Míriam Leitão: O megaleilão e o futuro do petróleo

Brasil faz seu maior leilão no momento de sentimentos mistos sobre o petróleo. Ele é forte estímulo à economia, mas seu futuro está em xeque no mundo

O país terá esta semana o seu maior leilão de petróleo e apesar da desistência da BP e Total, e do temor de que algumas áreas não tenham propostas, as expectativas permanecem boas. O Brasil vive um momento de sentimentos mistos: esse leilão é visto como um grande estímulo à economia, a fórmula que o tornou possível foi criada no governo Lula, e os brasileiros estão sofrendo o pior lado do petróleo com o crime ambiental que atinge praias e o nosso precioso Abrolhos. A questão que sempre agita o mundo da energia é: qual é o futuro do petróleo?

A semana começou com o IPO da maior empresa de petróleo do mundo, que produz 11% do óleo global. O mundo discute há muito o fim do petróleo que hoje ainda responde por um terço da energia e das emissões de gases de efeito estufa. Pelos próximos 30 anos, é certo que essa fonte estará conosco, mas tende a cair ao longo do tempo. Segundo reportagem desta semana da revista “Economist”, o termo peak oil, indicando o auge da produção e ponto a partir do qual passaria a cair, foi criado pelo geólogo americano Marion King Hubbert, em 1956, mas hoje quando é usado não está se referindo à escassez do produto, e sim à queda da demanda, afetada pelo esforço de conter o aquecimento global.

Segundo a revista, a maioria dos analistas acha que a produção vai crescer um pouco na próxima década, para apenas ligeiramente acima dos atuais 95 milhões de barris por dia, mas até 2050 a produção terá de encolher para 45 a 70 milhões de barris, se o mundo quiser conter o aquecimento global entre 1,5 e 2 graus centígrados, acima do nível pré-revolução industrial. Isso estimulará outras fontes mais limpas, e o mercado vai preferir os óleos leves como os da Arábia Saudita, em vez do pesado como o da Venezuela. Nesse horizonte, alguns produtores serão mais vulneráveis que os outros. O Brasil tem vários tipos, que são bem mais leves do que os da Venezuela, mas não chegam ao tipo saudita.

A opinião pública está mudando rapidamente no mundo, ampliando-se o movimento contra as emissões. Portanto, é previsível que haja um aumento das pressões contra fontes fósseis. Quem tem esse ativo no seu subsolo, no nosso caso, no subsolo marinho, sabe que precisa produzir rápido. É isso o que levou talvez a Arábia Saudita a abrir o capital da sua empresa.

O jornal “The New York Times” publica que o aumento de produção nos próximos dois anos de países como Brasil, Noruega, Canadá e Guiana pode adicionar uma oferta que derrubará preços e ameaçar produtores como Arábia Saudita, Rússia e Estados Unidos. Ao mesmo tempo, esse aumento de oferta ocorre quando está perto do começo da queda da demanda.

Um terço do petróleo do mundo é usado em carros e caminhões, que podem eventualmente migrar para o modelo elétrico. O Brasil tem ainda o etanol, e a indústria do setor argumenta que esse combustível, desenvolvido aqui nos anos 70, e que passou por vários avanços, tem vantagens sobre o carro elétrico, cuja produção e descarte de baterias emite muito. Hoje se tenta atrair o consumidor com o balanço mais detalhado das emissões de cada fonte.

A “Economist” diz em seu texto de capa que “um planeta mais limpo é do interesse de todos. Mas uma indústria do petróleo encolhendo pode significar mais, e não menos, turbulência”. A indústria do petróleo no mundo tem US$ 16 trilhões de capital e pelo menos 10 milhões de funcionários. Sua redução sempre será tensa. A revista prevê inclusive a implosão da Opep.

O Brasil está fazendo um megaleilão para tentar recuperar um atraso. No governo Lula, decidiu-se mudar o modelo para partilha no pré-sal, o país ficou cinco anos sem leilão, perdeu um momento de muito interesse na nossa economia e de petróleo em torno de US$ 100. Em 2010, o governo cedeu, mediante pagamento, áreas para a Petrobras explorar 5 bilhões de barris. O que será leiloado agora é o excedente dessa “cessão onerosa”.

O drama que o Brasil vive nas praias não foi provocado por nós, mas ajuda a lembrar como essa é uma riqueza que tem um alto custo ambiental. No último leilão não houve propostas para as áreas ofertadas perto de Abrolhos. Está claro que aquele é um tesouro a ser protegido. O petróleo sempre terá duas faces. O Brasil tem que saber que o interesse nessa fonte declinará em breve. E o dinheiro que vier dela tem que ser bem usado.


Míriam Leitão: Resistir na ciência e na universidade

Governo ataca as universidades sem conhecê-las e persegue cientistas quando não gosta do resultado das pesquisas

Noventa e cinco por cento das pesquisas são feitas nas universidades e mesmo assim 18 mil bolsas da Capes e do CNPQ foram perdidas e as universidades são atacadas pelo governo, lembra o reitor da Unicamp, Marcelo Knobel. A cientista Mônica Lopes-Ferreira, punida por ter divulgado uma pesquisa mostrando que não há dose segura de agrotóxico, disse que a ciência pede respeito. Entrevistei os dois sobre esse tenso momento do país, em que as universidades públicas e a pesquisa científica são alvos de ataque constante.

Mas a sociedade resiste. A Unicamp fez um movimento que mobilizou oito mil pessoas no campus, para a leitura de uma moção de defesa da ciência e da universidade, que uniu alunos de graduação, pós-graduação, professores, funcionários e a reitoria:

— Foi algo inédito em 53 anos. A primeira vez que isso ocorreu, mas a ideia era mostrar para a sociedade a importância da educação pública, da ciência e da tecnologia.

Uma prova da produtividade da universidade é que o faturamento anual das “empresas filhas da Unicamp” chega a R$ 7,9 bilhões, segundo divulgação recente na Agência de Inovação da Unicamp. São empresas fundadas por ex-alunos. A universidade transformou a região num polo de startups em diversas áreas. São 815 empresas que juntas criaram 35 mil empregos diretos.

— E fala-se que na universidade só tem balbúrdia e nada acontece. É um lugar que forma gente com seriedade — diz o físico Knobel.

A imunologista Mônica Lopes-Ferreira foi a responsável pelo desenvolvimento de um remédio para asma que evita os corticoides.

— Foi a partir das pesquisas que fazemos com peixes há mais de 20 anos. Num deles, encontramos uma molécula que é anti-inflamatória e cuja principal função pode ser o uso nos tratamentos contra asma. Existe já a patente em mais de 15 países, durante muito tempo trabalhamos em associação com a indústria farmacêutica brasileira e o que precisamos hoje é o investimento para que isso possa virar um medicamento — disse Mônica.

Mesmo com esse histórico, ela foi afastada por seis meses das pesquisas do Instituto Butantã sob o pretexto de que ao fazer a última pesquisa com peixes não submeteu ao comitê de ética. Ela foi à Justiça, que a reintegrou. A conclusão da pesquisa e que mesmo em doses mínimas, dez agrotóxicos testados provocam deformações ou matam os peixes.

— A ciência e a educação precisam ser respeitadas. Essa é a palavra, porque a ciência está em tudo. O que precisamos hoje é respeito, e foi isso que o movimento da Unicamp exigiu: respeito — disse Mônica.

— A verdade é que nunca, em nenhum momento da história da humanidade, algum país saiu da crise sem investir em ciência e tecnologia. Na Unicamp, temos uma história de sucesso e isso pode ser provado pelos números do faturamento e emprego das empresas filhas. Elas se conectam, há um networking acontecendo em Campinas, bem interessante. Mas isso acontece também em São Paulo, no Rio, em vários lugares do Brasil — diz Marcelo Knobel.

Hoje, segundo o reitor, praticamente 30% do orçamento da Unicamp vêm de parcerias com outras entidades, sejam empresas públicas ou privadas.

— Muita coisa é dita das universidades brasileiras sem nos conhecer. Eu atribuo (os ataques) à falta de conhecimento e ao discurso ideológico — disse Knobel.

O reitor definiu o Future-se, programa que o governo lançou, como “incerto”. Ele cria um fundo que poderia ser aproveitado para as pesquisas nas universidades, mas não se diz como o fundo vai ser constituído e como vai funcionar:

— Não se diz qual é o modelo de negócios do fundo.

Os dois disseram na entrevista que é fundamental preservar a autonomia das universidades e a liberdade de pesquisa. E é exatamente o que tem sido afetado por atos e palavras do atual governo.

— No meu caso, é porque o meu achado (contra os agrotóxicos) desagradou. É muito estranho eu ter que ir à Justiça para ter liberdade de pesquisa. Não estou brigando com o Instituto Butantã, que é um dos maiores centros de pesquisa, estou brigando pela ciência. E continuo trabalhando. Agora estou testando as águas de Brumadinho. Dado é dado, a gente não briga com dado.

Knobel fez um esforço de ajuste fiscal e a Unicamp está perto do equilíbrio orçamentário. Contudo, acha que certos cortes que o governo têm feito são ataques à universidade pública.


Míriam Leitão: Novo cenário do crédito no país

Quedas sucessivas da Selic estão chegando na ponta em várias linhas e transformando o mercado de crédito. Isso vai estimular a recuperação

Algumas boas notícias começam a surgir no mercado de crédito como reflexo da queda consistente da taxa de juros, que ontem foi para 5%. A Selic tem ido a níveis historicamente baixos há algum tempo, mas agora as previsões dos economistas começam a apontar a possibilidade de uma taxa de juros básica abaixo de 4% no ano que vem. A oferta de crédito está aumentando, os spreads estão caindo, e o mercado privado tem assumido mais espaço, antes dominado por bancos públicos.

Esse novo cenário do crédito começou a se formar através da sucessão de quedas da Selic, que começou no governo anterior. De janeiro de 2018 até setembro de 2019, nesse um ano e nove meses, o saldo do crédito para a pessoa jurídica aumentou 18%, e para a pessoa física, subiu 22%. Os juros médios caíram 4,6 pontos percentuais nas linhas para as empresas e 4,5 pontos para as pessoas físicas. De lá para cá, a Selic caiu de 7% para 5%. Os juros ainda permanecem altíssimos na ponta, principalmente nas linhas do chamado hotmoney, como cheque especial e cartão de crédito, mas já houve um ciclo de melhora. As taxas médias cobradas nas operações com as empresas foram de 22,4% para 17,8%, e as das pessoas físicas foram de 55,8% para 51,3%.

Há outros eventos no mercado, como o contado aqui neste espaço pelo economista José Roberto Mendonça de Barros, em que o crédito rural este ano está em grande parte coberto por linhas de bancos privados, e menos dependente do Plano Safra. Empresas têm emitido debêntures no mercado privado para captar recursos e pagar antecipadamente dívidas contraídas no BNDES. Os juros à época subsidiados estão agora mais altos do que os custos com os quais as empresas estão se financiando.

O grande impacto, contudo, da queda da Selic, é no custo da dívida pública, que chegou a ser de quase 9% do PIB nos 12 meses terminados em janeiro de 2016. Agora, está indo para abaixo de 5%. Se estivesse pagando o custo daquela época, a despesa extra seria de quase R$ 300 bilhões por ano. Essa redução leva a uma diminuição do déficit nominal e facilitará o ajuste nas contas públicas, porque a economia necessária para se estabilizar a dívida será menor.

No comunicado da redução da Selic para 5%, ontem, o Banco Central indicou que haverá uma nova redução de meio ponto, na próxima reunião, em dezembro, caso as condições das economias brasileira e internacional permaneçam as mesmas. Foi o que ele quis dizer na parte em que “a consolidação do cenário benigno para a inflação prospectiva deverá permitir um ajuste adicional, de igual magnitude.” Dessa forma, a Selic cairá para pelo menos 4,5% no ano que vem e há economistas apostando em novas reduções.

Na visão do Banco Central, a recuperação da economia continuará em “ritmo gradual”, em outras palavras, isso significa um passo lento. Por um lado, a aprovação da reforma da Previdência e outras medidas fiscais que devem ser apresentadas pelo governo melhoram a trajetória da dívida pública. Por outro, não há como negar que o baixo ritmo de recuperação favorece esse cenário de juros baixos e a inflação. A grande dúvida é o que acontecerá com os índices de preços quando a economia de fato passar a crescer mais fortemente.

A economista-chefe do banco Ourinvest, Fernanda Consorte, avalia que o cenário é benigno para a inflação e o Banco Central tem que aproveitar o momento para reduzir a taxa Selic. Mas ela vê com cautela a desvalorização do real sobre o dólar, que saiu de R$ 3,76 no final de julho e bateu em R$ 4,18 no mês passado. Mesmo com a aprovação da Previdência, permanece ao redor de R$ 4. Isso pode bater na inflação em um cenário de recuperação mais forte.

— Estamos com dólar em torno de R$ 4 há praticamente há 3 meses. Por enquanto, o efeito sobre a inflação está pequeno, porque a recuperação permanece fraca. Mas isso pode mudar em caso de aceleração da economia. Para cada 10% de aumento do dólar, o impacto sobre o IPCA fica em torno de 1 ponto em 12 meses — afirmou.

Ontem, o Fed reduziu a taxa de juros americanas para a faixa entre 1,5% e 1,75%, como esperado, mas indicou que fará uma pausa, depois de três cortes este ano, o que não estava no radar. Isso pode pressionar a cotação do real, porque o diferencial entre os juros brasileiros e os americanos será menor, o que fortalece a moeda americana.

A expectativa é que o Banco Central, se tiver que elevar os juros mais à frente, não volte com a Selic ao mesmo patamar em que estava antes. Esse ganho poderá ser permanente ao país.


Míriam Leitão: A falta de limites do presidente

Nada atenua o que foi postado. Presidentes não têm palavras extraoficiais, nem declarações para serem apagadas como se não tivessem sido feitas

O ministro Celso de Mello definiu como “atrevimento sem limites” porque o ministro é um homem educado e sabe o código de conduta no uso das palavras por uma autoridade. O que o presidente Bolsonaro fez ao comparar o STF a uma hiena da alcateia que ataca o “leão conservador e patriota” é muito mais grave do que ele admitiu mesmo no pedido de desculpas. “Foi uma injustiça sim, corrigimos e vamos publicar uma matéria que leva para o lado das desculpas.” É bem mais que uma “injustiça”.

O presidente jurou respeitar a Constituição, e ela reconhece o Judiciário como um dos três poderes, e o STF é o órgão máximo desse poder. Tratá-lo com um achincalhe desrespeitoso em uma molecagem de Twitter é descumprir preceito constitucional. Aquele é um canal oficial do presidente, e portanto é sua palavra. A explicação de que várias pessoas têm acesso aumenta o absurdo da situação. Com a mensagem ele açula os seus seguidores radicais que têm defendido o fechamento do Supremo. Sem Supremo, não temos democracia. Isso significa que ele está fortalecendo um movimento de ameaça à própria democracia.

Cada cidadão é livre para ter críticas às decisões do STF. Os ministros da Corte inclusive divergem entre si. Neste momento de decisão sobre um assunto em que há uma divisão acalorada no país é normal que o foco esteja sobre o Supremo. Os ministros Luis Roberto Barroso, Luiz Fux, Edson Fachin e Alexandre de Moraes acham que deve-se manter o cumprimento da pena após a condenação em 2ª instância, argumentando que neste ponto o mérito já terá sido julgado e revisto por um colegiado. E que os recursos protelatórios têm sido a arma do crime de colarinho branco para a impunidade. A ministra Rosa Weber, o relator Marco Aurélio Mello e o ministro Ricardo Lewandowski sustentam ser incontornável o princípio constitucional do cumprimento da pena só após o trânsito em julgado.

A favor de Barroso, Fux, Fachin e Moraes existe o fato de que essa interpretação extrema de trânsito em julgado, apenas após o último recurso da última instância, não é seguida em inúmeros países democráticos. E vai favorecer a impunidade da elite, num momento crucial do combate à corrupção. Há muito que cada pessoa pode considerar sobre tudo o que está sendo julgado. Está ficando claro que a possibilidade maior é de que prevaleça o entendimento de que não pode haver cumprimento da pena após a 2ª instância. Neste caso, fica ainda mais grave essa postagem do presidente Bolsonaro, porque ele já está elevando a temperatura dos correligionários radicais que têm atacado o Supremo em cada contrariedade. Essa é apenas mais uma postagem ou declaração polêmica. Coincidentemente, elas saem sempre que o governo está em apuros para explicar, por exemplo, o caso Queiroz.

A mensagem foi apagada, e o presidente disse que foi um erro. Porém, nada atenua o que foi postado. Presidentes não têm palavras extraoficiais, nem declarações para serem apagadas como se não tivessem sido feitas. O governante tem que saber como se comporta. No início, alguns diziam que haveria uma curva natural de aprendizado. Dez meses depois, qual é a parte que o presidente Jair Bolsonaro não entendeu sobre como funciona uma república democrática com independência dos poderes?

Bolsonaro é definido no filme como um conservador patriota. Aí também cabe reparos. Pode-se ser conservador, liberal, progressista. Há liberdade de opinião. Mas a melhor palavra para definir certos valores e comportamentos do presidente é reacionário. Tecnicamente, reacionário é aquele que defende um mundo que já morreu e gostaria de trazê-lo de volta. Suas manifestações de saudosismo e de defesa da ditadura militar se enquadram nessa definição.

Sobre o patriotismo, no sentido de amor ao Brasil, ele não é monopólio de conservadores, muito menos de um grupo político. Essa terra comum que nos abriga é um legado de todas as pessoas que integram o grande mosaico étnico, de classe social, de idade, de regiões, de convicções políticas, de orientação sexual, de crenças. Populistas manipulam o sentimento nacional para confundir o amor à Pátria com o apoio a um governo. Autoritários definem-se como reis da selva. Democratas entendem os limites institucionais e convivem com as diferenças de pensamento.


Míriam Leitão: As tragédias e o povo brasileiro

Com bravura, o povo do Nordeste tem acudido suas praias e resgatado o litoral. A dedicação dos voluntários comove e assusta pelos riscos que correm

Que brava gente é esta que vai para as praias como se fosse para a guerra e luta com as mãos contra o ataque de um óleo espesso e grudento e tóxico. E limpa tudo o que pode até ver a areia limpa, e volta no dia seguinte disposta a novas batalhas porque mais sujeira pode chegar do mar. O mar que normalmente traz a água boa do banho, o peixe, a onda do surfista, o ganho do jangadeiro, do pescador, do dono da pousada e esse horizonte aberto que alonga e descansa o olhar.

Quando o pior aconteceu, e o petróleo começou a desembarcar em ondas sucessivas em 238 praias, em 2.250 quilômetros do litoral, quem primeiro acudiu o Nordeste foi seu povo. O governo tardou, se confundiu, errou, não teve a real dimensão da gravidade do caso. O ministro do Meio Ambiente, como sempre, fugiu da verdade. Ele parece não conviver bem com ela. No máximo aceita uma meia verdade, um fato editado, um número mal contado. Sua predileção é pela procura de inimigos imaginários. É intenso o seu esforço para desfazer a razão do cargo que imerecidamente ocupa.

O país passou os últimos dias vendo em todos os jornais, telejornais, revistas, os relatos, as imagens e as entrevistas com inúmeras pessoas que estão espalhadas em todas as praias, trabalhando sem remuneração, sem cargo, sem adicional, sem proteção, arrancando o mal que se espalha, impregna, gruda, mata a fauna, sufoca a natureza. São os perigosos hidrocarbonetos, energia fóssil, da qual o mundo talvez um dia se livre, se não for tarde demais.

É inevitável ter sentimentos conflitantes diante dessas cenas dos brasileiros tirando as suas praias das garras do petróleo. Fica-se comovido com a devoção dos voluntários e ao mesmo tempo com medo do que possa acontecer a eles pelo efeito do contato com material tóxico a que estão se expondo por amor à terra.

Essa é a terceira tragédia ambiental que atinge o Brasil apenas em 2019. Houve Brumadinho abrindo a temporada de dores, com seus milhões de metros cúbicos de rejeitos soterrando funcionários e moradores. Os bombeiros afundaram na lama e arrancaram de lá os corpos para que as famílias enterrassem seus mortos. Foram infatigáveis, foram indescritíveis, foram além do limite do possível para atenuar as aflições de quem perdeu tanto pelo crime cometido por uma empresa reincidente. O motivo da tragédia foi o descuido com o meio ambiente, a ganância de esgotar o minério das entranhas de Minas, sem entregar aos mineiros sequer o investimento que os protegesse da morte. Os erros se acumularam por anos, décadas, de fiscalização errada, de incompetência, de uma visão predatória da mineração. A mesma Vale que soterrou o Rio Doce, entupiu as barragens que explodiram sobre Brumadinho.

O fogo ardeu na Amazônia destruindo quilômetros e quilômetros de floresta. As chamas seguiram o rastro do desmatamento como sempre fizeram. Já se conhecem os passos desse crime. O erro desta vez foi o governo emitir os sinais errados que os criminosos entenderam como licença para desmatar e queimar. O governo primeiro ignorou, em seguida negou o problema, depois atacou os cientistas do Inpe, inventou culpados, e por fim despachou as Forças Armadas para apagar o incêndio. Dentro de algumas terras indígenas, são os próprios indígenas que têm feito patrulha e tentado espantar os invasores.

O desmonte dos órgãos ambientais, a falta de estrutura, o assédio que os servidores viveram, a troca atabalhoada das chefias, os órgãos que ficaram acéfalos, as portarias paralisantes, tudo teve reflexo em cada tragédia ambiental que o Brasil tem vivido. Por toda a costa nordestina, quem esteve presente desde o primeiro momento foram os voluntários, inúmeros deles. Seu exemplo foi tão eloquente que o governo teve que correr e mostrar serviço.

Tem sido um tempo de descrer das virtudes do país, por isso o que os nordestinos resgatam é mais do que imaginam. Não são apenas as areias, as tartarugas, as aves, os manguezais, as águas do mar. Resgatam a autoestima do país, a confiança de que podemos nos tirar das dificuldades, de que o país pode dar certo, mesmo que seja longa e penosa a crise que se abateu sobre nós. Pode fazer muito um país onde o povo é capaz de travar batalhas para salvar suas praias do afogamento.


Míriam Leitão: O desafio dos próximos passos

Governo encontrou propostas maduras e o campo lavrado na Previdência. Precisará de mais estratégia e foco para seguir com a pauta econômica

Nas reformas econômicas que se seguem à da Previdência há vários problemas. O mais grave deles é o fato de que as ideias têm sido apresentadas de maneira desorganizada e sem projetos concretos. Sobre essas novas frentes de mudanças, não há o mesmo grau de amadurecimento do debate que havia na alteração das pensões e aposentadorias. A reforma da Previdência veio sendo discutida nos últimos anos dentro e fora do governo, principalmente na administração Michel Temer.

A reforma não era fácil fazer. Mas foi feita porque seguiu um roteiro. O governo apresentou a proposta, enviou-a ao Congresso e a partir daí começou a análise do projeto. Forças políticas não governistas se dispuseram a defendê-la. Nos últimos anos, principalmente no governo Temer, a ideia de que era preciso corrigir as injustiças do sistema foi muito debatida. Com dados e evidências, especialistas foram mostrando que os mais pobres aposentavam-se mais tarde do que os mais ricos, exatamente pela falta da idade mínima. Esse debate derrotou a tese estranha que negava a existência do deficit previdenciário. Conceitos foram sendo amadurecidos na sociedade. Grupos de economistas elaboraram projetos. E há mais de 20 anos o assunto está na pauta nacional. O governo Bolsonaro encontrou propostas maduras e o campo lavrado. Isso não quer dizer que tenha sido fácil, claro. A equipe do Ministério da Economia dedicou-se ao esforço de formulação inicialmente e, depois, de negociação e convencimento. Nesse meio tempo, o presidente Bolsonaro demitiu dois ministros que cuidavam da articulação política — Gustavo Bebianno e general Santos Cruz — criou várias crises com o Congresso, disparou suas frases ofensivas contra os partidos em geral, e, por fim, explodiu uma bomba dentro do seu próprio partido, imiscuindo-se do Planalto numa escolha de líder de bancada para favorecer o filho. Apesar da balbúrdia, sem precedentes, o projeto foi aprovado pela soma dos fatores favoráveis.

O Ministério da Economia não encontrará a mesma acolhida para os seus outros projetos que têm sido anunciados de forma caótica e sem concretude. O ministro Paulo Guedes fala de várias das suas ideias ao mesmo tempo. Só que elas não são ainda projeto. Tem repetido como um mantra que quer “desindexar, desobrigar e desvincular” o Orçamento. Nunca explicou de que forma isso será proposto. Além disso, defende uma reforma administrativa, com o objetivo de reduzir os gastos de pessoal, que incluiria até um shutdown, ou seja, um fechamento, dos governos estaduais e municipais em caso de emergência fiscal. Quer criar uma nova forma de contratar trabalhadores com menos encargos trabalhistas. Há ainda a reforma tributária, mas dela sabe-se pouco porque as duas propostas que estão no Congresso foram de iniciativa do legislativo e cuidam apenas de alguns impostos indiretos dos três níveis da administração. Não há proposta do governo federal para reformar a estrutura geral dos tributos. O Ministério da Economia defende também a existência de gatilhos nos gastos públicos, para reorganizar as despesas, e abrir espaço para cumprir a regra de ouro. Sobre o assunto, já há um projeto na Câmara apresentado pelo deputado Pedro Paulo (DEM-RJ). Isso sem falar de intenções que surgem e somem do noticiário com a mesma rapidez. Quem acompanha tudo isso acha que o governo está atirando para todos os lados, com ideias ainda não organizadas, e atropelando possíveis aliados.

Há um caminho a ser seguido se o governo quiser ter êxito em novas reformas econômicas. Mas o primeiríssimo passo é: ele precisa saber exatamente o que quer e com que ordem de prioridade as reformas serão apresentadas ao Congresso Nacional.

O Brasil precisa avançar na organização das contas públicas para recuperar a capacidade de investir, sobre isso há consenso. Mas não se sabe de que forma, cortando de onde, com que ordem de prioridade, através de que projetos. Amontoar ideias de forma improvisada não é ter um programa econômico. E se a estratégia for abrir tantas frentes de trabalho ao mesmo tempo, iniciar vários debates polêmicos simultaneamente, o mínimo que se pode imaginar é que o governo tenha base política estável. Essa administração não tem relação estável nem com seu próprio partido.


Míriam Leitão: A economia entre temores e avanços

Agro teve ano bom e bancos privados estão fornecendo crédito rural, mas exportadores têm medo de barreiras ao comércio por razões ambientais

O economista José Roberto Mendonça de Barros acha que a economia está mudando para melhor em certos pontos, mas ainda prevê um crescimento baixo do PIB no ano que vem. Ele ressalta algumas boas notícias: a safra foi muito boa, mantendo o agro como setor que sempre tem sucesso apesar das crises, o mercado de crédito começa a mudar pela queda forte da Selic. O maior temor dos grandes produtores agrícolas, contudo, é o de sofreram boicote por razões ambientais.

José Roberto é o tipo de analista que nota as mudanças da economia em pequenos detalhes do cotidiano. Nos últimos dias, foi pagar um táxi com uma nota de R$ 50 e o motorista avisou que preferia receber na sua maquininha que ele estava estreando naquele dia. Depois, conversou com o dono de uma pequena rede de supermercados do interior de São Paulo, e ele disse que o operador das máquinas de cartão de crédito reduziu a taxa de uso de 4% para 1,5% e estava quitando os valores em D+2. Antes era em 30 dias:

— O motorista faz parte da onda de popularização das maquininhas depois que o setor deixou de ser um duopólio e passou a ter a competição dos vários fornecedores desse serviço, e o dono do supermercado teve um aumento forte de capital de giro, já que 45% do que ele vende é através de cartão.

A mais notável mudança para ele, que acompanha o que acontece com o setor agropecuário há muitas décadas, é que o crédito rural agora está sendo ofertado por bancos privados:

— Pelas novas regulações do Banco Central, pela queda da Selic, pela entrada das fintechs, o fato é que os três maiores bancos privados estão correndo junto com o Banco do Brasil para ofertar financiamento. Assim, o crédito público fica para os pequenos produtores e para bancar uma parte do seguro agrícola. A queda da Selic tem tirado muito investidor dos fundos DI. Isso abriu espaço para os papéis dos certificados imobiliários e agrícolas. Surgiu uma fonte de crédito abundante com taxas menores que as do plano Safra.

Na safra deste ano, a soja teve alguma queda de produção, mas, com o desempenho brilhante da safrinha de milho, o país está produzindo quase 100 milhões de toneladas de milho. O açúcar caiu de preço pelo excesso de subsídio da Índia, mas o etanol teve alta produção e a demanda está crescente. A laranja teve aumento forte de produtividade e ocupou parte do espaço da produção da Flórida. O café permanece com preço estagnado, a carne está com boa demanda e bons preços. O algodão bateu recorde. Arroz e feijão continuam em declínio porque estão cada vez menos presentes na mesa do brasileiro.

Perguntei ao economista se há preocupação no setor agrícola de que ocorram pressões contra as nossas exportações por questões ambientais:

—Há muito medo. Todo o setor processador industrial, que tem mais contato com os clientes no exterior, está com medo. Entre os produtores agrícolas, uma grande parte também teme as barreiras aos produtos brasileiros.

Ele acredita que o risco de boicote vem do discurso do governo, “muito óbvio”, contra as medidas de proteção ambiental e que fazem na base se ter a impressão de um “liberou geral”. Como os dados mostram que 90% do desmatamento é ilegal, o economista acha que o mais inteligente seria combater os que estão fora da lei, em vez de dar sinais que parecem estímulos ao desmatamento e às invasões:

— Fiz uma palestra recente para 40 produtores estrangeiros que vieram fazer uma imersão no Brasil. Acabei minha apresentação sobre por que a agricultura brasileira é um sucesso e as duas primeiras perguntas foram sobre Amazônia.

Apesar da aprovação da reforma da Previdência, ele disse que a economia continuará “andando a passo de tartaruga”, porque outras reformas são necessárias:

— É preciso fazer a segunda parte do esforço fiscal, atacando pontos como o excesso de vinculação do Orçamento. É preciso também fazer mais concessões porque elas, mais do que a privatização, trazem melhoras a curto prazo. Se houver boa regulação e mais leilões, as concessões vão gerar obras de infraestrutura. E a construção civil é geradora de emprego.

José Roberto acha que se isso for feito o país pode crescer mais fortemente, mas há dois riscos à frente: o quadro internacional muito perigoso e as crises políticas internas criadas pelo próprio governo.


Míriam Leitão: A Previdência e a democracia

O Congresso derrubou pontos ruins, cedeu aos lobbies, mas aprovou a mais ampla reforma da Previdência já feita no país

A Previdência sempre será uma reforma difícil. E está condenada a ser feita e refeita. Todos os últimos quatro presidentes levaram ao Congresso propostas de mudanças. A atual reforma, cuja votação terminou nesta terça-feira, perdeu na tramitação em torno de 40% do ajuste que pretendia, mas ainda é a mais ampla já feita no Brasil. A primeira que consegue nos tirar do pequeno grupo de países que ainda não tem idade mínima de aposentadoria. A primeira que muda o INSS e a previdência dos servidores federais ao mesmo tempo.

Dos valores que perdeu na tramitação, alguns foram para melhorar o texto. A proposta de que só aos 70 anos a pessoa idosa, miserável, recebesse um salário mínimo era definitivamente muito ruim. Hoje, até na equipe econômica se admite isso. A Câmara, portanto, fez bem de derrubar a mudança no Benefício de Prestação Continuada (BPC).

Várias alterações atenderam aos lobbies. Uma delas protegeu os protegidos, os servidores que têm mais de 16 anos de casa, ou seja, entraram no Setor Público Federal antes da reforma do ex-presidente Lula, em 2003. Eles já têm privilégios, como o direito de se aposentar com o último salário e de receber todos os aumentos da sua categoria da ativa. O governo propôs, então, regras de transição mais duras. Esse pedágio foi suavizado na Câmara. Não faz sentido nenhum isso. Parte desse grupo tem salários que são várias vezes o teto do INSS. No último minuto, o PDT tentou mais uma vez ajudá-los, propondo tirar todos esses servidores das regras de transição da reforma. Teve o apoio de toda a esquerda. Foi derrotado.

O curioso nessa reforma foi o comportamento do presidente que a enviou. Jair Bolsonaro não articulou sua aprovação, não participou das difíceis negociações. Ele apenas a entregou ao Congresso e lavou as mãos. Se ela foi adiante foi graças a alguns dedicados integrantes da equipe econômica, às presidências da Câmara e do Senado e aos relatores. Na única vez em que atuou diretamente, ligando para pedir algo aos parlamentares, foi contra o espírito da sua própria reforma, e a favor de mais benefícios ao grupo que já tem a idade mínima mais baixa, a dos policiais federais. O senador Major Olímpio exaltou o presidente e garantiu que há unidade entre Bolsonaro e o PSL. É o oposto. A Previdência foi aprovada, a despeito de Bolsonaro, que criou conflito durante todo o tempo, inclusive com o próprio partido.

O maior dos erros da tramitação foi retirar os estados e os municípios. A discussão mostra a visão curta dos parlamentares. Como eles acham que isso poderia facilitar a vida dos governadores que fizeram oposição, ou não se mobilizaram pela reforma, decidiram retirar do texto. O problema que nos trouxe a esta penosa reforma não é federal apenas. É de todos os entes da Federação. O desequilíbrio que compromete a capacidade de o governo investir é de todo o país.

A oposição não foi capaz de atualizar seu pensamento sobre contas públicas e repetiu o mesmo clichê de sempre, de que estava defendendo os pobres e os trabalhadores. A Previdência tem dois problemas: tem rombo e é injusta. A esquerda por vocação deveria ser contra os privilégios, mas quando o assunto é a reforma da previdência ela entra nessa aguda contradição. Defende aqueles que ganham mais e se aposentam mais cedo. Alguns parlamentares da oposição pagaram um preço alto por terem votado pela reforma.

O ministro Paulo Guedes estava na mesa do Senado quando a reforma foi aprovada. Tinha o semblante de vitorioso, mas ele perdeu sua principal aposta.

Guedes queria a aprovação do modelo de capitalização. E o Congresso o derrubou. A capitalização pode ser uma boa alternativa, desde que se conheçam os parâmetros. A proposta, contudo, era um cheque em branco: dava ao governo o direito de criar o modelo.

O Chile que está nas ruas tem na sua lista de protestos a previdência que eles consideram injusta. A mesma que Guedes tem como modelo. A capitalização lá foi imposta aos civis por uma ditadura. Os militares chilenos criaram para si outro sistema. A proposta agora no Brasil pode até ser boa, mas terá que passar pelo crivo do Congresso. A democracia dá muito trabalho, não é perfeita, exige contínuos aperfeiçoamentos, mas é o único regime no qual vale a pena viver.


Míriam Leitão: A chance do Brasil no banco dos Brics

Banco do Brics pode ser uma fonte de crédito para infraestrutura em projetos ambientais nos centros urbanos

O Brasil poderia tirar mais proveito da sua relação com o banco dos Brics, criado em 2015 no governo Dilma. Até porque as taxas de juros, cobradas pela instituição, são bem mais baixas que as do mercado e sua vocação é financiar projetos de infraestrutura, segundo o vice-presidente José Buainain Sarquis. A lentidão do país em superar a crise fiscal, a situação financeira dos estados, o excesso de burocracia têm afetado o ritmo das operações.

O governo é dono de 20% do capital da instituição, de US$ 10 bilhões. Com esse capital, pretende-se alavancar US$ 40 bilhões em operações. Até agora, o Brasil foi o que menos créditos conseguiu tomar. O país já fez aportes de US$ 1 bilhão, metade do que tem que capitalizar, mas só aprovou US$ 620 milhões em financiamentos, o valor mais baixo entre todos os membros do grupo. Os estados e municípios são clientes em potencial, mas muitos não têm crédito porque estão com uma nota baixa no ranking fiscal do Tesouro.

—O Brasil teve três administrações desde a criação do banco, mas a gente espera que a partir de agora mais projetos sejam aprovados. Para este ano, a meta é chegar a US$ 1 bilhão e até o final da década ter US$ 8 bilhões aplicados em cada um dos membros do grupo. Existe uma curva de aprendizado para conseguir operar em cada um dos países membros. China e Índia saíram na frente — explicou o vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), nome oficial da órgão, o brasileiro José Buainain Sarquis.

Segundo ele, os juros cobrados pelo mercado são duas vezes mais caros do que as taxas praticadas pelo NBD. Além de ser um crédito mais barato, ele é voltado exatamente para a área que o Brasil mais precisa: financiar projetos de infraestrutura e com foco em desenvolvimento sustentável.

O governo Jair Bolsonaro tem dado seguidos sinais de que a preservação do meio ambiente não é prioridade em sua gestão, mas nem isso é um problema, na visão de Sarquis.

Ele define como boas as conversas que tem tido com o ministro Ricardo Salles, porque estão sendo avaliados projetos ambientais nos centros urbanos, que atendem à missão do banco e aos interesses do governo.

— O que observamos é que há prioridade para questões do clima nos centros urbanos. O banco não vai discutir com o Brasil a questão das florestas, mas há projetos de resíduos sólidos, saneamento, mobilidade nas cidades brasileiras que têm impacto na redução de emissões. O importante é que o projeto esteja em linha com o mandato da instituição —explicou.

A aprovação da reforma da Previdência no Senado pode ajudar a destravar empréstimos a projetos ligados ao governo federal, mas só isso não basta. É preciso resolver também a crise dos estados, que são grandes clientes em potencial. A PEC Paralela tentará incluir os governos estaduais, mas ainda não há garantias de que vá avançar no Congresso, por outro lado, como O GLOBO revelou, há estados que estão preparando suas reformas, sem esperar pela aprovação no Congresso. A aprovação do plano Mansueto pode permitir operações com os estados, porque os que têm hoje a nota C poderão tomar crédito com aval do Tesouro, o que atualmente está restrito apenas aos três estados que têm letra A e B.

— É preciso restabelecer a capacidade fiscal do setor público, saindo de gastos de custeio para os investimentos em infraestrutura. Se houver ampliação das garantias, isso vai ter impacto em todos os bancos multilaterais —disse.
Na visão de Sarquis, a guerra comercial entre EUA e China e o baixo crescimento de economias como Japão e Alemanha indicam que os países terão mais dificuldade para crescer via comércio internacional. Por isso, ele entende que o próximo ciclo de crescimento mundial virá de investimentos em infraestrutura, desde que em projetos ambientalmente sustentáveis.

— O comércio internacional não vai desempenhar o mesmo papel das últimas décadas. Há um esgotamento do modelo anterior e cada vez mais se percebe a infraestrutura ocupando esse papel. Isso está sendo discutido até em economias desenvolvidas, como EUA e Alemanha —disse.

Sarquis é diplomata de carreira e desde os anos 90 trabalhou para a entrada do Brasil na OCDE. Ele entende que será questão de tempo até que o país consiga ser membro da organização..


Míriam Leitão: Como preservar e desenvolver

Há saídas sustentáveis para desenvolver a Amazônia. O cientista Carlos Nobre propõe a “bioeconomia com a floresta em pé”

Bioeconomia. Essa é a sugestão do climatologista Carlos Nobre no que ele chama de Amazônia 4.0. Ele foi um dos cientistas convidados a falar no Sínodo da Igreja Católica no Vaticano e conta o que ouviu e o recado que deixou. Nobre propõe que se aposte num modelo que já está se formando na Amazônia, a produção em sistemas agroflorestais. Neles, a biodiversidade é protegida até porque ela será parte do sucesso do negócio.

Carlos Nobre é um dos maiores climatologistas do mundo e já fez muitos estudos científicos sobre a região e seus impactos no clima. Desta vez, ele está falando de algo concreto para tentar responder à inquietante pergunta sobre como preservar a floresta, produzindo renda e desenvolvimento para seus habitantes.

— Chamamos de bioeconomia da floresta em pé. É a exploração de produtos da região plantados dentro da floresta, método que já se mostrou muito mais produtivo. Castanha, açaí, cacau, babaçu e outros que são exportados como produtos primários, mas que após um processo de industrialização teriam mais valor agregado. A ideia é industrializar esse potencial de biodiversidade — me disse Carlos Nobre em entrevista na Globonews.

O Jornal Nacional mostrou esta semana uma reportagem de Fabiano Villela que ilustra o que o cientista está falando. Em Tomé-Açu, Pará, descendentes de imigrantes japoneses estão produzindo, de forma eficiente, uma infinidade de produtos. Sem derrubar a mata, ao contrário, até replantando espécies nativas nobres, como castanheira, mogno e ipê, os produtores estão colhendo safras sucessivas de várias culturas plantadas entre as árvores. Isso é o que é definido como sistemas agroflorestais. Na série História do Futuro que fiz para a Globonews, em 2017, nossa equipe esteve em Tomé-Açu. O caso é um exemplo de superação porque os imigrantes foram para plantar arroz, mas não deu certo, depois plantaram pimenta, que deu muito certo por duas décadas, mas por ser monocultura acabou vulnerável às pragas:

— Em Tomé-Açu eles têm cerca de 60 produtos, mas existe potencial para exploração de uns mil produtos da floresta com as mais diversas aplicações e usos. É preciso pensar em trazer as tecnologias da 4ª Revolução Industrial para a floresta. É uma grande novidade.

Ele discorda de que essa produção seria pequena:

— O lucro do açaí, produzido, descascado e vendido em polpa pelo agricultor familiar, já é hoje quatro vezes o lucro da pecuária na Amazônia, usando 7% da área da pecuária, e empata com o lucro da soja. O açaí já atingiu uma escala de R$ 3,5 bilhões. Superou o faturamento da madeira. E isso sem agregação de valor. Sugerimos que haja bioindústrias, biofábricas, conectadas pela tecnologia de informação e usando energia renovável de geração distribuída. Nenhuma exploração de minério produz essa riqueza. Pelo contrário. Que desenvolvimento a exploração de minério trouxe para as populações da Amazônia?

O progresso da região não há de ser também com a derrubada da floresta, que está se acelerando neste triste ano de 2019. Sobre os riscos, ele ouviu relatos que o impressionaram:

— Foram feitos pelos padres e bispos que vivem na região, no Brasil e nos outros países amazônicos, em contato direto com os indígenas, população ribeirinha, comunidades quilombolas.

A proposta, disse ele, é a de que, por ser um modelo inovador, o governo assuma o risco inicial, financiando o começo das atividades. Haveria laboratórios criativos de forma descentralizada para atender a dimensão amazônica.

Carlos Nobre publicou nos anos 1990 o estudo alertando para o risco da savanização da Amazônia. Era um estudo teórico. Hoje há fatos concretos como estações secas mais longas e a temperatura mais alta nas áreas do chamado arco do desmatamento, que vai de Rondônia, ao norte do Mato Grosso, ao sul e leste do Pará. A taxa de mortalidade das grandes árvores, típicas da floresta de clima úmido, já é maior do que a das espécies que convivem com o cerrado. Com todos os sinais de que a teoria está se concretizando, Carlos Nobre terminou a entrevista dizendo que ainda há tempo de salvar a floresta. Um dos caminhos é cumprir o que prometemos em Paris, como restaurar 12 milhões de hectares. Outro é o de construir um modelo de fato sustentável na Amazônia.


Míriam Leitão: Os novos números da desigualdade

A má notícia completa é: o Brasil, que sempre foi desigual, ficou ainda mais desigual na crise, e o problema pode estar subestimado

Os números impressionaram até especialistas. Os dados divulgados ontem pelo IBGE sobre o aumento da concentração de renda no país em 2018 mostram que na renda houve uma estagnação profunda e dispersa pelo país, mas a desigualdade aumentou ainda mais no Sudeste do que em outras regiões. Os 30% mais pobres perderam renda. O grupo que está no 1% mais rico teve ganhos.

— Os dados mostraram que na renda todas as regiões estão parecidas, o país está agora no mesmo nível que em 2014. Na desigualdade, em boa parte das regiões, estava em 2018 pior do que em 2012. O retrocesso é maior do que na renda. Mas o que me chamou a atenção foi o padrão regional diferente. O Sudeste foi muito mal. A desigualdade teve uma piora muito pronunciada na região. A gente sempre trabalhou com o fato de que o Nordeste é mais pobre e mais desigual —disse o economista Pedro Ferreira de Souza, do Ipea, especialista neste assunto.

O Brasil sempre foi desigual, teve uma melhora tênue e breve, entre 2001 e 2012. O problema tem sido mal medido, por problemas como o da subnotificação da renda dos mais ricos, fenômeno que acontece em vários países. Numa pesquisa amostral, dificilmente quem está no topo diz quanto ganha, principalmente de renda financeira.

Portanto, a má notícia completa é: o Brasil que sempre foi desigual, ficou ainda mais desigual na crise, e o problema pode estar subestimado. A boa notícia é que o IBGE vem melhorando suas estatísticas ao englobar não apenas a renda do trabalho mas várias outras rendas no cálculo, como aposentadorias, pensões, doações, aluguéis. Outra boa notícia, segundo o economista, é que na Pnad de 2018, divulgada ontem, o órgão recuou esses dados mais completos até 2012, o que dá uma série para comparação.

Ele chama a atenção para o fato de que a tabela de 2017 para 2018 revelou que a renda dos 30% mais pobres caiu, em termos reais, e a dos mais ricos aumentou, sendo que subiu mais para quem está no grupo do 1% mais rico:

— São duas coisas preocupantes. A renda do trabalho dos 30% mais pobres cair significa aumento da pobreza, ou seja, não só a recuperação está sendo muito tímida como ela não está chegando aos mais pobres, pelo contrário, eles estão piorando. Por outro lado está sendo muito bom para o 1% mais rico, mesmo que não se tenha o rendimento de capital.

O Brasil está indo na contramão do que precisa, alerta Pedro Ferreira de Souza. E quando se vê a renda estagnada e a desigualdade aumentando, sem qualquer perspectiva de uma retomada econômica sustentada, firma-se a ideia de que esta é outra década perdida.

Por onde começar a enfrentar o problema? Há tanto trabalho a fazer nessa área que é difícil escolher, mas o economista lembra que, como está sendo discutida uma reforma tributária, seria bom incluir esta preocupação:

— Um instrumento válido para se fazer neste momento é uma reforma tributária que compartilhe o peso da crise de forma mais igualitária. O Brasil pode melhorar a progressividade dos impostos. Se esse é o grupo que está se beneficiando, vamos mudar o sistema e tirar o peso dos impostos indiretos, tributando mais a renda e o patrimônio. E de outro lado, redirecionar mais os gastos para beneficiar os mais pobres.

As duas propostas que estão tramitando no Congresso têm, segundo ele, algumas boas ideias, mas não têm a proposta de tributar menos o consumo. Ele acha que considerar lucros e dividendos como rendimento tributável seria o primeiro passo. Quando fala em tributação sobre patrimônio, o economista lembra dois fatos: o IPTU arrecada menos do que o IPVA, e no Brasil o ITR arrecada muito pouco, apesar de o país ser uma potência agrícola:

—Se o agro é pujante, poderia pagar mais. Não dá para ter o mesmo discurso de que é o motor do Brasil, mas se cobrar imposto do setor ele quebra.

Por que o Brasil é desigual assim? Nisso não há surpresa. Ele lembra que o país tem acesso desigual à terra, teve escravidão, errou na urbanização, nunca investiu o suficiente em educação, em saneamento, sempre teve um sistema baseado na proteção dos grandes conglomerados, favorecendo grandes empresas com subsídios e empréstimos para setores privilegiados. “Seria estranho se não fosse desigual”, diz o economista.


Míriam Leitão: Combate à pobreza é o ponto central

Nobel mostra que queda da pobreza é necessária não só para reduzir distorções, mas para garantir aumento de produtividade

O prêmio Nobel de Economia deixa mais evidente, para quem ainda tinha dúvidas, que o combate à pobreza é parte central do desenvolvimento econômico e não um assunto lateral e complementar. E que a questão não está separada de outras políticas públicas, porque para um país ser bem-sucedido na tarefa de reduzir o percentual de pobres precisa ter também investimentos certos em educação e saúde. Os estudos dos vencedores de ontem entram em muitas outras áreas.

O economista Abhijit Banerjee é indiano-americano, cresceu em Calcutá. Esther Duflo é franco-americana. Eles fundaram o Laboratório de Ação contra a Pobreza no MIT onde trabalham. Os dois são casados e têm diversos trabalhos juntos em economia do desenvolvimento e combate à pobreza. Michael Kremer é professor de economia do desenvolvimento e economia da saúde em Harvard e é pesquisador associado a um centro de inovação para a ação das nações sobre a pobreza.

Os três se complementam, fizeram trabalhos juntos, tanto acadêmicos quanto de avaliação direta de políticas públicas. Duflos e Kremer estudaram, por exemplo, o impacto da oferta de escola secundária gratuita em Gana. Ela estudou o efeito do saneamento básico. A ideia principalmente do casal Banerjee-Duflo é usar o modelo de experimentos focalizados para estudar o combate à pobreza de forma ampla. Kremer fez inicialmente estudos no Kenya em meados dos anos 1990. Banerjee e Duflo fizeram pesquisas em Mumbai e Vadodara na Índia. Em outra análise, o casal verificou o impacto do acesso à infraestrutura no desenvolvimento da China. Esses trabalhos se transformaram no método padrão em economia do desenvolvimento.

A teoria de Kremer sustenta que as tarefas de produção executadas conjuntamente — em um ambiente em que várias pessoas com aptidões diferentes e complementares cooperam — elevam a produtividade. Essa complementariedade de aptidões seria, segundo ele, a chave da produtividade.

O comitê disse que eles juntos reestruturaram totalmente a economia do desenvolvimento e têm tido um claro impacto no combate à miséria no mundo. Principalmente “porque usam métodos de pesquisa experimental para identificar as políticas de intervenção mais efetivas para combater a pobreza”, segundo escreveu o jornal “Financial Times”.

Esther Duflo em entrevista ontem disse que o objetivo deles “é garantir que a luta contra a pobreza esteja baseada em evidências científicas”. Um dos estudos do trio mostra que apenas disponibilizar material escolar e os livros às crianças pode não ser suficiente para um bom aprendizado, que ocorre de forma mais eficiente com um ensino mais individualizado, mais feito sob medida.

Houve um tempo em que políticas de combate à pobreza não eram consideradas temas centrais na economia. Hoje, a economia se volta cada vez mais para a redução da pobreza e da desigualdade como forma não apenas de corrigir as distorções criadas pelo capitalismo, mas como única maneira de garantir aumento da produtividade e desenvolvimento. A escolha do Nobel de 2019 faz parte da tendência de instalar cada vez mais esse tema no centro do debate. Além disso, o comitê do prêmio ressaltou a forma com que os três sempre abordaram a questão: com métodos científicos de desenvolvimento de políticas, e com testes de avaliação da eficiência da política adotada.

O que impressiona nos três laureados ontem é a dispersão das áreas para as quais eles levaram seus estudos, que pode ser desde educação e saúde, segurança no trânsito, ação policial, saneamento, garantia de água potável, papel dos influenciadores e combate a determinados dogmas do ultraliberalismo. Em uma aula magna, chamada “aulas Tanner”, Duflo contesta a ideia de que o assistencialismo reduza a liberdade das pessoas.

Duflo é a segunda mulher a ganhar o Nobel de economia e a pessoa mais jovem laureada com o prêmio na área. Tem 46 anos. Banerjee, com 58, e Kremer com 54 anos, são também relativamente jovens para o Nobel.

Combate à pobreza é dever moral das sociedades civilizadas, mas o que os três laureados de ontem estimulam com seus trabalhos é a busca da forma mais eficiente, e cientificamente testada, de alcançar esse objetivo. E isso não por benemerência, mas sim porque essa é a questão central do desenvolvimento.