Míriam Leitão: Um comunista na terra do meio

Governador Flávio Dino (PCdoB-MA) confia no diálogo entre opostos políticos e busca caminho para a esquerda que alie ajuste e gasto social

O governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), tenta encontrar um caminho do meio na política extremada do Brasil. Admite que a esquerda perdeu a bandeira do combate à corrupção, diz que várias sentenças da Lava-Jato são justas, mas condena os abusos. “Não podemos ter um vale tudo, ou um ‘os fins justificam os meios’ em nenhum tema nacional”. Na economia, diz querer ajuste fiscal e aumento dos investimentos sociais. Apesar de ter sido pessoalmente criticado pelo presidente Bolsonaro, afirma que o “diálogo federativo continua”.

Nas finanças do estado, o governador — que diz torcer pela aprovação do “Plano Mansueto” — elevou a situação fiscal do Maranhão para a classificação B em 2017. Depois, caiu para C. Perguntei a ele por que perdeu a nota se havia elevado a arrecadação em 7% em 2018:

— O aumento da arrecadação foi fruto da eficiência, mas houve, por causa da crise, uma queda das transferências federais. Eu pago de encargos da dívida R$ 1 bilhão. Ao mesmo tempo, é preciso reverter indicadores sociais historicamente negativos. Todo bom investimento público vira no dia seguinte pressão sobre o custeio. Não tínhamos nenhuma escola integral, hoje temos 49. Abri oito grandes hospitais, fiz mil obras nas escolas, porque o déficit era enorme. Tinha escola de barro, de taipa, de palha.

Ele reclamou que o Tesouro mudou em 2018 as regras para a classificação de crédito. E sendo C não consegue ter o aval do Tesouro nas operações de crédito. Na entrevista que me concedeu na Globonews, disse que está fazendo corte de gastos e ajustes para voltar a ter boa classificação. O governador concedeu um grande aumento de salário aos professores, e hoje o Maranhão tem o maior piso nacional. Isso pode pesar depois na folha de inativos, dado que os professores se aposentam mais cedo:

— Havia um grande contencioso com os professores, fizemos um programa que levou devagar a esse resultado.Tenho muito orgulho de ter o maior piso nacional para professores. Hoje o Fundeb arca com a folha, e o estado faz investimentos como a melhoria na estrutura física das escolas. Nosso Ideb era 2,8 e chegamos a 3,4. Somos agora o terceiro do Nordeste. Montei o fundo Escola Digna em que empresários, que querem se instalar no estado, depositam nesse fundo a sua contrapartida social, uma forma imaginativa de alavancar políticas educacionais.

O governador diz que a estabilidade fiscal não é um fim, é instrumento para se chegar aos objetivos de avanço social. Admite que o governo do PT, que foi apoiado pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), deixou o país em crise fiscal e econômica e debita isso a um “tentativa de enfrentar de modo anticíclico a crise internacional”. Diz que houve concessões exageradas de desonerações. Mas afirma que quem veio depois não resolveu o problema, tanto que o país continua com déficit.

O Maranhão em si é uma terra do meio. É Amazônia e é Nordeste. Os remanescentes da floresta estão em terras indígenas que vêm sendo ameaçadas por madeireiros. Os indígenas têm se organizado no grupo chamado de guardiões da floresta, mas há risco iminente de conflito:

— Estou sempre em contato com os guardiões da floresta mas o estado não pode agir em terra indígena a não ser sob a coordenação dos órgãos federais como a Funai e a Polícia Federal.

Na política, perguntei como a esquerda foi da bandeira da ética às condenações da Lava-Jato:

— Perdemos a batalha do combate à corrupção apesar de termos toda a legitimidade, porque foi o governo de esquerda que fortaleceu os órgãos de controle e aprovou leis como a da delação premiada. A imensa maioria das sentenças da Lava-Jato teria a minha assinatura desde que lastreadas em provas inequívocas. Ao mesmo tempo, houve abuso e instrumentalização política. Ninguém tem o monopólio da virtude, nem dos vícios.

O governador diz que a democracia corre “gravíssimos” riscos pelo radicalismo dos apoiadores do atual governo que defendem “o extermínio do adversário” e “pedem até fechamento do Supremo”. Ele disse que o discurso do presidente Bolsonaro nos leva ao “isolamento, má vontade em relação aos brasileiros e sanções difusas ou institucionalizadas contra produtos brasileiros”. Sobre a relação com o governo Bolsonaro, ele diz: “confio no diálogo” e “mantenho minhas posições políticas”.


Míriam Leitão: Perdido no tempo e tempo perdido

Discurso na ONU seria boa hora para construir pontes e afastar temores, mas Bolsonaro preferiu duelar com inimigos imaginários

O presidente Bolsonaro fez um discurso perdido no tempo e que foi uma perda de tempo. Um discurso na ONU é um momento precioso. Diante de uma plateia global, o que o governante deve se perguntar é como defender os interesses do país e nunca como fazer um acerto de contas individual. Mandar recados para o público interno é natural, mas não faz sentido falar apenas para um gueto ideológico. O agronegócio moderno, que cresceu com os investimentos em ciência e tecnologia, por exemplo, precisava de uma ajuda no esforço para evitar o fechamento dos mercados.

Bolsonaro falou que fechou acordos comerciais. E este é realmente um bom ponto do seu governo, ter concluído as negociações que estavam em andamento. Mas os acordos ainda não são realidade. Precisam ser confirmados pelos parlamentos dos seus países, tanto na União Europeia quanto na EFTA, que reúne Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça. Diante da crise provocada pelos incêndios na Amazônia, assunto que teve tanta exposição negativa, essa seria uma ótima oportunidade de mostrar empenho em lutar contra o desmatamento. Ele poderia dizer que enviou as Forças Armadas para a região, e que elas de fato encontraram grileiros e madeireiros e que, por isso, houve multa, apreensão e prisão. Foi o que o ministro da Defesa disse ontem, por exemplo, no balanço de um mês da operação na Amazônia.

Isso ajudaria mais do que chamar de “mentirosos” a imprensa, as ONGs, e atacar um velho líder indígena como Raoni. A ideia de que o governo está estimulando o desmatamento e que apoia invasões de terras indígenas poderá levar à não aprovação do acordo pelos parlamentos europeus. Volta-se à estaca zero. Mas mais do que isso, compradores de quaisquer produtos brasileiros, investidores dos grandes fundos institucionais, bancos internacionais, todos podem ter negócios com o Brasil afetados por pressão dos consumidores, dos investidores e da opinião pública. Como grande exportador de produtos agrícolas, não é do interesse do Brasil enfrentar barreiras a esse comércio. Portanto, era o momento de fazer uma inflexão pragmática no discurso.

Todo o longo tempo que Bolsonaro dedicou a travar a batalha contra o “socialismo” foi perdido. Primeiro, porque essa é uma briga de outra era, da Guerra Fria. Segundo, porque essa escolha de adversários é totalmente sem sentido. Cuba é apenas uma pequena ilha, e nós, um país continental. O acordo Mais Médicos já foi desfeito. A Venezuela é um país em escombros. E qual a vantagem de levar à ONU o que houve na América Latina nos anos 1960? E terceiro, e mais importante, hoje partidos socialistas podem entrar e sair do poder, como aconteceu no Chile, por exemplo. Em qualquer país democrático há alternância no poder. Bolsonaro se referiu a um fato inexistente: “um Brasil que ressurge depois de estar à beira do socialismo.” Ele se esqueceu que sucedeu ao presidente Michel Temer?

O Brasil é realmente um país rico em biodiversidade, como ele disse. Mas o temor é que seu governo esteja ameaçando essa biodiversidade. As medidas tomadas no passado por governos que ele tanto critica — ele costuma misturar as administrações Fernando Henrique com Lula e Dilma — construíram os marcos regulatórios que tiveram sucesso na redução do desmatamento e criaram as áreas de proteção.

Era hora de construir pontes, mesmo reafirmando seus princípios. A diplomacia tem a oferecer aos governantes uma lista enorme de fórmulas para se dizer a verdade sem criar atritos toscos. Afirmar que o colonialismo não pode voltar à ONU, para criticar a França, é uma demonstração de falta de autoestima, como se o Brasil estivesse sob essa ameaça ainda hoje sendo uma nação da dimensão e da força que é.

Toda a parte indígena foi equivocada. É até difícil listar os erros. Falar que tem ouro, diamante, terras raras, urânio e, claro, nióbio em terras indígenas parece convite a garimpeiros. Falar que os territórios são enormes e os índios, poucos, reforça os temores de invasão das terras. Falar que “Raoni não tem mais o monopólio” diante da enorme diversidade de povos e lideranças indígenas que o Brasil sempre teve é desconcertante.

Bolsonaro estava ali como presidente dos brasileiros para representar um país, e não como um candidato às vésperas das eleições duelando com supostos adversários. O mundo não dá ouvidos a brigas paroquiais.


Míriam Leitão: Bolsonaro e Witzel erram na segurança

Sinal da arma com os dedos e “mirar na cabecinha” não são política de segurança, são apologia da violência feita por autoridades

Há quem diga que o presidente Jair Bolsonaro e o governador Wilson Witzel foram eleitos com uma agenda forte em segurança. Não é verdade. Bolsonaro faz apenas a apologia das armas. Isso não é um programa de segurança. Witzel disse que seus policiais iriam “mirar na cabecinha” e “abater criminosos”. Isso é defesa de assassinatos. Ele foi juiz um dia, deve ter lido que no Brasil não tem pena de morte. O que ele faz é executar a pena capital de forma sumária, sem julgamento. Como era previsível, as vítimas inocentes aumentam.

A morte de Ágatha Felix, 8 anos, é uma tragédia tão imensa e fica maior diante do fato de que outras crianças morreram este ano. E a prática continua sendo de atirar para averiguações. Segundo relato dos moradores, um policial da “polícia pacificadora” viu uma moto suspeita e atirou. Acertou a menina em uma van.

Segundo a versão da Polícia houve um tiroteio e não se sabe de onde partiu o tiro que encontrou a menina linda, inteligente, cheia de planos e que estava à caminho de Agatha’s House, como desenhou em sua aula de inglês. É inevitável pensar no futuro da menina. O futuro morto da menina.

A tragédia do Rio é que a última vez em que houve o esboço de política de segurança o governador era corrupto. A corrupção matou o sonho de uma polícia de nome Pacificadora. A ideia era ter jovens policiais recrutados e treinados numa nova mentalidade, para ver no morador um aliado e não um inimigo, para ouvir a comunidade e trabalhar pela paz. Ao mesmo tempo, o Estado prometia estar presente em cada parte da cidade e não aceitar a anomalia da possessão de facções criminosas sobre parte do território. Houve um florescer de negócios nas comunidades, os moradores da cidade adquiriram o direito de ir e vir, entidades especializadas avaliaram os avanços, obras realizaram antigos projetos de urbanização.

Parecia que a barbárie de uma polícia que entra atirando em áreas superpovoadas, colhendo vítimas inocentes, estava acabando. A morte de Amarildo na Rocinha nos acordou do sonho, e, por fim, a corrupção destruiu essa política.

O Rio e o Brasil precisam de uma política de segurança que mereça o nome. Essas declarações grotescas do governador do Rio e os dedos em forma de arma na mão do presidente só revelam a falta de qualquer ideia inteligente na cabeça dos dois sobre o assunto. Bolsonaro editou sete decretos ampliando a posse e o porte de armas, seu filho Eduardo anda por aí com uma pistola na cintura. Nas redes de ódio — que têm escritório funcionando no terceiro andar do Palácio do Planalto —as críticas ao filho 03 foram retrucadas com o argumento, recheado de palavrões, de que ele é um policial e por isso pode andar armado. Eduardo foi escrivão de polícia. Seus passeios com pistola são apenas mais um sinal do exibicionismo, mais uma confissão de fraqueza desse governo que continua perdido no tiroteio.

Bolsonaro e Witzel brigam entre si de olho em 2022, mas parecem siameses na impotência, na incapacidade de ter uma política estruturada para a segurança, na insensatez com que estimulam a violência, na imitação patética de soldadinhos de chumbo. Deixam-se fotografar portando armas, adoram bater continência, não perdem um desfile militar e fantasiam-se de policiais. São governantes, deveriam ter uma estratégia para enfrentar a epidemia de mortes de jovens no país, quase todos pretos, quase todos pobres.

Morrem também os policiais, mais de suicídio do que de homicídio. Nesse mar de sangue todos estão se afogando. O governo federal responde com a promessa de não punir agentes do Estado que matem. É o excludente de ilicitude. No comando dessa suposta política de segurança está o ex-juiz Sergio Moro de quem supunha-se o conhecimento das leis, do devido processo legal, das inconstitucionalidades. Moro, fritado pelo presidente até virar uma sombra de si mesmo, vai colher outra derrota no seu pacote anticrime. O projeto foi pensado para combater a corrupção, mas teve que abrigar as ideias do presidente como a de dar aos policiais licença para matar.

Depois desse fim de semana de morte e do enterro de uma menina com tanto futuro pela frente, a cidade amanheceu pesada. O Rio carrega cicatrizes demais.


Míriam Leitão: Aras: o fazedor de promessas

Augusto Aras poderá fazer grandes favores ao governo no campo penal, perante o STF. Mas não terá o poder de mandar nos procuradores

Uma ideia está irritando os procuradores que trabalham na área ambiental e de defesa dos indígenas. É a de que a escolha do novo procurador-geral da República, comprometido com pautas governistas, e a nomeação de colegas mais velhos para os postos de administração vão “destravar a economia”. Quem conta é um procurador com experiência. “A PGR não pode impedir um procurador do Amazonas de propor uma ação ambiental contra uma usina que ameace uma comunidade, ou uma estrada em Goiás que destrua o meio ambiente.”

Mesmo assim há riscos grandes, e um enorme poder na mão do novo PGR. O procurador Augusto Aras continuou na última semana sua peregrinação pelos gabinetes dos senadores, com a mesma estratégia de entregar a cada ouvido o que ele gostaria de ouvir. Vários políticos apreciaram saber, por exemplo, que Aras quer rever todos os atos de Raquel Dodge. O presidente Jair Bolsonaro fez a escolha diante da convicção de que terá nele um aliado na luta contra os defensores do meio ambiente.

O governo Bolsonaro tem tentado enfraquecer os órgãos de fiscalização e controle do meio ambiente e dos indígenas. Com algum sucesso. A Funai, o Ibama e o ICMBio têm vivido em constante estado de tensão. Não têm recursos para as suas ações de fiscalização nem apoio.

Uma equipe da Funai fez em agosto uma ação de fiscalização na Terra Indígena Arariboia que deveria durar 30 dias. Os servidores foram levados pelos índios nas áreas onde havia invasão. Tiveram enorme dificuldade de locomoção, pela fragilidade da viatura. Foram a duas regiões onde encontraram e apreenderam um caminhão, um trator e 200 toras de madeira. Os cinco madeireiros foram embora. A Funai encerrou a operação em apenas quatro dias. Os madeireiros voltaram, pegaram as 200 toras e ameaçaram os indígenas que haviam levado os funcionários da Funai.

Há funcionários que nada falam no celular com medo de seu aparelho estar grampeado. O órgão foi especialmente visado. No começo do governo, ele foi dividido e tirado do Ministério da Justiça. O Congresso e o Supremo é que corrigiram essa tentativa de desmonte do órgão. A crise fiscal faz o resto. Como falta dinheiro no caixa, corta-se verba das áreas que o governo não gostaria que existissem.

O ataque aos órgãos do Ministério do Meio Ambiente é intenso, diário. O resultado tem sido esse aumento do desmatamento. Nas terras indígenas e nas áreas de conservação sente-se diariamente o resultado do estímulo do governo Bolsonaro ao desmatamento. Houve até a mudança de padrão de comportamento dos madeireiros. Normalmente, na época da chuva, eles entravam e marcavam as árvores. Na seca, eles voltavam com tratores e caminhões, derrubavam as árvores, levavam, e de vez em quando, incendiavam o resto. Desta vez, em plena época das chuvas, de janeiro a abril, já foi intensa a entrada com tratores e caminhões em áreas protegidas para derrubar as árvores. Atividade que ficou maior quando o período de seca começou.

Depois de neutralizar em parte os órgãos do executivo, restava o ataque ao Ministério Público. Por isso, a nomeação de Augusto Aras veio com essa recomendação antiambiental. E usando um argumento econômico que parece fazer sentido: a necessidade de destravar a economia. Há muito que o governo pode fazer para destravar a economia, como ter uma gestão eficiente e bons projetos. No MP, não é a hierarquia que decide. Aras não poderá proibir um procurador de entrar com uma ação contra uma obra que esteja destruindo o meio ambiente ou ameaçando uma terra indígena.

— Normalmente, nesses casos, as Câmaras de Coordenação exercem o papel de resolver o problema com base no diálogo e no convencimento, por meio de colegas subprocuradores ou regionais que são tidos como referências para a classe nessa matéria. A liderança e a coordenação não são feitas em função da hierarquia, mas do consenso — disse um veterano procurador.

Aras poderá fazer grandes favores ao governo no campo penal, perante o STF. Mas não manda nos procuradores. Ele assinou carta dos juristas evangélicos contra o casamento de pessoas do mesmo sexo, a favor da Escola sem Partido e contra o aborto. Aos petistas ele criticou os excessos da Operação Lava-Jato. Aos integrantes da operação disse que é preciso levá-la para todo o Brasil. A Bolsonaro, prometeu impedir ações que não poderá evitar.


Míriam Leitão: Notícias da terra e da luta amazônica

Na ausência do setor público, indígenas se organizam para defender a floresta amazônica de grileiros e madeireiros

No dia em que o mundo parou para pedir por ações contra o clima, inúmeras batalhas continuaram sendo travadas em cada canto das florestas brasileiras. Falarei de uma ocorrida esta semana. Um grupo de oito homens se move no meio da noite de segunda para terça-feira para sair com três caminhões carregados de madeira tirada na Terra Arariboia, no Maranhão. Uma moto os acompanha. Estão bem perto da aldeia Três Passagens. Do meio do mato surgem indígenas guajajara que integram o grupo Guardiões da Floresta. Os madeireiros atiram em direção aos indígenas, e eles revidam com arco e flecha e espingardas. Ninguém se fere, felizmente, e os madeireiros fogem.

Essas escaramuças acontecem em várias partes da Amazônia. O que há de comum em todos os eventos é a ausência do setor público. Ibama, Funai, Polícia Militar, Polícia Federal, todos os órgãos que poderiam se envolver para dar uma resposta a essa ação contínua, e cada vez mais agressiva, de tirar madeira da floresta ilegalmente estão ausentes. Em algumas tribos, os índios se organizaram em grupos de monitoramento da floresta e frequentemente se deparam com madeireiros. Naquela noite, lá na Terra Indígena (TI) Arariboia, os indígenas decidiram queimar os caminhões e a moto depois que os madeireiros foram embora. Eles sabem que adianta pouco avisar à polícia. No dia seguinte, os madeireiros voltaram e filmaram o que restou dos caminhões para circular nos grupos de WhatsApp da cidade de Amarante. Assim vai se alimentando o conflito.

Ontem mesmo, no dia em que milhões paravam no mundo pelo clima e pelo meio ambiente, um cacique Ka’apor, que está na TI Alto Turiaçu, também no Maranhão, pede socorro por WhatsApp para Antonio Wilson Guajajara, que é um dos guardiões da floresta e que está na Terra Caru. Avisa que perto do município de Zé Doca — o nome da cidade foi dado em homenagem a um grileiro — dentro da terra indígena foi localizado um acampamento de madeireiro.

As terras Caru, Awá e Alto Turiaçu são contíguas e ao lado da Reserva Biológica Gurupi, no Maranhão. A TI Arariboia fica mais ao sul, é cercada de inúmeros povoados e nela vivem 14 mil guajajara e alguns awá guajá isolados. Os awá guajá que vivem na Terra Caru, onde fiz reportagem em 2012, são definidos como de recente contato, mas existem integrantes dessa etnia que fogem de qualquer contato. São os isolados.

Nessas terras indígenas do Maranhão, os índios organizaram o grupo Guardiões da Floresta desde 2012.

— A gente trabalha nessas quatro terras e também na do Rio Pindaré fazendo vigilância e passando informações para as autoridades. Além disso, as mulheres das aldeias fazem trabalho educativo nos povoados, em palestras e conversas de conscientização. São as guerreiras da floresta. Nunca houve um ato de violência, nenhuma morte felizmente — disse Antonio Wilson Guajajara.

Ontem no Alto Turiaçu, os indíos ka’apor fazendo a limpeza do limite da terra encontraram um grupo grande de invasores, e foi por isso que um líder pediu ajuda a Antonio Wilson que estava na terra Caru.

— Eu sei que é um momento delicado, mas vou assim mesmo. Não podemos recuar. Quero dialogar. Se a gente tivesse mais apoio seria melhor — disse o líder Guajajara.

A Terra Indígena Arariboia enfrentou em 2015/2016 um enorme incêndio que destruiu metade dos seus 412 mil hectares. Na época, foi possível ver os isolados se deslocando. Eles estão ficando cada vez mais expostos. E vulneráveis.

Carlos Travassos que foi chefe do setor de índios isolados da Funai conta que a TI Arariboia está sendo assediada por dois tipos de demanda. A de madeira de lei, que ataca o centro da terra onde estão os isolados, e a de madeira para fazer estacas para cercas das inúmeras fazendas da região.

— O primeiro é um mercado que está atrás de ipê, maçaranduba, sapucaia, copaiba, cumaru, tatajuba e os últimos cedros. O outro mercado é gigantesco porque tem um mundo de fazenda perto da TI. É pulverizado, porque um fazendeiro entra na terra, tira as madeiras e redistribui para outros. Os guardiões estão ativos, mas eles estão sozinhos. E as invasões estão atingindo em cheio os últimos locais das grandes árvores onde estão os awá guajá isolados — explica Carlos Travassos.

Assim, os índios por sua conta vão tentando defender a si mesmos e a floresta.


Míriam Leitão: Os sinais de risco que o BC não viu

Um dia depois da queda dos juros e da indicação de novos cortes pelo BC, bancos preveem juros reais perto de zero e o dólar sobe

Os sinais na economia brasileira e mundial são mistos, mas o Banco Central tomou a decisão de baixar os juros e indicar novas quedas. O BC olhou pouco para os riscos e muito para a necessidade de dar estímulos monetários à economia. Ontem o Brasil foi o país onde o dólar mais subiu. Alguns bancos previram taxas ainda menores ao fim do ciclo de baixa. Há até quem tenha passado a apostar em Selic a 4,25%. Se isso acontecer, os juros reais estarão próximos de zero e o país mais vulnerável a qualquer choque inflacionário.

A economista-chefe da XP Investimentos, Zeina Latif, acha que o Banco Central viu uma janela de oportunidade para cortar os juros e obter uma reação mais forte na economia e por isso estima que a Selic cairá a 4,5%. Mas ela admite que há alguns riscos nessa estratégia:

— O ambiente no mundo é de fato desinflacionário, mas o dólar está subindo, por isso tenho minhas dúvidas se é sustentável. Por causa do dólar.

Zeina diz que apesar da melhora recente na área fiscal, com a aprovação da reforma da Previdência e a atuação dos bancos públicos e do Tesouro, novos sinais negativos começaram a surgir:

— Eu pessoalmente acho que aumentou o risco fiscal. Pegue os últimos desdobramentos: houve o debate do teto de gastos, a história do Fundeb. Ano que vem tem eleições, o que deve dificultar as reformas. Digamos que o governo não consiga manter a regra de teto, o câmbio será outro, os juros também terão que ser. Pense como agência de rating: o país acaba de começar a fazer a dieta e pede para comer um chocolate — diz Zeina.

No debate do teto, o presidente Bolsonaro num dia pendeu para os ministros que querem eliminá-lo, no outro voltar a concordar com o Ministério da Economia. Ficou a dúvida no ar. Sobre o Fundeb, foi aprovado um aumento da participação do governo no financiamento da educação básica. O governo ignorou esse assunto, por mais que os especialistas em educação alertassem que era preciso decidir logo porque o Fundo acaba em 2020. Agora uma proposta na Câmara refez o Fundo aumentando o gasto federal. Aí, a equipe econômica se encheu de preocupação. O fato é que a área da educação tem sido muito mal gerida desde o começo do governo Bolsonaro.

O economista Luiz Roberto Cunha, professor da PUC-RJ, analisa o cenário de novas quedas de juros com alguma dúvida:

— Se você tem 4,5% de Selic e o IPCA está em 3,5%, os juros reais ficam muito baixos. Qualquer choque inflacionário levará os juros reais para zero. Não é um cenário que me deixe muito confortável.

O PIB mundial está desacelerando. A OCDE divulgou ontem a nova previsão de crescimento mundial para 2,9%. No ano passado o mundo cresceu 3,6%. No texto, a OCDE diz que as economias estão “entrincheiradas”. O risco portanto é até de recessão global se os países continuarem se fechando na esteira da guerra comercial Estados Unidos e China. Por isso, os bancos centrais aprovam estímulos monetários para evitar a desaceleração. O Fed reduziu juros. O presidente Donald Trump não gostou. Queria uma queda maior.

O Brasil tem uma história diferente. Quando o mundo crescia, o país entrou em recessão e ainda não conseguiu retomar o crescimento. O problema é que os juros aqui já caíram de 14,25% para 6,5% no governo Temer, e agora, na segunda queda no governo Bolsonaro, foram para 5,5%. E o Banco Central avisou que fará novas reduções. A inflação está em 3,43%, o que em qualquer outro país do mundo seria alta depois de cinco anos de não crescimento.

Há outra dúvida levantada por Zeina Latif. Qual é a capacidade ociosa do Brasil? Deveria ser alta por causa da queda do nível de atividade, mas como a crise é muito prolongada, parte do maquinário parado simplesmente pode ter ficado obsoleto. A capacidade ociosa favorece o crescimento sem gerar inflação.

No mundo esta semana houve uma mudança estrutural. O país que era o guardião do mercado de petróleo virou o calcanhar de Aquiles. O fato de a Arábia Saudita ter se mostrado tão vulnerável é até mais relevante numa análise de risco do que a queda temporária de produção.

Havia razões para a queda dos juros, inflação abaixo da meta e economia estagnada, mas pelo comunicado do Banco Central fica claro que há riscos que ele não está considerando. Foi pelo tom brando — dovish, como se diz no mercado— que os bancos revisaram para baixo o piso da Selic. Se reduzir a Selic para subir logo em seguida, como aconteceu em 2012, perderá reputação.


Míriam Leitão: Guedes: a entrega e a autonomia

Na visão de Paulo Guedes, sua gestão tem vitórias em pouco tempo como a Previdência, os acordos da cessão onerosa e da UE com o Mercosul

O ministro Paulo Guedes acha que em pouco tempo a sua gestão conseguiu vários avanços que não têm sido bem avaliados. Vitórias como a reforma da Previdência, a finalização do acordo Mercosul-União Europeia, a conclusão da difícil negociação que torna possível o leilão da cessão onerosa, a lei da liberdade econômica são vitórias que, na visão do ministro, derrubam na prática a tese de que a “entrega” estaria abaixo do previsto e do desejável. Mas há agora uma dúvida sobre o poder de decisão de Guedes na condução da política econômica.

O ministro é sempre cobrado pelo seu desempenho — aqui mesmo nesta coluna — e uma das razões foi ter prometido vender estatais e imóveis públicos para zerar o déficit público. Hoje diz que isso são apenas “diretrizes” gerais que perseguirá no seu trabalho no Ministério. É público que durante a campanha ele disse que zeraria o déficit no primeiro ano, mas está previsto resultado negativo até para o último ano do governo, em 2022. Ele define assim as diretrizes: “zerar o déficit se possível e não aumentar impostos.”

Na lista das conquistas da sua administração, ele inclui pontos que não têm muita visibilidade, mas que podem fazer enorme diferença na vida do cidadão, como a “digitalização de 90 dos 97 serviços do INSS”. Diz que era “crueldade a prova de vida física”. Por enquanto, ainda está sendo exigida, mas quando isso realmente estiver em funcionamento será o fim de um tormento para os mais idosos e com dificuldades de locomoção.

Na visão de Paulo Guedes, a liberação de saques no FGTS tem um alcance muito maior do que parece. No governo petista foi criado o FI-FGTS, ou seja, com o dinheiro do trabalhador se construiu um fundo que emprestou para grandes empresas a custo baixo. O que houve no governo Temer foi um saque único, das contas inativas, uma renda transitória. Agora, a medida que comandou pode virar “renda permanente e consumo, uma espécie de 14º salário”.

Paulo Guedes lembra em conversa com seus interlocutores que o governo Temer, apesar de ter aprovado a emenda do teto e a reforma trabalhista, “não entregou o principal”, a reforma da Previdência, em tramitação agora no Senado. Além disso, Temer “comprou aceitação através de aumento de salário”. O governo anterior de fato deu reajuste aos funcionários em parcelas que chegaram até o primeiro ano da atual administração, apesar da grave crise econômica e da aprovação da emenda do teto. Guedes tem dito que o governo conseguiu a aprovação da reforma na Câmara mesmo não tendo base de sustentação.

Nas aparições públicas do ministro, ele tem feito declarações polêmicas que galvanizam a atenção, que acaba ficando longe da apresentação que ele tem feito do que a sua equipe “entregou” no curto período de menos de nove meses. E lembra que parte do tempo da equipe é gasto em desarmar bombas fiscais em negociações constantes com o Congresso, TCU e até o STF.

Em algumas áreas houve grandes avanços no governo Temer como a negociação do acordo do Mercosul com a União Europeia. Mas quem de fato removeu os últimos obstáculos foi o atual governo. O acordo quando for posto em prática significará um passo na abertura comercial. O risco é, como já disse aqui, que o acordo volte a ser travado pela crise ambiental e a maneira desastrosa como o governo Bolsonaro entende a questão climática e ambiental. Não é uma briga com a França. É a economia. Ela tem novos paradigmas. A negociação entre a Petrobras e o Tesouro sobre a cessão onerosa também caminhou no governo passado, mas foi concluída na atual gestão e a expectativa é que o leilão das áreas excedentes atraia muito interesse, ainda mais agora com a crise da Arábia Saudita. O ministro não admite a crítica de que realizou pouco nesse período.

Há, contudo, outra dúvida surgindo sobre a real dimensão da autonomia de Paulo Guedes. Ele já teve que aceitar duas demissões que vieram diretamente do presidente Jair Bolsonaro: a do ex-presidente do BNDES Joaquim Levy e a do ex-secretário da Receita Marcos Cintra. Esta semana, Guedes definiu Cintra como “valente morto em combate” e defendeu a CPMF como sendo o caminho pelo qual se conseguiria reduzir alguns impostos e estimular a criação de emprego. Na campanha, Bolsonaro dizia que a economia estava totalmente delegada a Guedes. A prática comprova que sua autonomia encolheu.


Míriam Leitão: Os vários efeitos de um atentado

Atentado na Arábia Saudita afetará os preços do diesel, da gasolina e do gás e atingirá a indústria intensiva em energia

A Petrobras reajustou o preço do diesel na última sexta-feira, mas ontem a cotação do petróleo estava US$ 8 mais cara. O atentado contra a Arábia Saudita será um teste para o governo. A estatal terá que ter uma política de preços de combustível confiável e transparente, mas o que se viu ontem foi o presidente Bolsonaro anunciando que não haverá reajuste até que as cotações se estabilizem. As distribuidoras pedirão aumento do gás, e isso afetará a indústria intensiva em energia. O Banco Central terá que ser convincente se quiser continuar reduzindo as taxas de juros mesmo diante do forte aumento da incerteza global.

A ação da Petrobras subiu ontem indicando a visão positiva sobre o país, pelo fato de os campos brasileiros ficarem ainda mais interessantes. Mas a empresa depende da liberdade de preços para ter sucesso na venda de quatro de suas refinarias. Com a privatização, ela espera reduzir suas dívidas e estimular a criação de um mercado de refino no Brasil. A estatal poderá até esperar um pouco para ver em que patamar os preços vão ficar. Mas não muito.

Petróleo quando sobe produz efeitos em cascata. Na Abividro, Lucien Belmonte explicou o impacto:

— A fórmula do reajuste do gás natural é atrelada ao barril do petróleo e ao dólar. Se o aumento for maior que 5% do faturamento da distribuidora, ela pode pedir reajuste extraordinário. Então, se a Comgás reajustar isso afetará todas as indústrias que usam intensivamente o gás no estado de São Paulo.

O atentado mostrou que o maior produtor, que sempre foi o país que reequilibrava a oferta, é agora um fator de desequilíbrio. As primeiras informações oficiais do governo saudita, de que rapidamente a produção seria normalizada, não demoraram a ser desmentidas. A percepção da vulnerabilidade da Arábia Saudita elevou muito o risco.

Daniel Rocha, diretor-executivo da Accenture e especialista em energia, dá a dimensão do que ficou comprometido:

— Para efeito de comparação, o volume afetado, 5,8 milhões de barris, é mais do que o dobro da produção total do Brasil. Na visão otimista, a Arábia Saudita poderia subir 3,9 milhões de outros poços. Outro cenário seria a Saudi Aramco usar seus estoques estratégicos. A gente fez uma simulação aqui e com dois meses seria consumido o equivalente à metade dos estoques estratégicos dos Estados Unidos.

A crise faz o mundo olhar outros produtores e nesse grupo está o Brasil. O leilão do excedente da cessão onerosa que será realizado este ano já estava atraindo muito interesse. Deve aumentar. O pré-sal brasileiro é área produtora muito longe dos conflitos. Isso terá um efeito favorável ao Brasil, mas é apenas parte das consequências do atentado.

O balanço dos efeitos sobre o Brasil, se será positivo ou não, dependerá de como o país vai reagir diante dessa ameaça global. Se os preços dos combustíveis subirem e houver inquietação entre os caminhoneiros, o que fará o governo? O liberalismo do governo Bolsonaro dura até a primeira pressão corporativista. É o que se viu nestes primeiros oito meses.

Outra dúvida que circula no mercado é se o Banco Central está focado em sua missão de manter a inflação sob controle ou se está mais preocupado em estimular a economia para que haja algum crescimento. O BC pode reduzir juros, desde que o balanço de riscos permita e até a semana passada o cenário era favorável. Agora há uma brutal incerteza pela frente.

O mundo é hoje menos dependente do petróleo do Oriente Médio do que nos dois choques dos anos 1970 e também do que na época da guerra do Golfo de 1990. Os Estados Unidos importam um terço do petróleo saudita que compravam em 2003. O Brasil, nos anos 1970, importava 80% do combustível que consumia e tinha escassez de dólares. Atualmente é área produtora.

Contudo este é um péssimo momento para mais um choque. Há uma ameaça de recessão global rondando as economias. O presidente Donald Trump e o príncipe herdeiro Mohammad bin Salman são em si riscos neste quadro. Trump vem tentando há tempos criar uma guerra contra o Irã, um expediente que já ajudou outros presidentes em apuros em luta pela reeleição. MBS já mostrou que na terceira geração a dinastia fundada pelo rei Abdulaziz manterá o poder tirânico dos Saud.

Felizmente, a monarquia absolutista saudita foi cuidadosa ontem. Não quis culpar o Irã diretamente. Disse apenas que as armas usadas foram iranianas. O risco maior a evitar é uma nova guerra.


Míriam Leitão: MP infiel e a democracia

Democracia é a soma de inúmeros detalhes formando um mosaico. Ela corre riscos quando é atacada em cada uma das suas partes ou princípios

O evento marcante da semana passada foi o alerta de que a democracia corre riscos. Pelo aviso em si e pelo local: plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Foi dito não apenas pela pessoa que se despedia do cargo, a procuradora-geral, Raquel Dodge, mas pelo decano ministro Celso de Mello. O ministro começou a semana com uma nota de condenação à censura, e na quinta-feira estava listando o que o Ministério Público é e o que não pode ser. A democracia é a soma de inúmeros detalhes formando um mosaico. Ela corre riscos quando começa a ser atacada em cada uma das suas partes ou princípios.

O que estava em questão naquela sessão era o Ministério Público. Como ele deve ser, segundo a Constituição. Em resumo, o decano disse que o Ministério Público não serve a governos, a pessoas, a grupos ideológicos. Não se curva à onipotência do poder. Não deve ser o representante servil da vontade unipessoal, nem pode ser instrumento contra as minorias. “Sob pena de o Ministério Público ser infiel a uma de suas mais expressivas funções (...) que é a de defender a plenitude do regime democrático.” Foi assim, toda pontuada de recados, a fala do decano. A sessão fora aberta com declarações do ministro Dias Toffoli nesta mesma linha. O que parecia ser apenas uma formalidade ganhou força de recado e alerta.

Na mesma tarde o procurador indicado continuava sua peregrinação pelos gabinetes dos senadores. Augusto Aras construiu um discurso para o convencimento de quem vai sabatiná-lo, da mesma forma que havia construído com sucesso para o presidente Jair Bolsonaro. A frase captada pelo jornalista Marcione Santana, da TV Globo, durante a conversa com o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) é emblemática. Aras conta que se aproximou do presidente através de um amigo comum. “Eu disse ao presidente exatamente isso: presidente, o senhor não pode errar, porque o Ministério Público, o procurador-geral da República, tem garantias institucionais, que o senhor não vai poder mandar, desmandar (...) ( O PGR) Tem a liberdade de expressão para acolher ou desacolher qualquer manifestação. O senhor não vai poder mudar o que for feito.”

A rigor essa frase é óbvia, porque o MP é independente, mas ela tem uma dubiedade. Apresentada ao presidente parece ser a oferta de que com ele, Aras, o governo estaria seguro. Relatada ao senador parece ser a reafirmação da independência. Uma frase moldável ao interlocutor. Enquanto isso, Aras deve ser lido pelos seus atos. Ele não foi apenas de fora da lista, ele foi contra a lista. Um processo que não é sindicalista, é a forma que se consolidou como a mais eficiente para construir a liderança numa instituição em que os próprios procuradores têm também sua autonomia. Depois de nomeado, ele chamou para a sua equipe o procurador Ailton Benedito, defensor da ditadura, e o procurador Guilherme Schelb, que de tão alinhado com o governo quase foi ministro. Com essas duas nomeações, Aras está dizendo ao presidente que ele não errou ao escolhê-lo.

Celso de Mello falou várias vezes em defesa das minorias. O presidente Bolsonaro tem falado sempre contra os direitos de minorias. De forma genérica, em ataques diretos a grupos, ou apagando agendas das políticas públicas. Em palanque, disse: “vamos fazer um governo para as maiorias, as minorias se adequem ou simplesmente desapareçam.” Desde que se elegeu, ele repetiu isso várias vezes. No mês passado, afirmou que “se é para proteger minoria, vamos proteger o serial killer”. O ministro afirmou que “fora da ordem democrática não há salvação”. Bolsonaro tem entre as suas obsessões a defesa do regime militar.

Celso de Mello afirmou que “só as leis dessa república laica merecem sua proteção institucional”. Bolsonaro em palanque afirmou que “não tem essa historinha de Estado laico não”. O nome do presidente não foi citado. Mas é dele que se falava naquele plenário. Ele comanda uma sucessão de ameaças diárias. A cada dia uma nova fissura, uma política que fere um direito fundamental, mais um rasgo na Constituição. Raquel Dodge terminou sua fala pedindo aos ministros: “Protejam a democracia brasileira tão arduamente erguida.” Não é tarefa apenas do Supremo, mas os votos daquele plenário serão decisivos para evitar que um dia chegue lá um cabo e um soldado.


Míriam Leitão: Boas novas no tempo da escassez

Não é a recuperação que se esperava, mas estão pingando boas notícias em meio a esta conjuntura árida na economia

Algumas notícias boas apareceram no radar. São poucas, mas não são de se desperdiçar numa época tão magra de boas notas. O governo começa a liberar parte do dinheiro do Orçamento que havia sido congelado. Pode chegar, no final, aos R$ 20 bilhões anunciados pelo presidente interino, Hamilton Mourão. O comércio e os serviços tiveram crescimento em julho acima do previsto pelo mercado. A previsão de uma safra recorde pode afetar positivamente o PIB agropecuário.

Nesta época do ano, a Esplanada dos Ministérios tem clima de quase um deserto. A seca em Brasília castiga. Desta vez estão ressecados também os cofres dos ministérios. Ao déficit primário somou-se a decepção com o crescimento. Quando foi feita a peça orçamentária, em agosto do ano passado, a previsão era de que em 2019 o crescimento seria de 2,5%. Quando a previsão cai — hoje está em 0,85% —tem que se cortar as despesas, colocar num congelador e sonhar com a chance de degelo.

Chegou, pelo menos em parte. Houve dois meses de arrecadação acima do esperado, em julho e agosto, e o recolhimento novo de dividendos da Caixa Econômica Federal e do BNDES. Quem no governo tem pé no chão alerta que não dá para soltar fogos com o aumento de arrecadação nesses dois meses. Não é ainda uma tendência e infelizmente não pode ser visto como uma retomada. A melhora em agosto pode ter a ver com o alta do Imposto de Renda sobre ganhos de capital que decorre da venda de empresas da Petrobras e do IRB no Banco do Brasil. Esse é um ganho que acontece uma vez só, a chamada receita não recorrente.

A Conab divulgou na terça-feira o levantamento da safra de grãos 2018/2019 com uma estimativa de 242 milhões de toneladas, 6,4% maior do que a anterior. Se o número for confirmado será um novo recorde. Terá um impacto de redução da inflação e de alta no PIB agropecuário. A soja vai colher menos, o milho, muito mais.

A produção industrial de julho caiu em 0,3%, mas o IBGE divulgou nos últimos dois dias números acima do previsto pela maioria dos analistas. As vendas de varejo aumentaram 1%, e no varejo ampliado, onde entram veículos, motos, peças e material de construção, o aumento foi de 0,7%. Na comparação com julho do ano passado o resultado ficou em 4,1%, o quarto resultado positivo, e 4,6% no ampliado. Em sete das oito atividades o número ficou no azul. Com toda essa alta, volta-se ao que era quatro anos atrás, em julho de 2015. O setor está ainda 5,3% abaixo de outubro de 2014. O problema desta recessão é a lentidão da volta ao ponto onde se estava.

Ontem, o IBGE mostrou que o setor de serviços cresceu 0,8% em julho, se recuperando da queda de 0,7% do mês anterior. O número veio acima das projeções do mercado. Não é um dado espetacular, mas nesse ritmo o setor poderá ter o primeiro resultado positivo anual desde 2014. Os serviços ainda estão 11,8% abaixo do melhor momento, de 2014, e também 1,2% abaixo de dezembro do ano passado.

Pelas contas do governo, a liberação do FGTS terá um efeito de até 0,35 ponto do PIB nos próximos 12 meses. Cerca de R$ 28 bilhões entrarão na economia ainda este ano e mais R$ 12 bilhões em 2020. Esse dinheiro vai ajudar na redução da dívida das famílias e também provocar algum estímulo ao consumo.

Ontem o CDS caiu a 120 pontos. Isso significa que os juros cobrados para se fazer seguro contra o risco Brasil está menor do que os 300 que estavam durante a eleição no ano passado ou os 533 de 28 de setembro de 2015, dias depois de o Brasil perder o grau de investimento.

Tudo isso somado não é nem de longe o que se esperava que o país estivesse vivendo neste terceiro trimestre do ano. Mas é melhor que estejam pingando algumas boas notícias no meio desta conjuntura árida.

O cenário é de melhora nos indicadores de trabalho, porque nesta época do ano há redução do desemprego. A inflação baixinha permitirá a queda das taxas de juros.

O país colhe suas poucas boas notícias sem as desmerecer, porque há grande escassez de números positivos. A economia enfrenta ainda uma grande letargia. Muitos fatores têm reduzido o ímpeto dos empresários de investir, e das famílias, de consumir.


Míriam Leitão: CPMF não era ideia só de Marcos Cintra

Mesmo que inicialmente fosse ideia de Cintra, a CPMF passou a ser defendida pelo próprio ministro Paulo Gudes de forma explícita

A nova CPMF não era uma ideia apenas do ex-secretário da Receita Marcos Cintra, demitido ontem. O próprio ministro Paulo Guedes a defendeu na entrevista que concedeu ao “Valor” esta semana e até revelou que foram feitas simulações de arrecadação em cada alíquota. O problema é que esta reforma vem sendo anunciada antes de ser formulada. Vários assessores do ministro também falaram do assunto.

No evento do BTG Pactual, o ministro Paulo Guedes disse que tinha escolhido Marcos Cintra para dar uma sinalização clara de redução e simplificação de impostos. Não conseguiu dar esse sinal. Cintra é
visto como o economista de uma nota só. Ele sempre defendeu o imposto único, o que nunca convenceu a maioria dos economistas e tributaristas. A ideia é vista como um equívoco.

Mesmo assim ele foi escolhido para fazer a proposta de reforma tributária. Desde o princípio ele contava com a volta da CPMF como um embrião de um imposto único. Inicialmente substituiria a contribuição patronal para a Previdência. Depois, a ideia era subir a alíquota para eliminar outros impostos. Quando eu entrevistei Marcos Cintra em abril, ele disse que o imposto cobriria uma arrecadação previdenciária de R$ 300 bilhões. Esta semana o ministro Paulo Guedes falou em R$ 150 bilhões.

Na entrevista para a jornalista Claudia Safatle, do “Valor”, o ministro Paulo Guedes chamou o tributo de Imposto sobre Transações Financeiras (ITF). “Tem uma escadinha na proposta de reforma que é assim: se quiser 0,2% de imposto pode baixar a desoneração da folha para 13%, se quiser pagar 0,4% você já consegue derrubar a CSLL, se quiser pagar 1% você acaba com o IVA.” Defendeu o imposto porque todos pagariam. “Sonegadores pagam, traficantes de droga pagam.” Sobre a posição contrária do presidente Bolsonaro, Guedes disse que na reforma da Previdência o presidente inicialmente não gostava. Depois definiu o tributo: “É feio, é chato, mas arrecadou bem por 13 anos.”

Portanto, mesmo que inicialmente fosse uma ideia de Cintra, ela passou a ser defendida pelo próprio ministro, de forma explícita. E sobre ela falava-se abertamente na Secretaria de Política Econômica. O secretário adjunto da Receita, Marcelo Silva, detalhou-a na terça-feira. Na ocasião, referiu-se inclusive a um fato que nunca ocorreu: “O ministro Delfim Netto, na época que era ministro da Fazenda, usava a arrecadação da CPMF, que era de 10 em 10 dias, para calcular o PIB de forma rápida e mais acurada”. Impossível. A CPMF foi criada quase uma década depois que Delfim deixou de ser ministro.

A afirmação do presidente Bolsonaro em sua conta no Twitter de que a “tentativa de recriar CPMF derruba chefe da Receita” não faz sentido. Cintra não caiu por causa da CPMF, ou pela maneira como estava se dando a comunicação da reforma tributária. Já que se falava nela abertamente, e todos falavam. E não é de hoje.

Uma reforma como esta, desta gravidade e importância, não pode ser tocada de ouvido e ser divulgada antes de estar madura. É preciso apresentá-la com simulações confiáveis. Um erro e aumenta-se a carga tributária ou derruba-se a arrecadação. As empresas precisam se planejar para o ano seguinte. Como fazer isso se a cada dia sai uma notícia diferente sobre tributos? Será ou não criado o imposto sobre dividendos? O governo também falou várias vezes em acabar ou reduzir as deduções da pessoa física. Há muito ruído no assunto.

Há um mês, o presidente Bolsonaro reclamou com Marcos Cintra que a Receita estaria perseguindo a sua família. Depois, disse publicamente que a Receita estaria fazendo uma “devassa” na sua família e que tinha feito isso na campanha na vida financeira dele. O risco é ele fazer agora uma escolha para o cargo por razões familiares. Para o BNDES foi um amigo dos filhos, quando caiu Joaquim Levy. Para a Polícia Federal ensaia-se também a escolha dos filhos, se cair Maurício Valeixo.

No Congresso, dois projetos tramitam, um na Câmara e outro no Senado. Eles tratam apenas da criação de um Imposto sobre Valor Agregado, juntando IPI, PIS, Cofins, ICMS, ISS. O governo proporia um IVA dual, que fundiria num primeiro momento os impostos federais. E depois a eles se juntariam o estadual e o municipal quando houvesse acordo sobre como recolher e como distribuir.


Míriam Leitão: A democracia como estorvo

O presidente Bolsonaro, a sua família e alguns em seu entorno já louvaram tantas vezes as ditaduras que ignorar isso é insensatez

Os períodos autoritários sempre nasceram simulando a defesa de ideias que não poderiam ser implantadas na democracia. As instituições democráticas seriam estorvo nessa visão autoritária. No Brasil, dizia-se que 1964 fora também contra a corrupção e a inflação. Quem conseguiu vitórias nas duas frentes foi a democracia. Golpes às vezes são dados com o pretexto de acelerar mudanças econômicas. O presidente Bolsonaro, a sua família e alguns em seu entorno já louvaram tantas vezes as ditaduras que ignorar isso é insensatez. Esse é o contexto da mensagem do segundo filho. Ela precisa ser levada a sério e não ser desdenhada como mais uma do “carluxo”.

Carlos sempre foi o especialista em mídia digital e é quem fala para as alas radicais do bolsonarismo. A tentativa de se explicar depois adianta pouco. Ele não foi mal interpretado. Também não foi uma postagem errada, de impulso ou um deslize. Queria dizer mesmo que as mudanças que o governo prometeu não estão funcionando e há um motivo. “Por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos... e se isso acontecer”. Defendeu que a roda está “girando em seu próprio eixo” e conclui que os que “nos dominaram” continuam dominando. O que ele quer dizer? O que ele disse. Está explícito. Não se pode acusá-lo de ambiguidade.

Como não foi dúbia a afirmação do deputado Eduardo Bolsonaro durante a campanha de que o STF poderia ser fechado bastando “um cabo e um soldado”. Esse desprezo por um dos poderes da República fica mais claro na fala completa dele durante a campanha presidencial. Alguém perguntou o que aconteceria se o STF impugnasse, por alguma irregularidade, a candidatura do pai, e ele respondeu:

— Se o STF pagar para ver vai ser ele contra nós. Será que eles vão ter essa força mesmo? O pessoal até brinca lá, cara: para fechar o Supremo não precisa nem de um jipe, basta um soldado e um cabo. E não é para desmerecer o soldado e o cabo. O que é o STF? Tira o poder da caneta de um ministro do STF.

Perguntado insistentemente sobre isso, Bolsonaro infantilizou o deputado: “Eu já adverti o garoto.” Eduardo foi direto no seu desprezo a uma das instituições da República democrática. Só ficou vaga a frase “o pessoal brinca lá, cara”. Quem é o “pessoal” e onde é “lá”? Desde que passou a ocupar funções públicas Bolsonaro tem defendido regimes de força, tem elogiado torturadores e os seus crimes. Não há fatos isolados neste caso.

Em todos os gestos, os filhos do presidente se colocam como fidalgos, o que também não é democrático. Quem seria admitido em um grande hospital portando arma? Eduardo repetiu ontem o gesto na Firjan. Se virar embaixador nos Estados Unidos ele conseguirá embarcar, desembarcar, fazer diplomacia com a pistola no cinto?

Que “transformação” está sendo difícil, talvez impossível, pelas vias democráticas? Isso Carlos não disse, mas o governo enfrenta duas frentes de descontentamento. A campanha inventou que o bolsonarismo era herdeiro da onda de combate à corrupção que já vinha ocorrendo pela via democrática. Prometeu também crescimento econômico. Nove meses depois, há evidentes ataques à operação de combate à corrupção, e a economia desacelerou da fraca retomada que chegou a esboçar em meados do ano passado. E isso está decepcionando quem acreditou nas promessas de campanha. Aí veio a tentativa de achar um culpado. No caso, seria a democracia.

Até agora, o que houve foi o desmonte do combate à corrupção patrocinado direta ou indiretamente pelo grupo no poder. Para proteger o primeiro filho, Flávio, das dúvidas razoáveis a respeito do que acontecia em seu gabinete, vale tudo: trocar o comando da Polícia Federal no Rio, e talvez até em Brasília, desmontar o Coaf, e conseguir uma medida liminar que parou inúmeras investigações e nomear um PGR que se apresentou como submisso ao governo. Na economia, o ambiente continua árido, sem qualquer sinal de melhora a curto prazo. É nesse ambiente de frustração que falou o filho do presidente, considerado o especialista em comunicação da família.

As palavras querem dizer o que elas dizem. Não adianta tentar consertá-las depois. Tratar como naturais declarações antidemocráticas só porque elas são recorrentes é deixar-se entorpecer pelo absurdo. É exatamente a repetição que as torna mais graves.