Míriam Leitão: Moralidade como estratégia eleitoral
Detalhes do caso Flávio mostram que o combate à corrupção foi só uma estratégia de marketing para ajudar na eleição de Bolsonaro
O presidente Bolsonaro estava uma pilha na sexta-feira. Foi ainda mais agressivo do que o costumeiro no ataque aos repórteres que ficam na porta do Palácio. Era fácil saber o motivo do nervosismo. Seu filho Flávio está com uma montanha de explicações a dar sobre o que se passava no seu gabinete quando era deputado estadual, nos seus negócios com imóveis e no funcionamento da sua loja de chocolates. A bandeira de que faria um governo de combate à corrupção sempre foi postiça, mas fica mais difícil empunhá-la quanto mais detalhes vêm à tona sobre a estranha movimentação bancária de Fabrício Queiroz e a maneira como o senador conduzia seu gabinete de político e seus empreendimentos.
A defesa de Flávio Bolsonaro se agarrou mais uma vez à mesma estratégia de pedir para paralisar a investigação. O que o Ministério Público do Rio de Janeiro levantou até agora exigirá muitos esclarecimentos por parte do senador. Melhor fazê-los do que atacar o juiz como fez o presidente. Se Bolsonaro perguntar ao seu ministro da Justiça, Sergio Moro poderá contar das vezes em que foi atacado por suas decisões na 13ª Vara Federal de Curitiba. É tudo muito parecido com o que agora Bolsonaro diz de Flávio Itabaiana da 27ª Vara Criminal do Rio.
Dezenas de funcionários do gabinete do então deputado não compareciam ao local de trabalho, nunca pediram crachá, recebiam seus salários dos cofres públicos e faziam depósitos rotineiros na conta de Fabrício Queiroz. Havia de tudo: personal trainer que tinha emprego no outro lado da cidade, estudante de veterinária que estudava a quilômetros do Rio, cabeleireira com trabalho fixo. Difícil é saber quem de fato trabalhava naquele gabinete.
Nesta lista dos servidores de Flávio estavam a ex-mulher e a mãe do PM Adriano da Nóbrega, acusado de fazer parte de um grupo de milicianos. O mesmo Adriano foi duas vezes homenageado na Alerj, a pedido do deputado Bolsonaro, uma vez com a Medalha Tiradentes, quando ele já tinha sido preso por homicídio. Adriano, em conversa com a ex-mulher Danielle Mendonça, admite que era beneficiário de parte do dinheiro que ela recebia. “Contava com o que vinha do seu também.” A própria Danielle informa em conversa com a amiga que sabia da origem ilícita do dinheiro que por anos recebeu. Aliás, as mensagens trocadas entre ela e Queiroz iluminam o esquema. Ele avisa que ela talvez tenha que ser exonerada — do local onde nunca trabalhou na verdade — para não comprometer Flávio que ficará mais exposto com a eleição.
Dez pessoas da família da ex-mulher do presidente Bolsonaro recebiam salário da Alerj e moravam em Resende. A explicação de Flávio era de que se tratava de um escritório político do interior. Todos numa única cidade, todos parentes entre si e ligados a um dos casamentos do pai. A explicação não é crível.
Há ainda fatos estranhos na compra e venda de imóveis em Copacabana. O vendedor Glenn Dillard entrega os imóveis por um valor mais baixo do que havia comprado e recebe no mesmo dia os cheques de Flávio Bolsonano no suposto valor dos imóveis e R$ 638 mil em espécie, numa mesma agência a metros da Alerj. Os imóveis são revendidos pouco mais de um ano depois com valorização de 293% e 237%. No mesmo período, o metro quadrado em Copacabana subiu 11%. Há ainda várias confusões contábeis na loja de chocolates. E um cheque de R$ 16 mil de um outro PM depositado na conta da mulher de Flávio.
O caso ainda é o desdobramento de um Procedimento Investigatório Criminal, mas já tem muitas pontas enroladas. A reação do presidente de atacar o juiz, os procuradores, os jornalistas é típico de quem está perdendo a razão.
A popularidade do presidente chega ao fim do ano confirmando ser a mais baixa de um governo no seu primeiro ano de mandato. Só se compara a de Collor, que fez o sequestro dos ativos financeiros das famílias e empresas do país. Seu discurso de combate à corrupção foi atingido pelos laranjais do ministro do Turismo que ele nunca demitiu, pelas irregularidades do partido com o qual se elegeu e do qual saiu, mas principalmente por sombras que cercam seu filho nessa investigação. Quem acompanhou a vida política de Bolsonaro sabe que o discurso da moralidade pública que usou nos palanques foi apenas o que foi: uma estratégia eleitoral.
Míriam Leitão: Radiografia da crise do Rio
Crivella deu aumento a servidores quando já atrasava pagamentos e recusou ajuda do Bird porque não quis fazer o ajuste
- A cidade do Rio está vivendo uma situação dramática, em grande parte pelos erros do prefeito Marcelo Crivella e por sua incapacidade de administrar a cidade. O Rio recusou ajuda do Banco Mundial porque teria que fazer ajustes e, ao contrário do que se imagina, não teve queda de receita em relação ao ano passado. A arrecadação de IPTU e ISS cresceu 7,4%, mas com a natural concentração da receita do IPTU no começo do ano. O prefeito não fez as reservas que deveria ter feito para o segundo semestre e ainda concedeu aumento ao funcionalismo em janeiro mesmo quando já estava atrasando o pagamento das organizações sociais.
Esse é o retrato imediato. Há outras complexidades quando se olha o quadro de vários anos do município do Rio. Eu conversei com duas ex-secretárias de Fazenda do município, Duda La Roque e Sol Garson, e com técnicos federais que acompanham as finanças dos municípios para entender o colapso da cidade. Crivella recebeu uma situação difícil, mas poderia ter evitado essa crise, se tivesse se planejado.
As duas economistas admitem que o custo de saúde do Rio é muito grande. O ex-prefeito Eduardo Paes municipalizou dois hospitais estaduais em 2016, Albert Schweitzer em Realengo e o Rocha Faria, em Campo Grande, e construiu 36 novas clínicas da família. Tudo isso virou gasto.
— A taxa de investimento da Prefeitura cresceu, nós fomos o ente nacional que mais investiu, ainda bem. Mas parte do investimento se transforma em custeio no ano seguinte. Tem que fazer projeção de longo prazo para saber se é sustentável ou não. Uma UPA é investimento, mas depois vira custeio anual — lembra Duda La Roque.
Ela foi secretária de Fazenda de Paes, período em que o Rio alcançou grau de investimento. Conta que a cidade negociou um empréstimo de R$ 1 bilhão com o Banco Mundial, com isso pré-pagou uma parte da dívida com o Tesouro e reduziu 25% da dívida. Eram outros tempos. Havia, como ela diz, “uma janela de oportunidade”.
Sol Garson, que foi secretária de Fazenda na gestão Luiz Paulo Conde, acrescenta que o Rio gasta muito mais com Saúde do que está estabelecido em lei.
— As cidades têm que aplicar em Saúde no mínimo 15% das receitas próprias de impostos e das transferências. Prefeituras boas vão até 18%. O Rio foi a 25%. Fez isso cobrindo a ausência do estado, só que é difícil manter porque há outras despesas permanentes num município. E o Rio é grande também na educação. Do total da educação do fundamental, praticamente 98% são do município. Quando o gestor entra, ele tem que ver se a receita se sustenta antes de decidir. O problema é que o prefeito não olhou para trás, nem para frente — diz a economista.
Para complicar, o país tem tido dificuldade de sair da crise e ela é mais intensa no Rio. Mas os piores anos de recessão foram os de 2015 e 2016, período final da gestão anterior. Crivella assumiu em 2017. A receita de ISS estava em queda, mas ele poderia ter feito o mesmo que Paes fez ao assumir a Prefeitura. Ele ajustou para depois investir. A inércia de Crivella é apontada como a grande responsável pelo agravamento da crise.
— Eduardo Paes no primeiro mandato fez um enorme esforço para entender a situação e fazer o ajuste. No segundo mandato ele aumentou despesas e sua atuação já não teve a mesma qualidade. O Crivella pegou uma situação embicando para baixo e não teve capacidade de contornar a situação — diz Duda la Roque.
Na avaliação de técnicos federais que estão analisando a crise do Rio, os erros de Crivella foram gasto excessivo e falta de gestão.
— Basicamente, ele gastou mais do que deveria. Não poderia ter dado os reajustes que deu e pôr por terra o equilíbrio que a Prefeitura tinha. O Rio tem uma folha de pessoal pesada, algo como R$ 800 milhões, e ele ainda deu um reajuste de 7,84% em janeiro quando já estava atrasado com as OS. A cidade deve ao governo federal, e está pagando em dia. Mas deu calote no BNDES. No começo da administração, Crivella pediu um empréstimo ao Banco Mundial para reestruturar a dívida com o BNDES. O BIRD concordou, mas exigiu ajuste e a Prefeitura não aceitou. Como a nota de crédito do município é C, não pode ter empréstimos com garantia da União — explica um técnico.
O que se explica em Brasília é que não há previsão legal de ajuda financeira ao município.
Míriam Leitão: Nos fundos, o segredo do ES
Espírito Santo fez transição de governo com a manutenção da cultura fiscal. Estado agora quer investir e poupar para o longo prazo
O Espírito Santo prepara o futuro dos capixabas com investimentos, fundos e reformas. A da Previdência já está aprovada. O Fundo Soberano foi criado com parte dos recursos do petróleo, que ficará com 15% da participação especial e 45% dos royalties. Isso dá em torno de R$ 400 milhões por ano. Foi feito também um fundo garantidor de PPP de R$ 20 milhões. E tem ainda o fundo de infraestrutura que receberá uma bolada de R$ 1,5 bilhão de um acordo com a Petrobras.
— Lógico que para mim R$ 1,5 bilhão em 4 anos seria muito bom usar, em obra, em programa. Mas é um sinal de longo prazo. Os recursos sairão da receita corrente líquida para o Fundo Soberano (Funses). Ele tem o papel de uma poupança intergeracional. Poupança para sempre. Daqui a 40 ou 50 anos os gestores que estiverem no Espírito Santo decidirão o que fazer com esse dinheiro. Isso dá também estabilidade aos capixabas — diz o governador Renato Casagrande.
Essa visão de longo prazo e do ajuste fiscal como parte de um projeto de investimentos é raro no país, mas tem sido presente no Espírito Santo, o único estado a receber nota A do Tesouro Nacional. Um dos segredos, segundo Casagrande, é a continuidade administrativa:
— No meu governo passado fiz a PPP do saneamento da Serra. O Paulo Hartung fez a PPP do saneamento de Vila Velha. Agora farei a de Cariacica. Isso tem dado bons resultados.
Hoje o estado tem uma carteira de investimentos para fazer em parceria com o setor privado. O fundo garantidor de PPPs é um fundo privado gerenciado pelo Banco de Desenvolvimento do Espírito Santo (Bandes). O fundo soberano, o que ficará com parte do dinheiro do petróleo, será sócio de empresas privadas para atrair mais investimentos para o estado.
— Para nós não termos dependência do petróleo e do gás, para não ficarmos como a Venezuela ou o Rio de Janeiro — diz Casagrande.
Ele vai lançar um programa de melhoria da logística com Minas Gerais, em 17 de fevereiro, como informou o “Valor”. Casagrande quer que o Espírito Santo seja a porta de saída para o mundo, a porta de entrada para o Brasil.
— O estado tem uma população pequena, de 4 milhões de pessoas, mas nós conquistamos nos últimos anos uma cultura de gestão fiscal e com capacidade de fazer investimento próprio e de alavancar recursos — diz Casagrande.
A população capixaba não é tão pequena, é maior do que a do Uruguai. Para o governador, não se deve querer crescer muito em termos de habitantes. Só o aumento natural mesmo. O importante é a qualidade do desenvolvimento econômico e social. O Espírito Santo está investindo este ano entre R$ 1,6 bilhão e R$ 1,7 bi. É 10% do orçamento. No ano que vem, serão R$ 2 bilhões.
— Tem nesse total inclusive recursos de superávit de anos anteriores. Este ano estamos fazendo um acordo com a Petrobras, de uma antiga pendência judicial. Vamos receber, até 2022, R$ 1,5 bi. É esse dinheiro que vai para o Fundo de Infraestrutura. Esse não é o Fundo Soberano, que é outra coisa. Tudo que é dinheiro que não é recurso permanente estamos colocando no Fundo de Infraestrutura.
Perguntei ao governador se não era complicado fazer uma parceria para investimento em logística com Minas Gerais, que está em situação calamitosa do ponto de vista fiscal. Ele diz que o acordo é bom para ambos, por isso fez reunião com 50 empresários mineiros e diz que o encontro foi “extraordinário”:
— O setor privado precisa se agarrar a algumas lutas que deem dinamismo e movimento.
Uma dessas lutas é integrar a malha ferroviária do estado e de Minas com o resto do Brasil. Diz que a Vitória-Minas é a melhor ferrovia do Brasil, mas está ainda desconectada.
O dinheiro que o Espírito Santo vai receber do leilão da cessão onerosa também vai para o Fundo de Infraestrutura. Se tivesse gastado por conta, estaria em maus lençóis porque o cálculo era que o Espírito Santo receberia mais de R$ 300 milhões, mas, como o leilão foi frustrante, ficará com R$ 162 milhões.
Ele diz que o estado tem recursos para investir em creches, em segurança pública, parceria com o Banco Mundial para saneamento, com o BID, para estradas. Na educação, Casagrande diz que continua a obra de Hartung com mais escolas em tempo integral. O estado é o segundo do Ideb. Até 2024, terá metade das suas escolas em tempo integral. O ES é a prova de que o ajuste fiscal vale a pena.
Míriam Leitão: Sinais de alerta são ignorados
Atrasos no Pisa e IDH são de outros governos, mas o atual se preocupa mais com pontos na CNH do que com problemas reais do país
Divulgados em semanas diferentes, os dados do PISA e do IDH, elaborados pela OCDE e pela ONU, conversam entre si e nos informam o quanto o Brasil precisa se apressar na agenda social. Os números permitem um olhar pelo espelho retrovisor porque são dados de administrações passadas. O problema é saber que no presente o governo está totalmente alheio ao que é essencial na luta por uma educação de qualidade e pela defesa dos direitos humanos.
O presidente Jair Bolsonaro está bravo porque diz que perdeu a “alma” do projeto de flexibilizar leis de trânsito. Nele, havia originalmente mais chance de os motoristas cometerem infrações sem perder a carteira. Foi derrotada, no Congresso, também a sua proposta de desobrigar o uso de cadeirinhas para a proteção de criança pequena.
Os reais problemas do país são bem outros. A desigualdade faz com que o Brasil despenque no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Não é problema de agora, vem de muito tempo. O cientista político Átila Roque, da Fundação Ford, diz que o país tem um poder enorme de reinventar de maneira diferente a fórmula para continuar sendo sempre muito desigual:
— A permanência da desigualdade ao longo dos séculos, mesmo no período da democracia, é muito reveladora de uma certa vocação da sociedade brasileira para a desigualdade. Ela é muito complexa e só se realiza porque tem uma série de políticas e forças trabalhando para a sua manutenção.
Átila Roque alerta que não é apenas um problema de renda, mas sim de distribuição desigual dos direitos e de persistência do racismo, que ele define como “uma escola de desigualdade”, onde o brasileiro aprende a tratar as pessoas de forma diferente:
— Alguns dados são chocantes, como o de que 78% das vítimas de homicídios são negros, ou pretas e pardas como diz o IBGE. E entre os jovens, esse percentual chega a quase 90%. O que estamos produzindo como país? A população está envelhecendo e nós estamos matando os jovens, nosso capital humano.
Priscila Cruz, presidente do Todos pela Educação, acha que há correlação direta entre educação, cujo retrato do nosso fraco desempenho saiu no Pisa, e todas as questões que são avaliadas no IDH, no qual o Brasil caiu uma posição na medição de 2018, divulgado dias atrás.
— Educação, renda, saúde, violência, os fatores todos se relacionam de uma forma muito forte. A gente estagnou no resultado do Pisa quando começou a ter queda da renda das famílias, aumento da desigualdade, da violência e do estresse tóxico da criança a caminho da escola com medo de tiroteio — diz Priscila.
Se os dados do passado são desanimadores, as perspectivas do futuro imediato não dão esperança. Priscila Cruz lembra que o MEC sempre teve um protagonismo grande na definição das políticas educacionais dos outros níveis da federação. No atual governo, o MEC teve uma perda brutal de liderança, a tal ponto que deixou de fazer parte do debate nacional sobre educação:
— E o MEC perdeu porque o propósito dele, hoje, e essa é a pior notícia, não é de melhorar as políticas, mas servir de plataforma para reverberar ideias muitas delas preconceituosas que não vão levar o Brasil a melhorar o resultado no Pisa.
Átila Roque acha que não é por acaso que estão surgindo tantos casos de racismo:
— Está havendo uma autorização mais explícita, de quem tem poder de influência sobre a opinião pública, para liberar os instintos mais primitivos. Estamos vendo isso em relação à população negra, mas também em relação à população LGBTI, e também em relação às mulheres. Quando se abre a caixa de Pandora você libera e valoriza a violência.
Há muito a fazer em todas as áreas. Na educação, por exemplo, falta uma política de valorização do professor, lembra Priscila. No ano que vem, será preciso definir o novo Fundeb, o mais rapidamente possível, porque ele tem que estar no Orçamento. O atual Fundeb acaba em primeiro de janeiro de 2021. Ele é parte fundamental do financiamento da educação brasileira. Será um caos não ter o Fundeb.
Neste ano o governo desperdiçou a maior parte do tempo com miudezas sem sentido, ou com passos largos na direção errada.
Problemas reais não são com quantos pontos se perde a carteira de motorista e sim com quantos erros se perde o futuro do país.
Míriam Leitão: Por que gritam as ruas do Chile
No país que era apontado como modelo, população saiu furiosamente às ruas. Entender o Chile é parte do esforço de proteger a democracia no continente
As ruas chilenas ainda não estão em paz, mas já é possível entender parte da eclosão e o balanço dos estragos. Houve dias em que quatro milhões de pessoas estavam em passeatas ao mesmo tempo, em todo o país. O Chile tem 17 milhões de habitantes. Isso seria equivalente a ter 49 milhões de brasileiros em manifestações. Foram para as ruas convocados pelas redes, sem haver liderança clara. A perda de patrimônio em infraestrutura pública e em bens privados é equivalente à destruição causada pelo terremoto de 2010.
Entender o Chile é parte do esforço de compreender o mundo contemporâneo. As redes de indignação e esperança, como define Manuel Castells, se formam anárquicas. Pesquisas de opinião do Instituto Cadem monitoram o sentimento popular e mostram que a desaprovação do governo de direita de Sebastián Piñera está em 77%. Melhorou. Já foi 82%. Mas Michelle Bachelet, de esquerda, chegou a ser rejeitada por 75% no final de 2016. Uma pesquisa feita entre os jovens dos grupos mais radicais, que teriam participado dos atos de vandalismo, mostrou que o ponto em comum entre eles é a solidão. O indivíduo está só nestes tempos líquidos, como diria o sociólogo Zygmunt Bauman.
De concreto, houve uma falha geral dos políticos em perceber o acúmulo de frustrações. A raiva é contra as magras aposentadorias, o preço dos medicamentos, as falhas dos sistemas de saúde e de transportes, o custo do crédito estudantil tomado pelas famílias para que os filhos fizessem curso superior, o que eles chamam de CAE, Crédito com Aval do Estado. O estopim foi o aumento da passagem do metrô.
O país era elogiado como exemplo do sucesso liberal. A reforma da previdência, feita pela ditadura, havia supostamente eliminado o déficit. A verdade é que o sistema de capitalização foi se tornando insustentável, mas os governos de direita e de esquerda não o corrigiram pelos vetos recíprocos.
Quando a esquerda tentou mudar, a direita bloqueou, quando a direita propôs, a esquerda impediu. Funciona assim: O equivalente a 10% dos salários dos trabalhadores foi sendo colocado em contas individuais de instituições privadas, as Associações de Fundo de Pensão. Do total poupado, 9 pontos percentuais são contribuição do trabalhador e apenas 1 é do empregador. Ao se aposentar, o trabalhador passa a receber parcelas mensais dessa poupança.
Não previram que a população iria viver muito mais. Não aumentaram a parcela empresarial. Não havia aporte governamental. O resultado foi que uma população que melhorou de vida, que se sente majoritariamente de classe média, começou a receber aposentadorias menores que o salário mínimo. Os filhos tiveram que sustentar os pais e perderam renda disponível. A crise de 2008 aumentou a taxa de desemprego. Quem ficou desempregado parou de contribuir para a sua previdência, agravando o problema. Ainda há 650 mil jovens que nem estudam nem trabalham, um número enorme para a população chilena.
O presidente Sebastián Piñera disse inicialmente que os manifestantes eram “inimigos” e autorizou a repressão. Nela 24 morreram e 3449 ficaram feridos. Ele recuou e propôs reforçar o “pilar social” em que empresas e governo contribuirão para a previdência. Convocou para 16 de abril o começo do processo para ter nova constituição. A atual foi muito reformada mas tem um pecado original: foi feita pelo ditador Augusto Pinochet.
Quais são os sentimentos do chileno? Uma pesquisa mostrou que são preocupação (34%), raiva (15%), tristeza (13%), medo e irritação, 7% cada um. Do lado positivo, apenas 13% sentem esperança, 2%, tranquilidade, 2%, alegria, e 1%, paz. Porém quando olham para o futuro e são perguntados o que será o Chile quando superar essa crise, 74% acreditam em um país melhor.
Piñera tem feito concessões que estão mudando seu programa de governo. Isso contraria quem votou nele. O sistema político começa a convergir para uma pauta comum. Mas as ruas ainda estão bravas. Em que instituições os chilenos confiam? A PDI, polícia de investigação, tem o primeiro lugar com 57% de aprovação, nos outros três lugares estão Marinha, Força Aérea, Exército. Depois vem Banco Central e Carabineros. O de menor aprovação é o Congresso, que tem apenas 11%, os tribunais de justiça têm 18%. Entender o caso chileno é parte fundamental da luta para proteger a democracia no continente.
Míriam Leitão: Sexta-feira 13, 51 anos depois
AI-5 faz 51 anos e deveria ser assunto pacificado, mas voltou à pauta em função do sonho autoritário dos que hoje ocupam posição de poder
Numa sexta-feira 13, há exatamente 51 anos, o AI-5 caiu sobre o país como um viaduto. O Brasil era outro. Dos brasileiros de hoje, 76,21% não haviam nascido. São 160,2 milhões de brasileiros nascidos depois daquele dia. Pelo tempo passado e pela renovação populacional, esse deveria ser um assunto esquecido e pacificado. Mas o AI-5 foi um dos assuntos mais falados no país este ano, em função do estranho sonho autoritário de pessoas que hoje ocupam posição de poder.
Há vários mitos sobre a ditadura que andam sendo repetidos numa demonstração de que é preciso voltar a falar do assunto. Os militares chegaram dizendo que ficariam pouco tempo e ainda hoje alguns grupos defendem que o regime foi brando. Não existe ditadura suave e a dinâmica do caminho autoritário é incontrolável.
O general Castello Branco dizia que o regime seria temporário e ele durou 21 anos. O primeiro Ato Institucional foi apresentado como sendo o único e houve 17. O AI-5 duraria um ano, durou 10. O SNI seria apenas um pequeno serviço de inteligência e, como registra Elio Gaspari, virou um “monstro” na definição do seu próprio criador, Golbery do Couto e Silva. No final tinha seis mil funcionários, escritórios em cada ministério, em cada órgão estatal, envolveu-se em inúmeras maracutaias, do garimpo na Amazônia às negociatas com café.
O país não estava “indo para o comunismo”, mas sim vivendo um governo de muita instabilidade e que se aproximava do seu final. No ano seguinte haveria uma eleição em que se enfrentariam Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda, com grande chance de vitória do primeiro. Os dois se juntaram depois na Frente Ampla, que incluiu também João Goulart, uma aliança impensável entre o golpista Lacerda e o presidente deposto. Eles passaram por cima das diferenças pela causa comum do retorno à democracia. A frente foi proscrita pelo governo no interminável ano de 1968.
Na economia, a ditadura começou fazendo um plano anti-inflacionário e de ajuste das contas públicas. Através do PAEG, a inflação foi reduzida com um mecanismo de correção salarial pela média dos 24 meses anteriores e que levou a uma redução de salário real. Após o ajuste, o país acelerou o crescimento do PIB. Se o país estava crescendo, isso deveria ter desanuviado o clima político, mas a direita no poder decidiu radicalizar.
A coincidência entre o melhor momento da economia e o pior período da repressão é até estranha. O crescimento acelerado, em qualquer país, produz uma taxa maior de aceitação do governo. O PIB cresceu em média 11,2% de 1968 a 1973, segundo André Lara Resende no livro “130 anos da República”. Os militares queriam mais que apoio, ambicionavam a unanimidade. Para calar todas as vozes discordantes foi disparada a violência desmedida do Ato Institucional que fechou o Congresso por quase um ano, estabeleceu a censura prévia contra alguns órgãos de imprensa, suspendeu todas as garantias constitucionais, cassou parlamentares, expulsou estudantes e professores das universidades e expandiu a máquina de tortura e morte.
O crescimento do país era desigual. Segundo Pedro Ferreira de Souza, a parcela da riqueza nacional apropriada pelos brasileiros que estavam entre os 1% mais ricos subiu de 17,7% para 25,8% entre 1964 e 1970. Oito pontos percentuais em seis anos.
O tempo de forte alta do PIB é apenas uma parte dos 21 anos. Ficou restrito ao final dos 60 e começo dos 70. Houve o período de recessão, inflação, dívida externa e bagunça fiscal. “Quando, na segunda metade dos anos 1970, os desequilíbrios das contas externas e as pressões inflacionárias reapareceram, agora combinados com a correção monetária, estava montado o quadro para quase duas décadas de estagnação e aceleração inflacionária”, escreve Lara Resende.
Não deveria ser preciso dizer que o AI-5 abriu um tempo maldito que jamais pode provocar saudosismo nos governantes. Mas também não deveria ser preciso dizer que torturador não é herói e que presidentes não falam, com naturalidade, sobre instrumentos de tortura. Não deveria ser necessário dizer que os problemas da democracia só podem ser corrigidos com mais democracia. Contudo, ainda é preciso lembrar como foram terríveis aqueles dias, aqueles anos, que começaram numa sexta-feira 13, há 51 anos.
Postado por Gilvan Cavalcan
Míriam Leitão: A era dos juros reais perto de zero
Juros reais abaixo de 1% reduzem o custo da dívida, estimulam o crédito e alteram os portfólios de poupança e investimento
O Banco Central reduziu os juros para 4,5%, que não é apenas a taxa mais baixa da história, é um nível nunca imaginado. Isso significa que o país está agora com uma taxa real de juros menor que 1%. A inflação tem recebido o impacto do dólar, dos combustíveis e da disparada da carne, mas apesar disso os economistas não veem risco com essa Selic tão baixa porque o IPCA ainda está abaixo do centro da meta.
O mercado já esperava a queda dos juros e estava de olho nos sinais que o BC daria para os próximos movimentos. Há quem no mercado considere que os juros ainda poderão cair no ano que vem para 4,25% ou até 4%. O professor Luiz Roberto Cunha, da PUC-RJ, acha que o melhor agora é parar e esperar. Mas ele concorda que a decisão de ontem, de reduzir para 4,5%, fazia sentido. Era o BC usando uma “janela de oportunidade”. No comunicado pós-reunião, o BC argumentou que a economia ganhou tração, mas que daqui para frente é preciso “cautela”. No mercado, houve quem achasse que a Selic pode cair mais 0,25% e quem enxergasse o fim do ciclo de cortes.
A pressão de preços neste fim de ano aumentou, mas ela está concentrada em alguns produtos apenas. O IPCA em novembro foi o maior para o mês em quatro anos, 0,51%. O grande vilão foi a carne que subiu 8%. No atacado, o IGP-M chegou a 7% de alta acumulada em 12 meses. Isso pode afetar aluguéis, ou alguns contratos, mas tudo vai depender do ritmo da atividade. Ainda há muita ociosidade na economia, dificultando o repasse. O mercado de aluguéis está deprimido, induzindo mais à negociação em torno do reajuste.
Nas últimas quatro semanas, o Boletim Focus sempre revisou para pior as projeções de inflação deste ano. Elas saíram de 3,35% para 3,86%. Mas o centro da meta é 4,25% e tudo indica que as expectativas estão “ancoradas”, como se diz. Ou seja, ninguém está esperando uma disparada dos preços como houve em 2015/2016.
Essa queda de juros para patamares nunca antes vistos tem um enorme impacto na economia. Primeiro, o custo da dívida pública cai bastante. Tem caído desde o governo Temer. Nos últimos três anos saiu de 14,25% para o nível anunciado agora, o que significa uma queda de quase 10 pontos percentuais. Isso economiza uma enormidade de juros. Segundo, tem havido uma maior oferta de crédito e em alguns segmentos, como o da pessoa física, tem aumentado muito. A ponto de ser necessário que o BC monitore para evitar a formação de bolhas. Elas são dificultadas pelo fato de que, mesmo com a Selic no nível atual, os juros bancários ainda são muito altos. Terceiro, a queda detonou um movimento de mudança de portfólio de investimento, das famílias, das empresas, dos fundos.
A queda abaixo do nível atual é que é discutível. Com esse corte, os juros reais, descontada a inflação, caem para 0,89%. Qualquer elevação de inflação, ou expectativa de alta, reduzirá esse nível e pode-se chegar a juros negativos.
O governo está precisando de uma injeção de ânimo na economia e o Copom tem providenciado o estímulo monetário, já que não dá para ter impulso fiscal com o país em déficit. Isso só dá certo se o Copom não quiser ajudar o governo a estimular o crescimento. Recentemente, perguntei ao presidente do BC, Roberto Campos Neto, o que ele considerava que era o mandato dele. Ele respondeu que era a meta da inflação e a estabilidade financeira. Se o BC achar que faz parte da equipe econômica, e se juntar ao grupo para incentivar o crescimento, vai errar na dose e não saberá usar corretamente os instrumentos de política monetária.
O economista Luiz Roberto Cunha acha arriscado reduzir mais:
— Já são juros reais abaixo de 1%. Isso tem que ser levado em consideração. A indústria financeira terá que fazer um ajuste muito grande. Seguradoras e planos de previdência, que têm reservas altas, sofrem com juros reais baixos — disse.
O Fed manteve os juros inalterados na reunião de ontem, depois de três reduções consecutivas. A política e a economia americanas são fontes de incerteza. Cunha acha que em função das eleições o presidente Donald Trump deverá atenuar a hostilidade comercial com a China, porque setores produtivos americanos têm sofrido os efeitos desse confronto. Isso pode permitir um dólar mais favorável. Ainda há muita incerteza. De certo, apenas que o Brasil, com a redução sustentada dos juros iniciada no governo Temer e mantida no atual governo, está entrando em uma nova era no mercado de crédito e poupança.
Míriam Leitão: Número melhor e horizonte opaco
Grande conquista na economia foi afastar o risco de insolvência do governo, mas ainda falta muito para o país garantir um ciclo sustentado de alta do PIB
Os números nas planilhas dos economistas dos bancos começam a ficar ligeiramente melhores para este ano e o próximo. Os dois maiores bancos privados do país na sexta-feira correram para divulgar que mudaram de 2,2% para 2,5% a previsão para o PIB de 2020. Para este ano, o dado se move para 1,2%. A grande pergunta é se entramos numa nova fase da economia que levará a um crescimento sustentado. Ainda não. Projeção não é fato. Em janeiro, a mediana era que o PIB subiria 2,6% em 2019. Mas aconteceu sim um fato que altera o quadro econômico: o fantasma do insolvência do país foi afastado.
No meio da recessão de 2015-2016 foi assustador ver o ritmo de crescimento da dívida. Ela era cara, alta e crescente. O custo da dívida chegou a ser quase 9% do PIB ao ano e hoje está abaixo de 5%. Ela subiu de 52% em 2014 para 79% em 2019. E o déficit primário alimentava esse crescimento. A projeção do Itaú é que sem o teto de gastos e a reforma da Previdência iria para 104% no final da próxima década. Como toda a poupança das famílias, das empresas, dos fundos de pensão, do setor financeiro está lastreada por títulos públicos, as projeções assustavam. O temor não era superar 100% do PIB, nível nunca antes atingido, mas o de, em algum momento, haver uma crise de confiança na capacidade de o Tesouro pagar seus títulos. Os poupadores em geral poderiam achar que o Tesouro não honraria sua dívida e isso geraria uma crise de proporções inimagináveis.
Esse temor está ficando para trás. Por vários motivos. A queda dos juros de 14,25% no começo do governo Temer até os 4,5% que deve chegar na próxima reunião do Copom alterou completamente a equação. A reforma da Previdência reduzirá o ritmo de crescimento do déficit do sistema de pensões e aposentadorias. Se o país crescer, fica mais próximo o horizonte de estabilização da dívida/PIB. Essa é a grande diferença.
O afastamento desse fantasma começou no governo passado, continua no atual, mas não é simples distribuir os méritos. O presidente Jair Bolsonaro nunca se envolve com qualquer pauta de ajuste fiscal. Quando a equipe econômica defende uma reforma ele levanta questões corporativas. Se é reforma da Previdência, ele protege policiais e as Forças Armadas. Se é reforma tributária, ele pune quem fala em cobrar impostos de igreja. E por fim ele acabou empurrando tudo para o ano que vem, usando o argumento de que há riscos de manifestações. Seu ânimo reformista é nenhum. A reforma da Previdência foi aprovada em grande parte pelo esforço do próprio Congresso.
A equipe econômica não apresentou ainda sua proposta de reforma tributária. Quando fala dela são ideias descosidas. Eles querem suspender o subsídio à cesta básica com o argumento de que há nela produtos que são consumidos apenas por quem tem renda mais alta. Poderiam começar tirando da cesta básica os itens do consumo da classe média e dos ricos. Dizem que vão usar R$ 4 bilhões dos R$ 16 bilhões dessa renúncia fiscal para beneficiar diretamente os mais pobres. O problema é se eles saberão fazer isso. A tentativa de mudança do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e, agora, a proposta de taxar os desempregados para financiar o programa de primeiro emprego mostram falta de intimidade com a questão social brasileira. Falam em acabar com as deduções de saúde e educação no IRPF, mas ao mesmo tempo pararam de falar na redução das grandes transferências de recursos públicos através dos subsídios aos grupos e setores empresariais. Há falta de foco e pouco horizonte para as reformas.
Para que se possa ter mais confiança na retomada da economia será preciso fazer mais ajuste fiscal do que já foi feito. Isso vai contrariar interesses que o governo está demonstrando não querer contrariar, e exige uma compreensão do processo econômico que o presidente não tem, nem mostra disposição para entender.
Além disso, há sombras demais no governo. O ajuste das contas públicas só é bom se tem critério. E sempre será apenas a base de um projeto de país. As políticas ambiental, educacional e cultural — para falar apenas de algumas áreas em que as decisões são mais toscas — mostram que esse governo não entendeu o futuro. O país provavelmente terá um alta do PIB de 2% no ano que vem, mas não é isso que vai garantir o crescimento sustentado.
Míriam Leitão: A reforma que é contrarreforma
Reforma dos militares manteve benefícios e deu grande aumento de salário. Governo quis agradar as Forças Armadas, e Congresso apoiou
As duas últimas semanas foram muito boas para as Forças Armadas. Foi aprovada a reforma da Previdência quase nos mesmos termos do projeto que eles mesmos haviam formulado e cujo ponto alto é a concessão de vários aumentos, adicionais e vantagens na carreira. Eles conseguiram também um decreto financeiro para gastar mais R$ 4,7 bilhões este ano. Além disso, a equipe econômica aceitou pôr na lei orçamentária que o investimento do Ministério da Defesa não pode ser contingenciado no ano que vem.
O discurso da austeridade perde toda a coerência quando se vê o tratamento dispensado aos militares. As Forças Armadas argumentam que os salários estavam defasados em relação a outras carreiras do executivo. É verdade em grande parte. Fazer esse acerto de contas quando o país está em penúria fiscal é discutível. Mas dado que o atual governo queria mesmo corrigir a defasagem, melhor seria ter dado apenas aumento e não todas as vantagens somadas ao longo da carreira e na hora de se aposentar.
Um militar se aposentará tendo aquilo que desde a reforma do ex-presidente Lula não existe mais para os funcionários públicos civis, após 2003: integralidade e paridade. Até quem não entrou ainda na Força terá esse direito de se aposentar com o último salário e recebendo todos os aumentos dos da ativa.
Além disso, eles terão adicional no salário pelos cursos que fizeram, que aumenta quanto mais se avança na carreira. Pode chegar a ser 73% sobre o salário. Outro aumento, que pode chegar a 32%, o militar recebe ao se aposentar, é o adicional de disponibilidade. E ainda ganha um abono, pago uma única vez, de oito salários para as despesas de ir para a reserva. Se for expulso por alguma falta grave, o cônjuge terá direito a uma pensão, como se o militar tivesse morrido. Isso se chama morte ficta e sempre existiu. O sargento da Força Aérea preso traficando cocaína, por exemplo, terá essa pensão. Esse ponto a equipe econômica quis alterar, mas foi mantido apenas com a diferença de que, no futuro, não será o soldo integral, mas proporcional ao tempo trabalhado.
Na parte das obrigações, os militares pagarão um percentual maior à Previdência. Hoje pagam 7,5%. Isso vai para 9,5% ano que vem e 10,5% em 2021. As pensionistas e os estudantes de escolas preparatórias também contribuirão. Ao contrário dos trabalhadores privados ou servidores civis, os militares não terão idade mínima. Nem os futuros militares. O tempo na força passa de 30 para 35 anos, para os que vierem a entrar. Os atuais terão que cumprir apenas uma regra bem leve de transição. O economista e professor da USP Luis Eduardo Afonso disse que ficou muito pessimista com o que aconteceu porque a reforma dos militares é totalmente diferente da dos civis.
— Se a ordem de grandeza da reforma da Previdência era conseguir R$ 1 trilhão de economia, a dos militares é de R$ 10 bilhões, ou seja, 1%. Temos um problema adicional: os dados que o governo disponibiliza são muito menos detalhados que os do Regime Geral e do Regime Próprio dos servidores. Na outra reforma sabe-se o quanto cada medida economiza, de ano a ano. Na reforma dos militares só se sabe o valor agregado. Não dá para separar o impacto de cada uma das medidas. As contas dos militares foram feitas pelos próprios militares e não pela equipe econômica —disse Eduardo Afonso.
Se o presidente Bolsonaro cumprir a promessa de baixar um decreto para melhorar a remuneração dos soldados, cabos, sargentos e suboficiais que se sentem prejudicados com os benefícios maiores para as altas patentes, o governo terá feito uma reforma apenas para gastar mais. Como algumas dessas regras valerão também para policiais e bombeiros, isso vai aumentar a pressão nos gastos dos estados.
A equipe econômica diz que quer menos engessamento das despesas, mas aceitou engessar os gastos da Defesa com investimento em 2020. Além disso, na semana passada, aumentou em R$ 4,7 bilhões a verba para gastar neste final de ano com despesas do orçamento e de caixa.
Num ano difícil em que se cortou tanto, em que a reforma foi apresentada com o discurso de redução das desigualdades dentro do sistema, foram cristalizadas vantagens que já acabaram para outros servidores. Ou nunca existiram. E o Congresso apoiou integralmente. O governo quis agradar os militares, e o Congresso não quis comprar essa briga.
Míriam Leitão: Recuperação assimétrica
A economia está com nível de atividade bem diferente dependendo do setor. De 2014 a 2018, a construção caiu 28% e o agro teve alta de 13%
O crescimento tem sido muito assimétrico em qualquer comparação, seja entre regiões, entre setores, e até dentro de cada setor. Essa diferença é um dos problemas que impedem o economista José Roberto Mendonça de Barros de compartilhar do entusiasmo que, segundo ele, ocorre “em algumas áreas da Faria Lima”, referindo-se ao mercado financeiro, sobre o PIB. Sua consultoria continua prevendo 1,6% de alta para o ano que vem, e acha que isso só muda dependendo de algumas pré-condições.
— É como se três pessoas tivessem que descrever um elefante, com os olhos vendados, e cada uma pega numa parte do animal.
Sairão definições bem diferentes. Assim está a economia brasileira —disse.
A revisão que foi feita do PIB ano passado, pelo IBGE, de 1,1% para 1,3%, é derivada da mudança no PIB agrícola, que estava com 0,1% e foi para 1,4%, a indústria caiu de 0,6% para 0,5%, e o setor de serviços teve alta de 1,3% para 1,5%.
Dados plurianuais mostram essa assimetria. De 2014 a 2018, a queda do PIB está em 4,2%. Ou seja, já recuperou uma parte, mas ainda está negativo. Nesse período, a construção civil acumulou uma queda de 28,5%. Portanto, a alta que houve no dado do terceiro trimestre de 2019 é apenas uma pequena mudança nesse cenário de encolhimento. A indústria de transformação, que continua no vermelho, acumulou de 2014 a 2018 uma queda de 9%. O setor de serviços está com uma redução menor, de 2,7%, e a agropecuária contrasta com uma alta, nesses anos recessivos, de 13,3%.
São muitas as explicações para essa diferença, mas sem dúvida os acertos do setor agropecuário, com investimento em tecnologia de produção e aumento de produtividade, são parte fundamental do fato de o setor ter atravessado com dados tão positivos os anos de recessão.
—A surpresa positiva do PIB do terceiro trimestre foi a construção civil, mas ela está concentrada apenas no residencial. E muito mais
forte em São Paulo. A construção pesada continua de joelhos. A gente vê a concentração dessa recuperação até na distribuição das vendas da indústria de cimento —diz José Roberto.
Por isso, dependendo de onde se está, no setor da economia brasileira ou na região do país, a visão pode ser mais ou menos positiva neste momento em que há sinais de melhora no nível de atividade.
—A Faria Lima, principalmente uma parte dela, está muito animada. Vejo gente revendo o crescimento do ano que vem para até 3%. Nós aqui na consultoria avaliamos que não se pode dizer que estamos numa retomada, mas sim no meio da consolidação das condições que podem levar à recuperação. Por isso ainda estamos prevendo 1,6% para o PIB do ano que vem, e só vamos mudar se as condições forem alteradas —diz José Roberto.
Para ele são três essas pré-condições da retomada: primeiro, é preciso completar o trabalho de mudança no quadro fiscal do país, segundo, é preciso ter um avanço nas concessões, principalmente na área de saneamento, terceiro, consolidar a mudança que já está havendo no mercado de crédito:
— Pelo menos a PEC emergencial, que permite por dois anos um ajuste nas despesas correntes e de pessoal, precisaria estar aprovada no primeiro semestre do ano que vem. No segundo, não se aprova nada porque é ano eleitoral. Isso permitirá uma projeção de controle de gastos que hoje crescem quase de forma autônoma. Será preciso avançar nas concessões, já que não se espera muito das privatizações. Como eu aprendi quando estive no governo, privatização quando é bem-sucedida leva o dobro do tempo e vende a metade.
Espero que haja concessões e torço para que seja no saneamento, que tem enorme demanda de investimento e é uma forma de impactar a construção civil e o emprego de todos os níveis, do ajudante de pedreiro ao engenheiro. O terceiro evento está acontecendo, já que é a mudança rápida no mercado de crédito, reduzindo o custo dos financiamentos.
Mendonça de Barros acha que a reforma tributária está na fase em que a Previdência estava há dois anos e meio:
— Até as pedras sabem que é necessária, mas ainda não tem consenso. Alguns setores temem aumento de imposto e já estão estudando detalhadamente para formar opinião.
O economista diz, por fim, que a conjuntura internacional e a política interna, incluindo a maneira como o governo lida com a Amazônia, são fatores que vão dizer se o país terá ou não um crescimento sustentado.
Míriam Leitão: Por ironia, inimigo dos EUA somos nós
O ataque de Trump ao Brasil é um choque de realidade para o governo Bolsonaro. Países têm interesses, e não amigos ideológicos
O setor do agronegócio dos Estados Unidos é o que mais está sentindo o efeito da guerra comercial criada pelo presidente Trump contra a China. Por isso, ontem, ele inventou um inimigo externo, tática que sempre usa para camuflar seus erros. Desta vez, o inimigo somos nós. E conosco, por ironia, está a Argentina. Os dois países estariam, na delirante explicação de Trump, desvalorizando a moeda deliberadamente para aumentar suas exportações. E de novo mira no aço e no alumínio que já enfrentaram barreiras no governo dele.
Esse é o estilo Trump. Ele cria uma crise contra outros países, dá aos produtores americanos a impressão de que está agindo, e depois faz da retirada do problema, que ele mesmo criou, a sua vitória. Caberá à diplomacia brasileira defender os interesses do Brasil. Ela poderá constatar neste caso o que tem sido dito por todos os analistas que entendem de diplomacia e de comércio exterior, sobre a natureza das relações internacionais.
O que Trump mostrou ontem ao governo Bolsonaro é que países têm interesses e não amigos ideológicos. A resposta de Bolsonaro de que ligaria para ele porque são amigos é patética, tanto que no final do dia já tinha recuado. É preciso ter uma resposta formulada de maneira estratégica. Trump tudo faz de caso pensado e numa entrevista, depois dos ataques matinais no Twitter, voltou a falar contra o Brasil, argumentando que a desvalorização cambial estaria sendo “muito injusta para os nossos industriais e muito injusta para os nossos fazendeiros”.
O que Trump quer? Provavelmente ele está incomodado com a queda da exportação do agronegócio americano para a China, especialmente grãos e proteína animal. Parte da queda se explica pela retaliação chinesa à guerra que Trump iniciou. O governo americano chegou a elevar muito os subsídios à soja, o que desorganiza o mercado. Trump cria um caso na expectativa de falar para o seu público e depois exigir algo. A tática é pôr o bode na sala e depois pedir algo para tirar o bode.
Se ele quiser qualquer coisa que seja autolimitação das exportações do agronegócio para outros países será inaceitável. Mas com Trump é preciso sempre esperar pelo pior.
Nos ataques ao Brasil e à Argentina ontem, o presidente Donald Trump está tentando confundir uma vez mais. Ele fez referência aos produtores agrícolas antes de dizer que elevaria as tarifas do aço e do alumínio. Em um dos tweets, ele disse que deu uma grande redução de tarifas ao Brasil. Mentira. Ele elevou as tarifas, e depois recuou do aumento mas impôs cotas ao Brasil. Os exportadores de aço aceitaram essa limitação quantitativa e as exportações caíram este ano 16%. Ou seja, a desvalorização do real nem poderia ajudar a estimular a exportação porque tem um limite físico.
O dólar tem subido no mundo inteiro por inúmeros fatores, e um deles é a incerteza que Trump cria. O Brasil tem outros problemas internos, e a Argentina, ainda mais. Lá, houve inclusive um acordo entre o governo que sai e o governo que entrará no dia 10 de dezembro para impedir a continuação da desvalorização. Eles impuseram aos argentinos o “cepo”, uma restrição de acesso à moeda americana.
Nada do que Trump disse ontem fica em pé. Ele nada tem a reclamar do Brasil, que nos últimos anos acumulou muito déficit na comércio com os EUA. No ano passado, em dez meses, houve um pequeno superávit para o Brasil, de US$ 50 milhões. Este ano, o superávit dos Estados Unidos está em US$ 1,1 bilhão. Ao mesmo tempo, a exportação brasileira para a China recuou US$ 1,6 bilhão e o saldo comercial encolheu em US$ 1,8 bi. A exportação de soja do Brasil para a China recuou 26% em valor, ou US$ 6,2 bilhões, e o volume teve queda de 16%. A corrente de comércio com a China caiu de US$ 83 bilhões de janeiro a outubro de 2018 para US$ 81 bilhões no mesmo período de 2019. Este ano, por sinal, tem sido de queda do comércio internacional, por culpa de Trump.
O real não está sendo desvalorizado para estimular a exportação, e os números não mostram qualquer sinal de “comércio injusto” por parte do Brasil. A ironia de tudo isso é que a diplomacia de Bolsonaro estava brigando com a Argentina e declarando I love you para Trump. Agora está de cara com a realidade dos fatos: Brasil e Argentina estão no mesmo barco enfrentando o protecionismo americano e a acusação injusta de estarem manipulando o câmbio para ganharem no comércio internacional.
Míriam Leitão: CMN tabela juros distribui a conta
Os juros do cheque especial serão tabelados, por um governo liberal, e a conta será passada a todos os clientes. Com essa ideia de cobrar de todos os correntistas que tenham limite no cheque especial, e ao mesmo tempo estabelecer um limite máximo de juros que podem ser cobrados, o governo consegue atacar a ideologia que diz defender, e também preservar, e talvez aumentar, os lucros dos bancos.
Apenas uma parcela dos clientes usa o cheque especial. A maioria mantém limites mas evita usar exatamente pelas taxas proibitivas. Há um grupo de alta renda que tem limites elevados propostos pelos próprios bancos. A ideia agora é que, como os bancos dizem ter um custo para garantir esse limite aos correntistas, todos passarão a pagar mais uma tarifa aos bancos.
— O mercado ficou doidinho, o governo liberal tabelando juros de cheque especial. Imagina se isso fosse feito no governo Dilma? — disse um economista de banco.
Isso derruba numa tacada os juros do cheque especial à metade, mas as taxas ainda assim permanecem altíssimas, afinal o limite é 150% ao ano num tempo em que a Selic está em 5%, e a inflação, em 3%. A decisão foi tomada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), que hoje se resume a três pessoas, o ministro Paulo Guedes, o presidente do BC, Roberto Campos Neto, e o secretário de Fazenda, Waldery Rodrigues.
Os três se reuniram e decidiram que o máximo que os bancos podem cobrar de juros será 8% ao mês. Em contrapartida, poderão cobrar de todos os clientes uma tarifa de 0,25% sobre o valor do crédito que estiver disponível no cheque especial e que exceder R$ 500. Ou seja, se o correntista tiver um limite de R$ 10 mil, pagará a tarifa sobre R$ 9.500, algo em torno de R$ 23,75 ao mês, mesmo que não utilize essa linha de crédito. Os clientes poderão ir aos bancos e solicitar a redução do limite para R$ 500, e assim ficar livre da tarifa. O Banco Central defendeu a medida, dizendo que esse tipo de limite nos juros está presente em “regulamentação de economias avançadas e emergentes”.
O governo está também numa situação complicada com o câmbio. Houve problemas locais que influenciaram na alta do dólar, do patamar de R$ 3,70 para o de R$ 4,20 em apenas quatro meses.
Ontem, no mercado, se dizia que o dólar está “desancorado” depois da fala do ministro Paulo Guedes em Nova York. Há três dias o dólar sobe e bate recordes com o mercado testando os limites. Qualquer declaração de ministro da Economia prevendo alta do câmbio eleva o dólar. Foi isso que se viu nos últimos dois dias. O Banco Central teve que intervir duas vezes na terça-feira e mais uma vez ontem.
O ministro Guedes acabou fazendo um strike na sua entrevista em Nova York. Em uma única coletiva, provocou uma onda de repúdio na política, pela sua declaração sobre AI-5, alimentou a interpretação no exterior de que a América do Sul é uma só, e que a convulsão das ruas chilenas está para se repetir no país, e provocou volatilidade no mercado cambial com sua declaração sobre o valor do dólar.
A decisão de tabelar os juros do empréstimo de emergência não vai resolver o problema do superpreço dessa linha de crédito. Por outro lado, a alta do câmbio afetará o orçamento das famílias. O Banco Central tem um volume alto de reservas para enfrentar esse estresse com o mercado. O problema é o reflexo nos preços de alguns produtos que têm mais visibilidade.
Haverá agora uma dissonância entre o que os economistas dizem a partir dos seus indicadores e o que as empresas e famílias sentem. Quando há alta do dólar e, depois, um período de volatilidade, a percepção de inflação é mais forte. Alguns preços de referência são impactados imediatamente, como os combustíveis. Ontem mesmo a gasolina subiu 4%. A alta do dólar afeta também medicamentos, um grupo muito sensível no orçamento das famílias. Nos índices, contudo, está tudo bem, e a inflação está abaixo da meta.
O problema é que a economia não é apenas uma lista de gráficos e indicadores e de tendências na margem. É também a expectativa dos agentes econômicos e dos investidores, e o sentimento dos consumidores. A alta de preços como os combustíveis passa a sensação de desconforto e de inflação subindo, ainda que ela esteja abaixo da meta.