disse. Outras revelam distorções graves na escala de valores. Algumas omissões podem custar caro ao Brasil. Tem sido difícil conviver com tanta dissonância, com tanta incapacidade de as autoridades entenderem a realidade do país e o papel que devem exercer.
Míriam Leitão: A crise do Rio não é tolerável
Eventos insólitos, declarações abusivas e agressões diárias ao cidadão do Rio são insultos que temos tolerado, mas não devíamos
O Rio é o lugar onde mais se sente o peso do não-governo. O morador da cidade tema sensação cotidiana de que não existe prefeito. Na chuva que desabou sobre o Rio matando, ilhando, destruindo o patrimônio das famílias, ameaçando os moradores, nos últimos dias, isso ficou mais concreto. O governador acha que não lhe cabe fazer juízo de valor sobre o assassinato com 80 tiros de uma pessoa inocente, na frente do filho de sete anos, porque “não é juiz da causa”. Deputados foram empossados na cadeia, dois últimos governadores estão presos. Eventos insólitos, declarações abusivas e agressões diárias ao cidadão do Rio são insultos que temos tolerado, mas não devíamos.
É comum se falar sobre o peso do governo. Ele cobra impostos demais, a burocracia é enervante, as decisões são erradas. No Rio se sente isso também, mas o mais forte é o sentimento da ausência, da não existência de uma ordem pública mínima. As autoridades não executam as tarefas para as quais foram eleitas. A dúvida é por que se candidatam?
As cidades bem geridas seguem hoje uma agenda de proteção contra a crise ambiental e climática. Há uma lista de providências nos centros urbanos para enfrentar o aumento da frequência e do rigor dos eventos climáticos extremos. Uma cidade cheia de encostas à beira-mar, onde historicamente a ocupação do solo foi feita de forma desordenada, tem que se preparar em dobro.
As respostas do prefeito Marcelo Crivella nesta crise, como em qualquer outra, são revoltantes. A prefeitura tinha, na conta dele, 20 funcionários na rua, eles não chegaram ao local porque saíram tarde. Sobre ele e seu secretariado, disse que trabalham muito e por isso demoraram a aparecer. Por fim, 24 horas depois de iniciada a tragédia ele admitiu que não foi prudente.
A imprudência da prefeitura tornou a vida do carioca um inferno por 24 horas, destruiu bens de famílias, matou pessoas afogadas, soterradas, eletrocutadas. Ele não investiu em drenagem e contenção de encostas e deixou dinheiro federal intocado porque não foi capaz de apresentar projetos. A incompetência matou.
Todas as autoridades foram omissas. O governador Wilson Witzel criou o gabinete de crise apenas depois das angustiantes 24 horas de chuva. O presidente Jair Bolsonaro, sempre tão ativo em seus comunicados via mídia social, ficou em silêncio. Seus loquazes filhos, também. Bolsonaro marcou vinda ao Rio, mas para uma reunião com pastores.
O que torna o momento atual mais perigoso é que se somam a inépcia com os focos de insanidade no governo federal. Desde que assumiu, o governo tem negado através de ministros como o do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e o de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, o consenso científico sobre as mudanças climáticas como resultado da ação humana.
O chanceler define as preocupações com a mudança climática como “climatismo”, que na cabeça dele faz parte da conspiração do marxismo para transferir poder do Ocidente para a China. Isso seria só mais uma loucura se não tivesse efeito concreto. O Brasil começou a se isolar dos centros onde se discute a sério os cenários de aquecimento global. Uma das alas desse debate é em torno de como preparar as cidades. O presidente Jair Bolsonaro recusou sediar a COP e disse que “por enquanto” o Brasil fica no Acordo do Clima.
Quem não leva a sério o que está ocorrendo com o clima tomará decisões insensatas em todas as áreas: da energia à conservação, da mobilidade urbana à produção agrícola, das florestas às cidades, da economia à saúde. Os climatologistas estão dizendo que precisamos mudar radicalmente a maneira como estamos no mundo.
Witzel exibiu uma forma absurda de entender o seu papel de governador na outra tragédia da semana, aquela em que forças do Exército deram 80 tiros contra o carro onde estava o músico e segurança de creche Evaldo Rosa. Suas últimas palavras foram: “por que o quartel fez isso?” O governador disse que não lhe cabe “fazer juízo e muito menos qualquer crítica a respeito dos fatos”, porque “não sou o juiz da causa”. Ele não entendeu que deixou de ser juiz? É o governador de um estado onde um inocente foi fuzilado na frente da família sem qualquer motivo.
A crise no Rio tem contornos dramáticos. Não é tolerável o que temos tolerado.
Míriam Leitão: Como perder os 100 primeiros dias
Governo se desgastou porque quis e perdeu o melhor período com brigas inúteis, crise com possíveis aliados e cruzadas ideológicas
Nestes 100 dias, o pior inimigo do governo Bolsonaro foi o governo Bolsonaro. O melhor da lua de mel de qualquer administração foi queimado num processo que deixou como saldo queda de popularidade e um grande estoque de brigas inúteis e energia desperdiçada. Na área econômica, trabalha-se com foco em objetivos concretos, que vão além da reforma da Previdência. Mesmo assim, perdeu-se tempo. De todos os erros, o pior foi na Educação que, não por acaso, no 99º dia teve troca de comando. Infelizmente não houve mudança de ideias.
Desde os primeiros dias ficou claro que o ministro Vélez Rodriguez era a escolha errada. O presidente deixou o ministério sangrando por um trimestre, com paralisia e brigas de facções entre os assessores de Vélez. O novo ministro Abraham Weintraub tem, como os que chegam, o benefício da dúvida. Se comandar o MEC com as ideias que defendeu em palestras e vídeos nas redes sociais, é certo que o diversionismo continuará na área mais importante do país. Se ele continuar a cruzada ideológica, perderemos o ano letivo.
Os erros na educação foram tão ruidosos que outros pontos de desacertos tiveram menos atenção que o necessário. No Itamaraty, o ministro Ernesto Araújo tem os sintomas do mesmo tipo de delírio que o ex-ministro Vélez Rodriguez. Enquanto nos expõe ao ridículo diante do mundo, vai desmontando a Casa de Rio Branco.
No Ministério do Meio Ambiente, o ministro Ricardo Salles fez pouco e causou muito dano. Logo no começo da gestão falou que criaria um sistema de monitoramento de desmatamento. O Brasil já tem. É feito pelo Inpe, instituição de excelência científica, do Estado brasileiro, que faz o monitoramento desde 1988. O ministro teve atuação pífia diante do desastre de Brumadinho e antes que se termine a avaliação das perdas humanas e ambientais ele já propõe que a Vale faça uma conversão das multas. Ele demitiu os 27 superintendentes do Ibama. O órgão desconsiderou o parecer dos técnicos e autorizou o licenciamento para exploração de petróleo em áreas de alto risco. Salles não está dando nova orientação à pasta. Está destruindo o arcabouço institucional de proteção da biodiversidade. É o ministro do desmonte ambiental.
O governo Bolsonaro se desgastou porque quis. Atacou os partidos como se eles fossem sinônimos de corrupção, ignorando que com 52 deputados não se consegue maioria num colégio de 512. E sem maioria não se aprovam projetos, nem se governa. E mesmo esses 52 do partido do presidente já se dividiram e tiveram até brigas públicas.
Uma pesquisa com parlamentares, divulgada ontem pela XP, mostra que subiu de 12% para 55% os deputados que consideram ruim ou péssima a relação da Câmara com o Planalto. No começo do ano legislativo, 57% achavam que o relacionamento era bom ou ótimo. Agora, apenas 16% fazem avaliação favorável. O presidente espalhou a impressão, por suas declarações, de que desta forma está evitando a corrupção. Confunde o ato político de dialogar com as práticas ilegais. Melhor faria se explicasse o que aconteceu com o laranjal do ministro do Turismo ou com os depósitos estranhos dos funcionários do gabinete do agora senador Flávio Bolsonaro.
A área econômica, uma das poucas que se salva, errou quando aceitou fazer um projeto de Previdência novo. Poderia ter aproveitado a emenda do governo anterior que já estava tramitando. Com uma emenda aglutinativa poderia melhorar o projeto. Até no governo admite-se que isso foi um erro. Com os canais de diálogo com o Congresso entupidos, o governo tem que cumprir passos que já haviam sido dados na reforma da Previdência. Ontem o projeto ainda batia a cabeça na CCJ. E há outras reformas que precisarão de boa negociação com o Congresso.
O presidente e seus filhos continuaram a artilharia nas redes sociais mirando os adversários ou supostos oponentes. Estão atingindo o próprio governo. Perderam tempo e energia que deveriam dedicar à busca de solução para os problemas do país. Em alguns casos cometeram crime de divulgar notícias falsas. O que de fato o governo ganhou com isso foi a confirmação da crítica de que o presidente Jair Bolsonaro não estava preparado para governar. Ganhou um mandato, já pensa no próximo e ainda não sabe o que fazer para administrar o país.
Míriam Leitão: Papel político do presidente
Troca de farpas revelou que o presidente Jair Bolsonaro não entendeu ainda qual é a natureza da função que exerce
O presidente da República sempre será o gerente da coalizão. Não basta entregar o projeto ao Congresso e agir como se agora a bola estivesse com os parlamentares. Não é papel dele intervir em decisões do Legislativo, mas tem que continuar defendendo o projeto que enviou. Articulação não é sinônimo de corrupção. Quando sugere isso, o presidente Jair Bolsonaro fortalece um pensamento perigoso que enfraquece a democracia.
Mais importante do que saber da última troca de farpas entre o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e o presidente Jair Bolsonaro, ou noticiar que já há panos quentes de lado a lado, é entender a questão de fundo. Do que está se falando afinal de contas?
Tuítes à parte, quando Bolsonaro insinua que querem levá-lo à velha política ou ao destino de outros presidentes, ele está jogando mais fumaça na zona de nevoeiro que hoje se espalha perigosamente na política brasileira. Depois de tantas fases da Operação Lava-Jato, e tudo o que nos foi revelado, a opinião pública está traumatizada. E o caminho mais fácil é condenar a política como suja, velha, perniciosa e, por conseguinte, descartável. Quando o presidente confirma esse sentimento com suas frases ambíguas e suas perguntas com indiretas, ele está aumentando a rejeição aos políticos em geral, e não às práticas que o país quer ver encerradas.
Articular e negociar é da natureza da política. O que é preciso saber é com que moeda se negocia. O que gerou os casos de corrupção foi o uso da corrupção como moeda. A nomeação para cargos públicos de pessoas sem qualificação, e feita apenas para favorecer o político ou grupo que o indicou, o sobrepreço cobrado na obra e no contrato, as artimanhas para desviar dinheiro público para o caixa 2 eleitoral. Aliás, o caixa 2 nunca foi um crime solitário. É parte de outras ilegalidades. Não tem uma gravidade menor, como se diz com espantosa frequência.
Em qualquer país democrático, mas principalmente em um presidencialismo como o nosso, é forçoso negociar com o Congresso. E o presidente como o líder da coalizão tem que conversar insistentemente com sua base e com os outros partidos. A fragmentação aumentou muito nas últimas eleições. O partido do presidente tem a segunda maior bancada e apenas 52 deputados. No próprio PSL há seguidas demonstrações de resistência à reforma da Previdência. Bolsonaro não conseguiu unificar nem mesmo os deputados do próprio partido. Esta semana, em que oito ministros irão ao Congresso, é uma oportunidade. Mas o presidente jamais estará excluído desse esforço de convencimento, do trabalho de unir no mesmo objetivo o grupo que defenderá seu programa de governo no parlamento. É um equívoco a ideia, defendida por Bolsonaro, de que depois que o Executivo envia um projeto o trabalho se encerra, e a bola passa a ser do legislativo. A declaração mostra que ele não entendeu a natureza da função que exerce.
É errada também a ideia de que o líder da articulação do Executivo pode ser o presidente da Câmara dos Deputados. É isso que o deputado Rodrigo Maia quis dizer quando avisou que não se pode “terceirizar” a articulação. Maia tem poderes sobre a pauta, e sobre vários pontos da tramitação. Pode ajudar ou atrapalhar. Mas quem coordena as forças do governo, ou de eventuais aliados, na aprovação de uma reforma necessariamente é o próprio governo.
Há uma dificuldade extra neste momento que não estava no roteiro: a queda precoce da popularidade presidencial. Quando a popularidade cai, o presidente perde força de atração das suas bases e de outros grupos políticos. A exceção a essa regra foi o ex-presidente Temer, que conseguiu aprovar o teto de gastos e a reforma trabalhista, mesmo sendo o mais impopular dos presidentes desde a redemocratização. Mas aquele era um momento específico pós-impeachment. Jair Bolsonaro chegou ao pior nível de qualquer presidente neste período normalmente vivido como “lua de mel”.
O que o fez perder peso junto à opinião pública? O fato de que este é um governo que se afoga em copo d'água. O bate-boca do fim de semana com Maia foi apenas o caso mais recente. São muitas as crises fabricadas pelo próprio governo nestes poucos 84 dias. Na maioria das brigas, não havia uma questão importante em jogo. Com irrelevâncias, este governo vai queimando o precioso capital político do início de mandato.
Míriam Leitão: Viagem e reformas, agendas cruzadas
Paulo Guedes falou a língua do mercado, mas falta muito para entregar o que promete. No encontro dos presidentes, risco é o deslumbramento
O ministro Paulo Guedes falou a língua do mercado e agradou a uma plateia que estava querendo ouvir promessas de corte de gastos, reformas, privatização e abertura do mercado, mas muito do seu discurso precisa conversar com a realidade. O presidente Jair Bolsonaro fez uma crítica aos Estados Unidos, “onde a esquerda está crescendo”. Ele se referia ao Partido Democrata, que pode em 2020 governar o país. O inteligente em diplomacia é não se comprometer com forças políticas passageiras.
Na seu fluente discurso, Paulo Guedes impressionou, porque demonstrou conhecimento e rumo. O problema está nos detalhes. Quando ele diz que o Brasil privatizou aeroportos, pulou a parte de que tudo foi preparado pelo governo anterior. Quando diz que vai abrir a economia, é apenas intenção. Até agora em tarifa externa houve apenas a elevação da sobretaxa ao leite. Paulo Guedes disse que as informações que chegam aos EUA estão distorcidas, “porque vocês falam com os perdedores no Brasil”, e citou como exemplo de perdedores a “mídia estabelecida”. Na versão do ministro da Economia, as críticas que o governo recebe são porque está dizendo que vai privatizar ou porque o presidente está avisando que não pode mais roubar. A realidade é que o combate à corrupção foi feito pelas instituições e que o governo atual está devendo explicações sobre os casos que já surgiram. Outra negociação em curso, sobre a qual Guedes falou, foi a da entrada do Brasil na OCDE. A retirada do veto americano estava sendo negociado para ocorrer nesta viagem.
É importante falar de mudanças em curso, inspirar confiança e atrair investimentos. Esse é o papel do ministro da Economia. Este é um bom momento, e ontem a bolsa bateu em 100 mil pontos durante o pregão. Os investidores locais e estrangeiros estão ainda dando crédito de confiança ao governo, na expectativa de que ele cumpra pelo menos parte da sua agenda de liberalização da economia, redução do rombo fiscal, eliminação de entraves ao crescimento econômico e todas aquelas promessas resumidas no discurso de ontem de Guedes.
Mas se a bolsa sobe, as projeções do PIB estão derretendo. Ontem, o Focus trouxe uma queda da previsão do crescimento este ano de 2,28% para 2,01%. Há um mês era 2,48%. Há uma ano era 3%. O otimismo para 2019 está encolhendo. O IBC-Br teve um tombo de 0,41% em janeiro.
De concreto existe apenas a reforma da Previdência enviada ao Congresso, mas que não andará enquanto não for apresentado o projeto dos militares, que está sendo tratado diretamente entre o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, e o presidente, Jair Bolsonaro. A equipe econômica torce para que fique pronta até quarta-feira, mas pode não ficar, por causa da viagem aos EUA. Bolsonaro terá hoje a reunião direta com Donald Trump, na qual qualquer erro custará caro. Os acordos foram negociados antecipadamente, como o usual, mas um compromisso ou uma palavra além do que for do nosso estrito interesse será prejudicial.
O pior risco é que a viagem acontece no momento em que o presidente e seus principais assessores na área externa estão ainda prisioneiros do deslumbramento com o trumpismo. Essa captura mental pode produzir confusões. Bolsonaro ainda não demonstrou nestes primeiros 70 dias ter adquirido o equilíbrio que o cargo exige.
A reforma da Previdência dos militares está sendo preparada para atender à velha reivindicação das Forças Armadas de correção de diferenças de níveis salariais entre eles e outros setores do funcionalismo. O risco é que a reforma aumente custos, em vez de diminui-los, e enfraqueça o argumento fiscal que tem sido usado.
Brasil e Estados Unidos estão anunciando os acordos previamente negociados nas áreas de comércio, investimentos e cooperação militar e do uso da base de Alcântara. Nada de incomum, mas o tom triunfalista usado lembra o da época do “nunca antes” do lulismo. A verdade é que as relações foram boas nos períodos das duplas Lula-Bush e Lula-Obama, FHC-Clinton. Os dois países têm interesses em comum, mas cabe ao Brasil não comprar a agenda alheia.
Não nos interessa brigar com a China, e tomar partido na guerra do 5G da telefonia celular, porque isso pode custar caro ao agronegócio brasileiro. Não nos interessa ser usados como bucha de canhão na ofensiva do governo americano contra Venezuela, Nicarágua e Cuba. A queda do governo Maduro é desejável por inúmeros motivos, mas o Brasil precisa se mover nesse xadrez da política internacional com sabedoria.
Míriam Leitão: Muito barulho para pouco fato
Como o governo acaba de chegar, é saudável que apresente suas soluções. O risco é atropelar a si mesmo com o excesso de anúncio de ideias
Na economia, o governo é de muito barulho e pouco fato. Ele mal começou, é verdade, mas já produziu um volume de anúncios impressionante. De concreto, tem uma reforma da Previdência que ainda não deu um passo no Congresso e na sexta-feira houve um bem-sucedido leilão que vendeu 12 aeroportos. O detalhe é que os modelos do leilão e da concessão foram preparados pelo governo Temer. O mérito do atual foi realizar o planejado.
Há muita coisa para mudar na economia de um país que não consegue retomar o crescimento, tem um rombo fiscal persistente e 12 milhões de desempregados. Como o governo acaba de chegar, é saudável que apresente suas soluções. O risco é atropelar a si mesmo nessa mistura de anúncios de medidas futuras.
Apesar de ter dito que a chamada PEC do Pacto Federativo esperaria pela aprovação da reforma da Previdência, o ministro Paulo Guedes continua falando dela como se o projeto fosse iminente. A reforma orçamentária é extremamente importante. Há dificuldades concretas na vida dos administradores públicos com o excesso de rigidez no uso dos recursos.
A questão é que mesmo Hércules fez uma tarefa por vez. Essa é de espantosa complexidade e mesmo se for aprovada um dia não eliminará os gastos incontornáveis. Além disso, pode provocar uma dispersão da base de apoio ao governo, base aliás que nem foi ainda consolidada pela incapacidade da articulação política. A boa notícia da sexta-feira foi o fato de que 12 aeroportos passaram para as mãos de operadores privados e com o pagamento de um grande ágio. Mais importante do que os R$ 2,3 bilhões que o governo vai arrecadar, são os investimentos futuros na melhoria da logística aeroviária do país.
O sucesso do leilão foi muito bem recebido pelos empresários. Para o diretor-superintendente do grupo Astra, Manoel Flores, que fabrica revestimentos e materiais de construção, a notícia confirma a avaliação de que o pior da crise econômica ficou para trás. Ele fala olhando para os próprios números. Acaba de participar de uma feira no setor que teve uma alta no volume de negócios fechados e tem projeção na sua empresa de faturamento 10% maior, com um aumento de 5% no número de funcionários.
No mercado financeiro também o leilão foi lido como um sinal positivo, principalmente pela presença do capital estrangeiro. Ilan Arbetman, analista da Ativa Investimentos, disse que o resultado foi muito melhor do que o esperado, e que a presença de operadores internacionais disputando os aeroportos brasileiros prova que, de fato, os investidores estão acreditando no Brasil.
É possível ouvir palavras de ânimo tanto na economia real quanto na área financeira, mas a conversa termina sempre com o mesmo alerta: é preciso aprovar a reforma da Previdência para que se confirme o cenário de melhora nas contas públicas brasileiras. Portanto, é nesse ponto que tem que estar o foco da área econômica.
O grande desafio para a reforma neste momento será o envio nos próximos dias do projeto que muda as pensões e aposentadorias dos militares. Ele virá com mudanças na carreira que elevarão ganhos, manterão vantagens como paridade e integralidade, e pode ter inclusive a garantia de aumento anual dos soldos. Ficará difícil explicar isso num contexto de escassez.
O Ministério da Economia falou em esfaquear o Sistema S, e a ameaça contundente acabou contornada. Falou em fazer uma abertura da economia para tirar os empresários das suas trincheiras da Primeira Guerra e já elevou tarifas de importação. Prometeu dar aos estados a maior fatia do dinheiro do grande leilão das áreas excedentes do pré-sal, mas ainda não conseguiu concluir as negociações da Petrobras com a União, que, a propósito, estavam bem adiantadas no governo anterior.
Na sexta-feira, o ministro Paulo Guedes prometeu digitalizar o governo, reduzindo à metade o número de funcionários públicos através da não realização de concursos para substituir os que se aposentarem.
Há boas ideias nas propostas feitas pelo ministro, mas nada do que ele anuncia é tão fácil quanto ele diz. O mais difícil, contudo, é fazer tudo ao mesmo tempo. A ordem de prioridades precisa ficar mais bem definida para elevar a confiança na economia, permitindo o aumento da atividade, ainda excessivamente fraca.