Míriam Leitão: Metas e planos da Petrobras
Em dois anos, Petrobras quer reduzir 40% de sua dívida, vendendo ativos em várias áreas e mantendo foco em óleo e gás
A Petrobras tem como meta uma redução da dívida corporativa dos atuais US$ 100 bilhões para US$ 60 bilhões em dois anos. É meta considerada agressiva no setor, mas é a que ela está mirando. Isso será conseguido com a venda de partes da companhia, e os valores arrecadados serão usados para pagamento antecipado de débitos. Já o dinheiro que virá da União, no programa de cessão onerosa, será usado para investir no próprio pré-sal.
A estatal tem que manter três bolas no ar: reduzir o endividamento, aumentar o investimento e enxugar custos. Ela tem uma dívida alta e precisa continuar ampliando a produção. Para manter a produção, precisa investir no mínimo US$ 3 bilhões por ano. O custo dos juros da dívida é de US$ 7 bilhões anuais.
A empresa bateu recorde de produção no mês de agosto, chegando a 3,1 milhões de barris/dia e, se o crescimento for mantido, só o Rio de Janeiro pode vir a ser, muito em breve, o terceiro maior produtor das Américas, atrás dos Estados Unidos e do Canadá.
O setor receberá também muito capital privado. Há um grande interesse de companhias estrangeiras no leilão da cessão onerosa. Uma delas é a Equinor. O risco é a norueguesa ser pressionada internamente em seu país a não elevar investimentos aqui em decorrência da crise ambiental. Hoje, o Brasil é seu segundo maior local de inversões da Equinor, depois da própria Noruega.
Por ironia do destino, o grande acontecimento econômico deste primeiro ano do governo Bolsonaro é decorrente de uma operação feita no governo do PT, a cessão onerosa. Era uma jabuticaba, inicialmente. Para capitalizar a empresa, o governo, em 2010, ofereceu à Petrobras o direito de exploração de 5 bilhões de barris na Bacia de Campos, sem licitação. Esse excedente virou o grande ativo, que está para ser leiloado, por causa da competência técnica demonstrada pela Petrobras. Além do que vai receber da União, como ressarcimento por ter encontrado mais petróleo do que o originalmente negociado nas áreas cedidas, receberá também das empresas que arrematarem no leilão. Isso sem falar no que arrecadarão a União, os estados e os municípios.
Nesse equilíbrio entre novos investimentos e pagamento da dívida, a Petrobras está vendendo quatro refinarias: RNEST, a famosa Abreu e Lima; RLAM, na Bahia; Repar, no Paraná; e a Refap, no Rio Grande do Sul. Até agora já houve mais de 20 interessados, e essa privatização está prevista inicialmente para março de 2020. Além disso, está entregando concessão ou vendendo negócios no Uruguai e Paraguai. O leilão do gasoduto Brasil-Bolívia tem um calendário mais incerto, porque depende da negociação de um contrato com o governo da Bolívia. Serão vendidos diretamente, ou através de IPO, as “rotas”, ou seja, os gasodutos submarinos e as 15 termelétricas. Os campos maduros e em terra têm sido vendidos paulatinamente.
Ao fim, a Petrobras será inteiramente focada em produção de óleo e gás. Com refinarias no Rio, São Paulo e Espírito Santo. E talvez volte a crescer na área petroquímica usando gás natural. Para reduzir o endividamento, a empresa está ao mesmo tempo pré-pagando dívida, como fez com seu maior credor, o China Development Bank, a quem pagou US$ 3 bilhões dos US$ 18 bilhões que devia e pretende quitar antecipadamente outros US$ 5 bi. Com o lançamento de bônus, ela vem também alongando a dívida concentrada no curto prazo. O ex-presidente Ivan Monteiro havia começado o processo de alongamento, que está sendo ampliado agora.
Ao mesmo tempo, a estatal tenta reduzir custos que vieram do grande inchaço da companhia em anos anteriores. Um exemplo disso é a sede em Salvador, um prédio tão superdimensionado que estão vazios 17 dos seus 22 andares. Ou a sede no Espírito Santo, prédio ao qual está amarrada por um contrato de aluguel de mais de 20 anos.
Outras petrolíferas estão migrando para serem empresas de energia com cada vez mais ativos em fontes de baixa emissão. A orientação na Petrobras é focar em petróleo. Da perspectiva da economia, o encolhimento da estatal vai abrir espaço para haver no país uma indústria de refino com competição, um setor de produção de águas rasas e campos terrestres com produtores pequenos e médios, e uma indústria de distribuição de gás.
Míriam Leitão: Literatura e liberdade
Tentativa de censura foi fortemente rechaçada pela Bienal do Rio, que está sendo espaço da resistência cultural e literária
A censura tem surgido com frequência nos eventos literários do país. Não por acaso. Os livros sempre pareceram ameaçadores a mentes autoritárias e em tempos de intolerância. Ceder a quem tenta cercear o caminho entre o leitor e o livro é aceitar que um perigoso inimigo da liberdade ganhe corpo. A prefeitura do Rio mandou agentes da “ordem pública” vasculhar a Bienal atrás de material “impróprio” e que não seguisse as “recomendações”. As palavras aspeadas podem ter qualquer sentido, a ser dado por quem se considera com autoridade de decidir o que é próprio, recomendável e ordem pública. A literatura é o terreno da liberdade. As duas palavras nasceram juntas. São irmãs.
A Bienal do Rio decidiu resistir, inclusive com um mandado de segurança preventivo e uma nota que lembra de que lado estão as leis. As editoras também reagiram. Neste momento, há vários motivos para resistência: estagnação, crise na indústria do livro, dificuldades das empresas, pressões diretas ou subliminares que outros eventos literários têm recebido para banir autores e temas. Nos dez dias que terminam hoje à noite, a grande festa do livro vem tratando das questões que são parte da vida contemporânea. Autoritarismo e democracia, escravidão, racismo, imigrantes e refugiados, LGBT, feminismo, indígenas, Amazônia, censura. “A Bienal entende que sua missão principal é a difusão da leitura no Brasil”, disse Marcos da Veiga Pereira, presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros. Decisiva missão nesta hora e lugar.
Alguém pode dizer que está havendo exagero, porque apenas uma revista em quadrinhos foi diretamente ameaçada. Ray Bradbury, autor do consagrado “Fahrenheit 451”, nos avisa, à moda de Bertolt Brecht, que depois de um veto virá outro. “Eles começaram controlando gibis, depois livros de detetives e, claro, filmes, sempre em nome de algo distinto: as paixões políticas, o preconceito religioso, os interesses profissionais; sempre houve uma minoria com medo de algo, e uma maioria com medo das trevas...”
Goethe, velho defensor da luz, disse que “nada é mais ameaçador do que a ignorância ativa”. Ela está em plena atividade no Brasil de hoje. Quem promove eventos literários, culturais, quem produz filmes, quem se dedica à arte sabe que a censura tem se infiltrado por caminhos oficiais e particulares. Existe a proibição explícita, a intimidação virtual, a ameaça física, a suspensão de patrocínios, a tentativa de banir temas.
Lançado nesta Bienal, o primeiro livro da trilogia “Escravidão”, de Laurentino Gomes, não podia ter chegado em melhor hora. “A escravidão é uma chaga aberta na história humana”, escreveu na obra que abala o leitor e o leva a uma reflexão profunda sobre o Brasil. A mesma que o país tem evitado por tanto tempo através dos ardis da negação. Mesmo negado, aqui está o racismo no cotidiano e nas sequelas visíveis da escravidão. Num debate na Globolivros, um leitor perguntou a Laurentino se o negro está livre do açoite hoje em dia. Na mesma semana, o Brasil viu um adolescente sendo açoitado por dois seguranças de um supermercado. Por que ainda carregamos tantas marcas deste longo crime? Por termos fugido do necessário debate, sugerido por Joaquim Nabuco, sobre as políticas para desmontar a obra da escravidão.
Aplaudido de pé no Café Literário, o líder indígena Ailton Krenak foi também ao meu programa na Globonews para falar do seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo”. Com leveza, ele defende ideias profundas, como a da existência de “um colapso afetivo” dos brasileiros na relação com os rios e as florestas. Ailton, dos Krenak, nascido às margens do Watu, o ferido Rio Doce, lembra que a natureza e nós somos uma coisa só. Não há dualidade entre a humanidade e a Terra.
A leitura é a forma mais efetiva de pensar. E pensar sempre parece perigoso às formas autoritárias de poder. “Qualquer livro que merece ser banido é um livro que merece ser lido”, escreveu o grande autor de ficção científica Isaac Asimov. A censura sabe o que faz, ela quer inibir o pensamento. A literatura também sabe o que faz. Ela atua na ampliação do espaço democrático, na difusão das ideias, na representação das emoções, na defesa da liberdade criativa. O dramaturgo e crítico irlandês George Bernard Shaw escreveu que “a censura se completa logicamente quando a ninguém é permitido ler qualquer livro, exceto os livros que ninguém lê”. Ler é inquietante, é libertário.
Míriam Leitão: Comércio externo encolheu no país
Num ano instável na economia global, comércio externo vai afetar o PIB brasileiro, com queda nas exportações e importações
O comércio externo brasileiro terá impacto negativo no PIB este ano, porque estão em queda os preços das commodities, as exportações de produtos industriais e as importações. O agravamento da crise argentina, a volatilidade cambial decorrente das idas e vindas do conflito comercial entre Estados Unidos e China, e o ritmo mais fraco da recuperação são os fatores que explicam esse resultado. Nos EUA, os efeitos negativos da disputa com a China começam a aparecer em indicadores ligados à atividade. A boa notícia é que o nosso déficit com os americanos diminuiu, e eles têm comprado mais produtos do Brasil.
A disputa comercial entre as duas maiores economias do mundo teve momentos de trégua e por isso as bolsas subiram. O real foi a moeda que mais se valorizou em relação ao dólar, mas também havia se desvalorizado mais do que outras nos últimos dias. Só não ultrapassou a barreira de R$ 4,20 porque houve atuação do Banco Central brasileiro. Ontem fechou em R$ 4,07.
O economista espanhol Raimundo Diaz, presidente para as Américas do TMF Group, multinacional que atua em 80 países e é especializada na expansão de empresas nos mercados internacionais, explica que há consenso dentro dos EUA de que a China fere as regras do comércio internacional. Por isso, o partido Democrata tem dificuldade para se opor a Trump nesse assunto, enquanto os chineses têm uma visão de longo prazo e jogam com o tempo para tentar minar a estratégia do presidente americano.
— O grande problema é a forma como Trump atua, que provoca muita volatilidade. Mas dentro dos Estados Unidos há consenso nessa visão contra o comércio chinês. Ele tira proveito disso. A China é outra cultura, negocia de outra forma, e sabe que se a economia americana desacelerar, Trump pode não se reeleger no ano que vem —explicou.
Para a indústria brasileira, essa instabilidade tem alguns riscos. Produtos chineses que não entram nos EUA por causa das barreiras comerciais podem se deslocar para outros países, entre eles o Brasil e outros da América do Sul, como a Argentina. A competição ficará mais acirrada. A desvalorização do peso argentino também tornará o país vizinho mais atraente para investidores internacionais, apesar da crise cambial, diz Diaz.
—Se a China não vende para os EUA, certamente vai vender para outros mercados. A economia chinesa depende das exportações, ela cresce pelo comércio —pontuou.
Nos oito primeiro meses de 2019, as nossas exportações caíram 8,5% e as importações encolheram 13,3%. A corrente de comércio ficou menor em 10%. Quando a conta do PIB do ano for fechada, diz José Augusto de Castro, presidente da AEB (Associação de Comércio Exterior do Brasil), o comércio externo influenciará negativamente no resultado.
— Vamos ter três aspectos negativos. Vão cair as exportações, as importações e o próprio superávit, que deve ficar abaixo de US$ 50 bilhões. Para o PIB, a influência será negativa, porque as exportações vão cair mais do que as importações. É o chamado “superávit negativo” —explicou Augusto de Castro.
A intensidade da crise na Argentina não estava no radar dos especialistas em comércio externo no início do ano . De janeiro a agosto, nossas exportações para lá despencaram 40%. As vendas de automóveis recuaram 53%, e outros manufaturados caíram 25%. O governo diz que o Brasil não depende da Argentina, mas o fato é que o país é o principal comprador dos nossos itens de maior valor agregado.
— A crise da Argentina pegou diretamente os industriais. E mesmo com a desvalorização do real, que favorece os nossos produtos, não estamos conseguindo abrir novos mercados. O acordo com a União Europeia ainda não foi ratificado e para muitos itens a redução de barreiras será gradual —explicou o ex-secretário de Comércio Exterior Welber Barral.
A forte alta do dólar significa aumento de custos para grande parte da indústria brasileira. A importação de insumos e de máquinas para os investimentos fica mais cara. O efeito é direto, explica Barral. Com a fraqueza do consumo, há dificuldade para repasse de preços, e a saída para muitas companhias é suspender as compras e retardar o plano de negócios.
Esses imprevistos têm atingido a confiança do empresário e há pouco tempo para reverter essa conjuntura.
Míriam Leitão: A realidade fiscal bate à porta
Depois da PEC do Teto, aprovada em 2016, despesa obrigatória já subiu R$ 200 bilhões. O Orçamento está ficando inviável
O Brasil é um país que gasta quase R$ 1,5 trilhão com suas despesas primárias e vai investir apenas R$ 19 bilhões. Terá em 2020 o sétimo ano de déficit primário, mas aumentou os salários dos funcionários nos últimos quatro anos e o próximo Orçamento veio com uma despesa de R$ 12 bilhões a mais com a folha, sendo R$ 4 bilhões de reajuste dos militares. O Brasil é o país que, depois de aprovar a PEC do teto de gastos, elevou sua despesa obrigatória em R$ 200 bilhões. Agora está diante do seguinte dilema: abandonar o teto, aumentar a carga tributária ou flexibilizar as despesas obrigatórias?
Os últimos dias foram de susto nos ministérios. Todos eles olham para os dados do Orçamento de 2020 e não sabem como atravessarão o ano que vem com tantos cortes. Mesmo os que não tiveram redução da verba estão com dificuldade de atender à demanda de despesas. A pressão cai, claro, sobre o Ministério da Economia, mas até ele está tentando se organizar diante da própria contenção de despesas. O presidente Bolsonaro diz que também está pressionando em favor do ministério dele. Ele diz ter um: “o da Defesa.”
O Brasil aprovou o teto de gastos em 2016 para, em 10 anos, fazer um ajuste de 4% do PIB e chegar a 2% de superávit em 2026. Dessa forma, conseguiria no futuro estabilizar a dívida, que tem crescido muito. O problema é que em 2016 a despesa primária era de 19,9% do PIB. Em 2020, será de 19,4%. Ou seja, levou quatro anos para derrubar meio ponto nas despesas como proporção do PIB. A maior parte, quase 90% do esforço pretendido, está ainda para ser feita entre 2020 e 2026.
Por que se andou tão pouco já que o teto de gastos foi aprovado em 2016? É que a despesa obrigatória cresceu R$ 200 bilhões neste período. E de onde vem esse crescimento? O governo Temer deu aumento salarial parcelado até 2019, isso significa que todos os anos houve reajuste de funcionalismo, apesar da crise. E de 5,5% ao ano, acima da inflação, portanto. Para o ano que vem, começará a entrar o aumento dado na mudança na carreira dos militares para que eles aceitassem a reforma da Previdência deles. Há ainda as progressões naturais nas carreiras do funcionalismo. Outro gasto que cresceu muito foi o previdenciário. Mas não foi feita a reforma? Sim, foi. Ela vai economizar no ano que vem apenas R$ 6 bilhões, e a despesa continua aumentando. A reforma reduz o ritmo de crescimento, e o ganho no começo é pequeno.
Há outros problemas. Todos os anos o STJ manda para o executivo as sentenças judiciais e os precatórios que têm que ser pagos no ano seguinte. E isso tem aumentado muito. Em 2016 o gasto com as sentenças judiciais foi de R$ 30,2 bilhões, em 2020 serão R$ 52,5 bilhões, ou seja, houve uma criação de despesa de R$ 22 bilhões. Só de 2019 para 2020 o salto foi de R$ 12 bilhões. A economia do ano que vem com a reforma da Previdência é metade do gasto extra criado pelas sentenças judiciais. E esse volume tem subido. Os técnicos dizem não saber onde vai parar.
Nos Estados Unidos há o shutdown quando a dívida atinge o teto. O governo manda os funcionários para casa e suspende o pagamento de salários. É uma medida extrema. Aqui no Brasil, o STF acabou de votar, há duas semanas, que é inconstitucional a redução da carga horária com redução do salário.
O dinheiro é grande mas insuficiente para manter a máquina e todas as obrigações. As regras são rígidas. Do total de R$ 1 trilhão 480 bilhões de despesas primárias, excetuando-se o custo dos juros, 93% são de gastos que não se pode reduzir, porque são obrigatórios. Sobram 7% para despesas discricionárias e as emendas do Congresso. Portanto, algo como R$ 100 bilhões. Nesse total está o investimento. Em geral, os parlamentares aumentam a parcela de investimento. O governo está torcendo para que se chegue a R$ 30 bi. No melhor cenário, então, ele será menos de um terço do que houve em 2014.
Se a solução for apenas livrar-se do teto, então as despesas vão subir, a dívida aumentar, e o cenário é perigoso. Elevar a carga tributária ninguém quer, muito menos se a proposta for essa espécie de CPMF. A mudança no Orçamento para reduzir despesas obrigatórias é a ideia que o Ministério da Economia tem tentado propor, já sabendo que será muito difícil. Não há saída fácil.
Míriam Leitão: Sinais de melhoras em meio a ruídos
Melhor um resultado positivo no trimestre do que nada. Ainda mais quando ele vem puxado pela indústria de transformação, o setor de construção e o investimento. Não é, contudo, o início da aceleração da economia. Os primeiros dados do terceiro trimestre são fracos, a situação internacional é complicada, a Argentina se aprofunda na crise, o governo entregou menos do que prometeu e o presidente continua sendo uma fonte de instabilidade e tensão. Falta foco ao governo Bolsonaro.
Os dados não enganam. A economia brasileira está passando pelo mais longo e penoso processo de estagnação. Nas recessões anteriores, no vigésimo trimestre após o início da crise, o PIB já estava muito acima do ponto pré-crise. Ou seja, a economia havia recuperado as perdas e subido para outro patamar. Agora, tanto tempo depois do início da crise, o país conseguiu recuperar apenas 42% do que perdeu.
No lado da boa notícia, dois economistas com quem eu conversei esta semana disseram que tinham sinais, das conversas com empresários, de que a construção residencial estava melhorando. Tanto José Roberto Mendonça de Barros, da MB Associados, quanto Gustavo Loyola, da Tendências Consultoria, disseram esperar que isso viesse no PIB. O movimento é mais forte em São Paulo, mas o índice registrou 1,9% de alta nesse setor no país. A indústria de transformação subiu 2%, enquanto a extrativa mineral ainda tenta se recuperar da tragédia de Brumadinho. Há nos dados do segundo trimestre números positivos, só não se tem é certeza de que esse movimento vai continuar. Uma das razões é a crise em si que se realimenta, na opinião da economista Laura Carvalho, da USP:
—No momento em que você está com a economia desacelerando, sem motores de demanda, consumidores endividados, firmas com capacidade ociosa, endividadas também, de fora não vem motor para as nossas exportações, se o Estado está de mãos atadas e vai cortando seus investimentos, acaba exacerbando a situação.
A economista Silvia Matos, da FGV, acha que houve uma decepção com o governo neste começo de mandato:
— Apesar de todas as expectativas de que ele poderia fazer grandes reformas, nós não conseguimos avançar muito e se criou muito ruído. Houve uma melhora ao longo dos últimos meses, mas agora em agosto foram criados novos problemas do ponto de vista da avaliação do Brasil. Isso afeta o investimento. Como tomar uma decisão de investimento com cenário tão incerto?
A crise ambiental foi também econômica e pode ter efeitos de médio e longo prazos. A perda reputacional da imensa exposição negativa do país afeta os produtos que têm origem brasileira. O presidente agravou a crise com suas declarações e aquela reunião de governadores em que, em vez de focar no combate às queimadas, preferiu atacar as terras indígenas.
A crise da Argentina que a levou à moratória não declarada mas, como todas as outras, é uma imposição aos credores de uma quebra de contrato, vai aprofundar a recessão do país e diminuir sua capacidade de importar. Quase tudo o que o Brasil exporta para lá é da indústria. Em 2018, da exportação total de US$ 14,9 bi, US$ 13,5 bi eram de manufaturados. Em 2011, no auge do comércio bilateral, o Brasil exportou US$ 22,7 bilhões. Desses, US$ 20,4 bi eram manufaturados. A indústria sentirá o efeito do agravamento da crise.
A curva dos últimos anos mostra que o país desacelerou o ritmo no começo deste ano. Apesar de estar crescendo pouco, 1,4% em meados do ano passado, foi a 0,9% e agora voltou a 1%. Outro dia, na entrevista que divulgou a modesta lista de privatização, um dos ministros falou que o governo tinha “muitos anos pela frente”. Se achar isso, perderá tempo. Precisa focar no projeto que vendeu ao país de que retomaria o crescimento. A Argentina é uma boa lição do que não fazer.
Míriam Leitão: O trilhão duvidoso da Previdência
Reforma da Previdência foi enfraquecida no Senado e contará com aumento de receitas por meio de outra PEC que ainda começará do zero
A proposta do Senado desidratou o projeto à vista e reidratou a prazo. E um prazo duvidoso. Portanto, o número vistoso que parece tão próximo do trilhão sonhado pelo ministro Paulo Guedes pode não se confirmar. Só ocorrerá se forem aprovadas as reonerações de alguns setores hoje isentos. E isso terá que passar pela Câmara que, no caso do agronegócio, já derrubou uma vez. A retirada do BPC da Constituição aumenta o risco de judicialização.
As concessões feitas pelo relator Tasso Jereissati (PSDB-CE) reduziram a economia em 10 anos em quase R$ 100 bilhões, e uma parte por supressões feitas no texto da emenda original, que sendo aprovada vai para sanção. O relator argumenta que, em compensação, haverá um aumento de receita de R$ 155 bilhões. Só que isso está na PEC paralela que passará pela Câmara e, portanto, é mais duvidoso. O setor agropecuário exportador passaria a recolher contribuição previdenciária, que hoje não paga. Já se tentou isso na Câmara, mas foi derrubado. Além disso, o relator retirou a isenção das entidades filantrópicas de educação e saúde, e incluiu a obrigatoriedade de as empresas do Simples recolherem o correspondente ao custo do acidente de trabalho. Essa receita só virá se a PEC paralela for aprovada.
O texto do relatório usa argumentos fortes para defender o fim dessas isenções. “Não temos clareza sobre por que faculdades destinadas à elite da elite, hospitais que pagam salários de seis dígitos, ou bem-sucedidos produtores rurais não devam pagar INSS dos seus funcionários. A lógica é simples, se eles não pagam, alguém está pagando.” O que as entidades de ensino argumentam é que isso se reverte para a população mais pobre, porque eles têm que dar bolsa. Os exportadores do agronegócio dizem que não se pode exportar imposto. E até agora têm convencido os parlamentares quando essa proposta aparece.
O presidente do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), João Eloi Olenike, prevê aumento de carga tributária se o governo elevar a arrecadação com o INSS em R$ 155 bilhões em 10 anos.
— Se tiver aumento real de arrecadação do INSS é óbvio que a carga tributária vai aumentar. É uma medida que vai na contramão da redução da carga prevista pelo governo — afirmou. Além disso, lembra que o Brasil está para discutir uma reforma tributária.
O relatório do Senado reduziu de 20 para 15 anos o tempo mínimo de contribuição de quem ainda não entrou no mercado de trabalho. Na tramitação da Câmara havia sido reduzido para quem já está no mercado de trabalho. O próprio texto mostra a contradição dessa decisão. “A idade mediana da população vai aumentar em 13 anos até 2050. O avanço será um dos maiores do mundo segundo a ONU. A título de comparação, será de somente 4 anos nos Estados Unidos e 8 anos na Argentina”. Ou seja, quem entrar no mercado de trabalho no ano que vem, por exemplo, e vai se aposentar só depois de 2050 — quando o Brasil terá aumentado tanto a expectativa de vida — ainda assim terá que contribuir apenas 15 anos.
O problema de retirar da PEC o critério de renda para a concessão do BPC é que aumenta o risco de continuarem as decisões judiciais com valores maiores. Pelo texto da Câmara, é considerado miserável quem tem apenas um quarto de salário mínimo como renda familiar per capita. O custo da mudança, segundo o Senado, é “inferior a R$ 25 bilhões”.
Outra desidratação foi a mudança na pensão por morte. A proposta era de ela ser 60% do valor do benefício do cônjuge falecido, acrescido de 10% por filho menor de idade. O Senado passou para 20%. Com dois filhos, portanto, chega-se a 100%. Isso parece justo para uma viúva ou um viúvo pobre. Mas o verdadeiramente pobre nem tem esse direito porque o BPC não deixa pensão. O problema são os altos benefícios. Pensão por morte, diz o texto do relatório, nos dois regimes, custam R$ 150 bilhões e crescem 4% acima da inflação. Na Alemanha, o cônjuge recebe 30%, no Canadá, 40%.
O que parecia ser um grande avanço, que foi a inclusão dos estados e municípios, também dependerá da Câmara, porque está na PEC paralela. Além disso, é só autorizativo. Exigirá a aprovação de um projeto de lei em cada assembleia. É mais fácil aprovar do que uma emenda, mas ainda precisará de muito esforço legislativo. O governo nada reclamou das mudanças. Está torcendo para que não haja mais desidratações no relatório durante a discussão no Senado.
Míriam Leitão: Os consumidores chineses avisam
Importador chinês quer produtos com sustentabilidade. Retórica contra o meio ambiente e de crítica às terras indígenas pode ter impacto no agro
O presidente da maior trading chinesa, a Cofco, veio se reunir com empresários do agronegócio brasileiro e deu o seguinte recado: “Nós vamos comprar mais de vocês desde que seus produtos tenham sustentabilidade.” Os representantes do setor no Brasil estavam acostumados a ouvir essa exigência dos europeus, mas não dos chineses. A palavra “sustentabilidade” foi repetida 12 vezes em uma fala de meia hora do comprador chinês.
São sinais assim que o agronegócio brasileiro tem captado. O consumidor está mudando, e entre os seus valores está o de querer saber a origem do que consome. Uma pesquisa, citada pelo executivo da estatal chinesa, mostrou que 50% dos consumidores chineses de 18 a 35 anos querem saber o que comem, de onde vem e como é produzido.
Quando o presidente Jair Bolsonaro faz uma reunião como a de ontem, em que, em vez de tratar do combate ao fogo e ao desmatamento, ameaça os povos indígenas, ele só alimenta a ideia de que o Brasil produzirá a qualquer custo ambiental e humano. Ele deveria saber que as terras indígenas são da União e os povos indígenas têm feito um grande trabalho de proteção desse patrimônio natural do país.
O governo errou sistematicamente, e o Brasil teve uma exposição negativa gigante nos últimos dias em todos os jornais e televisões do mundo. O desastre foi provocado por sucessivos atos e palavras de estímulo ao desmatamento. Os sinais foram dados por Bolsonaro quando atacou o Ibama, disse que iria criar várias serras peladas na Amazônia, ignorou os alertas, brigou com os números, ofendeu o Inpe e demitiu seu diretor.
O desastre foi escalado pelo ministro Ricardo Salles, que exonerou 21 dos 27 superintendentes regionais do Ibama, ameaçou servidores do ICM Bio, forçou a demissão do seu presidente e trocou a cúpula do órgão por policiais militares. Visitou Espigão D’Oeste, onde fora queimado um caminhão-tanque com combustível que faria uma operação do Ibama, para se solidarizar com madeireiros. O ministro desmontou o Fundo Amazônia e ludibriou o debate com dados falsos ou meias verdades.
Como isso foi entendido em Novo Progresso? Ou em todo o arco do desmatamento? O dia do fogo nasce da compreensão de que a coalizão que junta maus produtores, grileiros, madeireiros ilegais, invasores de terras indígenas havia vencido a parada. Sempre houve um equilíbrio precário nessa queda de braço dos dois lados. O Estado com os órgãos do executivo — Ibama, IC Mbio, Inpe, Polícia Federal — o Ministério Público, o Judiciário, os cientistas e as ONGs estiveram trabalhando para derrubar a taxa de invasão, destruição e queimada da Amazônia. Quando o governo pisca nesse saloon, os bandidos se fortalecem. E nesse caso foi mais do que piscada. O governo deu estridentes sinais de que mudou de lado.
Isso afeta diretamente a economia. A China é nosso maior mercado, e até recentemente considerava-se que ela absorveria tudo o que produzíssemos sem perguntar a que preço. Até eles estão mudando. A Europa é outro parceiro essencial. O governo está assustando os consumidores dos nossos produtos. É por isso que tantos empresários do setor levantaram a voz em defesa do meio ambiente.
Em momento como este em que os ânimos estão acirrados, os diplomatas são mais necessários para trazer racionalidade ao debate. O Itamaraty, ao invés disso, fez uma nota cheia de cobranças. Indevidas.
O Brasil não está cumprindo o que prometeu internacionalmente. Deveria estar caminhando para uma taxa de 3,8 mil km2 de desmatamento em 2020. O ano passado foi 7,5 mil e este ano há o risco de passar de 10 mil. O compromisso era derrubar em 80% o desmatamento em relação à média de 1995 a 2005.
Como no governo Lula a taxa caiu fortemente, e continuou assim até os 4,6 mil km2 de 2012, o Brasil estava perto da meta. Mas começou a se distanciar dela nos anos finais do governo Dilma, depois no período Temer. Agora, quando temos que corrigir a rota, o governo Bolsonaro acelera na contramão da História.
Essa exposição negativa na imprensa mundial, esse recado do trader chinês alertam sobre o perigo econômico e ambiental. Os consumidores do mundo querem comprar o alimento brasileiro, mas não ao custo da ameaça aos povos indígenas, não ao custo da destruição da Amazônia, bioma que é amado em todo o planeta.
Míriam Leitão || Extinção do Coaf e outras intervenções
PF, Receita, Coaf, Inpe, Inep, IBGE, ICMBio, Ibama, Fiocruz, BNDES, Ancine e Itamaraty têm algo em comum: sofreram interferência
É melhor entender as coisas como elas são. O governo extinguiu o Coaf. Não foi uma mera transferência de área. E o fez para que o ministro da Economia não tivesse o ônus de demitir Roberto Leonel. O presidente Bolsonaro está intervindo na Receita, e o “segundo” do órgão é na verdade o primeiro, porque o secretário Marcos Cintra cuida da reforma tributária. A demissão do chefe da Polícia Federal do Rio não foi por falta de produtividade. O que está acontecendo não é uma afirmação da autoridade, ou do estilo, do presidente, mas sim ingerência em órgãos técnicos por interesses políticos.
As decisões autoritárias seguem o mesmo padrão que ocorreu na área ambiental. O presidente faz uma crítica sem fundamento, depois demite alguém com o discurso “quem manda aqui sou eu”. Aí nomeia quem aceite o seu mandonismo. Foi assim com o Inpe. Acusou o órgão de mentir sem qualquer base. Quando houve — felizmente houve — a reação do diretor Ricardo Galvão, ele nomeou um militar.
Nos casos da Polícia Federal, Coaf e Receita há agravantes. O presidente agiu para defender a família. E é ele que diz. Acusou a Receita de fazer devassa em declarações de seus familiares. Pediu a cabeça de alguém como uma exibição de poder. Marcos Cintra entregou a do funcionário de carreira João Paulo Ramos Fachada que realmente dirigia o órgão.
O Coaf entrou na alça de mira quando descobriu as movimentações atípicas nas contas do gabinete de Flávio Bolsonaro quando era deputado estadual. O caso estava sob investigação, mas o advogado do agora senador entrou no Supremo questionando o compartilhamento de informações detalhadas do Coaf sem autorização judicial. Esse limite precisa mesmo ser definido pelo STF. Mas o presidente Dias Toffoli tirou o assunto de pauta, adiou, e depois decidiu monocraticamente. O efeito da decisão de Toffoli paralisou várias investigações. Foi isso que o ex-chefe do Coaf Roberto Leonel criticou. Mas foi ele criticar e sua cabeça rolar.
O Coaf tão elogiado no combate à corrupção foi extinto. A UIF é outro órgão. O presidente Bolsonaro disse que confia no presidente do Banco Central, Roberto Campos. Nada há que o desabone, e ele é um técnico competente. Tomara que resista às pressões que outros não têm resistido. A MP abre o novo órgão a pessoas de outras áreas. Que áreas? É bom lembrar que as pessoas terão acesso a informações que estão sob sigilo bancário.
O que há de comum entre Polícia Federal, Receita Federal, Coaf, Inpe, Inep, ICMBio, Ibama, Fiocruz, IBGE, BNDES, Ancine, Itamaraty? Todos eles tiveram algum tipo de interferência nos seus trabalhos regulares, sofreram intervenção ou foram atacados por críticas violentas aos seus índices, estudos e processos.
Quem ganha uma eleição não vira dono do país. A sociedade democrática é vibrante e reage. O presidente é eleito para governar e tem muito poder. Mas ele não pode atacar instituições de Estado. Pode nomear seus ministros, mas não faz sentido que atropele toda a cadeia de comando para ameaçar o delegado do Porto de Itaguaí. Pode fazer tudo para evitar um índice alto de desmatamento, estimulando políticas de proteção, mas não pode mandar fabricar um número favorável. Pode ser franco e dizer o que pensa, mas não pode desrespeitar as leis, estigmatizar pessoas, mentir sobre dados e fatos, fazer falsas acusações. Pode querer o melhor para os filhos, desde que não seja com os recursos e poderes públicos. O inaceitável é o nepotismo e a quebra do princípio da impessoalidade.
No dia 26 de agosto de 2003, escrevi uma coluna com o título “O Inca é alerta”. Criticava o loteamento de cargos no governo Lula. No BNDES, foram afastados 27 superintendentes e todos os que ele definia como tucanos. Na Petrobras, foram loteados até os conselhos de administração das empresas do grupo. O presidente da Funcef conheceu seus diretores na primeira reunião. Para o Instituto Nacional do Câncer (Inca) foi feita uma desastrada indicação política. Em seis meses, deixou de ser um centro de excelência para ser um hospital onde faltava tudo. Escrevi neste espaço uma crítica: “Num banco público, numa estatal, num órgão burocrático o mal pode não ter efeitos visíveis no curto prazo, mas o país inteiro está correndo riscos, e os equívocos cobrarão seu preço um dia”. Pois é.
Míriam Leitão || Origem das crises e das ameaças
O risco não vem da direita nem da esquerda, vem do autoritarismo e do populismo. Eles arruínam a economia e ameaçam a democracia
O problema não é a direita ou a esquerda. Em qualquer democracia há alternância de tendências políticas no poder. O risco vem do populismo e do autoritarismo. Eles produzem crises econômicas, ameaçam instituições, emburrecem o debate. Na Argentina, na Venezuela e no Brasil, o problema sempre foi o autoritarismo, e piora quando ele vem vestido com as cores do populismo.
A Argentina de Cristina Kirchner aprovou uma lei de imprensa para brigar com alguns órgãos, principalmente o “Clarín”. A Venezuela de Chá veze Maduro atacou jornalistas, jornais e emissoras de T Vem geral. Conseguiu fechara maioria. No silêncio que se seguiu, escalo uno populismo autoritário qu elevou o país à devastação. O governo Lula tentou imitar a onda da Venezuela e da Argentina na relação com a imprensa e propôs projetos de controle. Teve que recuar, mas a ideia é renovada nos programas do PT a cada eleição.
O governo Bolsonaro ofende cotidianamente jovens repórteres que fazem perguntas pertinentes, posta mentiras sobre jornalistas, ataca jornais, ameaça usar a força econômica do governo para acabar com órgãos de imprensa e editou a MP do balanço das empresas declarando que o fazia para retaliar o “Valor”. Autoritários e populistas não gostam de jornalistas e jornais.
A Argentina de Cristina Kirchner brigou com o número da inflação, fez uma intervenção no Indec e mudou a fórmula de cálculo. O governo Bolsonaro não gosta das notícias de aumento do desmatamento, fez uma intervenção no Inpe e vai contratar um serviço privado extraindo o dinheiro do cofre público que já está vazio. O desmatamento continuará aumentando, assim como a inflação argentina. O governo Macri anunciou que corrigiria o que Cristina fez no índice. Cumpriu a promessa. Mas foi incompetente para reduzir a inflação e recorreu a uma arma velha dos populistas: o congelamento de preços. Fez o controle da cesta básica e agora, depois da eleição, congelou gasolina e combustíveis em geral. Não vai ajudá-lo na eleição e aprofundará a crise da Argentina.
Cristina Kirchner fez uma intervenção desastrosa nas tarifas de energia. Dilma Rousseff fez a MP 579 que quebrou esse setor no Brasil. O populismo energético nunca deu certo. Se é para reduzir o preço tem que ser com mais competição. É isso que Paulo Guedes está prometendo com seu projeto de aumento da oferta de gás. Tomara que funcione.
O governo Bolsonaro está atacando órgãos públicos. Já atingiu o meio ambiente. Agora está na área econômica. O Coaf pode ser desfeito, sob o pretexto de ser transferido para o Banco Central. O órgão de inteligência financeira era elogiado pelo seu trabalho de combate à corrupção, até que revelou as movimentações estranhas nas contas do gabinete do então deputado Flávio Bolsonaro. Nunca mais sua vida foi a mesma.
Agora o ataque é à Receita Federal, uma das melhores e mais competentes burocracias brasileiras. Ninguém ousou mexer com ela. O presidente Bolsonaro num dia diz que a Receita fez devassa nas contas da sua família, depois diz que quer transformá-la em agência dando a desculpa de que quer protegê-la de intervenções políticas. O problema é que o mesmo Bolsonaro havia falado mal das agências reguladoras. Basta somar. Ele não gosta das agências, se sente perseguido pela Receita e quer transformá-la em agência e, claro, não é para fortalece-la. Se quiser proteger o órgão de intervenção política, basta não intervir.
O populismo desmonta economias porque ignora dados da realidade e prefere medidas de efeito imediato ainda que causem distorções. Os exemplos são inúmeros. A Argentina estagnou em 2012. O peronismo, se corrigir os erros que cometeu, tem a chance de retomar o crescimento. Na Venezuela, o desmonte populista e autoritário foi tão longe que a economia desmoronou. A democracia, também.
O Brasil é uma democracia forte, mas tem um presidente de extrema-direita que admira ditaduras e elogia torturadores. Sua tendência populista não chegou na economia por força desta equipe, mas o presidente não é um liberal e aceita a política de austeridade até que o atinja. Protegeu os policiais na Previdência, e a reforma dos militares embute um grande aumento de salário. O maior risco de Bolsonaro é o autoritarismo. É da sua natureza e ele não vai mudar. O Brasil precisa que as instituições funcionem.
Míriam Leitão: A indivisível união do país
Entre os fundamentos da República está a unidade da Federação. É dever constitucional do presidente defendê-la
O presidente da República tem que zelar pela unidade da Federação. Não pode discriminar um ente federado por razões políticas e ideológicas. Os estados são autônomos e seus governadores são eleitos pelo povo, portanto, têm legitimidade. Tudo isso está na Constituição que o presidente Jair Bolsonaro jurou respeitar. Ele diariamente descumpre algum preceito do ordenamento legal do país. O que ele tem falado e feito em relação ao Nordeste é perigoso.
Bolsonaro acusou os governadores nordestinos de querer a divisão do país, mas é ele que alimenta a desunião quando define os governadores da região com uma expressão preconceituosa e diz que o governador do Maranhão nada receberá dele. A unidade da Federação é uma das mais valiosas conquistas do país, que exigiu muito dos nossos antepassados para se consolidar. O artigo 78 da Constituição diz que o presidente da República tem o compromisso de “sustentar a união e a integridade” do Brasil.
Bolsonaro está escalando um conflito criado por ele com governadores nordestinos, apenas porque são de partidos de oposição. A disputa com os adversários, no campo político, se dá no Congresso Nacional na aprovação ou rejeição de propostas. Não pode se transformar em um conflito contra alguns estados na forma de distribuição discriminatória de recursos. Os impostos que são pagos à União pelos contribuintes não passam a ser propriedade do presidente. Ele não pode dispor deles, distribuí-los ou não, segundo a inclinação ideológica do administrador local.
É crime de responsabilidade, previsto no artigo 85, ameaçar “a existência da União” e atentar contra “o livre exercício dos poderes constitucionais das unidades da Federação”. Bolsonaro precisa refletir antes de falar, refletir duas vezes antes de agir, porque ele pode ameaçar valores caros demais ao país, um deles é o de que somos diferentes e unidos, somos 26 estados e o Distrito Federal integrantes da mesma Federação, com igualdade e autonomia. O povo de cada estado nordestino que escolheu um partido de oposição o fez democraticamente e não pode ser punido por isso. De todos os seus movimentos insensatos, esse talvez seja o mais perigoso.
A obra que o presidente foi inaugurar na Bahia é um caso interessante. É a primeira etapa da usina solar flutuante. Placas fotovoltaicas foram instaladas sobre as águas do reservatório de Sobradinho, uma ideia excelente. Foi projetada no governo da ex-presidente Dilma Rousseff, pelo então ministro das Minas e Energia Eduardo Braga. Foi executada pela Chesf no governo do ex-presidente Michel Temer, a quem o governador baiano fazia ferrenha oposição, até porque o PT considerava Temer um “golpista”. Apesar disso, a obra foi executada e pôde ser inaugurada pelo atual presidente.
Os exemplos de cooperação entre a união, os estados e municípios, apesar de diferenças ideológicas e partidárias, são muitos. Certamente há sempre escolhas políticas em qualquer governo. O que não pode haver é a declaração de um presidente de que não mandará recursos para um estado por causa da tendência política do governador.
Antes da inauguração do aeroporto Glauber Rocha, da Bahia, ele falou: “Você já reparou que o pessoal fala do Nordeste como se fosse outro país, né?” Que pessoal? Se por acaso o presidente acha que existe esse risco, deve trabalhar para desfazê-lo. Esse é seu dever constitucional.
Desde a declaração desastrosa que fez — “daqueles governadores de paraíba, o pior é o do Maranhão, não tem que ter nada para esse cara” — Bolsonaro já foi duas vezes à Bahia. Poderia ter aproveitado para desfazer o desconforto que a sua declaração causou. Poderia, mas não o fez. Transformou as duas viagens em novos confrontos. E na entrevista concedida ao “Estado de S. Paulo” fez a acusação de que “os governadores do Nordeste querem a divisão do país”.
Ele acusou os governadores de “fazerem politicalha” e depois disse que tem preconceito contra “governador ladrão”. Disse que se os governadores quiserem ser atendidos “terão que dizer que estão trabalhando com o presidente Jair Bolsonaro. Caso contrário eu não vou ter conversa com eles e vou divulgar obras junto às prefeituras”. O presidente trata dessa forma leviana assunto tão sério quanto os fundamentos da República.
Míriam Leitão: Entre o grotesco e o perigoso
Os ataques ao meio ambiente são diários, a educação perdeu um semestre, o governo naturalizou a intolerância e encurralou a cultura
Pense no que o presidente Jair Bolsonaro fez e falou de grotesco em 200 dias. Você só conseguirá se lembrar de tudo se recorrer a uma pesquisa. São tantas esquisitices diárias que a gente se esquece porque precisa cuidar da vida. O presidente investiu contra radar, cadeira de criança, taxa cobrada em Noronha.
Defendeu o trabalho infantil, disse que, sim, beneficiará filho seu, postou notícia falsa, deu visibilidade a uma cena escatológica no carnaval e tratou com escárnio valores fundamentais. Qualquer lista que for feita aqui ficará incompleta. O problema é que junto com atos e palavras sem noção há perigo real contra pessoas e instituições.
Governar um país não é comandar um programa humorístico. As palavras bizarro e tosco têm sido usadas com frequência, mas talvez devamos pensar mais na palavra perigo. Enquanto renova o estoque da “última de Bolsonaro”, a Presidência contrata o desastre em inúmeras áreas.
Os ataques ao meio ambiente são diários, a educação perdeu um semestre, o Brasil se aproximou na ONU de países párias nos direitos da mulher, o governo naturalizou a intolerância, suspendeu a fabricação de remédios essenciais, escalou a liberação de agrotóxicos, estimulou o preconceito, encurralou a cultura e esteve nas ruas com quem pediu fechamento do Congresso e do Supremo.
Enquanto tudo isso acontecia, a economia continuou em crise, a queda da atividade se aprofundou, o desemprego permaneceu alto, a confiança caiu. Há relação entre uma coisa e outra. Até agora o que se tem é um governo sem rumo em todas as áreas, inclusive na economia. Alguns integrantes da equipe econômica se dedicam ao extremo a determinadas ações, mas o governo tem apresentado miragens como se fossem projetos em andamento. A lista de não eventos está cheia. De concreto, houve dois avanços em seis meses. A aprovação da reforma da Previdência em primeiro turno na Câmara e o anúncio do acordo Mercosul-União Europeia. Na Previdência, o parlamento avançou a despeito da balbúrdia do governo. No acordo comercial há ainda uma longa estrada até virar realidade. Não se pode contar ainda como conquista consolidada. A falta de fatos concretos na administração Bolsonaro mantém nos agentes econômicos a desconfiança em relação à retomada do crescimento. Os investidores da economia real precisam de sinais mais sólidos.
Há perigos agudos. O ministro Ricardo Salles visitou madeireiros, foi aplaudido por eles e os elogiou no mesmo local onde duas semanas antes madeireiros haviam queimado um caminhão tanque do Ibama. Foi em Espigão D'Oeste, Rondônia. O combustível abasteceria três helicópteros que seriam usados para fiscalizar a retirada ilegal de madeira na Terra Indígena Zoró. Não houve a operação. Criminosos queimaram patrimônio público, retiraram madeira de terra protegida, ameaçaram um órgão do governo, abortaram uma ação de fiscalização. A extração ilegal de madeira é a principal suspeita. O ministro do Meio Ambiente deveria ter sido mais cauteloso ao ir ao local se solidarizar com os madeireiros.
A lista dos perigos é tão extensa quanto a das tosquices. É importante ficar atento. O governo Bolsonaro tem um padrão. Ele vai encurralando e desmoralizando os órgãos públicos. O que há de comum entre defensoria pública, Ibama, ICMbio, Itamaraty, Inpe, IBGE, Inep, Fiocruz, tantos outros, é que o governo tem tentado impedir que eles façam o seu trabalho. De forma sutil ou ostensiva funcionários são neutralizados. Os contribuintes pagam os salários dos servidores para que eles exerçam funções específicas, e o governo tenta paralisar as atividades. É desperdício de um recurso público valioso e caro: o capital humano. Isso enfraquece o Estado nas funções que precisam ser fortalecidas.
Há áreas mais vulneráveis porque viraram os primeiros alvos, mas outros órgãos estão na mira. Para legitimar seus atos, o governo dirá que a reação de funcionários é corporativismo, quando é a saudável defesa da sua missão dentro do Estado. Depois de 200 dias não há mais como se enganar. O governo não é apenas incompetente. Ele está criando perigos reais para o país.
-------
Ficarei duas semanas de férias. Alvaro Gribel com Marcelo Loureiro ocuparão este espaço escrevendo uma coluna de notas, com o brilho já conhecido pelos leitores.
Míriam Leitão: O Brasil de volta ao tempo da fidalguia
Eduardo Bolsonaro não tem as mínimas qualificações para o cargo. Indicação joga o Brasil de volta ao tempo da fidalguia
Quando a Presidência erra, outra instituição corrige. É assim que funciona na democracia. Está com o Senado o poder de evitar a insensatez do presidente Bolsonaro de indicar o filho, sem qualquer experiência na diplomacia, para o posto mais revelante da nossa política externa. É evidentemente um ato de nepotismo e se alguma firula jurídica diz o contrário é preciso repensá-la, porque é de uma clareza meridiana que ele só está sendo escolhido por ser filho. Fidalgo.
O primeiro embaixador brasileiro na República era um monarquista. Joaquim Nabuco foi um representante esplêndido da República brasileira. O que aprendemos com a História é que a escolha deve recair sobre o mais qualificado, independentemente de sua tendência política. E nunca por ser parente do presidente. Essa intenção de Bolsonaro fere o princípio da impessoalidade. O deputado Eduardo Bolsonaro só foi pensado para o cargo por ser filho, nenhum outro motivo. E o presidente paternalmente esperou o aniversário dele para que assim atingisse a idade mínima.
A carreira diplomática tem exigências e peculiaridades próprias. É complexa, delicada e cheia de sutilezas. Dizer que porque fala inglês e espanhol pode ser embaixador equivale a escolher alguém para comandar um dos Exércitos porque sabe atirar e marchar. O diplomata, como o militar, segue uma sequência de etapas na carreira. Começa como terceiro secretário, ao sair do Instituto Rio Branco, até chegar a embaixador. E no início assume representações menores, até chegar à senioridade e às missões de maior responsabilidade. Não se faz essa exigência, como bem sabem os militares, por qualquer apego à escala hierárquica, mas porque no caminho cumpre-se o tempo necessário do aprendizado.
O argumento de que Eduardo Bolsonaro conhece o presidente americano Donald Trump e por isso é a pessoa indicada revela um abissal desconhecimento de como funcionam as relações com os Estados Unidos. Ele acha mesmo que terá linha direta na Casa Branca? Falará no Departamento de Estado com o subsecretário de assuntos latino-americanos. Mas um embaixador é mais do que isso. Ele tem que representar o país diante não apenas do governo, mas de toda a sociedade. Eduardo como líder hoje do Movimento, uma falange de ultradireita, criada por Steve Bannon, terá muita dificuldade de transitar pelos muitos segmentos da diversidade americana. Não conseguirá sentir o país. Ele já cometeu o primeiro dos erros que um diplomata profissional não cometeria: colocou na cabeça o boné de um candidato. No ano que vem haverá eleições. O ambiente está cada vez mais tenso por lá. As declarações de Trump esta semana contra quatro deputadas da esquerda democrata — uma naturalizada, três nascidas nos Estados Unidos — foram consideradas racistas e a Câmara de Representantes aprovou ontem por ampla maioria uma moção de censura ao presidente Trump.
Há, claro, chefes de missão que não são diplomatas de carreira, e alguns fizeram bom trabalho, mas nunca houve no Brasil uma escolha como essa. Ela representa mais um passo no desmonte da brilhante e bem formada burocracia da qual o Brasil sempre se orgulhou. Mas, além disso, ela ofende o nosso atual estágio de desenvolvimento democrático.
O Brasil nasceu como um país em que as portas se abriam se a pessoa era um fidalgo, filho de alguém poderoso. Depois se transformou no país das carteiradas, aquele cujo defeito se resumia na frase “sabe com quem está falando”. A democracia foi corrigindo essas distorções. E assim firmou-se a condenação ao nepotismo e a obrigatoriedade do princípio da impessoalidade para a escolha de pessoas para os cargos públicos.
Essa ideia de Bolsonaro é ruim porque o jovem deputado não tem as mínimas qualificações para exercer o cargo, e é deletéria porque joga o Brasil de volta ao inaceitável tempo da fidalguia. Por isso, se a Presidência não tem noção, que os outros poderes corrijam os erros. O Senado tem a prerrogativa de decidir sobre nomeação de embaixadores e deve avaliar esse assunto pensando no país e não na conveniência política. E o Supremo Tribunal Federal (STF) precisa esclarecer se a Constituição, ao condenar o nepotismo, ressalvou o posto de embaixador entregue ao filho do presidente como uma situação aceitável.