Míriam Leitão: Ataque à cultura fere a economia

Cultura tem sido usada como alavanca para o desenvolvimento em vários países. No Brasil, está sob ataque do governo Bolsonaro

A cultura brasileira está sob ataque. Isso é perigoso do ponto de vista da democracia, mas é também um erro econômico. Em vários países do mundo, esse setor tem sido uma alavanca ao desenvolvimento. A Inglaterra reposicionou sua mão de obra para a economia da cultura quando perdeu empregos na indústria tradicional para a China. A França fez o mesmo. A censura é um veneno para o setor, porque a liberdade é o único ambiente no qual as artes florescem.

O economista gaúcho Leandro Valiati é professor visitante de economia da cultura da universidade de Sorbonne, na França, e da Queen Mary, na Inglaterra. Ele tem conduzido estudos sobre esse assunto nos dois países. Vê com muita preocupação o que está havendo no Brasil.

— Essas cadeias estão se rompendo no Brasil pela crise enorme que a gente passa no financiamento da cultura em um governo que é contra a cultura por razões de disputa ideológica e isso está gerando o que chamamos de tempestade perfeita — diz Valiati.

Ele conta que no mundo inteiro, mesmo na Inglaterra da era Thatcher, a cultura sempre recebeu financiamento público.

— A Inglaterra tem um departamento de cultura, mídia e esportes que criou o primeiro modelo de políticas públicas para indústrias criativas dentro da lógica de pensar um motor para o desenvolvimento do século XXI — diz o professor.

Quando a produção tradicional começou a migrar para a Ásia, a Inglaterra reposicionou sua mão de obra para outros setores de ponta como as indústrias criativas, de produção de conteúdo, dependente da tecnologia de comunicação. Há desde criação de fundos públicos, treinamento, até a transformação de Londres em cidade hiperconectada. Parte do dinheiro da cultura vem da loteria, mas há outros fundos públicos e o investimento direto no patrimônio, como museus.

— Cultura tem emprego e renda muito positivos. O Brasil é riquíssimo nisso. Cada estado é um pequeno país de tradições, valores culturais, cadeias produtivas da cultura, existe uma economia que é efetiva e na qual o dinheiro público é muito bem investido — explica Valiati.

Ele explica que indústrias criativas incluem tanto as clássicas como teatro, cinema, audiovisual em geral, música, rádio, conteúdos para TVs, livros, mas também softwares, games, arquitetura, design, publicidade, tudo o que envolve direito intelectual. O ex-ministro e hoje deputado Marcelo Calero (Cidadania-RJ) chegou a montar uma secretaria da Economia da Cultura exatamente para diferenciar esse núcleo do resto das indústrias criativas. Valiati diz que o Brasil já vinha com o esgotamento do modelo de financiamento. Precisaria repensar a indústria como um todo porque isso está sendo feito de forma global. Mas todo o quadro piorou. Calero concorda.

— O que está acontecendo agora é um sufocamento da cultura por parte do governo Bolsonaro. Está dentro de uma visão maior dele que é de destruir e sufocar todos os que ousarem contestar seu poder — diz o deputado.

O primeiro movimento foi o de condenar o subsídio ao setor, como se fosse benefício pessoal aos artistas. Leis de incentivo às artes existem em todos os países do mundo, inclusive Estados Unidos. Tem que haver clareza nos critérios e prestação de contas. Só para se ter uma ideia, a indústria automobilística ainda tem subsídios e isso sim deveria ser visto como escandaloso. Valiati compara os dois setores:

— A indústria automobilística tem 7% da fatia de subvenção fiscal total. A cultura tem 1% a 1,5%. E mesmo isso vive sendo criticado. Eu coordenei estudo de cinco anos no Brasil para entender a economia da cultura, separando de outras atividades criativas. O total de emprego criado é maior do que os gerados pela indústria extrativa. O problema é que essa discussão tem sido feito de forma rasa.

Em grandes países, o debate se dá em torno de reposicionar a economia estimulando uma cadeia de valor na área cultural. Aqui, o debate, lembra Calero, é levar a Ancine para Brasília para forçar “os cineastas do Leblon a irem para o Cerrado”, como foi dito. Há implicâncias contra artistas e grande pressão contra as artes. Isso sufoca as liberdades individuais e coletivas, mina a democracia, solapa um setor econômico que produz emprego de qualidade e renda. Há mais a dizer sobre isso. Continuarei amanhã no mesmo assunto.


Míriam Leitão: Um dia com altos e baixos

Rodada de petróleo foi um sucesso, falta de propostas em Abrolhos foi um alerta, e não indicação para OCDE foi uma decepção

O governo brasileiro teve ontem uma vitória, um aviso e uma decepção. A 16ª Rodada de Licitação de petróleo arrecadou um volume alto de recursos, R$ 8,9 bilhões, e constatou mais uma vez o interesse das empresas estrangeiras na exploração de petróleo no Brasil. Isso é importante porque há dois outros leilões marcados para este ano. O aviso foi o fato de não aparecerem propostas para os blocos perto de Abrolhos, que o governo teimou em colocar na rodada, apesar dos alertas dos técnicos do Ibama. A decepção foi que os Estados Unidos indicaram a Argentina — e não o Brasil — para ser membro da OCDE.

O recado que ficou do leilão de petróleo confirma duas informações: primeiro, que o Brasil é visto como uma frente promissora de investimento na produção de óleo e gás, segundo, que as empresas não querem correr riscos desmedidos na área ambiental. Se quiser passar por cima do que dizem os cientistas ou os órgãos de controle, como o Ibama, o Brasil vai ficar falando sozinho, porque as empresas hoje têm satisfação a dar aos stakeholders, aos acionistas, consumidores e todos os que estão vinculados aos negócios da empresa.

No caso da OCDE, os governos brasileiro e americano tentaram dourar a pílula ao dizer que é apenas uma questão de “timing”, porque a Argentina está mais adiantada no processo de adesão ao chamado clube dos ricos. O Brasil ficaria para uma segunda oportunidade. O problema é que a Argentina está em pior situação econômica. A crise fiscal deles é maior, a inflação voltou aos inaceitáveis níveis de 50%, têm desequilíbrio no balanço de pagamentos e estão às vésperas de uma transição política de enorme incerteza. Se a entrada na OCDE é, como disse a nota do governo dos Estados Unidos, uma espécie de aval às reformas econômicas, a Argentina está muito mais longe dos parâmetros desejados do que o Brasil. Segundo a nota, fica mantida a declaração em que os EUA deram apoio ao desejo do Brasil de entrar na OCDE. Nela, foram saudados “os esforços contínuos do Brasil em relação às reformas econômicas, melhores práticas e conformidade com as normas” da organização. É óbvio que em relação à economia o Brasil está mais perto dessas normas do que a Argentina. E é evidente também que o apoio político não é apenas pela ordem de chegada, mas sim pela “conformidade” com as políticas defendidas pela OCDE.

Entrar na OCDE não nos faz um país desenvolvido. Essa foi a ficção vendida pelo governo Bolsonaro ao comemorar essa suposta vitória. As vantagens de estar na organização não são concretas. Estar lá é apenas fazer parte de discussão de políticas públicas e de definição de critérios de avaliação. Não tem o mesmo valor da contrapartida brasileira, que abriu mão das vantagens, do tratamento especial e diferenciado, como país em desenvolvimento na Organização Mundial do Comércio (OMC). Em consequência desse movimento, ele passou a ser olhado com desconfiança por outros países em desenvolvimento.

Na boa notícia do dia, o leilão de petróleo arrecadou mais do que o previsto, bateu o recorde de R$ 8 bi da 15ª Rodada, no ano passado, e teve um ágio médio de 322%, apesar de a atuação da Petrobras ser comedida. Já houve rodadas em que a estatal brasileira disputava várias áreas ao mesmo tempo, e isso acabava resultando num número bom, mas não ampliava a quantidade de investidores no setor.

O problema é que o governo não entendeu a parte em que o mercado avisou que ele deve evitar. Nenhuma empresa deu lances na exploração dos blocos perto do Parque Marinho de Abrolhos. Isso porque quando se fala hoje em “conformidade” está se falando também de respeito a padrões ambientais. E o risco em Abrolhos é imenso, já que o parque é um santuário de espécies marinhas. Um desastre ambiental em um lugar assim produz perdas enormes. O dano à imagem de uma empresa associada a qualquer problema em uma área ambientalmente sensível, como Abrolhos, é grande demais.

O governo poderia ver nesse evento uma oportunidade de retirar essas áreas da disputa e respeitar a orientação dos técnicos do Ibama. Mas as autoridades preferiram manter os blocos em leilão permanente. Se uma empresa aventureira, sem o padrão técnico necessário, der um lance, leva. O que o mercado disse ao governo brasileiro é que o risco em Abrolhos não compensa. O alerta foi dado, mas o governo não quis ouvir.


Míriam Leitão: O presidente fabrica crises

Crise com o PSL, como várias outras crises deste governo, foi fabricada pelo próprio presidente Jair Bolsonaro

Com o PSL e os militares o presidente Jair Bolsonaro organizou seu governo. Nove meses depois, ele já demitiu vários militares, alguns em situação humilhante, e atacou o PSL, pedindo que o esquecesse e afirmando que seu presidente está “queimado pra caramba”. Analistas achavam que ele, após a posse, trabalharia para consolidar sua base política atraindo mais quadros para o PSL e que, na eleição municipal do ano que vem, ele tentaria dar ao partido capilaridade para sustentar seu projeto de reeleição.

Na avaliação do cientista político Jairo Nicolau, o presidente Jair Bolsonaro está fazendo um movimento irracional da perspectiva das suas ambições políticas. Saindo do PSL ele abre mão da bancada, do fundo eleitoral e de horário de televisão nas eleições municipais, momento que seria estratégico para o partido:

— Seria a hora mais lógica de ele consolidar o partido de extrema-direita para apoiar seu projeto. Eles não gostam que se defina o grupo político como de extrema-direita, mas essa é a definição correta. O PSL terá um volume grande de recursos através dos fundos eleitorais, mais de R$ 300 milhões. E para uma eleição municipal será necessário ter tempo de TV e dinheiro.

A possibilidade de mudança partidária sem risco de perda do mandato se dá em duas situações. Primeiro, se uma nova legenda for criada. Segundo, na próxima janela partidária, o que só ocorrerá em 2022, seis meses antes das eleições. Um partido novo, como esse, o Conservadores, não terá recursos porque o dinheiro é distribuído conforme o número de parlamentares que elegeu na última eleição. O Patriotas terá uma fração pequena dos fundos eleitoral e partidário:

— É difícil entender o que ele está querendo fazer. Só se ele estiver achando que com a mídia social e a família repetirá em 2022 o desempenho que teve em 2018. Ele não fez uma base de sustentação, agora fala em sair do partido que foi um fenômeno eleitoral por causa dele.

Bolsonaro trocou de partido várias vezes ao longo da sua vida política. Ficou 11 anos no PP, de Paulo Maluf, e de muitos condenados do Mensalão e da Lava-Jato. Agora encena que está reagindo às denúncias de corrupção no PSL. Não é convincente. Ele nunca demonstrou qualquer reação às muitas denúncias de candidaturas-laranja no partido, nunca quis demitir o ministro do Turismo e tem usado o que pode para favorecer o filho Flávio, investigado por suspeita de rachadinha. É isso que o líder do PSL, Delegado Waldir, quis dizer quando afirmou que o quintal dele (Bolsonaro) estava sujo também.

— Os bolsonaristas chegaram no PSL no começo do ano passado, povoaram o partido, viraram esse fenômeno eleitoral, mas o curioso é que o partido não atraiu ninguém depois das eleições. Achava-se que Bolsonaro trabalharia para levar mais parlamentares para a legenda e assim se fortalecer no Congresso. Isso não aconteceu. Nem os parlamentares demonstraram vontade de ir para o partido do presidente, o que é surpreendente — diz Jairo Nicolau.

Ontem, depois que o presidente do PSL, Luciano Bivar, endureceu, o próprio Bolsonaro recuou numa entrevista ao site Antagonista. Disse que não pretende sair “de livre e espontânea vontade” e tentou minimizar a fala dele do dia anterior contra o PSL. Depois comparou a crise à briga entre marido e mulher. Mesmo que ele não saia, essa crise desgastará mais oPSL, que já vive em brigas internas.

— Ele sair do partido não tem problema algum. Itamar Franco se desfiliou do PRN e governou sem partido. Mas e os parlamentares? O presidente já não tem base de sustentação. Se, além disso, ele ficar sem partido será demais, né? Ele talvez se considere uma pessoa que não precisa de organicidade. Deve achar que basta ele, seus filhos e as redes sociais — explica Nicolau.

Em relação aos militares, ele tem feito dois movimentos. Concedeu aumento de soldo, principalmente para os oficiais, embutido na reforma da Previdência. Limitou o poder que eles têm no governo, demitindo vários por pressão de lobbies ou grupos ideológicos. Foi assim com o ex-ministro Santos Cruz, com os militares no Ministério da Educação, nos Correios, com o general que comandava a Funai, e agora com o presidente do Incra. Esses dois saíram por pressão do seu amigo Nabhan Garcia, que diz falar pelos ruralistas. Essa crise, como a maioria das que abalaram seu governo, foi criada pelo próprio presidente. Bolsonaro é um fabricante de crises.


Míriam Leitão: O petróleo e a Previdência

Negociação da cessão onerosa teve bastidores tensos, com influência de disputas locais nos estados e briga entre governos do Sul e do Nordeste

O acordo fechado entre o governo, a Câmara e o Senado para aprovar a Previdência embute não apenas recursos que serão distribuídos através de emendas de parlamentares nos royalties futuros do pré-sal, mas também uma trava no dinheiro que vai agora para os governadores. Os estados ficarão com 15% do dinheiro que for arrecadado pelo leilão da cessão onerosa, mas terão que usar os valores para financiar seu rombo previdenciário.

Essa foi a equação política para resolver o conflito que vem desde o começo da tramitação da reforma da Previdência, que é a falta de disposição dos parlamentares de favorecer os governadores. Muitos deputados e senadores são de grupos políticos diferentes dos atuais administradores estaduais e, alguns deles, potenciais adversários nas próximas eleições. Tanto na aprovação da reforma, quanto na distribuição dos royalties do petróleo, bateu-se nesse mesmo impasse: como favorecer governadores que podem neste momento estar em posição oposta à do parlamentar que tem o voto no Congresso?

No caso da cessão onerosa a solução foi travar os recursos para financiar a previdência dos estados, uma solução negociada entre as lideranças do Congresso e que agradou à equipe econômica, embora não resolva nada. Impede que os administradores expandam o gasto, mas ao mesmo tempo o que os estados precisam é de fazer sua própria reforma previdenciária. Os parlamentares foram atendidos porque terão direito a participar nos futuros leilões do pré-sal da distribuição dos royalties.

A impressão no governo é que o acordo já está sacramentado, as arestas estão aparadas e por isso será aprovada a reforma da Previdência sem maiores sustos e desidratações. No mercado financeiro, contudo, a demora da votação está repercutindo no câmbio. No Congresso, as negociações continuam para aprovar a cessão onerosa, a divisão dos royalties e a Previdência.

A área econômica do governo nega que isso seja a velha política. O argumento é que é a política propriamente dita, porque se parlamentares são representantes de suas regiões é natural que as defendam e queiram fazer parte da escolha dos investimentos através das emendas. Por outro lado, a disputa eleitoral divide os grupos de um mesmo estado.

— Eles dizem para nós: por que vamos aprovar uma coisa que é para dar mais dinheiro para os governadores que votam contra a reforma? — explicou um integrante do governo.

A mesma questão acabou levando a que os estados e municípios fossem retirados da reforma logo na tramitação na Câmara. Alguns governadores eram contra publicamente, mas torciam pela reforma para que a mudança ajudasse a resolver o rombo previdenciário sem que eles tivessem que pagar o preço político de brigar por ela. A solução de retirar os estados foi ruim, mas o assunto foi parcialmente resolvido com a criação da PEC Paralela que voltou a incluí-los. Mas essa PEC terá um longo tempo de tramitação e está carregada de outras questões polêmicas.

Sobre as emendas parlamentares, a avaliação feita na equipe econômica é que elas acabam fortalecendo os investimentos públicos que estão no ponto mais baixo da história. Portanto, esse acordo para os futuros leilões é considerado benéfico. Da mesma forma é visto como natural que os estados produtores como o Rio tenham uma parcela maior do dinheiro e que essa fatia saia dos recursos que iriam para a União.

O bastidor dessa negociação foi intenso, com os governadores defensores da reforma brigando para que não fossem recursos para os que sempre se colocaram contra. Uma espécie de Sul contra o Nordeste. Por fim, prevaleceu o bom senso. Mas essa obrigação de que o dinheiro vá para a previdência estadual não resolve o problema. Eles precisam fazer as suas reformas para tornar seus sistemas de aposentadorias e pensões sustentáveis. Houve também muitas disputas entre Senado e Câmara. O momento mais difícil foi quando o Ministério da Economia deu o sinal de que se eles aprovassem novas desidratações na reforma o governo federal poderia reduzir o dinheiro a ser distribuído a estados e municípios. Isso foi visto como ameaça de retaliação. A situação ficou tensa. Foi preciso voltar todo mundo para a mesa de negociação para o acordo que envolve petróleo e Previdência.


Míriam Leitão: A difícil conciliação entre atos e palavras

Bolsonaro é contra o fim do monopólio da Caixa no FGTS. Essa é só uma das interferências que derrubam a ideia de autonomia de Paulo Guedes

O presidente Jair Bolsonaro disse que a economia é “100% com o Guedes”, na entrevista publicada pelo “Estado de S. Paulo” no domingo, mas ontem mesmo ele disse que não será quebrado o monopólio da Caixa Econômica na administração do dinheiro do FGTS. Essa é apenas mais uma interferência.

Desde o começo do governo, Bolsonaro já demitiu o presidente do BNDES e o secretário da Receita, derrubou a proposta de reforma tributária formulada no Ministério, vetou uma publicidade do Banco do Brasil e suspendeu um aumento do diesel. Guedes não tem evidentemente a carta branca e a autonomia que Bolsonaro sempre disse que ele teria.

Qualquer manual básico de liberalismo econômico criticará monopólios em geral. No caso da Caixa com o FGTS é pior porque é uma poupança compulsória do trabalhador à qual ele não tem acesso, que é sub-remunerada e que o banco estatal cobra o valor abusivo de 1% de taxa de administração.

O que estava sendo negociado entre a Câmara dos Deputados e o governo é que outros bancos tivessem acesso a esse dinheiro, quebrando-se o monopólio da Caixa. Ontem o presidente Bolsonaro avisou que era contra essa medida.

O deputado Hugo Motta (Republicanos-PB) disse que nem entendeu o comentário do presidente, porque ele estava negociando o texto com técnicos do governo. E disse que vai mantê-lo.

Para ser mais liberal, a proposta tinha que dar ao trabalhador, dono do dinheiro, a portabilidade da sua conta. Ele deveria ter o direito de escolher em que banco deixar o seu dinheiro, e isso fomentaria a competição que reduziria as taxas e elevaria a rentabilidade.

Do ponto de vista liberal o projeto é insuficiente. A liberdade tinha que ser do trabalhador e não do banco. Mas o que o presidente está dizendo é que nem essa proposta restrita ele aceitou. A Caixa tem tido lucro fácil de R$ 5 bilhões por ano com esses recursos.

Tudo o que o governo Bolsonaro fez nesta área foi seguir os passos do governo Temer de ampliar as chances de o cotista do FGTS ter acesso ao próprio dinheiro.

“Quem demitiu o Marcos Cintra foi o Guedes. Não interfiro nestas questões”, disse o presidente Bolsonaro na entrevista ao “Estadão”. O governo precisa entrar num acordo, porque o vice-presidente, Hamilton Mourão, que estava no exercício da Presidência naquele momento, disse que “foi decisão do presidente” e acrescentou: “Guedes cumpre a decisão do presidente”. E por que foi a demissão? Porque Bolsonaro interfere “nestas questões”, ao contrário do que diz.

O ministro até lamentou a queda. “Morreu em combate nosso valente Cintra.” Ele combatia em favor de um imposto com cara e jeito de CPMF, a partir do qual se faria a proposta de reforma tributária, que teria a desoneração da folha salarial. O ministro segue defendendo essa ideia.

Na entrevista, Bolsonaro disse uma frase curiosa. “Eu posso interferir na Caixa. Eu não posso interferir é no Banco do Brasil, porque não pode, teoricamente né?” Nem teoricamente nem na prática ele deveria interferir em qualquer deles até porque o país viu o que acontece quando as empresas públicas — de capital fechado como a Caixa, ou de capital aberto como o Banco do Brasil — tomam decisões por razões políticas.

Não pode, por exemplo, transformar a Caixa em um descarado departamento de censura prévia, que inclui até o controle da posição política dos artistas.

Modesto, o presidente diz que faz apenas “sugestões” a Paulo Guedes. “O que eu transmito a ele é o anseio popular. Não pego na rua mais, não posso estar na rua, mas pego nas mídias sociais.” Alguém precisa avisá-lo que o que ele vê nas redes pode não ser a opinião pública. A internet tem bolhas, fake news — ele até já divulgou algumas — robôs, perfis falsos.

Mas o mais relevante na entrevista é que Bolsonaro não consegue revelar, mais de nove meses depois de iniciado seu governo, alguma ideia concatenada na economia ou fora dela. É uma fala rasa, de alguém que não tem projeto. “Se a gente se der bem, por exemplo, o Rodrigo Maia vai botar em votação o projeto do porte de armas, está acertado.

Ele vai botar também as mudanças no Código Nacional de Trânsito. Parece que não é nada, mas quando você passa de cinco para dez anos, a validade da carteira, todo mundo ganha”. É isso.


Míriam Leitão: Muito além da economia

A economia não vai progredir sozinha. A ideia de que se pode modernizar a economia em um governo de propostas arcaicas é irreal

Há muito mais na economia do que apenas os indicadores ou decisões da área estritamente econômica. Ela depende, para ter um bom desempenho, de inúmeros sinais e situações que estão em outros setores. Uma parte das expectativas de retomada do crescimento está condicionada ao andamento da agenda legislativa, mas o presidente tomou a decisão de não formar uma base parlamentar estável, e por isso o governo tem improvisado no relacionamento com o Congresso. Além disso, Bolsonaro tem uma lista de prioridades idiossincrática, muitas delas vão no sentido oposto ao que deveria para alavancar o crescimento.

Na terça-feira passada, Bolsonaro se reuniu com garimpeiros, demonstrou saudosismo em relação ao tempo em que eles atuaram de forma predatória e sem limites legais, e ainda falou a frase depreciativa sobre “a árvore”. Esse tipo de cena tem o efeito de derreter intenções de investimento. A grande mineração exige hoje regras de conduta muito severas porque presta contas aos stakeholders, ou seja, a todas as partes interessadas. Os erros colossais da Vale elevaram o nível de exigência da atuação dessas empresas no Brasil. É hora de mostrar mais aderência aos valores que desembarcaram no mundo dos negócios. O garimpo é o oposto de uma produção sustentável dos recursos minerais.

Em bases quase diárias, o governo dá sinais de não ter uma agenda de superação dos obstáculos ao crescimento. O ministro do Meio Ambiente repete ideias e toma decisões antiambientais. O ministro da Educação trava uma batalha na mídia social em mau português contra fantasmas ideológicos. O ministro da Cidadania se dedica a restabelecer a censura na área cultural. O ministro das Relações Exteriores se enclausura em ideias estreitas e revoga as virtudes conhecidas da diplomacia brasileira. Nada disso é economia e tudo é economia. Os sinais que sustentam a confiança dependem de que o país esteja atualizado com as tendências do mundo nas áreas ambiental, educacional, cultural e diplomática. O obscurantismo em qualquer desses setores é um pacto antiprogresso. O que grandes investidores se perguntam é para onde está indo o país, se a educação preparará os estudantes para os desafios do século XXI, se as preocupações ambientais e climáticas estão sendo incluídas na agenda pública, se a diplomacia está ampliando as relações internacionais, se a política cultural expressa a diversidade do país.

O governo está emitindo sinais difusos em áreas diferentes que convergem para a mesma mensagem: a de que o país está em retrocesso social e político. E querem que a economia progrida sozinha tirando o país do atoleiro em que se encontra. Ela é parte de um todo. A ideia de que se pode modernizar a economia em um governo de valores arcaicos é um contrassenso.

A reforma da Previdência passou por várias etapas, sendo desidratada no meio do caminho, e enfrentando muitos sustos. Se caminhou foi à despeito do presidente da República, que se mobilizou apenas para a defesa corporativista que fez ao longo da vida. A causa de adaptar o sistema de pensões e aposentadorias à realidade demográfica e fiscal brasileira foi abraçada por líderes de partidos que não são governistas e foi votada até por alguns parlamentares da oposição, com um custo político alto. A área econômica teve alguns valorosos combatentes no esforço de entendimento com o Congresso, mas a articulação política não aplainou o terreno para os técnicos da economia. Pelo contrário, as muitas falhas na articulação tornaram o caminho mais pedregoso.

O Ministério da Economia fala em muitas reformas. Elas são ambiciosas: mudariam a estrutura do gasto público e implantariam um novo federalismo. O presidente se mobiliza pela liberação de armas, na defesa de torturadores e da ditadura, em favor do garimpo e exploração mineral em terras indígenas, contra a proteção do meio ambiente e na garantia de vantagens para os filhos. A agenda da economia é uma retórica superlativa ainda sem projetos elaborados. A do presidente tem iniciativas, decretos e MPs que dispersam a atenção do Congresso. O progresso é muito mais do que um indicador e a economia jamais será uma ilha.


Míriam Leitão: Mundo confuso é dificuldade extra

Atividade melhora no Brasil no momento em que o mundo é atingido pelas incertezas na economia, no comércio e na política

A economia brasileira começa a ter um alívio no momento exato em que aumentam as sombras no mundo. Os dados preliminares mostram que o terceiro trimestre do ano teve um bom nível de atividade. Há indicadores que ainda não saíram, mas ontem, por exemplo, a notícia foi de que as vendas dos supermercados em agosto aumentaram mais de 4% sobre o mês anterior, e mais de 7% sobre agosto de 2018. O temor de que o trimestre fosse negativo já ficou para trás.

Por outro lado essa semana houve uma queda forte das bolsas no mundo. A economia anda assombrada pelo aumento da incerteza de um processo de impeachment nos Estados Unidos, pelas idas e vindas da guerra comercial entre as duas maiores potências, pela intensidade das trapalhadas inglesas, pela frieza da economia alemã, pelos sinais de desaceleração global.

Na economia, os Estados Unidos vivem uma contradição: a menor taxa de desemprego em 50 anos e o aumento dos temores com a desaceleração. As encomendas à indústria dos EUA encolheram em agosto. Como as fábricas de lá demandam produtos de diversos outros países, o problema extrapola suas fronteiras. Indicadores mostram que também em setembro houve retração no setor industrial. Na próxima semana, haverá novas rodadas de negociações entre americanos e chineses, o que deixa o mundo sempre de nervos expostos. As investigações do processo de impeachment contra o presidente Donald Trump também aumentam a incerteza. Os indícios dos erros se acumulam e Trump ataca e quer dobrar a aposta.

A Organização Mundial do Comércio (OMC) cortou de 2,6% para 1,2% a estimativa de crescimento do comércio este ano. Isso é reflexo direto da guerra comercial. Para o ano que vem, a redução é mais discreta. Um mundo com menos comércio cresce menos e isso atinge algumas economias mais do que as outras. A Alemanha, que é o motor da economia da União Europeia, e tem muita integração com as cadeias produtivas globais, já está com números negativos. O PIB encolheu 0,1% no segundo trimestre e de julho a setembro a situação piorou, especialmente na indústria. O Reino Unido não sabe como levar adiante o plano do Brexit. Não sabe, a bem da verdade, desde que aprovou essa saída, mas agora o processo está sendo liderado por um primeiro-ministro que vem escalando os conflitos políticos e as ameaças de uma separação sem negociação. O Japão, que já vinha em baixo crescimento, elevou o imposto sobre o consumo e ativou temores de uma recessão.

Na América do Sul, a Argentina, que é o principal destino dos nossos produtos industriais, tem eleições no final do mês, e muito provavelmente Mauricio Macri, candidato à reeleição, será derrotado. A dúvida é se o governo brasileiro levará adiante as ameaças do presidente Jair Bolsonaro de se afastar do país por não gostar da linha ideológica do governo peronista que pode vir a ser eleito.

Acumulam-se dúvidas no mundo, no momento em que o Brasil ainda se debate com o baixo crescimento. Não há no horizonte qualquer garantia de crescimento vigoroso e sustentado, porém os dados mostram que de julho a setembro o Brasil colheu alguns bons números, afastando o risco de um PIB negativo. A indústria teve um crescimento mais forte em agosto, recuperando praticamente o que havia perdido nos três meses anteriores. O comércio e os serviços vieram acima do esperado em julho. A Abras, Associação Brasileira dos Supermercados, divulgou um forte avanço nas vendas em agosto, com ganhos reais de 4,25% sobre julho e de 7,1% sobre agosto de 2018. A LCA Consultores estima um crescimento de 0,5% do PIB sobre o segundo trimestre, o Itaú Unibanco projeta 0,4%. Com algumas diferenças, as previsões são em geral positivas. Houve dados bons na criação de empregos.

A retomada do crescimento precisa de muito mais do que isso, evidentemente. Mas nessa briga trimestre a trimestre, o que acaba de ser encerrado teve pelo menos algumas boas surpresas. O problema é que as sombras que se espalham no mundo, de incertezas políticas, econômicas e comerciais, podem tornar mais árduo o esforço de tirar o país do crescimento de 1% que se repete pelo terceiro ano consecutivo, depois de duas quedas sequenciais. O mundo confuso é um desafio a mais para a economia.


Míriam Leitão: Olhar de dentro da Amazônia

Governo do Amapá tem gasto recursos próprios para financiar programas que antes eram pagos pelo Fundo Amazônia

O Brasil está de costas para a discussão do mundo sobre a Amazônia. Quem diz isso é o governador do Amapá, Waldez Góes, que participou da Cúpula do Clima, em Nova York, mas não pôde falar. Ele acha que o atual governo federal tem um “discurso permissivo” em relação ao desmatamento e define essa situação como perigosa, porque o resultado disso pode ser a criação de barreiras aos produtos brasileiros decretadas diretamente por quem compra:

— Dificilmente um país vai criar barreira comercial, mas quem consome pode criar, através da pressão sobre as empresas que compram de produtores brasileiros.

Ele diz que é “estranho” o que aconteceu em Nova York:

— Acho que nem a comunidade internacional pode debater a Amazônia sem ouvir o povo da Amazônia, seja autoridade política, indígena, ou produtor, nem o Brasil pode deixar de participar de qualquer debate sobre Amazônia no mundo.

O governador estava convidado a falar na reunião da Cúpula do Clima, mas ao chegar foi informado de que a Colômbia não queria que ele tivesse direito à palavra, por pressão, soube-se depois, do próprio Itamaraty. A diplomacia brasileira negou que tivesse feito esse movimento, e ele mesmo nem comenta o motivo de a sua palavra ter sido suspensa. O que ele entendeu, participando como ouvinte, é o fato estranho de o Brasil atualmente ter abandonado o protagonismo que já teve:

— Pela sua dimensão continental o Brasil tem que não apenas participar, como também liderar esse debate sobre florestas, sobre redução das emissões. Na hora em que o Brasil se ausenta e demonstra que está fazendo uma mudança para um modelo de desenvolvimento mais permissivo com o desmatamento a situação pode complicar porque somos produtores de alimentos.

Waldez Góes é coordenador do Consórcio da Amazônia Legal e conta que os governadores da região têm mantido intensa articulação, como reuniões com a Noruega, Alemanha e o Reino Unido, para reativar o Fundo Amazônia, de preferência com a mesma governança de antes, em que cada um dos estados tinha um representante no Conselho Orientador. Ele diz que os estados já enviaram carta ao governo federal pedindo a reconstituição integral do Fundo Amazônia.

Por uma resolução do Senado, consórcios, como o que ele lidera, podem realizar operações de crédito multilateral, bilateral, reembolsável ou não. Uma das opções é a relação direta com doadores. O que ele considera é que o país não está em condições de recusar dinheiro, como tem feito. Novas reuniões técnicas devem ser realizadas com a Noruega e a Alemanha nos próximos meses. E há encontros marcados também com o governo para que o instrumento, que tem financiado operações de combate ao desmatamento na região, volte a funcionar.

Sobre a operação das Forças Armadas na região, o governador Waldez Góes disse que todos os estados aderiram, mesmo os que não estavam com problemas, como o Amapá. Afirma que aderiu como prevenção porque lá o aumento das queimadas ocorre em outubro e novembro:

— O que temos que fazer agora é pactuar uma central de monitoramento permanente. Porque sair da crise, diminuir as queimadas e esquecer a Amazônia até a próxima crise não dá. Precisamos de uma força-tarefa para recuperar a situação exposta do Brasil e da Amazônia.

Ele diz que discorda da mineração em terra indígena, principalmente a partir da maneira como ela está sendo proposta agora, “de forma permissiva”. Segundo ele, na Amazônia há muita terra “antropizada” e é mais importante recuperar essas áreas do que ocupar outras:

— Por que vamos discutir a terra dos índios se não temos tido competência ainda para produzir nas terras que foram antropizadas?

Ele defende o uso da “informação, ciência e conhecimento” na exploração econômica da floresta, por isso quer a reativação do Centro de Biotecnologia do Amazonas (CBA), “que foi criado há mais de dez anos e nunca funcionou”.

O Amapá acaba de contratar o Exército para fazer o georreferenciamento de áreas do estado que deve regularizar:

— Contratei com recursos do estado, gostaria que fosse com dinheiro do Fundo Amazônia.

Segundo ele, o consórcio da Amazônia tem governadores de diversas linhas políticas que têm conseguido se entender para projetos na mesma direção.


Míriam Leitão: Reforma encolhe mas tem impacto

Com perdas e ganhos, esta é a primeira reforma da Previdência que muda o sistema de pensões dos setores público e privado ao mesmo tempo

A reforma aprovada ontem em primeiro turno no Senado permitirá uma economia em torno de R$ 700 bilhões em 10 anos, mas é a mais ampla já feita.

Não será suficiente para resolver a equação da Previdência, assunto que voltará a nos incomodar no próximo governo. Ela tem o avanço da idade mínima, mas reduziu muito menos as desigualdades do que dizia. E manteve diferenças e privilégios, como para os policiais federais e os funcionários que têm mais de 16 anos de serviço público.

O Itaú prevê uma economia de R$ 688 bilhões em dez anos sem contar o aumento da Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL), que a rigor não é redução de despesa mas sim aumento de receita. Se contar com a CSLL que incidirá sobre o setor financeiro, o ganho subirá para R$ 738 bilhões. A consultoria MB Associados repete o que já vinha dizendo, que ficaria entre R$ 700 bilhões e R$ 800 bilhões.

A maior perda no Senado foi a do abono salarial. Alguém pode pensar que isso é justo já que atinge apenas quem recebe até dois salários mínimos. O governo havia proposto até um salário mínimo. Foi para 1,4. E o Senado retornou a regra vigente, anulando qualquer mudança. Um integrante do governo explica assim a situação criada.

—Você esquece o informal, esquece o desempregado e gasta R$ 20 bilhões por ano com quem está empregado, com todos os direitos, e recebendo até dois salários mínimos. Esse valor é mais da metade do que o governo gasta com o Bolsa Família —diz.

O economista Pedro Schneider, do Itaú Unibanco, afirma que a melhor métrica não é a economia em dez anos, como o governo faz, mas sim a projeção de déficit primário num prazo longo.

—Em 2018 tivemos um déficit de 1,8% do PIB. Sem a reforma da Previdência, em 2027 teríamos um déficit de 2,6% do PIB. O projeto aprovado pelo Senado traz um ganho de 1,5 ponto do PIB em 2027. Ou seja, o rombo projetado cai para 1,1%. A MP antifraude economiza 0,3 ponto do PIB, isso faz com que a projeção do resultado negativo caia para 0,8% —explicou.

Ele conclui que a reforma é fundamental, mas não suficiente, e o país precisa continuar olhando suas despesas para reduzi-las. No governo se diz que há avanços que não são fáceis de medir.

—Existe um ganho mais sutil coma redução da judicialização. Hoje 17% das despesas previdenciárias têm origem judicial. Corresponde a R$ 109 bi. Haverá uma redução da competência delegada para a Justiça estadual. Vai continuar existindo a judicialização? Sim, mas menor. P orou trolado, propusemos afixação do critério do B PC, e o Senado derrubou. Os parlamentares preferiram abrir mão do direito de legislar, entregando a decisão para os juízes, e hoje 30% do BPC são concedidos por decisão judicial com critérios diferentes entre si — disse um integrante da equipe econômica.

Com perdas e ganhos, o fato é que esta é a primeira reforma da Previdência que muda o sistema de pensões do setor público e do setor privado ao mesmo tempo. O economista Sérgio Vale, da MB Associados, avalia que o avanço é importante:

— É a primeira que mudou pontos difíceis, como a idade mínima. Mesmo assim, muito provavelmente vamos discutir outra reforma da Previdência no próximo governo, ou seja, esse assunto está longe de se esgotar. A questão fiscal no Brasil terá um longo processo de discussão.

A reforma teve de fato muitos ganhos, mas perdeu substância e economia no meio do caminho.

—O projeto original previa um ganho fiscal em 10 anos de R$ 1,253 trilhão. Na Câmara, caiu para R$ 865 bilhões, agora no Senado caiu para R$ 738 bi, e se a gente tirar da conta a receita com a CSLL fica em R$ 688 bilhões em 10 anos —diz Pedro Schneider.

Mais do que isso. Perdeu-se conceito. O nome “Nova Previdência” ficou sendo apenas uma marca de fantasia. A velha tem agora novos parâmetros e alguns dos mesmos defeitos.

Os servidores que entraram antes da reforma do ex-presidente Lula, em 2003, ou seja, que têm hoje mais de 16 anos de serviço público, continuarão tendo integralidade e paridade.

A proposta era que eles cumprissem a mesma idade mínima, mas ela foi reduzida na Câmara. Os policiais federais estão inconformados, mas os que trabalham hoje se aposentarão com 52 e 53 anos. Cedo demais para receber um benefício do Estado num país tão desigual.


Míriam Leitão: A China desafia todas as previsões

Nos 70 anos da revolução comunista, a China não pode ser ignorada, deve ser entendida para se tirar o melhor proveito dessa relação inevitável

A China chega aos 70 anos da revolução comunista tendo derrubado as previsões negativas sobre o país, como a de que haveria uma queda brusca do crescimento ou uma explosão social. Os líderes conseguiram com que a desaceleração do PIB fosse gradual, dos 14% no melhor momento em 2007 para os atuais 6%. Ao mesmo tempo, derrubou também as previsões otimistas, como a teoria de que após o progresso econômico a classe média alta e a elite exigiriam liberdades democráticas. Ela se torna cada vez menos comunista e permanece sendo uma ditadura.

O último grande desafio democrático que enfrentou foi em 1989, quando a economia cresceu pouco. Naquele momento, com a queda do muro de Berlim, os regimes comunistas sendo demolidos, o país teve um péssimo ano econômico. Mas o ano ficará para sempre na história do mundo como aquele em que impiedosamente tanques passaram por cima de estudantes na Praça da Paz Celestial. Até hoje não se sabe quantos morreram.

Ontem, no 70º aniversário da revolução maoista, o presidente Xi Jiping vestiu-se de Mao, instalou-se no mesmo ponto da Praça em que Mao anunciou o começo da era comunista. De lá, o líder chinês comandou a exibição aos chineses e ao mundo do poderio militar que a segunda maior economia acumulou. Xi mudou as leis que previam períodos governamentais. Seu mandato é de tempo indeterminado.

Na ilha de Hong Kong, no entanto, o regime continua a ser diariamente desafiado pelos que querem liberdade. Mesmo após a derrubada do decreto que disparou as manifestações, elas continuam mostrando uma impressionante resiliência. O mundo acompanha tenso a evolução do conflito, com a polícia cada vez mais dura. Ontem, houve um manifestante baleado.

A elite chinesa estudou fora do país, em projeto que o próprio governo conduziu como parte da estratégia de deixar de ser um mero exportador de produto de mão de obra barata, para dominar a alta tecnologia. Apesar da convivência com outros países e outras culturas, as classes mais prósperas da China ainda não fizeram internamente pressão suficiente para que haja reformas democratizantes. Quem tentou ao longo do tempo se opor ao regime foi expelido do país, reprimido ou isolado de alguma forma. A China teve um aumento forte da desigualdade nas últimas décadas em função do projeto de acumulação de riquezas. Apesar disso, tem conseguido manter os pobres sob controle por causa do crescimento econômico. A dúvida sempre foi sobre o que acontecerá com todas essas tensões numa conjuntura econômica adversa.

As relações com o Brasil são um retrato do crescimento da China nas últimas décadas. Pegando-se apenas o que aconteceu entre 1998 e 2008, as exportações brasileiras aumentaram 44 vezes, saindo de US$ 1,5 bilhão para US$ 66 bilhões. As importações saltaram 23 vezes, de US$ 1,5 bilhão para US$ 35 bilhões. No ano passado, a China sozinha absorveu mais do que tudo o que o Brasil vendeu para a União Europeia e o Mercosul somados. Mas é um comércio excessivamente concentrado em três produtos: soja, petróleo e minério de ferro. Numa segunda dimensão estão produtos como carnes bovina, de frango e suína e celulose.

A China, como parte da estratégia de deter poderio global, tem investido em infraestrutura em inúmeros países em desenvolvimento, entre eles o Brasil. Já são fortes na área de energia. Vão disputar no leilão da cessão onerosa. Têm diversos outros interesses de investimento.

Durante a campanha, o presidente Jair Bolsonaro sustentou um discurso antichinês que, depois da posse, abandonou. Por isso, prepara agora uma ida à China depois de vários dos integrantes do seu governo já terem ido. A China não pode ser ignorada. Deve ser entendida para saber qual é o melhor proveito a se tirar dessa relação inevitável.

Os Estados Unidos de Donald Trump tentam impor limites à China através do conflito comercial, mas hoje o país asiático tem uma produção tão integrada ao mundo que uma barreira ao produto chinês acaba ferindo a própria economia americana. A estratégia trumpista de pressão máxima não funciona muito com os chineses e está ferindo a própria economia americana. Por outro lado, não é crível que a China continue indefinidamente mantendo o poder político concentrado no Partido Comunista e o poder econômico privatizado pelas reformas capitalistas.


Míriam Leitão: Os dinheiros da Lava-Jato

Valor recuperado pela Lava-Jato mostra que ela não foi perseguição contra um partido, mas investigação de crimes contra os cofres públicos

A Lava-Jato é a mais bem-sucedida operação de combate à corrupção se for considerado o valor do dinheiro ressarcido. Como mostrou a reportagem deste jornal ontem, aproximadamente R$ 2 bilhões do dinheiro desviado já voltaram aos cofres públicos, somente pelos delatores. Mas há também o que foi pago pelas empresas em acordos de leniência. Só o JBS está pagando parcelado uma dívida R$ 10,3 bilhões corrigida pela inflação. Tem ainda o que foi pago pela Petrobras pelo acordo com o Departamento de Justiça americano que já está indo para cobrir despesas públicas.

Os acordos de leniências das empresas foram fechados com instâncias diferentes do setor público. Alguns com o Ministério Público Federal, outros com a AGU, outros com o Cade. É difícil saber tudo o que será pago ao fim do processo. Para se ter uma ideia, o acordo do MP com a JBS prevê pagamento de R$ 10,3 bi em 23 anos corrigido pelo IPCA. Já pagou quatro parcelas semestrais, um pouco mais de R$ 200 milhões, segundo apurações da coluna. Talvez o JBS tenha que antecipar pagamentos, em duas circunstâncias: se o STF decidir revisar as colaborações, e se o grupo fizer um acordo com o Departamento de Justiça de pagar em período mais curto.

O governo tem recebido dinheiro, mas perdeu muito mais. O jornal “Estado de S. Paulo” trouxe uma estimativa feita pelo presidente do BNDES, Gustavo Montezano, de que o potencial de perdas com a Odebrecht pode ser de R$ 14,6 bilhões. Só que ele não disse que critério usou. Esse valor de R$ 14,6 bilhões é o total de dívida das empresas do grupo em recuperação judicial. Algumas têm garantia — como ações da Braskem, por exemplo. No caso da Atvos, tem que ser descontado o custo da Brenco, uma empresa de açúcar e álcool, com dívidas impagáveis, que o banco pediu para a Odebrecht assumir em troca de um financiamento. Enfim, a conta precisa ser bem feita e, na verdade, não é preciso exagerar porque as perdas do BNDES serão grandes mesmo, tanto com a Odebrecht quanto em outras operações que vêm sendo investigadas por corrupção.

Na reportagem publicada ontem pelo GLOBO, o repórter Gustavo Schmitt fez um levantamento de tudo o que já foi pago nas delações premiadas. Até agora, chega a R$ 1,837 bilhão pagos por delatores. O valor total, ao fim das parcelas, será R$ 3,1 bilhões. Há outros recursos que voltam aos cofres públicos mesmo que não sejam de delatores, como os R$ 77 milhões descobertos pela Lava-Jato em contas no exterior de Renato Duque.

O que causou polêmica foi o dinheiro do acordo entre a Petrobras e o Departamento de Justiça americano. Os procuradores de Curitiba pensaram em criar uma fundação destinada a combater a corrupção, e a PGR entrou no Supremo contra a ideia. Neste mês, foi fechado um acordo entre o governo, a PGR e o Supremo, através do ministro Alexandre de Moraes, e o dinheiro foi destinado em grande parte para Amazônia e educação. Falado assim parece ótimo, porque são duas grandes emergências, mas é preciso ficar ainda mais transparente a destinação do dinheiro. Um dos objetivos do ministro Ricardo Salles é usar no que ele define como “regularização fundiária”, que pode acabar levando recursos para quem ocupou indevidamente terra pública. Um governo que defende posições controversas precisa explicar melhor como pretende usar o dinheiro que volta aos cofres públicos. Já na Petrobras, segundo a empresa, todo o dinheiro devolvido pela Lava-Jato entrou no caixa para ser usado como a estatal achou mais necessário.

Em inúmeros casos de combate à corrupção houve revelação sobre perdas. O que torna a Lava-Jato diferente de outras operações é a capacidade demonstrada de fazer os corruptos devolverem o dinheiro do assalto aos cofres públicos.

Esses montantes que voltaram demonstram claramente que a operação não foi uma perseguição política contra um único partido, mas sim investigação sobre crimes cometidos contra os cofres públicos por empresas e políticos. Pode-se criticar vários aspectos da operação, como a intimidade que se revelou existir entre o juiz Sérgio Moro e os procuradores de Curitiba. Mas os recursos retornados são a prova da corrupção que de fato ocorreu no Brasil. É difícil argumentar diante da materialidade do dinheiro.


Míriam Leitão: As várias faces da mesma crise

Desestruturação do mercado de trabalho atinge 58 milhões de brasileiros. São os desempregados, informais ou desalentados

Os dois indicadores de emprego divulgados esta semana reafirmam que a recuperação do mercado de trabalho é muito lenta. Os sinais são mistos, há criação de vagas, mas a desestruturação do mercado de trabalho atinge, em maior ou menor grau, cerca de 58 milhões de brasileiros. A recuperação é demorada porque o crescimento da economia nos últimos trimestres foi baixo e as projeções para o PIB do ano que vem estão encolhendo. O Banco Central já espera apenas 1,8% de alta em 2020. No acumulado do ano, o país criou menos emprego formal do que no auge da crise em 2009. A boa notícia é a oferta de vagas na construção civil, especialmente no mês de agosto.

O governo, a cada notícia boa, comemora, achando que assim consegue estimular o otimismo. Essa técnica é velha e nunca resolveu coisa alguma. Os fatos são os fatos. A crise foi herdada, mas ainda não foi enfrentada adequadamente. Quando o tema é emprego, não diz muita coisa afirmar que os números são os maiores dos últimos anos porque a base de comparação é muito baixa.

Os desempregados são 12,5 milhões, e os desalentados, 4,7 milhões. Entre quem trabalha, há quase 12 milhões sem carteira no setor privado, e outros 4,4 milhões de domésticos também sem formalização. Mais de dois milhões têm emprego familiar, muitas vezes sem remuneração, e os empregados por conta própria sem CNPJ são quase 20 milhões. No setor público, ainda há 2 milhões sem carteira e quase 1 milhão é empregador não formalizado. Somando tudo, apesar das diferenças de situação, são 58 milhões de brasileiros, mais de metade da população economicamente ativa.

A melhora este ano é tímida. O país gerou 593 mil empregos formais, de janeiro a agosto. No mesmo período do ano passado, com toda a incerteza eleitoral, foram 568 mil. Em 2009, quando o reflexo da crise internacional estava no auge, foram criados 680 mil empregos com carteira. Na comparação entre 2018 e 2019, a abertura de vagas foi praticamente a mesma na indústria. No setor de serviços, houve queda, e a surpresa positiva ficou na construção civil, que aumentou de 65 mil para 96 mil os empregos criados. Quando a análise é apenas para o mês de agosto, que seria um dado melhor “na margem”, como dizem os economistas, pegando o número na ponta, os resultados são semelhantes. Em 2018, 110 mil empregos criados, no mesmo mês deste ano, 121 mil. Cresceu, mas não muito.

O economista Bruno Ottoni, pesquisador do Idados e especialista em mercado de trabalho pelo Ibre/FGV, explica que a geração de vagas é gradual e está sendo puxada pela informalidade, que, como disse o IBGE, bateu recorde em agosto. Ottoni explica que nem sempre informal é sinônimo de precarização. Em alguns casos, pode-se ganhar mais trabalhando sem a carteira assinada. Mas não é isso que tem acontecido na maioria dos casos no país.

— O que vemos é que há recorde da informalidade, e o rendimento médio do informal está abaixo do formal. O mercado de trabalho responde sempre por último, e o fato é que a economia como um todo ainda está em um processo muito lento de recuperação — explicou.

De todos os empregados do país, 41% estão na informalidade, o maior percentual desde 2016. No mês de agosto, nove em cada 10 vagas criadas foram informais (87%). Nesse grupo estão pessoas que trabalham sem carteira, sem CNPJ ou até mesmo sem remuneração, em trabalhos para a família.

O país tem 2 milhões de empregos formais a menos do que em relação ao melhor momento de 2014. Pelas projeções de Bruno Ottoni, se a economia crescer 2% no ano que vem, como estima o mercado financeiro, haverá geração entre 700 mil e 800 mil. Ou seja, nem em 2020 haverá plena recuperação do emprego.

Para quem está desempregado, o tempo de espera para voltar ao mercado pesa muito. As contas não param de chegar, os sonhos de famílias inteiras são adiados. Investimentos em capacitação e educação são suspensos, e as despesas com saúde, tratamentos e remédios ficam mais pesadas em relação ao orçamento. O drama é vivenciado dia após dia. E quanto maior o tempo fora do mercado de trabalho mais difícil é a recolocação. O tempo corre contra o desempregado. O país está gerando vagas, mas o ritmo é lento e não é hora para comemorações, principalmente dentro do governo.