Míriam Leitão: O risco chinês entra na projeção

Vários indicadores apontam um forte impacto do coronavírus na economia da China. Risco é de desaceleração também no Brasil

A paralisia econômica na China, por causa do coronavírus, está entrando com força nos modelos econômicos de projeção do que acontecerá em 2020. Há indicadores impressionantes: a atividade nos portos chineses continua 50% mais baixa do que há um ano. O consumo de carvão também caiu 50%, o que o planeta até agradece. A movimentação de pessoas mostra queda de 60% a 80%, dependendo do meio de transporte. A lentidão do PIB que se viu em janeiro continua em fevereiro e isso significa que os efeitos sobre a economia mundial podem ser mais fortes. O departamento econômico do banco BNP Paribas que opera na China cortou para 4,5% a projeção para o PIB chinês. Logo em seguida, a equipe que trabalha aqui reduziu o número do PIB brasileiro para 1,5%.

Ontem foi dia de recordes nas bolsas dos EUA e de alta também no Brasil, depois que o BC chinês falou em impacto curto e localizado do vírus, e o FMI afirmou que a economia mundial terá aceleração este ano, na comparação com o ano passado. O Fundo, no entanto, fez a ressalva de que o vírus é a grande ameaça a esse cenário. O economista-chefe do banco Itaú, Mário Mesquita, em conversa com jornalistas ontem em São Paulo, falou em um choque duplo na China: pelo lado da demanda, com queda do consumo chinês de matérias-primas a artigos de luxo, e pelo lado da oferta, com a redução da exportação do país, afetando as cadeias globais.

Apesar das avaliações positivas do BC chinês e do FMI, o que tem acontecido com mais frequência é uma visão negativa sobre o impacto do Convid-19. Gustavo Arruda, economista-chefe do BNP Paribas no Brasil diz que os números que vêm da China são “dramáticos”.

— O corte na projeção da China foi do time que a gente tem lá em Pequim. A percepção é que o tamanho do impacto do coronavírus é maior do que as pessoas imaginam. Em alguns dados que temos acompanhando, é dramático. Quando a gente olha para o trânsito nas cidades, é como se a China estivesse parada — explicou.

Os efeitos sobre o Brasil podem comprometer todo o primeiro semestre, na visão do BNP. O banco estima crescimento de 0,2% no primeiro trimestre e alta de apenas 0,1% no segundo. Ou seja, praticamente uma estagnação. O Itaú prevê 0,3% de alta no primeiro trimestre, mas não descarta um número negativo, por causa do impacto chinês. O banco manteve a projeção de alta do PIB deste ano, de 2,2%, mas disse que o viés é de baixa e não só por causa da crise chinesa:

— Vamos esperar o número final de 2019, que o IBGE divulga no mês que vem, para rever a projeção deste ano. Na nossa visão, não é só a China. Temos redução dos efeitos do FGTS sobre o consumo, vários países da América Latina, para onde o Brasil exporta, ainda com baixo crescimento, como a Argentina — explicou Mesquita.

Houve uma queda forte dos casos reportados em Hubei, epicentro da crise, de 1700 novos casos na terça para 349 novos casos. Mas isso se deveu a nova mudança na metologia de registro. O fato de a China ser tão opaca eleva bastante o nível de insegurança. A redução de novos casos de coronavírus fora da província de Hubei foi o melhor sinal até agora. Esses dados foram vistos como um fortalecimento da possibilidade de o melhor cenário se confirmar, que é o de a China começar a voltar à normalidade em abril. Vários economistas no mercado financeiro, contudo, começam a se preocupar também com os problemas internos que podem afetar a recuperação do Brasil.

— Qualquer fator de disrupção no crédito pode colocar em risco o crescimento. Crédito é o principal vetor de recuperação da demanda. E a recuperação do mercado de trabalho também é importante, principalmente do mercado formal, porque facilita o acesso ao financiamento mais barato — explicou Mesquita.

As cadeias globais de produção estão todas sendo afetados de uma forma ou de outra pelo que acontece na China, principalmente as da Ásia. O Japão, que teve forte queda do PIB no último trimestre de 2019, pode ter novo trimestre negativo. A Apple emitiu um alerta de que não vai atingir as metas do trimestre que termina em março por causa do impacto do Convid-19 nas suas atividades na China. O Brasil é afetado porque a China é grande para o nosso comércio, seja de exportação e importação. E há ainda os fatores internos, políticos e econômicos que tornam as projeções otimistas do começo do ano mais incertas.


Míriam Leitão: A Presidência desonrada

O presidente radicalizou, exibe agressividade descontrolada, e os outros poderes se encolheram diante desse extremismo

O presidente Bolsonaro avilta a Presidência da República. Ao caluniar e difamar uma jornalista com uma afirmação machista e uma insinuação sexual, ele não atinge só a Patrícia Campos Mello. Num efeito bumerangue, Bolsonaro desrespeita o próprio cargo que ocupa. A Presidência tem poderes e tem obrigações. O presidente tem usado os seus poderes para descumprir suas obrigações. Diariamente. Ele tem escalado diante dos olhos da nação. Até quando as instituições brasileiras permanecerão tão incapazes de responder a um chefe do Executivo que quebra o decoro da instância máxima da República?

O espetáculo de horror se repete toda manhã. Bolsonaro chega com seus seguranças e sua claque, ofende alguém ou alguma instituição, ataca e debocha dos jornalistas, faz gestos obscenos, manda os repórteres calarem a boca. Diariamente, ele exibe seu mandonismo primitivo. A qualquer momento do dia, em edição extraordinária, pode ser retomado o show de ofensas que é a comunicação presidencial. A lista dos alvos do presidente é imensa: os governadores, os portadores de HIV, os indígenas, os ambientalistas, a primeira-dama da França, os estudantes, Paulo Freire. Jornalistas são uma “raça em extinção”, governadores do Nordeste são os “governadores Paraíba”, o repórter na porta do Palácio tinha uma cara de “homossexual terrível”, ONGs incendiaram a Amazônia e ambientalistas devem ser confinados, os índios “estão evoluindo e cada vez mais são seres humanos como nós”, os portadores de HIV custam caro ao país, Paulo Freire não pode descansar em paz, é o “energúmeno”.

O que Bolsonaro fez ontem foi repugnante. Ele repetiu a mentira do depoente da CPI da Fake News na semana passada e que seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro, ecoou da tribuna. Bolsonaro deu sequência à calúnia, usou de deboche obsceno para as gargalhadas da sua claque. O que houve foi um ataque serial à jornalista da “Folha de S.Paulo”, e dele o presidente fez parte. A reportagem que provocou toda a ira do presidente ilumina um fato que precisa ser cada vez mais entendido, a compra de disparos em massa de fakenews através do WhatsApp. O país precisa proteger a democracia do risco de interferências e manipulação do processo de escolha do eleitor através de mentiras difundidas pelas redes sociais. Ou a democracia entende esse submundo ou correrá riscos.

Todo governante pode gostar ou não de uma reportagem, reclamar, dar o seu lado, desmentir, combater a informação que considera errada com mais informação. Mas um governante não pode levar a Presidência ao nível de baixeza que foi levada ontem por Bolsonaro, na difamação sexista contra a portadora da notícia da qual ele não gostou. Essas ofensas a Patrícia Campos Mello atingem a imprensa independente e responsável, que não vai se calar diante dos gritos e das injúrias, mas que o governante tenta intimidar.

Este é apenas um caso. Mas é extremo. Nele, o presidente ultrapassou todos os limites impostos pelo decoro que o cargo exige. Nos últimos dias, ele provocou uma crise federativa ao desafiar os governadores a adotar uma proposta que ele sabe ser impraticável, de zerar todos os impostos sobre combustíveis e, depois, fez um acusação direta ao governador da Bahia. Uma das obrigações do presidente é zelar pela federação, Bolsonaro atormenta a federação. Ele a fragiliza.

Um presidente não é inimputável. Ele pode não responder pelos atos que cometeu antes de assumir. E essa prerrogativa existe para proteger a Presidência em si e não a pessoa que ocupa o cargo. Mas Bolsonaro entendeu que entre os seus poderes está o de dizer o que lhe vier à cabeça, agredindo qualquer brasileiro, grupo social ou instituição. Contra isso existem os freios e contrapesos, para que um Poder alerte o outro dos excessos cometidos. O problema no Brasil neste momento é que o presidente radicalizou, exibe uma agressividade descontrolada, e os outros poderes se encolheram diante desse extremismo.

É assim que as democracias morrem. Elas vão sendo desmoralizadas aos poucos, as instituições vão se omitindo e se cansando das batalhas diárias, as pessoas vão se acostumando aos absurdos. O país passa a achar normal o que é na verdade inconcebível e acaba por aceitar o inaceitável, como um presidente que ofende o cargo que ocupa. E assim nascem as tiranias.


Míriam Leitão: Reformas no meio do conflito

Bolsonaro cria um clima de conflito com os governadores no momento em que o governo prepara o envio de reformas ao Congresso

A proposta de reforma administrativa está sobre a mesa do presidente Jair Bolsonaro há cerca de 60 dias. No início, ele e o grupo palaciano decidiram adiar por causa das tensões no Chile, depois disso foram estabelecidas condições como a de que a área econômica ouvisse outros ministros. Por fim, o presidente avisou que hoje receberá nova proposta e a encaminhará. A reforma tributária também está pronta para ir para o Congresso. Mas irá em fases. A primeira etapa é apenas a fusão do PIS e Cofins. Está prevista para ir para o Congresso em duas semanas. No meio de tudo isso, no pior momento, aumentou a tensão entre o presidente e os governadores.

O governo está perdendo tempo. Este ano legislativo será mais curto por causa da eleição municipal. Por outro lado, a crise federativa já faz queimar a largada dessa agenda de reformas. Na semana passada o presidente Bolsonaro fez uma provocação totalmente descabida sobre preço de combustível. Ele sabia que não poderia zerar os impostos sobre gasolina e diesel mas fez um desafio como uma jogada política. Quis passar a impressão de que o presidente quer diminuir o preço e só não o faz porque os governadores não querem.

Quando a situação estava em ponto de ebulição, o ministro da Economia, Paulo Guedes, foi para uma reunião com os governadores em Brasília. Disse que entendia que eles não poderiam abrir mão dessa receita e apresentou a saída de que tudo isso fosse discutido na reforma tributária.

No fim de semana, contudo, surgiu mais uma frente de problemas com a briga entre o presidente e o governador da Bahia, Rui Costa, em torno da morte do miliciano Adriano da Nóbrega. O presidente acusou a “PM da Bahia, do PT,” de ter promovido a “provável execução sumária” e “queima de arquivo”do ex-capitão do Bope. Adriano foi duas vezes homenageado pelo então deputado, hoje senador Flávio Bolsonaro, a pedido do próprio presidente. O clima de beligerância aumentou com as notas trocadas entre eles.

Este é o momento de enviar as novas propostas de reformas e fazer andar as PECs que haviam sido encaminhadas antes do fim do ano. Na área econômica, fala-se das três PECs que já estão no Congresso como sendo uma só: a do pacto federativo. O objetivo delas seria a de redistribuir futuros recursos dos royalties do petróleo. Mas inclui várias outras medidas, como as de emergência fiscal e a extinção de fundos.

A reforma administrativa já foi mostrada aos ministros pelo secretário Paulo Uebel. O projeto estabelece novas regras apenas para o funcionalismo do futuro. O problema é que essa reforma só do futuro pode criar muitas distorções. Os que acabaram de entrar no setor público, nos últimos anos, terão um regime de trabalho totalmente diferente dos que vierem a ingressar. Poucos anos de serviço público vão separar servidores com progressões na carreira bem diferentes. Ela foi entregue pela área econômica ao Planalto no fim do ano passado, mas o presidente considerou que diante do cenário de manifestações populares no Chile era melhor esperar. Agora, o envio tem sido adiado por vários pretextos, mas o presidente passou a dizer que nos próximos dias encaminha.

Na fila, aguardando, está a reforma tributária. A proposta do Ministério da Economia é mandar apenas a fusão do PIS e do Cofins para depois se “acoplar”, como se diz no governo, com a reforma do ICMS. Só num terceiro momento é que se incluiria o IPI. A explicação dada no Ministério da Economia é que o projeto está todo pronto, mas será enviado em fases.

O governo não quer discutir o ISS agora porque considera que a negociação com mais de cinco mil prefeitos seria impossível neste momento. Depois de toda a unificação dos impostos sobre consumo é que seria apresentada a do Imposto de Renda, que reduzirá o imposto cobrado das empresas e passará a recolher tributos sobre dividendos.

O que se defende na área econômica é que tudo seja feito paulatinamente, evoluindo em etapas para um novo regime tributário. O problema é que o Congresso já está adiantado, criando uma comissão mista para discutir as duas propostas de reforma tributária. A agenda de reformas este ano é complexa. O clima de confronto federativo, provocado em grande parte pelo próprio presidente, pode tornar ainda mais difícil sua tramitação.


Míriam Leitão: Não se enganem. Nada disso é normal

Presidência militarizada, Câmara sendo palco de calúnia sexista, ministro ofendendo grupos sociais, livros censurados. Nada disso é normal

Há quem prefira o autoengano. O governo hostiliza a imprensa, e o filho do presidente dá sequência a uma difamação sexista contra uma jornalista, da tribuna da Câmara. O presidente se cerca de militares da ativa. O ministro da Economia ofende grupos sociais. A Educação está sob o comando de um despreparado. Alguns ministros vivem em permanente delírio ideológico. Os indígenas são ameaçados pelo desmonte da Funai e pelo lobby da mineração e do ruralismo atrasado. Livros são censurados nos estados. A cultura é atacada. Há quem ache que o país não está diante do risco à democracia, apenas vive as agruras de um governo ruim. E existem os que consideram que o importante é a economia.

Existe mesmo uma diferença entre governo ruim e ameaça à democracia, mas, no caso, nós vivemos os dois problemas. As instituições funcionam mal até pela dificuldade de reagir a todos os absurdos que ocorrem simultaneamente. Quando um tribunal superior decide que uma pessoa que ofende os negros pode ocupar um cargo criado para a promoção da igualdade racial, é a Justiça que está funcionando mal. O Procurador-Geral da República, desde que assumiu, tem atuado como se fosse um braço do Executivo. O Supremo Tribunal Federal (STF) parece às vezes perdido no redemoinho de suas divergências.

A calúnia contra a jornalista Patrícia Campos Mello, da “Folha de S.Paulo”, foi cometida dentro do Congresso Nacional. O depoente de uma CPI praticou o crime diante dos parlamentares. Um deles, filho do presidente, reafirmou a acusação sexista. É mais um ataque à imprensa, num tempo em que este é o esporte favorito do presidente. Mas é também uma demonstração prática dos problemas do país. Alguém se sente livre para mentir e caluniar usando o espaço de uma comissão da Câmara e é apoiado por um parlamentar.

Não é normal que um general da ativa, chefe do Estado Maior do Exército, ocupe a Casa Civil, nem que o Planalto tenha apenas ministros militares e dois deles da ativa. Não é bom para as próprias Forças Armadas. Essa simbiose com o governo seria ruim em qualquer administração, mas é muito pior quando o chefe do Executivo cria conflitos com grupos da sociedade, divide a nação, faz constante exaltação do autoritarismo e apresenta projetos que ofendem direitos constitucionais. As Forças Armadas são instituições do Estado, com a obrigação de manter e proteger a Constituição. Deveriam preservar sua capacidade de diálogo com todo o país, neste momento de tão aguda fratura. O trauma da ruptura institucional comandada por generais é recente demais.

Não é normal que um governo estadual se sinta no direito de retirar das mãos de estudantes livros clássicos, um deles escrito pelo mestre maior da nossa literatura. A leitura de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, do genial Machado de Assis, precisa ser estimulada e não proibida. É tão despropositada a ideia de colocar livros em um índex que muitos reagem apenas com incredulidade e desprezo. O obscurantismo, a censura, o retrocesso são graves demais.

A economia nunca poderá ir bem num país enfermo. Não há uma bolha em que se possa isolá-la. Mesmo se houvesse essa capacidade de separação da realidade, é preciso entender que a economia não está nada bem. Se no mercado financeiro, se alguns líderes empresariais querem vender esse otimismo falso é porque têm interesses específicos. A verdade, que bons empresários e economistas lúcidos sabem, é que o mercado de trabalho exclui um número exorbitante de brasileiros, o país ainda tem déficit em suas contas, a alta excessiva do dólar cria distorções e a incerteza tem aumentado.

A crise econômica foi herdada por este governo, mas ele está cometendo o erro de subestimar os desafios. O ambiente de conflito constante com diversos grupos da sociedade, provocado pelo governo, esse clima de estresse permanente, não é bom para quem faz projetos de longo prazo no país. Quando o cenário de ruptura tem que ser considerado, os investidores se afastam.

Quem prefere o autoengano pode viver melhor no presente, mas deixa de ver os avisos antecedentes do perigo e, portanto, não se prepara para enfrentá-lo. Manter a consciência dos riscos é a atitude mais sensata em época tão difícil quanto a atual. Nada do que tem nos acontecido é normal.


Míriam Leitão: O ritmo lento da recuperação

Ano começa sem sinais mais fortes de retomada na economia. Efeito do FGTS está diminuindo e os investimentos seguem incertos

O Banco Central alertou que a economia tem uma “dicotomia” no ritmo da retomada, o emprego está um pouco melhor, mas a indústria e o investimento estão muito baixos. Acha também que está difícil medir o real nível de ociosidade do país. A economista Silvia Matos, do Ibre/FGV, disse que de fato a recuperação está muito heterogênea, e o empresário Manoel Flores, da área de material de construção, diz que a inadimplência está menor, mas o crescimento do emprego está fraco. Momentos de transição, em meio a outras crises, são mesmo difíceis até de avaliar o que está acontecendo.

As quedas da indústria e do comércio em dezembro jogaram uma ducha de água fria nas projeções mais otimistas da retomada. O efeito do FGTS sobre o consumo começou a perder força, e a indústria não consegue crescer via comércio exterior. Incertezas novas apareceram no mundo, como o coronavírus. A Argentina se afunda na crise, sem conseguir lidar com a dívida externa e interna. Aqui dentro, setores e regiões do país têm disparidade de ritmos de recuperação. O governo mandou três PECs para o Congresso, mas não tem propostas conhecidas de reforma tributária e administrativa. Num quadro assim, há paralisia de investimentos.

O diretor superintendente do grupo Astra, Manoel Flores, empresa que fabrica revestimentos e materiais de construção, tem a boa notícia de que a inadimplência de seus clientes é a mais baixa desde o início da crise e que no ano passado o volume produzido e os empregos cresceram cerca de 3%. O problema é que o emprego está longe do que foi:
— A base de comparação é muito baixa. Para se ter uma ideia, cortamos 32% do nosso efetivo com a crise. No ano passado recontratamos 3%.

Mesmo assim, o empresário se diz otimista com o que está acontecendo no setor que tem puxado a retomada:

— A sensação geral é positiva, a construção civil como um todo, novos lançamentos, manutenção, reforma, tudo vai ter um desempenho melhor este ano. Mas em conversas com o nosso conselho, apontamos que está mais animado na mídia do que na realidade.

A economista Silvia Matos, pesquisadora sênior da área de economia aplicada do Ibre/FGV, diz que já esperava a continuação da recuperação lenta no início deste ano. Não se surpreendeu com os números fracos da indústria e do comércio. A FGV mantém a projeção de alta de 2,2% do PIB em 2020, mas tudo vai depender do coronavírus e da economia mundial.

— No final do ano passado houve um choque na inflação que afetou o consumo. A boa notícia é que já se dissipou. O que chama a atenção é que o crescimento é muito heterogêneo. Segmentos mais voltados ao consumo estão mais felizes, o investimento está pior. Se estivéssemos em ciclo forte e sustentado, todo mundo deveria estar crescendo junto — explicou.

Manoel Flores chama a atenção para a alta de apenas 0,1% na produção de cimento no mês de janeiro sobre o mesmo período do ano passado. Isso não é compatível com tudo o que se diz sobre a alta da construção. As chuvas em Minas Gerais, estado grande produtor, pode ter afetado o desempenho do setor. Ele explica que houve investimento em automação durante o período da crise e dificilmente empregará o mesmo número de funcionários, mesmo quando recuperar a produção.

O BC também disse na sua ata que há uma dificuldade de aferir o grau de ociosidade da produção, ou seja, que nível de produção está sem ser utilizada neste momento, um indicador importante da capacidade de crescer rápido e sem pressionar a inflação. Há economistas que acham que tão longa recessão pode ter tornado obsoleto parte do parque produtivo. Muitas máquinas devem estar defasadas. Silvia Matos também se preocupa com a baixa produtividade da mão de obra, que possivelmente se agravou depois de um desemprego tão longo.

— Educação é a chave para o crescimento. Temos um problema histórico e muitos jovens se formaram, mas ficaram fora do mercado de trabalho muito tempo. Eles estão perdendo habilidade. Não temos mais o bônus demográfico e essa juventude não está sendo treinada. Os problemas estruturais persistem — afirmou.

A agenda de reformas parece confusa para alguns empresários. A reforma tributária tem dois projetos tramitando, o governo até agora não enviou a sua proposta, mas garantiu que ela sairá em duas semanas. No setor elétrico, a dúvida é se haverá ou não a privatização da Eletrobras. Por todas essas razões, a recuperação continua em passos lentos.


Míriam Leitão: As polêmicas de Paulo Guedes

Falas desastradas de Guedes em várias situações, mesmo com o contexto, têm criado resistências às reformas

O ministro da Economia tem uma comunicação desastrada e vai criando polêmicas, pedindo desculpas quando uma frase causa mais estrago e, claro, sempre culpando a imprensa, por “tirar do contexto”. Parasita é nome do filme vencedor do Oscar e da última confusão em que Paulo Guedes se envolveu. Não há contexto que salve o que ele disse, ao se referir aos servidores públicos. Ele falava das reformas, em especial da PEC emergencial, para o ajuste em todos os níveis da federação:

— A notícia que eu quero dar. A primeira grande notícia é a seguinte: o Congresso abraçou as reformas, mesmo. O Pedro Paulo está lá com a PEC emergencial dele na Câmara, ela no início estava focada na União, eu tentei botar prefeitos, governadores, todo mundo no jogo, está aí a cláusula de emergência fiscal, o sujeito aperta o botão, é descentralizado.

Em vez de o governo dar ordem e controlar, não é o governo, nós somos uma federação. Se o prefeito quiser ir para o saco, deixa ele ir para o saco, ele foi eleito. Votaram nele, deixa ele depois fugir da polícia, correr lá da população. O problema é dele, se ele não quiser . Agora, se ele quiser, aperta o botão vermelho: Estado de Emergência Fiscal. Na mesma hora abre a porta do céu pra ele. Entra no programa de privatização, vem dinheiro do BNDES, ganha o direito de não dar aumentos automáticos de salários. O governo está quebrado, gasta 90% da receita toda com salário e é obrigado a dar aumento de salário. O funcionalismo teve aumento de 50% acima da inflação. Tem estabilidade de emprego, tem aposentadoria generosa. Tem tudo. O hospedeiro está morrendo e o cara virou um parasita. O dinheiro não chega no povo e ele quer aumento automático. Não dá mais, a população não quer isso: 88% da população brasileira são a favor inclusive de demissão do funcionalismo.

Esse é o contexto. Há a necessidade de reforma administrativa, em todos os níveis de governo. Agora, a fala provocou tanta confusão que o governo pensa em desistir de ter uma proposta própria. O que ele precisa é se comunicar melhor. Naquele dia, ele fez outros estragos. Ainda sobre como funcionaria a PEC emergencial, Guedes deu o seguinte exemplo:

— Prefeito de Quixadá: Não consigo pagar nada à população, os 18 habitantes cercaram a minha casa, estão jogando pedra. Aperta o botão. Pararam os aumentos de salários por um ano e meio a dois. O país cresce 2,5%. Inflação, 4%. Receitas públicas, 7%. Em dois anos, acabou a crise fiscal. Ou seja, se você não fizer nada... Conversando com amigos políticos eu falo assim: se vocês forem para a casa dormir, está tudo certo, consertou tudo. Agora, para produzir uma crise fiscal, vocês têm que voltar e fazer merda sistematicamente. Tem que vir e aprovar. Se trabalhar, periga atrapalhar.

Vários erros numa única fala. Segundo o IBGE, Quixadá, no Ceará, tem 87 mil habitantes, e não 18. Se parar os aumentos de salários, a crise fiscal não acaba. O pior erro que se pode cometer é subestimar a complexidade da crise fiscal no Brasil. E por fim, o ministro ofende os políticos em geral, o que reitera logo depois ao falar de deputados no cargo de ministro:

— Fica meia dúzia de caras querendo se consagrar como ministro, cada um desenha o seu superplano. Eu estava pensando em fazer uma ponte para a lua. O outro queria fazer a transposição do Rio Amazonas para quem sabe desembocar no Pacífico e a gente pode então fazer uma comunicação direta com a China. Cada um pensa o seu negócio que vai torná-lo importante e ele vai virar governador no próximo mandato se a obra for importante. E se parar tudo depois? Problema de quem vier depois.

Em outro momento, ele falou do STF:

— No pacto federativo, desenhamos como um livro. Vamos criar um ritual fiscal. Ter a cumplicidade do TCE, do TCU, criando referências. O STF, que de vez em quando dá um parecer que custa R$ 100 bi. Importante que ele entenda.

Foi por falar assim que Guedes produziu outros atritos: ofendeu a mulher de Macron para confirmar o que Bolsonaro dissera, “ela é feia mesmo”. Em conversa com jornalistas em Washington, disse “não se assustem, então, se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente?”, disse ecoando Eduardo Bolsonaro. Em Davos, afirmou que “as pessoas destroem o meio ambiente para comer”. Ele se explica, às vezes pede desculpas, sempre culpa a imprensa. O problema é que os atritos que cria acabam se refletindo na economia.


Míriam Leitão: A diversidade nas empresas

Jovem executiva negra conta a sua história, explica como as empresas devem ter diversidade e estimula outros jovens a sonhar alto

A jovem gaúcha de Pelotas Lisiane Lemos entrou na sala do executivo da Microsoft, em São Paulo, no meio do processo de seleção. Ela acalentava há tempos o sonho de trabalhar numa multinacional, e na área de vendas, apesar de ter feito Direito. Aos 23 anos, tinha acabado de chegar de Moçambique onde fora em busca de suas origens. No Rio Grande do Sul, que recebeu várias ondas migratórias, os brancos sabem de onde vieram seus antepassados, mas os negros ouvem uma história triste sobre Pelotas ter sido “o inferno dos escravos”. Ao olhar para quem a entrevistaria, ela sentiu um alívio.

— Eu fui entrevistada por um executivo negro, e aquilo foi uma grande virada na minha vida. Eu vi que queria estar naquele lugar. O fato de ele estar sentado na minha frente... Talvez quem nos assista não tenha noção da importância da representatividade. Simplesmente ter um executivo negro na frente me mostrava: eu posso — contou.

Lisiane acabou assumindo um cargo de chefia na Microsoft e hoje, aos 30 anos, é gerente de novos negócios da Google. Nesse meio tempo recebeu duas consagrações internacionais. Em 2017 foi apontada pela revista “Forbes” como uma das pessoas de menos de 30 anos mais influentes do Brasil e em 2018 a ONU a escolheu como uma das pessoas negras mais influentes do mundo, na área de negócios, com menos de 40 anos.

Eu a entrevistei na Globonews sobre diversidade no mundo corporativo. Ela é um caso de sucesso, mas raro.

— O topo é muito solitário. Você chegar onde ninguém chegou estatisticamente. O Instituto Ethos em 2016 mostrou numa pesquisa que nas 500 maiores empresas do Brasil apenas 4,6% dos cargos de liderança são ocupados por pessoas negras. E quando o recorte é mulheres negras é 0,5%. Então é meio que um lugar impossível — disse Lisiane.

As políticas de ações afirmativas ajudaram no esforço de redução do fosso social no Brasil, mas é muito grande a distância, são séculos de construção da desigualdade. Hoje há muitas empresas preocupadas em ter mais diversidade no seu quadro de funcionários, mas nem sabem por onde começar. Lisiane acha que no mundo corporativo funcionam as conexões. Por isso ajudou a fundar a Rede de Profissionais Negros, e depois foi para o Mulheres do Brasil, da empresária Luiza Trajano, para ajudar a montar o pilar da igualdade racial. Ela acha que as empresas deveriam fazer o “recrutamento ativo” e pensar também na carreira das pessoas negras:

— É importante pensar num programa de estágio? Sim. Mas nesse caso é mais fácil. Mas quem é que está no topo? Quem você lembra em algum conselho de uma grande empresa que seja negro? Ou uma mulher negra?
Lisiane recomenda que as empresas comecem a ter diversidade nas suas peças de publicidade, para que as pessoas negras se vejam:

— O segundo ponto é ser intencional, ter métodos e políticas de ação afirmativa nos programas de contratação. Depois, é ter um serviço de mentoria. Eu sou de uma família de professores, como saber como me vestir e me preparar para uma reunião de executivos estrangeiros, por exemplo? Há muito conhecimento a ser compartilhado.

Lisiane fala com objetividade sobre os códigos do mundo corporativo. Como gerente de novos negócios da Google ela tem trabalhado com marketing digital. Diz que nessa área trabalha com tudo que mais gosta, de uso de dados à inteligência artificial. Pode ajudar tanto o pequeno empreendedor quanto a grande empresa.

Ao falar da questão racial, ela se empolga. Na infância, sofreu preconceito. Mais tarde, entendeu que era herdeira de uma história difícil. Os escravizados de outras regiões eram enviados para Pelotas como punição: na charqueada, enfrentavam o frio, o castigo e o sal. Em exame de DNA descobriu que é 40% de povo originário de Angola. Quer passar um tempo lá este ano.

Aos jovens negros que sonham em entrar no mundo corporativo e fazer carreira ela deixou um recado emocionado:

— O grande recado é ‘você pode’. Por mais que a sociedade diga que não é o seu lugar, que as estatísticas estejam contra, você é protagonista da sua história e existem pessoas que podem ser seus aliados. Vai ser difícil, o racismo existe, e você muitas vezes vai pensar em desistir, mas vai valer a pena e você vai abrir portas para outras pessoas chegarem onde elas nunca imaginaram.


Míriam Leitão: As palavras e a falta delas

Este é um governo que tropeça nas próprias palavras, deixa de falar o que é essencial e confunde os adversários

O ministro Paulo Guedes passou a semana em silêncio diante do presidente Bolsonaro exibindo a sua irresponsabilidade fiscal. Bolsonaro prometeu abrir mão de R$ 27 bilhões de impostos em favor dos donos de veículos caso os estados façam o mesmo. Guedes não contraria o chefe nem quando ele ataca frontalmente seu projeto de equilíbrio fiscal e de fim de subsídios. Na manhã de ontem foi de uma extrema loquacidade sobre quase tudo. No caso da reforma administrativa, ele chamou os servidores de “parasitas”. De tarde, em nota, disse que sua fala fora tirada do contexto.

A reforma administrativa é parte do esforço de ajustar as contas do país, mas ainda não se conhece o projeto do governo federal, apesar da insistência com que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a defende. No Rio Grande do Sul, o governador Eduardo Leite acaba de aprovar, sem alarde e sem ofensas, a reforma gaúcha. Ela muda o plano do magistério que estava em vigor há 45 anos. E fez isso, porque, como explicou ontem em entrevista à CBN, só após ajustar as contas é possível reduzir impostos.

Bolsonaro falou abertamente que pode abrir mão de todos os impostos sobre combustíveis. Não chamou qualquer governador para conversar sobre o assunto, mas fez desafio público de que eles zerassem o ICMS. Se os governadores fizessem isso estariam incorrendo em crime pela Lei de Responsabilidade Fiscal. O ministro Paulo Guedes permaneceu em silêncio diante dessa proposta que do ponto de vista fiscal seria acender fósforo em tanque de gasolina.

A reforma administrativa é necessária e terá que resolver problemas reais. Os últimos concursos ofereceram aos servidores uma progressão rápida demais nas carreiras e com poucos anos o servidor chegava ao topo. É preciso ter carreiras que não causem desequilíbrios e distorções. É preciso ter promoções que não sejam automáticas. O que se ouve dentro do governo é que é improvável que se consiga mudar o presente, por isso as mudanças serão apenas em relação aos futuros servidores. É bom lembrar que o governo atual manteve, até para os que vierem no futuro a entrar nas Forças Armadas, benefícios que os funcionários civis já perderam, como a paridade e a integralidade.

Evidentemente não é possível começar a reorganizar a máquina pública chamando indistintamente os servidores de parasitas de um hospedeiro à morte. São inúmeros, incontáveis mesmo, os que têm a vocação para o serviço público, e que têm protegido os interesses coletivos em épocas de ataques sistemáticos a diversas áreas do Estado. É preciso saber a diferença entre combater privilégios e ofender todo o corpo de servidores. Na campanha, Guedes falou tanto em acabar com os subsídios. Aparentemente, perdeu o ímpeto. Estão lá R$ 300 bilhões de gastos intocados, e se fosse concedida a isenção aos combustíveis que Bolsonaro propõe o valor aumentaria.

— A imprensa está perdendo tempo, mas eu não posso falar mal da mídia, porque ela apoia tudo na pauta econômica. É na pauta política que o pau está comendo ainda — disse Paulo Guedes para essa plateia da Fundação Getúlio Vargas (FGV) que aplaudiu quando ele disse que a imprensa “gira sem foco” porque perde tempo dando destaque “quando se xinga mulher feia”.

O ministro Paulo Guedes falou como sempre daquela forma solta. Depois reclamou quando viu a notícia publicada. Já aconteceu inúmeras vezes. Ontem foi apenas mais uma vez. Na parte da tarde, ele, em nota, disse que a frase sobre os servidores fora tirada de contexto e culpou a imprensa. Este é um governo que passa o tempo todo tropeçando nas próprias palavras.

Guedes se atrapalha quando fala sem pensar previamente que recado quer entregar, que é a regra número um na comunicação. Ele, por exemplo, se equivoca todas as vezes que trata da questão ambiental. Ontem disse que a França criticou as queimadas na Amazônia porque tem medo das exportações agrícolas brasileiras. A fantasia só não é maior do que o que está no relatório dos militares brasileiros divulgado ontem pela “Folha de S. Paulo”, sobre os riscos das próximas duas décadas. Em todos os cenários a França é uma ameaça ao Brasil e pode invadir a Amazônia. Os que têm tal delírio persecutório devem desconhecer que houve a batalha de Waterloo e que o país europeu não é mais uma potência napoleônica.


Míriam Leitão: Queda dos juros e dúvida do BC

Em comunicado confuso, Banco Central baixa os juros, diz que vai interromper as quedas, mas que pode mudar de ideia mais à frente

O Banco Central reduziu mais uma vez os juros, agora para 4,25%, apesar do pouco ou nenhum espaço de redução, mas avisou que é hora de interromper o ciclo de queda. Em um comunicado confuso, o Banco Central diz uma coisa e o seu contrário, usando para isso aquela linguagem própria, que carece de tradução para o idioma corrente do país. Diz que as expectativas de inflação estão baixas até 2022, mas ao mesmo tempo avisa que há riscos de que o atual nível de juros possa “elevar a trajetória da inflação acima do esperado”. Ora, se há risco, era o caso de não ter reduzido de novo a Selic.

Se cortou, é porque acha que a economia ainda precisa de estímulo, ou seja, acredita que a recuperação da atividade está mais fraca do que o imaginado. Mas diz na abertura do comunicado que os dados recentes mostram “a continuidade do processo de recuperação da economia”. Bom, se está tudo bem com a recuperação não precisava reduzir novamente os juros que já estavam no menor nível da história. Mais adiante, contudo, aponta como o primeiro risco “o nível de ociosidade elevado” que pode levar a um crescimento abaixo do esperado. Em resumo, avisa que o país está se recuperando, mas a retomada pode ser menor, que a taxa de inflação está controlada até o fim do atual mandato, mas pode subir pelo estímulo dos juros baixos.

Por fim, alertou que pode mudar de ideia, ou seja, voltar a cortar juros dependendo da evolução da economia. E mandou o recado de que é preciso continuar as reformas e perseverar no ajuste fiscal.

Curioso é que no mesmo dia o presidente da República deu um sinal de que pode não perseverar no ajuste. Bolsonaro disse que pode zerar os impostos sobre combustíveis se os governadores fizerem o mesmo com os seus tributos. O governo federal está com déficit há seis anos, reduziu o rombo no ano passado usando receitas extraordinárias, os estados estão em penúria fiscal, os orçamentos não têm recursos para o básico, e o presidente propõe que o Tesouro e os estados subsidiem combustíveis fósseis, abrindo mão de bilhões em receita.

O presidente permanece sem entender o mínimo de economia. Com a declaração, ele está avisando que pode, se quiser, ser irresponsável do ponto de vista fiscal e desafia os governadores a seguirem seu exemplo. Parece bravata e é. Se fosse a sério, o Banco Central teria que incluir isso no seu “balanço de riscos”.

A situação internacional se complicou desde a última reunião do Copom. A crise do coronavírus tornou muito mais opacas as perspectivas da economia global este ano. As consequências são mistas. Têm o efeito de derrubar a inflação, mas ao mesmo tempo o de elevar alguns preços. O petróleo baixou de patamar desde o início da crise, mas o dólar aqui dentro bateu recorde histórico na semana passada. A incerteza da trajetória da economia mundial em 2020 subiu muito.

Depois do primeiro susto, há consultorias agora prevendo que o impacto será pontual, com uma queda mais forte da China em um trimestre e recuperação rápida logo à frente. É cedo para dizer. Só será possível saber a real consequência econômica depois que houver sinais de que o vírus pode ser controlado.

Hoje as notícias ainda são preocupantes. O consumo de petróleo na China deve cair 25% este mês. E a Organização Mundial da Saúde reduziu a esperança de que haja uma vacina eficiente contra a doença.

O Banco Central não menciona diretamente este mais recente fantasma que assombra a economia mundial. Diz que “no cenário externo apesar do recente aumento de incerteza” os juros baixos nas principais economias têm produzido um “ambiente relativamente favorável para as economias emergentes”.

Segundo levantamento da Infinity Asset, o Brasil passou a ter juros reais de 0,91% com esse novo corte da taxa Selic. Ou seja, descontada a inflação projetada à frente, os juros estão menores do que 1%. Se a conta for feita com a inflação dos últimos 12 meses, os juros já são negativos. Há economistas que consideram que o Banco Central está indo longe demais e reagindo a pressões do mercado para reduzir a taxa. Quanto menor a Selic, maior a migração de investimentos para a Bolsa. Mas a sua comunicação trôpega de ontem indica que o próprio BC está confuso diante da atual, e realmente complexa, perspectiva da economia.


Míriam Leitão: O liberalismo à moda da casa

Mesmo com déficit longe do prometido zero, o governo criou estatal militar e colocou quase R$ 8 bilhões em outra estatal militar

O governo colocou de uma vez R$ 8 bilhões numa estatal controlada pela Marinha e que constrói corvetas, a Emgepron. O ministro da Economia, Paulo Guedes, é liberal, a conjuntura é de aguda restrição fiscal, mas R$ 10 bi foram gastos em capitalização de estatais, a maior parte para essa da área militar. Criou uma estatal este ano, a NAV Brasil, também na área militar, que pode vir a ter 13,5 mil funcionários. Então o déficit do Tesouro que o ministro prometeu zerar no primeiro ano terminou em R$ 95 bi, e houve expansão de gastos com estatais.

Para o setor público consolidado, o déficit foi de R$ 62 bilhões, porque houve superávit nos governos regionais e nas estatais. O dado do Tesouro foi o menor déficit em seis anos, mas a maior parte da queda foi resultado de receitas extraordinárias. Com a divulgação dos números esta semana do déficit público no primeiro ano do governo Bolsonaro, tanto pelo cálculo do Tesouro quanto pelo do Banco Central, fica claro que existe melhora, mas ela é gradual e volátil. Se caírem as receitas extraordinárias, o buraco pode aumentar. De estrutural, houve a reforma da Previdência, cujo resultado negativo foi de R$ 318,4 bi em 2019, com alta de 10% sobre o ano anterior. A reforma reduz apenas o ritmo de crescimento do rombo. É a melhor notícia na área das contas públicas, mas foi conseguida em grande parte pelo esforço do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que na quinta-feira trocou farpas com o ministro Paulo Guedes em um evento do Centro de Liderança Pública (CLP) em São Paulo.

Em outro evento, promovido pelo Credit Suisse, o ex-presidente do Banco Central Persio Arida duvidou do liberalismo do governo:

— A agenda das privatizações decepcionou, e a abertura comercial não aconteceu. Vamos pegar dois fundos para mostrar o quanto o governo não é liberal como se diz. O FGTS é uma poupança compulsória, que só fazia sentido na época em que o Brasil não tinha crédito. O FAT tem R$ 370 bilhões, o que significa 10 anos de financiamento do Bolsa Família. O que o governo fez? Liberou dinheiro do FGTS para estimular consumo. Diminuiu o Fundo, mas não acabou. A Caixa continua monopolista com taxas altas de administração. O FAT é formado por um imposto e vai para o BNDES, que empresta e não precisa pagar ao FAT, apenas juros. O governo não acaba com os dois fundos porque a Caixa e o BNDES não querem. Isso não é liberalismo. Liberalismo é proteger o público do privado e neste caso o governo cede ao lobby.

No FGTS, Persio acha que o dinheiro deveria voltar ao seu dono, sem restrições, ou no mínimo dar aos trabalhadores o direito de aplicar onde quiser. Manter na Caixa de fato não é nada liberal.

Ele lembrou ainda, para desconforto da plateia do mercado, quase toda governista, que privatização é vender estatais. Quando se vende subsidiária, o dinheiro vai para a estatal.

Armínio Fraga, falando no mesmo evento, mostrou a razão pela qual é preciso diminuir o tamanho do Estado para ele investir:

— O Estado continua quebrado, inchado e não investe mais do que 1% do PIB. Cerca de 80% do gasto é previdência e pessoal. A média do mundo é 50% a 60%. Se o Brasil chegasse na média e acabasse com subsídios, liberaria 10 pontos percentuais de gasto sobre o PIB, poderia terminar o ajuste com 3% e teria mais 7% para investir. Concordo com o Persio, este governo não é tão liberal assim.

Os dois disseram que para crescer o país precisaria investir muito em educação, que definiram como uma tragédia que se agrava.

No evento do CLP, o ministro Paulo Guedes jogou sobre o Congresso a conta da demora de outras reformas e saiu do recinto sem tempo de ouvir a resposta de Rodrigo Maia, que falou em seguida. Ele lamentou a ausência de Guedes, porque queria dizer “não é bem assim”. Maia lembrou que as reformas tributária e administrativa não chegaram ao Congresso e que a PEC emergencial atropelou uma proposta mais ambiciosa de iniciativa do Congresso:

— A do governo vai economizar de R$ 10 bilhões a R$ 15 bi, a do deputado Pedro Paulo economizaria R$ 100 bilhões.

No evento do Credit Suisse também falou uma ex-assistente de Milton Friedman, Deirdre McCloskey, defendendo uma visão radical e impiedosa do liberalismo. A economista se chamava Donald, fez cirurgia e assumiu como Deirdre a sua identidade feminina. Por ter dito que o governo Bolsonaro é tudo menos liberal, teve sua palestra suspensa na Petrobras.

E assim caminha o liberalismo à moda Bolsonaro: censurando, criando estatais, capitalizando empresas militares e mantendo o monopólio da Caixa em poupança compulsória.
Postado por Gilvan Cavalcanti


Míriam Leitão: O vírus ameaça as cadeias globais

Na economia, o temor do coronavírus é de uma paralisação prolongada na China que afete as cadeias globais de produção

O mundo ficou muito mais conectado, a produção, mais distribuída pelos países, e as economias são mais dependente da China desde que uma epidemia — a Sars, em 2003 — provocou uma redução de 2% do PIB chinês. Hoje, a China é o grande fornecedor e também o grande comprador mundial. Se a paralisação das atividades se prolongar, o prejuízo será enorme e o impacto, muito maior. É o que dizem os especialistas da área de comércio.

Com o anúncio de que a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou emergência global para o novo coronavírus, e a informação de que houve transmissão entre humanos nos Estados Unidos, os mercados tiveram outro dia de volatilidade. O dólar no Brasil bateu R$ 4,27 e depois fechou em R$ 4,25. Esses movimentos de preços de ativos podem se reverter facilmente. No fim do dia, as bolsas do Brasil e dos EUA fecharam no equilíbrio, mas o Ibovespa chegou a cair mais de 2%. É que se considerou que a OMS não recomendou restrições duras como se temia. Mas o fato é que o mundo está diante de uma enorme incerteza e por isso continuará havendo dias de quedas e de altas súbitas em vários ativos. Há neste momento a consciência de que ainda não se sabe como conter o vírus e que o único remédio para mitigar seus efeitos é parar a economia mais dinâmica do planeta.

Um dos temores é a rapidez com que o vírus está se espalhando no mundo. “O número de casos reportados cresceu de 282 em 20 de janeiro para perto de 7.800 apenas nove dias depois. Neste mesmo tempo os quatro casos reportados fora da China continental multiplicou-se para 105”, registra a revista “The Economist”. Outro temor é que não se sabe como a doença se espalha e como contamina.

O empresário Paulo Castelo Branco, da Associação dos Importadores de Máquinas e Equipamentos Industriais, acha que só na semana que vem será possível calcular o tamanho do impacto econômico da crise. Como eclodiu no feriado do Ano Novo Lunar, que terminaria na segunda-feira, os compradores e fornecedores da China já estavam preparados para a suspensão dos negócios nesse período.

— Na segunda-feira encerraria as duas semanas que são a única data em que a China para de trabalhar. Mas a gente já percebe, tendo contato com empresas que importam de lá, que as entregas podem ser adiadas, já que o governo prorrogou por mais dez dias a paralisação. Como a China fornece para o mundo inteiro, haverá impacto na produção mundial. As empresas daqui estão tentando entender quais serão esses efeitos e em que intensidade — disse Castelo Branco.

Empresas que importam máquinas da Europa também sentem dificuldade, porque o que está parando é a cadeia de produção. Mesmo sendo proveniente da Europa, uma máquina pode ter inúmeros componentes chineses. O ex-secretário de Comércio Exterior Welber Barral diz que o mundo está tentando comparar com outros casos de epidemia global para prever o efeito econômico do vírus.

— Boa parte da aposta do mercado hoje é se vai ser um modelo mais parecido com o do Sars. Ou seja, de até 2% de queda no crescimento da economia chinesa, um impacto que vai diminuindo quanto menor for o grau de dependência que os países têm da China.

O cenário de uma paralisação prolongada é assustador pelos efeitos sequenciais sobre as cadeias de produção do mundo. Segundo Castelo Branco, são muitos os setores que importam da China, ou de outros países que dependem de fornecimento chinês. Só para citar um exemplo, a Volkswagen importa da Alemanha que por sua vez importa da China. Da indústria da construção civil ao setor de agricultura, da automobilística à indústria aeronáutica, todos compram dos chineses. A importação brasileira de produtos chineses chega a US$ 35 bilhões por ano, ou 20% de tudo que o país compra do exterior. A paralisia da China afeta o Brasil.

Já na exportação, há matérias-primas, como minério de ferro, que dependem do que a indústria chinesa esteja processando. Mas há demandas que são mais inelásticas, como os alimentos.

O mundo está no escuro diante dessa epidemia que ontem virou oficialmente uma emergência global. A corrida é para proteger a vida humana e evitar uma pandemia. Para isso, a economia será atingida. Pelo fato de ter se tornado mais globalizada, a economia depende mais hoje dos fluxos que estão interrompidos e das conexões que estão suspensas. O tamanho da crise será proporcional à paralisação.


Míriam Leitão: A verdade não cabe numa caixa-preta

Erros do BNDES já eram conhecidos, mas Bolsonaro prometeu abrir uma tal caixa-preta e perdeu

O presidente Jair Bolsonaro queria encontrar algo escandaloso no BNDES para justificar o discurso de campanha, a demissão espalhafatosa de Joaquim Levy e a nomeação de um amigo dos filhos para o banco. Gustavo Montezano foi com a missão de encontrar a tal “caixa-preta” para alegrar o chefe. Não encontrou por vários motivos. Um deles é que o BNDES vinha aumentando o grau de transparência nas últimas gestões. A auditoria pode ter encontrado tudo no lugar nos seus pormenores, mas uma visão mais ampla sempre mostrará que custaram muito caro os erros dos governos do PT no BNDES.

O Tesouro se endividou em R$ 500 bilhões a juros altíssimos para transferir para o BNDES e ele emprestar para as empresas a taxas mais baixas. Os beneficiários dos maiores créditos foram escolhidos com o delírio dirigista que repetia a mesma ideologia da ditadura militar de subsidiar o capital para que ele fosse a alavanca do crescimento do país.

As operações com o grupo J&F foram escandalosas. Mesmo que não houvesse corrupção —e houve, pelo que disse Joesley Batista —elas teriam sido. Os delatores do grupo disseram que não houve ato errado dos funcionários. Os servidores dizem que seguiram as diretrizes dadas por seus superiores. Como foram várias dessas operações? O grupo emitia debêntures, o banco comprava uma grande parte ou quase tudo. Com o dinheiro em caixa, a companhia adquiria ativos no exterior.

No caso da Pilgrim’s Pride, 99,9% do capital da aquisição foi do BNDES. Isso é escandaloso em si. Qual o sentido de usar o dinheiro subsidiado — fruto de endividamento público ou vindo de poupança compulsória do trabalhador (o FAT) — para que um grupo familiar fique muito mais rico e gere empregos e renda no exterior? Claro que a empresa pode fazer isso, mas não com dinheiro público. O resultado foi que o JBS ficou com mais ativos fora do que aqui dentro. A administração Maria Silvia impediu que o grupo transferisse sua sede fiscal para a Irlanda. Isso, se consumado na época, seria o golpe final no bolso do contribuinte.

Jair Bolsonaro errou porque quis perseguir o banco correndo atrás de uma caixa preta. Ele não tem muito apetite para se debruçar sobre temas complexos, por isso se esconde atrás do biombo de que não entende de economia. Queria apenas comprovar a frase da campanha. Ficou agora numa situação vexaminosa. Prometeu abrir a tal caixa-preta. Atropelou o ministro Paulo Guedes na demissão de Joaquim Levy. E agora, nada encontrou. Só lhe restou levantar mais uma suspeita difusa.

Uma auditoria olha os registros do banco, os processos que são seguidos nas análises de risco das operações, a avaliação da qualidade do crédito, os documentos exigidos pela burocracia de uma instituição estatal. O que isso mostra? Que as operações foram corretas do ponto de vista formal. Os cálculos nunca incluem o custo de oportunidade. Ou seja, qual o ganho para o país se o dinheiro fosse aplicado, com transparência e fiscalização, em saneamento, por exemplo?

Qual o tamanho do subsídio com essas e outras opções? Isso era necessário saber. Não por briga política, mas para que o país não cometa os mesmos desatinos.

Montezano disse ontem que não foram encontradas ilegalidades em operações do BNDES, nem nessas nem em outras. A verdade é que há vários erros. Os empréstimos concedidos para obras de empreiteiras, principalmente a Odebrecht, em outros países que foram escolhidos não pela capacidade de pagamento do crédito, mas pela ideologia do governo em questão. A compra de ações do frigorífico Independência, que quebrou meses depois do aporte de capital. Tudo ficou depois resolvido porque o JBS comprou o frigorífico quebrado. Empréstimos concedidos ao grupo Bertin que à beira da falência foi comprado pelo JBS. O TCU analisou todas essas operações envolvendo o JBS e calculou as perdas do banco em cada uma delas. As contas estão expostas no site do Tribunal.

O passo mais importante para acabar com os benefícios do dinheiro barato para empresas favoritas foi a criação da TLP no governo Michel Temer. O erro do governo Bolsonaro é tratar o assunto sem a profundidade que ele exige. Criou a expectativa de que conseguiria revelar algum grande segredo, mas a verdade já era bem conhecida.