Míriam Leitão: O jornalismo muda e permanece

Para desgosto do presidente, o jornalismo que incomoda, insiste, esclarece e investiga permanece forte e mudando sempre

Não sei se ele tentou fazer uma brincadeira. Talvez não, porque o humor e a ironia não são seus pontos fortes e são recursos de linguagem que exigem bastante do cérebro. Seu histórico é mesmo de agressões. O presidente Jair Bolsonaro disse que os jornalistas são animais em extinção que deveriam ser entregues ao Ibama. Suas ofensas frequentes aos repórteres na porta do Palácio da Alvorada podem ser definidas como assédio. Como fazem os valentões, ele sempre se cerca da sua claque, aposta na impunidade e dispara seus mísseis cheios de machismo, homofobia, mentiras e desprezo por valores democráticos.

Ele gostaria de ser um exterminador da imprensa. Principalmente daquela que incomoda, que insiste, que esclarece, que investiga. Bolsonaro preferia que o país tivesse apenas os seres amestrados que se definem como jornalistas mas são escolhidos por ele pela certeza de que nunca vão incomodá-lo ou surpreendê-lo. Serão dóceis depositários de falas suas. Esses sim se extinguirão quando ele deixar o poder, ou então vão atracar-se como cracas ao novo poder que se formar.

O jornalismo continuará sendo indispensável e continuará a existir. O papel institucional do bom jornalismo é requisito básico para o funcionamento das instituições democráticas. O presidente confunde seus desejos com prognósticos, quando ameaça de extinção um ou outro órgão de imprensa, ou então quando imagina o fim de toda uma categoria.

A imprensa passa por transformações intensas. Muda o modelo de negócios, a maneira como se apuram as informações, a forma como a notícia é apresentada e a intensidade com que o fluxo de dados e fatos circula. Alguns nichos de mercado desaparecem e outros surgem constantemente. Nessa voragem, os jornalistas vão trocando de equipamentos, aprendendo a usar novas técnicas, entrando e saindo de plataformas. Mas não é o fim da atividade, é que a tecnologia acelerou o ritmo de mudanças que sempre estiveram ligadas ao jornalismo. Mesmo quando alguns órgãos fecham, reduzem-se os profissionais necessários para executar uma tarefa, velhas fontes de receita diminuem, não é o jornalismo acabando. É a transformação com a qual a imprensa sempre conviveu. Mudar é a nossa matéria. E, como seres inquietos que são os jornalistas, acho que não ficariam felizes na placidez. Por mais inquietante que seja este momento, os jornalistas estão testando as novas fronteiras das possibilidades.

Nos tempos das redes sociais, há uma confusão e é nela que o presidente está apostando. O transmissor do último fato pode não ser jornalista. Muitas vezes essa pessoa é um elo importante na circulação da notícia, mas sobre cada evento os repórteres profissionais se debruçarão com sua técnica de apuração e checagem, separando, como sempre fizeram, os boatos das informações sólidas e verificáveis. Bolsonaro se convenceu de que, se não ler os jornais, ficará melhor. Chegarão a ele apenas os elogios e a postagem dos áulicos. Governará mal qualquer um que se afaste das críticas ou tente apagá-las, por autoritarismo ou incapacidade de conviver com a discordância.

Bolsonaro se convenceu também, equivocadamente, de que pode continuar se comunicando através de transmissões em que aparece ao lado de pessoas que são ornamentos, sem qualquer espaço para o contraditório. E que os robôs comandados por gente da família ou pessoas contratadas com dinheiro público serão suficientes para conduzir as tendências da opinião pública. Eles criam os trending topics com suas repetições programadas e acham que isso os transforma em criadores de realidades. O que eles fazem circular são calúnias, difamações, mentiras, propaganda. Isso não é jornalismo. O gabinete do ódio dentro do Palácio do Planalto sobrevive porque as instituições não foram eficientes até o momento para defender a sociedade brasileira dessa perigosa distorção, financiada com o dinheiro público.

O que existe de comum entre os jornalistas e o Ibama é que estariam todos extintos, se dependesse apenas dele. Inclusive o órgão de defesa do meio ambiente brasileiro. Muitas vezes este governo constrangeu publicamente funcionários do Ibama, ou de outros órgãos do Estado brasileiro, que, contudo, seguem fazendo seu trabalho. E para o desgosto presidencial os jornalistas também permanecerão.


Míriam Leitão: Inflação baixa que pesa no bolso

A inflação subiu no fim do ano, e alguns grupos estão com forte peso. Por enquanto, acabou o espaço para nova queda da taxa Selic

O Brasil viu em dezembro o que não vê há muito tempo, uma inflação de 1,15% em um mês, e a taxa do ano ficar acima do centro da meta. Não é um grande perigo, mas é bom ficar atento ao fato de que há menos de três meses, no dia 15 de outubro, a pesquisa Focus, que reflete o que pensa o mercado financeiro, previa que a inflação terminaria o ano em 3,26%. Além disso, o IGP-M ficou em 7,3% e reajusta aluguéis. O índice para a população de baixa renda terminou o ano em 4,48%. A primeira conclusão é que neste momento acabou o espaço para a queda da Selic.

O Copom pode até cortar de novo os juros de 4,5% para 4% ou 4,25%, mas se o fizer estará apenas seguindo o que a maioria do mercado prevê, ou o que é bom para estimular crescimento, que não é o principal mandato do Banco Central. Pelos limites do regime de metas, claramente, não há mais espaço. É hora de esperar para ver e não de praticar juros negativos.

Os economistas dizem que os juros reais devem ser calculados olhando para a frente, o “ex-ante”, e não olhando a inflação passada, que seria o “ex-post”. Mas a expectativa de mercado vale até o dia em que muda. Se há três meses os bancos não tinham colocado nas projeções a pressão dos preços da carne é porque suas lunetas andam avariadas. A crise no abastecimento chinês ficou clara durante todo o ano passado com o surto de febre suína que atingiu o rebanho daquele país. A demanda cresceu fortemente por toda a cadeia de proteína e era claro que quando chegasse a entressafra a conta bateria. Foi o que aconteceu.

A inflação da carne foi de 18,06% em dezembro, mas no ano chegou a 32,4%. E, ainda que em janeiro tenha parado de subir, não deve cair muito ao longo do ano a ponto de reverter essa alta. A pressão da demanda chinesa continua. O milho teve aumento forte. A saca quase dobrou o preço, apesar da alta da produção no ano passado. Já para este ano a previsão do IBGE é de pequena queda da safra. É o alimento de aves e suínos, pressionando a cadeia da proteína.

A inflação de 4,3% num país que teve um biênio de forte recessão e que não cresce direito há três anos é preocupante. E ela tem núcleos muito pesados. Além da alimentação impactada pelas carnes, a inflação dos remédios, planos e tratamentos hospitalares está pesando muito. Ficou em 15% segundo o “Valor”, citando a consultoria Aon. Os planos de saúde subiram 8,24% no ano. Os aluguéis familiares e comerciais podem pesar com a alta do IGP. Material escolar pode subir 8%.

As tensões internacionais deste ano enterraram a visão otimista de que o começo do acordo entre China e Estados Unidos teria afastado os riscos externos. Na verdade, a tensão entre as duas potências sempre pode recomeçar. Mas o que não estava no radar apareceu com força, a nova escalada de tensão no Oriente Médio. É bem verdade que, como já disse aqui, o petróleo oscila e não dispara por causa da nova estrutura de produção e consumo. No entanto, uma alta, ainda que pequena, já impacta os combustíveis e os índices de preços. A energia deu uma folga em dezembro, mas o item está sempre pesando. Teve alta de 7,51% até novembro e caiu para 5% em 12 meses até dezembro porque a Aneel estabeleceu bandeira amarela nas contas de luz, apesar do sinal vermelho que vem dos reservatórios. O nível de água do Sudeste está em 20%, uma queda de oito pontos percentuais em relação ao mesmo período do ano passado, apesar de 2019 não ter havido seca e a economia não ter crescido a ponto de pressionar a demanda.

A economia continua fraca, o desemprego permanece alto, a pressão inflacionária tem grande chance de se dissipar, mas existem incertezas para serem acompanhadas. A queda de juros que realmente importa para as empresas e a população é a dos juros bancários. Eles caíram em várias linhas, mas mesmo assim seguem sendo altas demais. A redução da taxa do cheque especial foi decretada pelo Banco Central após passar um inaceitável custo para todos os correntistas que têm limites não usados nas suas contas correntes. A Caixa, quando estabelece como meta uma taxa de 2% ao mês, como fez em entrevista a este jornal, está fazendo um movimento populista ou constatando que os juros, mesmo dessa linha emergencial, ainda são abusivos. Reduzir mais um pouco a Selic não resolve qualquer problema real e pode ser visto como leniência com a inflação que acaba de dar um salto.


Míriam Leitão: Petróleo: chances e obsolescência

Brasil vai dobrar a produção de petróleo, mas o uso da fonte no mundo estará perto do fim. É preciso sabedoria para usar recursos finitos e voláteis

Se o governo criar um fundo para atenuar as oscilações dos preços dos combustíveis, estará tirando dinheiro dos impostos. E isso, de qualquer maneira, é subsídio a combustível fóssil. Além do mais, a equipe econômica decretou que todos os fundos deveriam acabar. E o governo estará criando mais um. O Brasil precisa entender melhor o petróleo, suas chances e seus problemas. Na entrevista que me concedeu esta semana, o presidente da ANP, Décio Oddone, destacou dois pontos: o petróleo é um “produto em obsolescência” e o Brasil vai mais que duplicar sua produção até 2030.

— Hoje o Brasil produz mais de 3 milhões, quase quatro milhões de barris de petróleo equivalente por dia, juntando com o gás. Nossa expectativa é chegar a 7 milhões de barris na próxima década. Ficaremos entre os cinco maiores produtores e exportadores. O impacto vai ser gigantesco, porque a arrecadação vai se multiplicar. Então fica o recado e a preocupação de como utilizar esses recursos. São finitos e voláteis — disse Oddone, em programa que fiz com ele na Globonews.

O Rio de Janeiro vai ser o local mais beneficiado do Brasil, alerta o diretor-geral da ANP, porque terá 70% da produção no litoral fluminense e isso trará um aumento significativo de arrecadação para o estado.

O risco de repetir o passado é enorme. O Rio já desperdiçou oportunidades assim. O Brasil, também. Mas esse boom acontecerá muito perto do fim do ciclo do petróleo.

— O petróleo caminha para a obsolescência. A sociedade já fez a opção para a transição energética e pelo uso de energia mais limpa. Mas haverá um período de transição, que não vai ser curto, de aumento da presença das fontes renováveis na matriz energética — diz Oddone.

Ele diz que quando começou a trabalhar na área, décadas atrás, achava que o fim da era do petróleo ocorreria por falta de petróleo. Agora, sabe que é por queda de demanda. Mas esse tempo não será tão curto.

— As principais instituições internacionais, a Agência Internacional de Energia (AIE) e outras que fazem simulação, estimam o pico da demanda de petróleo por volta de 2040. A partir de então, gradualmente, lentamente, o petróleo vai sendo substituído por outras fontes de energia, o gás natural tem papel importante nessa transição porque emite menos CO2. Ao longo do tempo as fontes renováveis vão ocupando o lugar do petróleo. E sobrará petróleo embaixo da terra e no fundo do mar — diz ele.

Talvez a transição tenha que ser apressada. Os climatologistas que passaram da expressão “mudança climática” para “emergência climática” acham que será preciso um esforço muito maior do que o que vem sendo feito no mundo para conter os extremos do clima que têm assombrado o planeta.

Oddone lembra que nós somos ainda um país com muitos pobres. Esse dinheiro tem que ser para construir o resgate da população e a elevação do nível de vida para os brasileiros em geral.

— Corremos o risco de perder essa oportunidade. Poderíamos ter feito isso há dez anos — diz ele, referindo-se ao fato de que, após encontrar os recursos do pré-sal, o governo Lula interrompeu os leilões para redefinir o modelo de exploração e o país perdeu muitas chances de investimento. Depois, veio a crise da Petrobras em decorrência da corrupção revelada pela Lava-Jato. E só em 2017 novos leilões voltaram e a indústria cresceu novamente.

Neste momento, o governo discute como criar um mecanismo que evite as altas fortes de combustíveis quando o petróleo, sempre volátil, sobe no mercado internacional. Oddone propõe que os estados, em vez de cobrar um percentual sobre o preço da bomba, estabeleçam um valor fixo por litro. Isso já acontece com o PIS-Cofins sobre a gasolina e sobre o diesel. Na gasolina, a Cide também é um valor fixo. Ela está zerada no diesel e em R$ 0,10 na gasolina. Ele diz que isso não significa redução de impostos sobre combustível fóssil, mas sim “aumento da eficiência dos impostos”.

O governo do Rio, Wilson Witzel, admitiu a possibilidade de implantar uma fórmula de valor fixo de ICMS. O ministro Bento Albuquerque disse que o governo está estudando a criação desse fundo de estabilização do preço. Quando a arrecadação excedesse o projetado, a receita extra iria para o fundo. Os governos ficam assim entre o medo da alta dos preços dos combustíveis e a tentação de pegar dinheiro dos impostos para estimular o uso de um produto que emite gases de efeito estufa. Os mesmos que estão ameaçando o planeta.


Míriam Leitão: O recuo de Trump e a tensão no ar

Trump recuou de um novo ataque ao Irã, e no Brasil o presidente Bolsonaro recuou da nota desastrada do Itamaraty

Houve um claro recuo do presidente Trump ontem e ficou evidente a pressão dos chefes militares para que os Estados Unidos não entrassem em nova guerra no Oriente Médio. No final da tarde, notícias de mísseis katyusha, próximos à embaixada americana em Bagdá, reduziram a sensação de alívio que havia se espalhado após a fala de Trump. Qualquer que seja a evolução dos eventos, contudo, aumentou muito o clima de desconfiança no mundo nos últimos dias. Este ano, em que o presidente americano lutará contra a ameaça de impeachment e pela reeleição, será um tempo pantanoso. Trump fará o que lhe trouxer dividendos eleitorais.

No Brasil também houve recuo. Aquela nota da sexta-feira, apoiando o assassinato de Qassem Soleimani, foi apagada pelas palavras e pelos silêncios. Ela era estranha à tradição diplomática brasileira e não defendia os interesses do Brasil. Desde terça-feira à noite, o Planalto começou a sair de fininho da primeira posição e corrigiu a rota. É demorada demais a curva de aprendizado do governo Bolsonaro. Ontem, ele disse que “muitos acham que o Brasil deve se omitir”. Defender o entendimento, a negociação, os órgãos multilaterais não é se omitir. É ter uma posição. A mais sensata.

O que fica de todo esse episódio é que a forma imprevisível e intempestiva de Trump agir teve um duro embate com a realidade. Segundo os analistas da televisão americana os comandantes militares deixaram claro para ele que não apoiariam uma guerra com o Irã.

A cópia do pronunciamento sendo trocada no pódio, a demora em começar a falar e o evidente nervosismo de Trump mostraram que ele viveu um momento de revés. Por outro lado, aproveitou para fazer campanha. Criticou o acordo nuclear que foi firmado pelo ex-presidente Barack Obama e do qual ele saiu. Porém, se ele insistisse nas ameaças iniciais e houvesse qualquer retaliação no território americano — apesar da desproporção das forças — “o impacto psicológico entre os americanos seria devastador”, avalia um diplomata que acompanha os eventos. E poderia ter consequências eleitorais negativas para o presidente.

Trump minimizou o ataque às bases no Iraque, deixando claro que não pretende responder ao “tapa na cara” do líder iraniano Ali Khamenei. O fato de o sistema de alerta ter funcionado, e não ter havido mortes, deixa-o confortável com essa posição. Mas, ao longo dos últimos dias, Trump recuou várias vezes, como daquela ideia tresloucada de atacar monumentos históricos persas. Outro sinal de recuo foi Trump ter falado ontem em entrar em contato com líderes parceiros da Otan. Ele dizia antes que era uma instituição falida e agora diz que quer que a organização multilateral assuma um papel preponderante na região.

Trump flertou com a guerra, teve vários problemas, inclusive críticas do seus próprios aliados por estar traindo a promessa de retirar os Estados Unidos dos conflitos do Oriente Médio. Por outro lado, é fundamental que ele consiga que os outros signatários do acordo com o Irã — Alemanha, França, Rússia, China, Reino Unido e União Europeia — também queiram renegociá-lo. Quando o acordo foi assinado, o ministro da Economia da Alemanha foi com uma delegação comercial a Teerã para mostrar que o país queria estabelecer fortes laços econômicos com o Irã. Os interesses são outros.

O temor de analistas é que o bombardeio das bases não seja considerado suficiente para a opinião pública iraniana, que vive clima de comoção. E ontem a retomada das hostilidades mostrava que a história ainda não terminou. Os mísseis katyusha, contudo, são de pouca precisão e baixa autonomia de voo. São muito usados pelos palestinos para fustigar Israel ou pelas milícias. Os observadores acham que o uso deles ontem confirma a impressão de que o Irã pode ter optado por uma série de ações de desgaste dos americanos, seus aliados e suas bases no Iraque.

Para a economia do Brasil tudo isso vem em hora muito ruim, em que começam a aparecer dados de recuperação. O aumento da incerteza não ajuda. Ontem o Banco Central divulgou que a saída de dólares na conta financeira foi a maior em 37 anos, de US$ 62,2 bi. Em parte é a aversão a risco que subiu com a guerra comercial entre Estados Unidos e China, em parte é fuga de capital especulativo, com a queda dos juros. Não dá para negar, no entanto, que o grande fator foi o governo Bolsonaro e sua impressionante capacidade de criar crises e conflitos. Isso afasta investidores.


Míriam Leitão: Os combustíveis e suas verdades

Estados estão em crise fiscal, mas o governo quer que eles subsidiem o combustível fóssil, reduzindo alíquotas de ICMS

Os preços do petróleo voltaram a subir ontem à noite após o ataque de mísseis a uma base americana no Iraque. Isso aumenta a pressão dentro do governo brasileiro para se encontrar uma solução mágica para o preço dos combustíveis. Toda vez que as cotações ficam voláteis o governo ensaia a mesma discussão, a de reduzir impostos, interferir nos preços, ou de criar um colchão de amortecimento. Foi assim na ameaça de uma greve dos caminhoneiros, e depois no atentado às refinarias da Arábia Saudita e agora na crise do Irã. Se quer alguma solução, ela tem que ser pensada quando não há crise.

Durante a campanha, o então candidato Bolsonaro era sempre perguntado sobre o que faria com os preços dos combustíveis. Isso porque a fórmula criada no governo Temer para conter a crise da greve dos caminhoneiros terminaria no dia 31 de dezembro de 2018. Bolsonaro sempre saía pela tangente ou divulgava um factoide. Na Globonews, ele chegou a sair da pergunta afirmando que privatizaria a Petrobras. O desconforto vinha do fato de que ele precisava caber na forma de um programa liberal na economia, no qual ele nunca acreditou.

Agora, com 372 dias no cargo, Bolsonaro ainda está prisioneiro do mesmo dilema entre o seu natural intervencionismo e o proclamado liberalismo de seu governo. Ele oscila entre a sua intenção de conter a alta, e a explicação da equipe econômica de que segurar preços de combustíveis não é liberal, além de prejudicar todo o projeto de privatizar as refinarias. Para piorar, ouve que foi exatamente o que a ex-presidente Dilma fez. Esse é o argumento que incomoda o presidente.

A primeira hora da verdade foi em abril, quando os preços dos combustíveis foram corrigidos em 5,7%. Ele ligou para o presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, e mandou suspender o reajuste. A Petrobras recuou. Isso deu uma grande confusão. O vice-presidente, Hamilton Mourão, teve que ir à imprensa para dizer que ele não faria a mesma política de Dilma. Bolsonaro garantiu: “não vou ser intervencionista”. Já estava sendo. A notícia bateu na ação da Petrobras. Ela caiu 8% num único pregão.

No dia 14 de setembro os preços do petróleo dispararam 10% no mercado internacional após o atentado, atribuído ao Irã, contra as refinarias da Arábia Saudita. Novo desconforto. Agora, com o atentado americano em que morreu o general Qassem Soleimani, a conversa voltou.

O presidente faz reunião e mais reunião e não chega a um resultado. Disse que pedirá aos estados que reduzam o ICMS. É um absurdo enorme. Imagina os estados que estão com rombos em suas contas, atrasam salário de funcionário, e não conseguem garantir bom atendimento de educação e saúde à população, gastando dinheiro para subsidiar combustível fóssil.

Na última reunião sobre o assunto, o governo falou em criar um colchão de amortecimento para suavizar a volatilidade dos preços dos combustíveis. Isso foi criado pelo governo Fernando Henrique. Era a Cide. Com o significativo nome de Contribuição para Intervenção no Domínio Econômico, ela tinha o objetivo inicial de fazer um colchão, que arrecadaria quando os preços estivessem baixos, e a alíquota cairia quando os preços tivessem que subir.

No governo Dilma, a Cide foi zerada, mas não foi suficiente. A conta acabou paga pela Petrobras, que carregou o custo de um congelamento dos preços de derivados de petróleo. Na greve dos caminhoneiros, de novo a Cide foi zerada, e outros impostos foram reduzidos. Essa foi a fórmula que vigorou até o fim do governo Temer. Era uma solução temporária.

Se não quiser ficar entre seu impulso intervencionista e a pressão da equipe econômica, Bolsonaro precisa encontrar uma fórmula antes da crise, para ser aplicada durante a crise.

De qualquer maneira, a esta altura das emergências climáticas do planeta, o ideal sempre será não subsidiar combustível fóssil. A equipe econômica está tão incomodada com o estímulo à energia solar, mas não se preocupa com o subsídio de R$ 1 bilhão pago todo ano pelo Tesouro para a energia do carvão. Agora ela não está preocupada com o possível subsídio ao diesel e à gasolina, o que ela teme é não ter compradores para as refinarias.

O preço interno é a soma do custo do petróleo mais a cotação do dólar. O câmbio estacionou num outro patamar, ainda que oscile. Por isso, qualquer aumento do petróleo, se não for repassado, vira prejuízo da Petrobras. Essa é a raiz do dilema.


Míriam Leitão: Risco da mudança da política externa

Irã é forte mercado do agronegócio e o Brasil trata como “terrorista” a Guarda Revolucionária que nem a ONU define assim

A Guarda Revolucionária do Irã não é considerada uma organização terrorista pela ONU. Apenas os Estados Unidos, Reino Unido e Israel a definem como terrorista. Nem mesmo pela União Europeia ela é vista assim. A posição tradicional do Brasil sempre foi a de seguir o que a ONU define. A nota brasileira, contudo, muda isso e trata a morte do general Qassem Soleimani como um ato da luta contra o “flagelo do terrorismo”. O Brasil exportou no ano passado US$ 2 bilhões para o Irã, e o país é considerado um mercado importante para o agronegócio brasileiro.

O que está acontecendo na escalada de tensão entre Estados Unidos e Irã afeta o Brasil. No comércio, nos preços internos e na definição da política brasileira em relação ao assunto. Os diplomatas estão acompanhando atentos as decisões da política externa, e a avaliação é que é arriscado mudar a nossa política em cima de um conflito de desdobramentos imprevisíveis.

A escalada da crise afeta diretamente os preços do petróleo, mas a lista dos produtores e dos importadores mudou muito nos últimos anos. Os especialistas no setor ainda não temem uma disparada dos preços. Porém, eles já subiram o suficiente para colocar em xeque a política do governo Bolsonaro. Na sexta-feira, o presidente indicou que tentará suavizar o repasse para os preços, reduzindo impostos, e ontem se reuniu com ministros para discutir o tema. Pode conversar com os estados para eles segurarem o ICMS. Não faz sentido algum. A presidente Dilma foi muito criticada pelos economistas exatamente por impedir que os combustíveis seguissem as oscilações do mercado internacional. Aquela política abriu um rombo na Petrobras e no caixa do governo.

Os analistas consideram que as palavras do governo Bolsonaro de alinhamento com Israel e agora essa posição do Itamaraty podem acabar afetando o comércio. Do que nós vendemos, 44% é milho, o principal produto da pauta de importação do Irã. Foram US$ 940 milhões de janeiro a novembro. O segundo, que representa 39%, é a soja, o terceiro item de importação do país. E 10% é carne bovina congelada. E depois é cana de açúcar.

No domingo, a chancelaria iraniana pediu esclarecimentos sobre o posicionamento do Brasil. Uma preocupação que comandantes militares e diplomatas brasileiros sempre tiveram é de jamais provocar a vinda desse tipo de conflito para o país. Porém, no terceiro parágrafo da nota, o Itamaraty diz que o “Brasil não pode ficar indiferente a essa ameaça (do terrorismo no Oriente Médio) que afeta inclusive a América do Sul”.

O espanto dos diplomatas é em relação a que eventos o Itamaraty está se referindo. “Eu me pergunto aonde e em quais fatos recentes?”, perguntou um embaixador. O último acontecimento foi na Argentina, em 1993, o atentado contra a Amia. Foi há 26 anos.

O alinhamento completo aos Estados Unidos numa área cheia de fios desencapados, e numa escalada do conflito provocada pela decisão pessoal do presidente Donald Trump, é temerário. Trump não ouviu o Congresso, ele se cercou apenas de um grupo mínimo de assessores diretos, e até integrantes do governo criticaram a decisão intempestiva.

O Irã passava por um momento difícil quando o míssil americano foi lançado pelos Estados Unidos sobre o general Soleimani no aeroporto do Iraque. O governo estava fraco, contestado pela alta do custo de vida e pela recessão. O atentado pode ter permitido o que o governo de Teerã não havia conseguido: unir o país.

O Irã não é árabe, como se sabe. É persa, de herança cultural milenar. Mas é um mosaico de etnias. Tem árabes, curdos, azerbaijanos, turcomenos. O governo de Teerã temia mais um levante de rua do que as sanções do Ocidente, avalia um diplomata brasileiro que acompanha o assunto. O regime estava com um sério problema de legitimidade. E todas as mudanças no país — da queda do Xá Pahlevi, em 1979, à derrubada de Ahmadinejad — foram após protestos de rua.

Soleimani comandava os Quds, a força da elite dentro de uma força de elite que é a Guarda Revolucionária. Mas elas não são apenas um poder militar. Têm poder econômico também. São donas de bancos, controlam empresa de comércio exterior, operam com câmbio. Tudo é complexo demais para se tomar decisões com base em ideologia ou alinhamento automático com os Estados Unidos no meio de uma escalada imprevisível. De novo, faltou cautela à política externa de Bolsonaro.


Míriam Leitão: O magro programa de privatização

Na privatização, como em vários outros itens da chamada agenda liberal, este governo tem mais discurso do que atos concretos

O programa de privatização do governo Bolsonaro começou de forma tímida. O que foi vendido até agora está na categoria de desinvestimento das estatais, como a venda da TAG pela Petrobras, ou então foram concessões. O pouco que foi feito estava preparado pelo governo Temer. Houve operação que estava até com data marcada. O que andou no governo Bolsonaro, em áreas como a infraestrutura, foi porque houve continuidade de decisões tomadas no governo anterior, avaliam técnicos que acompanham o setor por dentro e por fora do governo.

O secretário de desestatização Salim Mattar disse ao “Valor” que o programa vai acelerar e que podem ser vendidas 120 empresas ou 300 se incluir a Eletrobras e suas subsidiárias. O governo Bolsonaro não conseguiu vender a Eletrobras apesar de o governo Temer ter deixado o modelo pronto e ter conseguido resolver o problema das seis subsidiárias que eram muito deficitárias.

A Petrobras estava desde as administrações de Pedro Parente e Ivan Monteiro num programa de venda de ativos, para diminuir o endividamento, e fechamento de unidades que geravam prejuízo. Isso teve continuidade na administração de Roberto Castello Branco.

— Um movimento positivo foi a redução da Petrobras no conjunto de atividades que ela atuava. A venda dos gasodutos ocorreu porque são mais fáceis de acontecer. A Petrobras é empresa de capital aberto, tem mais facilidade de contratar consultores, por isso vendeu a TAG e as ações da BR Distribuidora — disse Fernando Marcato, sócio da Go Associados.

A venda da Eletrobras ainda depende de autorização do Congresso. Mas não andou no governo Bolsonaro, a tal ponto que havia sido colocada no Orçamento uma receita de R$ 12 bilhões com a venda e foi necessário contingenciar. Agora, na equipe econômica já se diz que se os sinais continuarem conflitantes no Congresso — na Câmara haveria apoio, mas no Senado, não — será preciso deixar para 2021 e novo contingenciamento será feito. O que depende do governo para essa venda também tem sido feito muito lentamente. Só agora foi editada a regulamentação de estudos. Será preciso separar transmissão, geração e distribuição. Especialistas em privatização têm ficado cada vez mais céticos em relação a essa venda.

— Politicamente o governo não parece ter bancado, falta um sinal político. Em São Paulo, a Cesp só foi vendida porque o governador bancou. No mais, esse número de 300 empresas é balela, o que importa mesmo são quatro ou cinco — diz Marcato.

As vendas de participações nas mãos do BNDES também não podem ser chamadas de privatização. É administração de carteira. Se o governo não quiser mais ter uma carteira de participações, a BNDESpar, bastará vender as ações. Como o Ibovespa subiu, pode ser um bom momento, mas dependendo da maneira que for feita vai derrubar as cotações.

As grandes empresas não serão vendidas, como Banco do Brasil, Caixa, Petrobras. Correios foram uma das poucas inclusões no PPI. Mas o governo já se deu conta que é bem mais complicado do que se pensava, por ser a única empresa no Brasil que está no país todo com serviço de entregas. Se houver privatização, terá que ser precedida de uma regulação que não será fácil fazer.

O governo Temer organizou o Programa de Privatização e Investimento (PPI). O setor de infraestrutura é todo pulverizado em ministérios e agências diferentes e por isso foi importante o PPI, admitem técnicos de dentro e de fora do governo. Isso deu mais segurança para leilões como o de transmissão de energia elétrica. No governo Bolsonaro, o PPI teve mais foco em concessões, que já estavam preparadas. Depois perdeu o foco.

Na parte dos aeroportos foi entregue tudo o que estava programado desde o governo Temer. Os blocos leiloados em março do ano passado já estavam programados. Até o dia do leilão estava lá: 15 de março. Havia uma série de ações agendadas, e o governo seguiu.

Na privatização, como em vários outros itens da chamada agenda liberal, este governo tem mais discurso do que atos. E mesmo quando acontece, como no caso das subsidiárias da Petrobras, falta visão estratégica. A estatal quer sair de todas as áreas para focar em produção de óleo e gás. As empresas de petróleo no mundo fazem diferente: querem ser empresas de energia e por isso aumentam o investimento em fontes não fósseis como as de energia renovável, que são o futuro.


Míriam Leitão: Em um mundo sem moderação

A morte do general iraniano não leva à disparada do petróleo, o maior risco é o da falta de instâncias de solução de conflitos

As crises no Oriente Médio sempre vinham para a economia como choques de preços de petróleo e seus derivados. Ontem, depois do assassinato pelos Estados Unidos do general iraniano Qassem Soleimani, a cotação do barril do brent teve forte alta, mas não disparou. Isso reflete a grande mudança que houve no mundo entre produtores e importadores de petróleo, na opinião do economista José Pio Borges, do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). Desde a revolução do shale gas e shale oil, os Estados Unidos passaram de grandes importadores a exportadores. Por isso, José Pio acredita que haverá volatilidade, mas não uma alta descontrolada dos preços.

— Os americanos importavam 12 milhões de barris/dia e hoje produzem 15 milhões, são os maiores produtores do mundo e são exportadores. Isso mudou a natureza e a intensidade do interesse americano no Oriente Médio — diz o presidente do Conselho Curador do Cebri.

Ainda assim, o mundo amanheceu ontem tenso com os possíveis desdobramentos dessa morte. Soleimani era pessoa-chave para a estrutura das forças de segurança do Irã e considerado um herói. Tinha fama de invencível e, segundo a “Economist”, deve ter acreditado no mito. Desembarcou em Bagdá sem maiores cuidados. Logo depois, estava morto em um ataque certeiro disparado por drones americanos. O governo de Teerã prometeu vingança e “retaliação severa”.

O dia amanheceu com estresse nos mercados de moedas e petróleo, mas no meio da tarde todos os movimentos ficaram mais suaves.

— Quando o petróleo supera US$ 60 ou US$ 65, a oferta aumenta rapidamente. Por isso não acredito em pressão de alta acima desses níveis, acho que pode ter pressão de baixa, com aumento de ofertas. Foi anunciada, há pouco mais de um mês, uma descoberta gigantesca de reservas de petróleo no Irã. Se for confirmada e se a situação se acalmar, a tendência será de queda dos preços. Para o setor de petróleo no Brasil, nada muda, porque o custo de produção do pré-sal está bem abaixo disso, em torno de US$ 20 e sempre caindo — diz Pio Borges.

Um efeito no país pode ser o aumento de preços dos combustíveis, principalmente se houver fortalecimento do dólar. A política de preços da Petrobras será novamente posta à prova.

Essa é mais uma crise, das muitas dos últimos tempos, como a do bombardeio das refinarias sauditas em Abqaiq e Khurais, atribuído ao Irã:

— Mesmo com todos os protestos dos sauditas na época do atentado, o governo de Riad não apresentou queixa formal contra o Irã na ONU. Esse sinal e o silêncio dos países de maioria sunita — o Irã é de maioria xiita — mostram que há preocupação com o agravamento da crise na região.

O problema hoje é o enfraquecimento da diplomacia e dos mecanismos de solução de conflitos, segundo análise feita por diplomatas no podcast jornalístico britânico The Globalist. O governo de Donald Trump age sempre de forma errática, e nunca se sabe ouvindo quem. As diplomacias profissionais vêm sendo postas de lado em vários países do mundo — China, Estados Unidos, Reino Unido, Brasil — e as instituições multilaterais estão sendo esvaziadas. Isso é mais grave do que qualquer evento isolado porque eleva a instabilidade global. Pio Borges concorda com a análise.

— Pode-se ver esse fenômeno (do afastamento dos profissionais da diplomacia) no episódio da malfadada conversa com o presidente da Ucrânia que está embasando o processo de impeachment. Embaixadores de carreira foram afastados com interferência do advogado de Trump, Rudolph Giuliani. Há subsecretarias do Departamento de Estado vagas. Entre 10 a 20 cargos de segundo escalão não foram preenchidos — diz Pio.

Em momentos como o de ontem, após um ato bélico inesperado do presidente americano e sem autorização do Congresso, deveria haver uma coordenação entre os Departamentos de Defesa e de Estado:

— A diplomacia é tão importante quanto a estratégia da defesa. Essas decisões erráticas do presidente Trump não demonstram haver uma ação organizada. Além disso, o multilateralismo está em crise. É até irônico o fato de que, no comércio, a China, que teve tanta dificuldade de ser aprovada na OMC, seja hoje a grande defensora da organização multilateral.

Isso eleva o grau de risco no mundo hoje. A política internacional tem sido feita pelos presidentes com os círculos de assessores próximos, não há coordenação entre agências governamentais e o multilateralismo está sob ataque. O mundo está ficando sem instâncias de moderação para deter a escalada de qualquer conflito.

A morte do general iraniano não leva à disparada do petróleo, o maior risco é o da falta de instâncias de solução de conflitos.


Míriam Leitão: Os desafios dos anos 20

A busca dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU e a proteção da democracia vão marcar os anos 20 que começam hoje

Os anos 20 começam com a grande dúvida sobre o que vai acontecer em questões centrais da organização da sociedade humana. Até onde irá a inteligência artificial, como as economias criarão emprego nesta etapa da revolução tecnológica, os valores democráticos serão minados pelos governantes de índole autoritária que se espalham por inúmeros países, o mundo entenderá o risco da emergência climática? Essas dúvidas brasileiras e do mundo pairam sobre a década que começa hoje.

Ontem acabaram os anos 10. No Brasil, eles foram uma montanha-russa na economia. O país teve o maior crescimento do PIB deste século, 7,5% em 2010, e a pior recessão de que se tem notícia, superando as que ocorreram no governo militar, no início dos anos 80, e no governo Collor. Foi a mais profunda, mais longa, e que está impondo a nós o mais árduo caminho de volta. Cinco anos depois não recuperamos o PIB perdido. Na área ambiental, o país teve em 2012 o melhor número do combate ao desmatamento. Mas era em parte o efeito do impulso dado na década anterior. Esse esforço foi se perdendo aos poucos. Mas no ano passado o risco escalou, com o ataque sistemático ao aparato de proteção ambiental.

Isso joga uma sombra perigosa sobre os anos 20. Se o país se consolidar como o vilão do meio ambiente, como foi visto na COP-25, haverá barreiras ao comércio brasileiro de produtos agrícolas, que é o setor mais dinâmico da economia do país. Em ensaio publicado na edição de fim de ano do “Financial Times”, Steven Pinker, professor de psicologia de Harvard e escritor, disse que “o primeiro passo para pensar sobre o futuro é reconciliar o progresso humano com a natureza humana”. Esse é o desafio, e nós entramos na terceira década do século XXI colecionando retrocessos nas várias reconciliações que temos que fazer do nosso modo de vida com o meio ambiente, do progresso com os limites do planeta.

Nada disso é novo, mas a década é decisiva porque nela 193 países do mundo estarão cumprindo os últimos anos para atingir metas que adotaram. Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU comprometeram países, inclusive o Brasil, com 169 metas. Há compromissos de redução da pobreza, combate à fome, redução da desigualdade de gênero, acesso à Justiça, proteção ambiental. Os objetivos terão que ser atingidos até 2030, então esta é a década mais importante. Nunca tantos países estiveram comprometidos com tão bons propósitos para fazer do mundo um lugar melhor para os seres humanos.

A questão democrática passará nos anos 20 pelo seu momento decisivo. A vitória de Donald Trump nos Estados Unidos marcou o início de um período assustador, porque ele tem submetido as instituições americanas a situações que não se imaginava que elas viveriam. Ele mente com tanta frequência que já é um caso de estudo dos especialistas. Ele faz um cerco violento à imprensa. Ele confunde o público e o privado de forma sistemática. Um conceito que parecia consolidado na democracia e na economia americanas era o do conflito de interesses. Ninguém acreditaria que isso pudesse acontecer por lá, mas o presidente continua gerindo seus negócios privados e os mistura com os assuntos de Estado a tal ponto que chega a fazer encontros de cúpula mundial em seus resorts. Trump enfrenta hoje um processo de impeachment por outra acusação, também derivada da falta de limites entre o público e o privado, a de ter pedido ao presidente da Ucrânia para investigar um adversário político. O cenário mais provável é o de que o Senado vote com ele e contra o impeachment. E se Trump prevalecer e for reeleito, a mais poderosa democracia do mundo estará convalidando o comportamento delinquente do seu governante.

Pinker diz que apesar dos casos de retrocessos em alguns países — e ele cita Turquia, Hungria, Venezuela, Rússia — o total de democracias vem aumentando no mundo. O número de países democráticos chegou a 99 em 2018. Em 1998 eram 87, em 1978 eram 40, em 1968 eram 36. Há um século eram apenas 10. Hoje, quase 100. Esses números levam a uma conclusão otimista que desanuvia um pouco os temores que cercam o mundo atual, principalmente a partir do mau funcionamento da democracia americana. Os próximos dez anos começam com várias sombras, mas também com muitas esperanças. Que elas prevaleçam.


Míriam Leitão: Pequena melhora no desemprego

Há números indicando melhora no mercado de trabalho. É muito lenta, mas no Brasil de hoje comemora-se qualquer pequeno avanço

O desemprego caiu. Quem conhece as minúcias dos números sabe que foi um pouco melhor do que o esperado. Quem vê o quadro geral entende que não foi uma mudança relevante, porque o país ainda tem a multidão de 11,9 milhões de desempregados. E isso é mais do que um Portugal. E ainda tem 4,7 milhões de desalentados. Que é igual a uma Nova Zelândia. E tem 26,6 milhões de trabalhadores subutilizados, o que é mais do que toda a população da Austrália. Some-se os três países e se tem uma dimensão aproximada do problema brasileiro no mercado de trabalho.

A taxa, contudo, caiu para 11,2% no trimestre terminado em novembro. Era 11,8% no trimestre anterior que terminou em agosto. O mercado achou que cairia para 11,4%. Então, quando se diz que é melhor do que o esperado está se falando de dois pontos depois da vírgula.

Há notícias boas nos entremeios dos números. A lupa do jornalismo de economia consegue notar. O emprego formal subiu 1,1% em relação ao trimestre anterior, o que é mais 378 mil pessoas trabalhando com carteira.

A taxa de desemprego sempre cai no fim do ano por causa da contratação dos temporários. Alguns desses podem ter sido contratados pelo comércio para as vendas do Natal. Mas como o Natal foi um pouco mais gordo do que o esperado e há um clima de que o ano que vem a economia como um todo será melhor do que este ano, é possível que muitos permaneçam. A taxa vinha melhorando 0,1 ponto percentual comparada com o mesmo período do ano anterior e desta vez subiu 0,4.

Estamos no Brasil comemorando qualquer avanço depois da vírgula já que o desemprego desembestou para patamares cada vez mais altos desde o começo de 2015 até 2017. E de lá vem caindo muito devagar. E pelo visto continuará nesse passo. O secretário de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, Rogério Marinho, disse que há boas expectativas de que o desemprego caia para um dígito, ou seja, abaixo de 10%. Até 2022.

Esse parece ser o horizonte das nossas possibilidades. Um avanço bem lento, gradual — e nada seguro — do número de pessoas que mensalmente procuram emprego e não encontram. Ainda temos três milhões a menos de vagas formais do que o país tinha em 2014. O emprego tem sido puxado pelos trabalhadores por conta própria — os que criam seu próprio trabalho por empreendedorismo ou desespero — e os trabalhadores informais.

O número mais triste talvez seja o dos desalentados. Eles já não procuram mais. E essa taxa está estável há tempos. Antes da crise eram 1,4 milhão e agora o número é 4,7 milhões. E está assim entra mês e sai mês. Fica tudo na mesma. O número não mudou na comparação com o mesmo trimestre de 2018.

O governo mandou ao Congresso um programa de estímulo ao primeiro emprego, mas atrelando o seu financiamento a uma taxa cobrada dos que recebem seguro-desemprego. Marinho disse que cabe ao Congresso encontrar outra fonte. Na verdade, deveria o Congresso devolver o projeto para que ele seja aperfeiçoado. Definir uma fonte inaceitável e lavar as mãos é fácil.

Houve outra melhora. A massa de rendimentos subiu 3% na comparação com 2018 e 2,1% em relação ao trimestre terminado em agosto. É assim que se vai notando o que há de positivo no mercado de trabalho, aos poucos e na margem. Em dezembro sempre há um número ruim no Caged, que mede o mercado formal. Normalmente o saldo de contratações e demissões é negativo no mês. Da mesma forma que a Pnad Contínua, o indicador mais geral de pessoas trabalhando, tem em dezembro seu melhor índice do ano, para voltar a piorar no começo do ano seguinte.

Quando a economia retomar o crescimento mesmo, o país terá um encontro marcado com outro tipo de gargalo no mercado de trabalho: a falta de trabalhadores com a qualificação que os empregadores vão procurar. A forma de produção está mudando muito rapidamente, as exigências do mercado de trabalho são cada vez mais sofisticadas, a tecnologia transforma tudo de forma avassaladora.

Olhando para esse futuro, o melhor remédio sempre foi e sempre será a educação. Uma educação ampla, inclusiva, atualizada. Claro que os leitores sabem que o Brasil está perdendo tempo com ideias delirantes no Ministério da Educação, por isso nem falarei no assunto. Apenas registro que parte da solução é aumentar o nível educacional dos brasileiros.


Míriam Leitão: O que fazer se um banco quebrar

Patrimônio dos banqueiros precisa entrar no roteiro de salvamento de bancos proposto pelo BC, que prevê até uso de dinheiro público em última instância

Nem mesmo no Banco Central se consegue uma boa explicação para o fato de o projeto de lei sobre o resgate dos bancos em dificuldade ter sido anunciado num dia meio morto em Brasília: 23 de dezembro no fim da tarde. Salvar bancos grandes com dinheiro público é proposta que deveria causar ojeriza a liberais, mas no governo o que se ouve é que é preciso ser “pragmático”. Uma grande instituição, se quebrar, pode causar uma enorme perda do PIB e prejuízos generalizados.

Chovia em Brasília, algumas quadras da capital estavam sem luz, quando o Projeto de Lei foi enviado a um Congresso vazio na véspera de Natal. O assunto é controverso, mas a questão está mais adiantada do que se pensa: os bancos já estão constituindo o Fundo de Resolução que foi criado pelo projeto.

O Fundo Garantidor de Crédito (FGC) continuará existindo. Ele garante os depósitos dos clientes. Se o banco quebrar, o cliente consegue pegar seu dinheiro até um determinado valor por causa do FGC. O dinheiro sai de um percentual dos depósitos. Os bancos dizem que o fundo é privado e são eles que contribuem, mas o valor sempre foi diluído nas altas taxas de juros cobradas dos clientes.

Agora haverá também o Fundo de Resolução que é destinado a socorrer os bancos. Perguntei a um dirigente do BC se isso sairia mesmo da indústria bancária ou seria cobrado indiretamente do cliente, e ele me disse que uma parte deve ser repassada aos clientes.

Mesmo com esses dois fundos, um para socorrer os bancos e outro para garantir os depósitos, o PL abre a possibilidade de ter dinheiro do contribuinte também.

— O projeto estabelece que o setor público não pode entrar antes de zerar todo o capital dos controladores e de todos os acionistas, de converter parte da dívida e de zerar toda a dívida subordinada — explica um integrante da equipe.

Há uma ordem dos fatores quando um banco grande está para quebrar. Os acionistas perdem todo o capital, mesmo os pequenos. Depois, quem aplicou em títulos desse banco perde tudo o que investiu. Se faltar dinheiro, usa-se o Fundo de Resolução. O FGC garante até R$ 150 mil dos depósitos dos clientes. Se nada disso resolver é que entrará o dinheiro do Tesouro. Hoje a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) proíbe usar dinheiro público para salvar banco.

O projeto cria dois tipos de bancos. Primeiro, os que serão salvos até com dinheiro público porque se quebrarem geram crise sistêmica. E os pequenos, que serão apenas liquidados. Isso pode aumentar a concentração. Afinal o depositante pode pensar que se for para instituições menores corre mais riscos.

Um rápido histórico: O Brasil teve após o Plano Real uma grave crise bancária. O Proer conseguiu lidar com tudo, evitando o cenário de recessão profunda que aconteceu em outros países, e os bancos foram tomados dos seus controladores. Tudo foi decidido no meio da emergência. Econômico, Nacional, Bamerindus e vários outros quebraram quando a inflação caiu. O BC ficou com os ativos podres e emprestou para quem comprou o banco, e foram garantidos todos os depósitos. Depois disso veio a criação do FGC e a inclusão na LRF de que era proibido usar dinheiro público.

O FGC é para garantir só os correntistas, mas acabou sendo usado no caso do Panamericano, poupando-se o controlador que era o Grupo Silvio Santos. Os maiores credores do Panamericano eram o Bradesco, Itaú e Banco do Brasil. O caso da Caixa era pior. Tinha virado sócia, numa operação muito discutível feita no governo do PT. O dinheiro do FGC acabou sendo usado numa operação de resgate que protegeu os próprios bancos.

Na crise financeira de 2008, os governos dos países ricos despejaram montanhas de dinheiro público para salvar instituições financeiras que haviam se colocado em risco com operações perigosas. Agora, o BIS, banco central dos bancos centrais, estabeleceu que país signatário — como o Brasil — tem que ter em lei o que fará em caso de quebra de uma instituição. O BC vem estudando há anos uma fórmula. E foi isso que saiu na tarde chuvosa do dia 23 de dezembro.

— Pode ficar muito mais caro se não houver um arcabouço jurídico. Um liberal puro diria: você tem que ter o compromisso de nunca usar dinheiro público. Mas temos que ser pragmáticos — disse um integrante da equipe.

É preciso garantir que o banqueiro também perderá. Não apenas o capital do banco, mas seu patrimônio.


Míriam Leitão: Varejo melhora e aguarda reforma

Gasto médio neste Natal avança e vendas em 2020 devem voltar ao nível pré-crise no setor, que espera pela reforma tributária

Nesta longa crise que atingiu o Brasil, o Natal será um ponto importante. Apesar de as vendas no ano crescerem menos do que em 2018, é previsto que o gasto médio do consumidor neste Natal tenha retomado o nível de cinco anos atrás. Durante a recessão, o varejo encolheu 20%. Desse baque foi se recuperando devagar e apenas em 2020, se a projeção se confirmar, as vendas voltarão ao nível de 2014.

A Confederação Nacional do Comércio revisou para 5,2% a estimativa de alta nas vendas neste Natal. Em 2014 as famílias foram às compras sem saber o tamanho da recessão que o país enfrentaria. Depois das grandes quedas de 2015 e 2016, o consumidor ficou arisco. Agora, o gasto médio esperado é de R$ 489 por família, o que levará o faturamento do setor a R$ 36,3 bilhões no período natalino.

No geral, 2019 terá um crescimento de 1,9% nas vendas do comércio. É menos do que a alta de 2,3% de 2018. Isso porque este ano teve dois períodos distintos. O primeiro semestre foi de frustração, explica Fabio Bentes, da CNC. Os erros do governo, os ruídos que ele produziu, tiraram o vigor da economia. Já a segunda parte de 2019 foi positiva. Em 2020 a alta esperada é de 3%. E se não houver novos sustos, o país poderá dizer que a atividade de fato engrenou.

— Três fatores foram mais importantes para a melhora. A inflação baixa garantiu o poder de compra dos consumidores. No crédito, as taxas ainda são absurdamente altas, mas os prazos estão mais longos e o que o brasileiro leva em consideração mesmo é o preço da prestação. O terceiro ponto foi a liberação do FGTS, que ficou concentrada neste fim de ano e impulsionou a Black Friday e o Natal — explica Bentes.

Essa década foi um período de volatilidades para o comércio. Em 2010 as vendas cresceram 11,3%. Em 2015 e 2016, a queda foi maior que 8% ao ano e mais de 330 mil postos de trabalho foram fechados. Em 2019, o saldo está positivo em 85 mil. A expectativa é que ano que vem sejam recuperados mais 119 mil empregos.

Maurício Filizola, presidente da Fecomércio do Ceará, lembra que a comunicação do governo pode atrapalhar. Foi o que aconteceu neste primeiro ano de mandato. O começo foi tão turbulento que as previsões de crescimento passaram a apontar até para uma recessão técnica na economia. A confiança do consumidor, que havia ensaiado uma alta, voltou a cair. Mesmo tendo melhorado nos últimos meses, o índice da FGV que mede o otimismo dos consumidores fechou o ano menor que em janeiro. Está no mesmo nível que no começo de 2015.

Filizola aponta um indício de que a recuperação agora é para valer. Os consumidores estão comprando mais produtos semiduráveis, como eletrônicos, roupas e calçados. Pela experiência dele, esse é um sintoma de força do consumo. As famílias estão mais dispostas a comprar produtos mais caros, que dependem de crédito.

A previsão do BC para o comércio melhorou nos últimos de três meses, de 1,2% em setembro para 2% da previsão divulgada na semana passada. No último dado setorial divulgado pelo IBGE, o de outubro, as vendas foram 4,2% mais fortes que um ano antes, apurou o IBGE.

Nos shoppings, também o ano foi melhorando na reta final. A previsão é de que as vendas cresceriam 7% e já antes da Black Friday, a alta acumulada era de 8,2%.

— Este foi o melhor Natal dos últimos anos para os shoppings, a estimativa é de um avanço de 10%. Os empregos criados podem chegar a 70 mil. A taxa de juros mais baixa tem efeito no consumo e também no investimento. Com o retorno menor da Selic, abrir um empreendimento comercial fica mais atraente — conta Glauco Humai, presidente da Abrasce, a associação dos operadores de shoppings.

As ações das empresas de varejo na Bolsa mostraram esse momento mais positivo. A Magazine Luiza dobrou de preço novamente este ano. A Via Varejo quase triplicou sua cotação. São empresas que apostaram no comércio eletrônico, conta Thomaz Fortes, da gestora de recursos Warren. Mas elas também dependem das mesmas condições do varejo em geral. Ele acha que os riscos ainda existem na economia, embora as condições para o varejo devam continuar positivas em 2020.

O que o setor mais esperava este ano, a reforma tributária, não veio e teme-se que em 2020, ano eleitoral, ela também não avance. A tributação mais simples sobre o consumo reduziria o custo dos lojistas. Com essa dúvida, os grandes investimentos, diz Glauco Humai, devem ficar para 2021.