Marco Aurélio Nogueira: A crise nossa de cada dia

Nada autoriza a que se projete um atalho que engavete a democracia representativa

A vida é feita de crises. Conflitos e disputas alimentam as interações humanas como o ar que se respira. A própria dinâmica social, contraditória e movida a antagonismos, faz os sistemas inventados para prover a sociedade de recursos de sobrevivência entrarem em desajuste e perderem eficácia. É uma constante.

Devemos desdramatizar a ideia de “crise” para que sejamos capazes de assimilá-la e compreendê-la. Não há por que temer o que é parte da vida.

Crise não é sinônimo de fim ou morte. Não implica que uma situação “crítica” se reproduza de forma catastrófica. Uma crise de governo não anuncia o fim do governo, mas sim que algumas de suas condutas e opções já não bastam para sustentá-lo. Uma crise econômica tem indicadores claros – recessão, desemprego, redução do consumo, inflação, fuga de investimentos –, mas não se traduz necessariamente em colapso, podendo, porém, significar que um padrão de acumulação ou uma orientação macroeconômica atingiram o esgotamento.

Nossa época está assentada num sistema produtivo altamente dinâmico, competitivo e predatório, que não respeita limites nem fronteiras, que se faz exigindo o máximo de todos os agentes, em especial os do mundo do trabalho. O capitalismo consolidou-se como sistema mundial e ganha fôlego com a incorporação de tecnologias que repercutem nos diferentes níveis de vida, abalando as estruturas sociais, as ideias, as práticas, as formas de organização e o Estado como um todo. Somos protagonistas de uma era de crises.

Crises são como terremotos, que recebem pontuações que indicam a potência destrutiva que carregam. Há crises e crises. Algumas não passam de abalos ligeiros, que nem sequer sentimos. Mesmo que provoquem paralisia e desorganização, seus efeitos são positivos: ajudam-nos a compreender o que não funciona e facilitam a eliminação de células mortas. Outras se estendem no tempo e corroem os corpos em que se instalam. Todas indicam a necessidade de uma transformação, mas algumas exigem mudanças profundas, que demandam exercícios intelectuais sofisticados, operações complexas e tratativas difíceis. Neste segundo caso, sobretudo, as crises prolongam-se como um mal-estar que produz efeitos perversos, retira vigor de soluções antes vitoriosas e desorganiza o que está estabelecido, contaminando a vida social. Tais crises exigem que os sistemas saiam em busca de novos pontos de equilíbrio, com os quais possam voltar a funcionar adequadamente.

O mundo atual conhece crises desse segundo tipo. Muitas sociedades, talvez todas, estão mergulhadas nelas. São partidos políticos que desaparecem, tecnologias que se tornam obsoletas, formas de gestão e de organização produtiva que fracassam, buracos que se formam por todos os lados e, ao atingirem a esfera política, levam à emergência de líderes salvacionistas improváveis, fundamentalismos regressistas, desentendimentos e polarizações paralisantes, como que a anunciar a abertura de uma época de cegueira cívica, na qual os cidadãos não sabem bem o que desejam, o que podem conseguir e o que devem fazer para delinear um futuro melhor.

Crises assim são crises políticas: enraízam-se no chão da sociedade, contagiam as pessoas e atingem o Estado, não somente os sistemas políticos em senti- do estrito. Além de cegar os cidadãos, também bloqueiam a deliberação democrática, o processo de tomada de decisões e a formulação de políticas públicas.

O Brasil aparece aí de corpo inteiro. Mas o problema não é somente brasileiro. A crise política globalizou-se, em sintonia com a globalização capitalista. A economia, a cultura e a sociedade mundializaram-se, mas a política permaneceu “nacional”. A ausência de um “Estado mundial” faz com que o sistema internacional fique “fora de ordem”.

No plano das nações – no Brasil, por exemplo – ocorre um efeito parecido: a economia, a sociedade e a cultura transformam-se graças à globalização e à revolução tecnológica, modernizam-se, mas a política não consegue acompanhá-las; ingressa assim numa condição de sofrimento, desestruturan-dose. Os sistemas nacionais giram em falso, impulsionados pelos efeitos da globalização.

A crise política atual é uma crise da política. Diz respeito a regras, sistemas e procedimentos, mas afeta hábitos, condutas e valores éticos com os quais se pratica, se pensa e se acolhe a política. Não se trata de um simples “defeito institucional”. O desarranjo sistêmico – que não é catastrófico – desdobra-se num descompasso entre Estado e sociedade, governantes e governados, representantes e representados. Trata-se de uma crise do Estado em seu conjunto, que envolve a todos num abraço totalizante.

Uma crise dessa magnitude não pode ser vencida somente com reformas institucionais, por mais importantes que elas possam ser. Requer uma abrangente pedagogia democrática, que valorize a dimensão pública da vida e agite os humores sociais em sentido progressista, civilizador.

No que diz respeito particularmente à democracia representativa, pode-se dizer, parafraseando Norberto Bobbio, que ela não conseguiu cumprir algumas de suas maiores promessas. Mas está viva, em transformação. Nas últimas décadas foi capturada pelo mercado e pelas oligarquias (políticas, corporativas, empresariais), perdendo pujança e entrando em tensão com as expectativas cívicas. Um deslocamento se processou: a democracia passou a ser vivida mais nos espaços societais “desregulados” do que no plano do Estado e dos sistemas políticos.

Mas nada autoriza a que se projete um atalho que engavete a democracia representativa e a confronte com alguma modalidade de “democracia direta”. O caminho mais profícuo parece ser o de se repaginar a democracia e o governo representativo, soltar suas amarras, para que se reencontrem com a cidadania ativa e com uma alteridade que não se renda ao fascínio das “diferenças”, dinamizando e qualificando o convívio social.


Marco Aurélio Nogueira: Um depoimento para a história que um dia se contará

Antes que os engulhos da indignação te sufoquem, você fica tentando descobrir o que está a passar pela cabeça de Antonio Palocci durante as tratativas para conseguir uma delação premiada e no depoimento a Moro, em que fulminou Lula, Dilma e o PT com vários megatons de flechas envenenadas.

Por que fez o que fez, falou o que falou e do jeito que falou? A pergunta ressoa em vários ambientes e análises, Por certo comporta muitas explicações.

Foi um depoimento sereno e calculado. O ex-ministro falou com calma, tentando ser preciso, relatou detalhes e conversas sórdidas, contou de sítios, apartamentos, propinas e vantagens ilícitas como se estivesse conversando com amigos numa mesa de bar. Só faltou sacar do bolso uma agenda com tudo anotado. Insinuou que poderá fazer isso, caso o juiz assim o deseje.

Mas Palocci não jogou conversa fora, como se faz em um papo de bar. Concatenou e amarrou tudo direitinho, para justificar o prêmio que almeja com a delação. Mostrou saber perfeitamente o que fazia e quem pretendia atingir. Não apresentou provas, mas pôs na mesa uma narrativa difícil de ser contestada. No centro dela, não pareceu haver o desejo de prejudicar quem quer que seja. Falou mais alto a voz do interesse próprio.

Em suma, coisa de profissional, de quem sabe o passo a ser dado e tem uma estratégia, com as devidas rotas de fuga. Foram postos na mesa os dotes que o fizeram ser escolhido articulador de Lula, homem forte no início governo Dilma e elo de ligação com o empresariado. Ao revelar o “pacto de sangue” entre Odebrecht e Lula – que incluiu sítio, terreno, apartamento, as famosas palestras a 200 mil reais e uma “reserva de 300 milhões” –, Palocci cruzou o Rubicão: tornou-se um acusador. É assim que está tentando assinar seu próprio pacto com Moro. Sendo Palocci quem é, com certeza ele sabe que precisará derramar muito sangue para obter algum tipo de benefício expressivo. Ou seja, terá de entregar mais coisas, valorizar o próprio passe.

Aí você se dá conta de que Palocci está sendo humano, demasiadamente humano. Revela-se igual àquelas pessoas que são como camaleões, que assumem várias personas conflitantes e se sentem à vontade em cada uma delas. Indivíduos que prezam a própria pele mais que qualquer outra coisa: que fazem da pele, a causa. Que querem sair sempre bem na foto, ter sucesso em tudo que fazem. E que têm medo, muito medo, de perder o que conseguiram. Além disso, Palocci parece ter enorme predisposição para sobrepujar os que com ele tramaram e nele confiaram: por que somente eu é que pagarei o pato?

Não se deveria crucificar Palocci. Os que o conhecem juram que ideologia ou firmeza ideológica nunca foram seu traço forte. Ele sempre esteve alinhado com a ala mais “pragmática” do PT, desde os tempos já remotos da universidade e de Ribeirão Preto.

Os petistas mais ardorosos talvez o convertam em Judas, agitando a pecha infamante de “traidor”. Outros talvez o vejam como vítima, um coitado que não aguentou a pressão e entregou dedos e anéis para se livrar de 12 anos de cadeia. Falarão que não há “provas materiais”, mesmo que a concatenação dos fatos e relatos faça sentido. O Diretório Nacional do partido emitiu nota, por exemplo, dizendo que Palocci foi “pressionado a fazer acusações sem provas”. Dilma bateu duro, como de costume: o ex-ministro mentiu, seu depoimento “é uma ficção”. Comparações com Dirceu, o último “guerreiro do povo brasileiro”, são cabíveis, mas não explicam nada.

É recomendável, nesse caso, que se dê o devido relevo às nuances da psique humana, ao lado diabólico que integra a natureza dos homens e mulheres, os assusta e transfigura. Todos, afinal, podem se deixar levar por seus demônios internos ou fazer escolhas em nome da luta para manter a liberdade pessoal — luta essa que pode perfeitamente passar por cima de lealdades e ideologias.

Seja como for, o depoimento de Palocci caiu como uma bomba no colo de Lula, que terá uma explicação a mais para dar, ainda que se finja de morto. Pode ter sido parte da estratégia, pode ter sido um jeito de dar o troco e socializar o prejuízo, pode ter sido um artifício para proteger a psique fragilizada. A resposta só é importante para quem deseja entender a biografia do ex-ministro. O fato é que o depoimento entrará para a história e ajudará a que se compreenda melhor quão fundo se chegou na corrupção da nossa frágil República.

Se isso, porém, mudará alguma coisa no destino imediato dos personagens envolvidos e na dinâmica política nacional, aí são outros quinhentos.


Marco Aurélio Nogueira: A reforma que não cabe em si

Não há reforma política que possa reduzir o nível de desentendimento em que se vive hoje, tanto no âmbito do antagonismo político imediato quanto no âmbito social mais amplo

Enquanto candidatos e postulantes a candidato cruzam o País em busca de cacife e visibilidade, no dia a dia da política o desacerto é grande. Fala-se muito, esclarece-se pouco.

É a reforma política, essa musa maltratada, menina dos olhos e objeto de desejo dos operadores políticos, que ressurge sempre que as brechas se fecham. Tratada como cataplasma universal, antídoto contra os males que afligiriam partidos, parlamentares e eleitores, funciona entre nós como um alarme de repetição. Ao se aproximarem as eleições, ele dispara. Alega-se que é para “salvar a política” e “resgatar o sistema”, mas na verdade o sangue ferve para que se ache um jeito de arrumar dinheiro com que financiar campanhas e facilitar a (re)eleição dos interessados.

Com isso, a agenda nacional é invadida por uma sucessão caótica de soluções salvacionistas para “melhorar a política”. O quadro fica tão confuso que se chega ao ponto de concluir que o melhor talvez seja deixar tudo como está para ver como é que fica.

Há duas maneiras de pensar as relações entre reforma e política. Falamos em “reforma política” quando queremos propor que as regras do jogo sejam modificadas para que respondam melhor às exigências da sociedade, sempre dinâmica e mutante. E devemos falar em “reforma da política” quando quisermos postular que o modo como se faz política precisa ser alterado.

Essas duas maneiras deveriam caminhar juntas, alimentando-se reciprocamente. O postulado institucionalista, bastante em voga, prega que condutas e valores são fortemente influenciados pelas instituições: as regras fazem o ator, mediante restrições, condicionamentos e incentivos. Isso, porém, nem sempre é verdade, ou não é verdade absoluta.

Sistemas concebidos para permitir a equilibrada representação das distintas propostas políticas – como ocorre com os sistemas eleitorais proporcionais – não levam a que necessariamente todas as propostas se façam representar, caso os mais fortes ajam de forma predatória ou degradem as disputas eleitorais. O voto distrital, por exigir a concentração dos votos em territórios determinados, promove uma inflexão localista e desestimula a discussão política geral, mas não impede que os partidos apresentem candidatos ideológicos e convidem os eleitores a fugir da província. Nenhum sistema incentiva a corrupção, e a maioria deles cria dificuldades para que ela se expanda. Mas a corrupção pode crescer de forma exponencial, caso alguns germes não tratados ganhem força na sociedade, no meio político ou administrativo.

O sistema político brasileiro não parece funcionar bem. A “classe política” não se mostra preparada para lidar com os novos tempos. É atrasada. Há partidos em excesso, constituídos como projetos pessoais, graças a uma legislação permissiva. Isso dá sentido a cláusulas de desempenho, que podem coibir a formação oportunista de legendas inconsistentes. O sistema se reproduz e funciona, mas entrega pouco à sociedade, não produz resultados nem consensos, ou seja, precisamente aquilo que é vital para a democracia. Não surpreende que os cidadãos não o valorizem.

O problema a resolver nesta fase crítica da vida nacional não é de natureza sistêmica. Não tem que ver com regras. O presidencialismo, entre nós, criou uma tradição para si, e não será sua substituição por uma modalidade de parlamentarismo que fará com que tudo passe a funcionar melhor. Dizer que o parlamentarismo ajudará a que se construam partidos melhores é algo que merece ao menos a dúvida cautelar. Podemos trocar o voto proporcional pelo distrital, e acordarmos no dia seguinte com os mesmos políticos e as mesmas práticas de sempre. Reduzir o número de partidos e rever a legislação que os regulamenta injetará maior racionalidade ao sistema e reduzirá a fragmentação parlamentar, mas não produzirá obrigatoriamente partidos melhores e decisões mais equilibradas nem eliminará a mixórdia programática e a pobreza de ideias.

Não há reforma política que possa reduzir o nível de desentendimento em que se vive hoje, tanto no âmbito do antagonismo político imediato quanto no âmbito social mais amplo. Está difícil imaginar como é que o País encontrará eixo.

Na sociedade civil, coração ético do Estado, a intolerância só faz crescer, quase não há mais ação comunicativa, ainda que as redes sejam a praia dos falantes. Aí dorme o problema principal, pois, sem um ativismo democrático que articule interesses e pressione por um futuro melhor, pouco haverá de correção de rumos e recuperação do Estado.

Poucos percebem que a democracia perde qualidade não tanto porque o sistema político derrapa, mas porque os cidadãos democráticos não conseguem se articular entre si. Os liberais democráticos não se projetam, a esquerda moderada e a centro-esquerda são inoperantes e a esquerda “pura”, radicalizada, é prisioneira de seus fantasmas e idiossincrasias, esperneia e joga palavras ao vento, mas pouco faz. Tais vetores da democracia estão se distanciando da sociedade, perdendo a credibilidade conquistada ao longo da democratização do País.

Sem energia mediadora e disposição para que se alcancem zonas consistentes de entendimento, poderemos fazer a mais bem bolada reforma política, que pouca coisa mudará. Em suma, ou reformamos a política (a cultura, as condutas, os valores) ou é melhor deixar tudo como está. A reforma de que necessitamos poderá ser beneficiada por ajustes pontuais, mas só terá como se completar se vier acompanhada de cidadãos mais bem educados politicamente, capazes de se fazerem representar por uma “classe política” mais qualificada em termos intelectuais e ético-políticos.

Avanços políticos substantivos estão associados a como as relações sociais se reproduzem, à estrutura produtiva, à qualidade da cidadania, às interações entre governantes e governados. Em que medida o sistema político pode responder por tais avanços é algo sempre em aberto.


Marco Aurélio Nogueira: A reforma que não cabe em si

 

Ou reformamos a política (cultura, condutas, valores) ou é melhor deixar como está. Enquanto candidatos e postulantes a candidato cruzam o País em busca de cacife e visibilidade, no dia a dia da política o desacerto é grande. Fala-se muito, esclarece-se pouco.

É a reforma política, essa musa maltratada, menina dos olhos e objeto de desejo dos operadores políticos, que ressurge sempre que as brechas se fecham. Tratada como cataplasma universal, antídoto contra os males que afligiriam partidos, parlamentares e eleitores, funciona entre nós como um alarme de repetição. Ao se aproximarem as eleições, ele dispara. Alega-se que é para “salvar a política” e “resgatar o sistema”, mas na verdade o sangue ferve para que se ache um jeito de arrumar dinheiro com que financiar campanhas e facilitar a (re)eleição dos interessados.

Com isso, a agenda nacional é invadida por uma sucessão caótica de soluções salvacionistas para “melhorar a política”. O quadro fica tão confuso que se chega ao ponto de concluir que o melhor talvez seja deixar tudo como está para ver como é que fica.

Há duas maneiras de pensar as relações entre reforma e política. Falamos em “reforma política” quando queremos propor que as regras do jogo sejam modificadas para que respondam melhor às exigências da sociedade, sempre dinâmica e mutante. E devemos falar em “reforma da política” quando quisermos postular que o modo como se faz política precisa ser alterado.

Essas duas maneiras deveriam caminhar juntas, alimentando-se reciprocamente. O postulado institucionalista, bastante em voga, prega que condutas e valores são fortemente influenciados pelas instituições: as regras fazem o ator, mediante restrições, condicionamentos e incentivos. Isso, porém, nem sempre é verdade, ou não é verdade absoluta.

Sistemas concebidos para permitir a equilibrada representação das distintas propostas políticas – como ocorre com os sistemas eleitorais proporcionais – não levam a que necessariamente todas as propostas se façam representar, caso os mais fortes ajam de forma predatória ou degradem as disputas eleitorais. O voto distrital, por exigir a concentração dos votos em territórios determinados, promove uma inflexão localista e desestimula a discussão política geral, mas não impede que os partidos apresentem candidatos ideológicos e convidem os eleitores a fugir da província. Nenhum sistema incentiva a corrupção, e a maioria deles cria dificuldades para que ela se expanda. Mas a corrupção pode crescer de forma exponencial, caso alguns germes não tratados ganhem força na sociedade, no meio político ou administrativo.

O sistema político brasileiro não parece funcionar bem. A “classe política” não se mostra preparada para lidar com os novos tempos. É atrasada. Há partidos em excesso, constituídos como projetos pessoais, graças a uma legislação permissiva. Isso dá sentido a cláusulas de desempenho, que podem coibir a formação oportunista de legendas inconsistentes. O sistema se reproduz e funciona, mas entrega pouco à sociedade, não produz resultados nem consensos, ou seja, precisamente aquilo que é vital para a democracia. Não surpreende que os cidadãos não o valorizem.

O problema a resolver nesta fase crítica da vida nacional não é de natureza sistêmica. Não tem que ver com regras. O presidencialismo, entre nós, criou uma tradição para si, e não será sua substituição por uma modalidade de parlamentarismo que fará com que tudo passe a funcionar melhor. Dizer que o parlamentarismo ajudará a que se construam partidos melhores é algo que merece ao menos a dúvida cautelar. Podemos trocar o voto proporcional pelo distrital, e acordarmos no dia seguinte com os mesmos políticos e as mesmas práticas de sempre. Reduzir o número de partidos e rever a legislação que os regulamenta injetará maior racionalidade ao sistema e reduzirá a fragmentação parlamentar, mas não produzirá obrigatoriamente partidos melhores e decisões mais equilibradas nem eliminará a mixórdia programática e a pobreza de ideias.

Não há reforma política que possa reduzir o nível de desentendimento em que se vive hoje, tanto no âmbito do antagonismo político imediato quanto no âmbito social mais amplo. Está difícil imaginar como é que o País encontrará eixo.

Na sociedade civil, coração ético do Estado, a intolerância só faz crescer, quase não há mais ação comunicativa, ainda que as redes sejam a praia dos falantes. Aí dorme o problema principal, pois, sem um ativismo democrático que articule interesses e pressione por um futuro melhor, pouco haverá de correção de rumos e recuperação do Estado.

Poucos percebem que a democracia perde qualidade não tanto porque o sistema político derrapa, mas porque os cidadãos democráticos não conseguem se articular entre si. Os liberais democráticos não se projetam, a esquerda moderada e a centro-esquerda são inoperantes e a esquerda “pura”, radicalizada, é prisioneira de seus fantasmas e idiossincrasias, esperneia e joga palavras ao vento, mas pouco faz. Tais vetores da democracia estão se distanciando da sociedade, perdendo a credibilidade conquistada ao longo da democratização do País.

Sem energia mediadora e disposição para que se alcancem zonas consistentes de entendimento, poderemos fazer a mais bem bolada reforma política, que pouca coisa mudará. Em suma, ou reformamos a política (a cultura, as condutas, os valores) ou é melhor deixar tudo como está. A reforma de que necessitamos poderá ser beneficiada por ajustes pontuais, mas só terá como se completar se vier acompanhada de cidadãos mais bem educados politicamente, capazes de se fazerem representar por uma “classe política” mais qualificada em termos intelectuais e ético-políticos.

Avanços políticos substantivos estão associados a como as relações sociais se reproduzem, à estrutura produtiva, à qualidade da cidadania, às interações entre governantes e governados. Em que medida o sistema político pode responder por tais avanços é algo sempre em aberto.

 


Marco Aurélio Nogueira: À beira do precipício

A ideia de “bom governo” vem dos gregos e dos princípios platônicos de Bem, Justiça, Temperança, Prudência e Fortaleza. Tem um ineliminável conteúdo ético. Governa-se para o bem de todos, de modo justo e correto, sem excessos ou privilégios, tendo em vista o fortalecimento e o progresso da comunidade.

Por derivação, o “bom governo” está dotado de atributos decisivos. Para se realizar, precisa de apoio parlamentar, representatividade social e assessoria técnica qualificada. Precisa, também, de quem o comande e coordene, seja em termos institucionais, seja em termos de liderança ou autoridade pessoal. Carece, portanto, de uma institucionalidade equilibrada, respeitada pelos governados, e tanto quanto possível de uma liderança política que possa expressar, perante o povo, as virtudes que cimentam uma comunidade.

Um “bom governo”, porém, não é sinônimo de bom governante: este pode ser bondoso, puro, honesto e bem-intencionado, mas seu governo ser péssimo. Um tirano estraga um governo que poderia ser bom, mas um bom governo pode atenuar a tirania e eventualmente expeli-la. É preciso ver o conjunto, as articulações. Uma boa Presidência não é igual a um bom presidente.

Se olharmos as coisas brasileiras por esse ângulo, o que vemos se aproxima do horror. Falta-nos quase tudo. A vida moderna, com sua voracidade e sua turbulência, minou nossos fundamentos por um lado, ao passo que a classe política, os partidos e o sistema político fizeram o mesmo pelo lado oposto. Em um vórtice de sobressaltos e desacertos, reduziu-se drasticamente a qualidade ética, técnica, discursiva, intelectual, da política, que hoje rasteja perante o país, numa busca desesperada por reconhecimento e legitimidade.

Sejamos francos: chegamos à beira do precipício. A política já não mais responde. Lateja como um coração enfartado. Claro, nem tudo é política, a vida pulsa com intensidade às vezes até explosiva, segue em frente. Nem tudo é política e a política não é tudo. Mas, sem ela, falta a presilha para fechar o colar, fica tudo meio solto, desgovernado, as pérolas saltam fora e esparramam pelo chão.

Seria então a hora dos setores mais lúcidos da sociedade fazerem alguma coisa. Como permitir que as coisas sigam nessa toada, insistindo em nos empurrar para o precipício?

Aí, você olha para a esquerda, para o centro e para a direita, para o Estado e a sociedade, para as universidades e as associações da sociedade civil, para trabalhadores e empresários, para ONGs e sindicatos, e constata que nada acontece. Há uma letargia solta no ar, misturada com indignação geral e o vozerio mouco da contestação, torta e inoperante. Onde estão os líderes, os pensadores, os organizadores, os que buscam saídas e anunciam novos tempos? Para onde ir? Quais as saídas?

A Câmara dos Deputados mergulhou na mediocridade. Vive hoje de manobras para se livrar da Lava Jato e chantagear o Executivo. Não se sabe quantos são os parlamentares que perdem o sono só para cogitarem da própria reeleição, mas suspeita-se que o número seja grande. São eles que lutam por uma “reforma política” que beira a obscenidade, que não só traz de volta a figura questionadíssima do “distritão”, que mata a proporcionalidade e dá força desproporcional aos mais conhecidos, como também propõe um Fundo Especial, dito para a “defesa da democracia”, mas na verdade concebido exclusivamente para bancar campanhas eleitorais. É uma facada no Erário Público de alguns bilhões de reais, a serem devidamente pagos pelos cidadãos. O objetivo é substituir o que os candidatos deveriam fazer diuturnamente — qual seja, procurar os eleitores e conquistá-los para que os ajudem em suas campanhas — pelas facilidades do financiamento estatal, que em tese permitiria que eleitores fossem seduzidos pelo marketing eleitoral. Uma imoralidade, que não ajuda a que se criem partidos, correntes de opinião, nichos de vida política.

O problema da política só pode ser resolvido mediante um novo pacto entre povo e políticos: o povo se dispondo a apoiar (com votos e dinheiro) os bons partidos e seus parlamentares, com a garantia mínima de que receberá em troca algo de substantivo em vez de promessas vãs, trejeitos apelativos e manifestações posticas de indignação e combatividade. O pacto vigente esgarçou.

Não dá para continuar assim. É um risco grande demais.

As sirenes dispararam, como se estivéssemos na iminência de um bombardeiro aéreo. Mas poucos ouvem. Os que deveriam agir fingem-se de mortos, repetem caminhos dantes trilhados, temem o que possa ter cheiro de novo, seguem pragmaticamente em frente sem se darem conta de que caminham para um buraco mais fundo. O panorama visto da janela de casa já fornece todos os indícios de que está em marcha um comprometimento não consciente do futuro. O mote “esgotou-se o modelo, precisamos fazer alguma coisa” reflete a exasperação, mas não é o que melhor aconselha.

Como mudanças sérias não estão à vista e terão de ser costuradas, o jeito é aprender a viver no risco e tentar manejá-lo com um mínimo de sensatez. Buscar pontes e coordenações de novo tipo, dosar energias, rever atitudes e convicções, calibrar o discurso, catar os cacos do que sobrou, desradicalizar e despolarizar, valorizar convergências e entendimentos. Há iniciativas ganhando corpo, grupos tentando se articular. Ainda não se sabe bem em torno de quais estratégias, com quais programas e com quais lideranças que “fulanizem” e deem fisionomia ao processo. Mas algo se move e em algum momento produzirá resultados.

A crise não se deve ao governo em sentido estrito, ao Poder Executivo. Michel Temer, seu ministério e suas práticas merecem toda a crítica que lhe têm sido feita. Por mais que existam em seu interior pessoas ilibadas e bons propósitos, o conjunto da obra é ruim, muito ruim. Não nos ajuda antever algo risonho à frente. Mas é inócuo ficar gritando contra sua “ilegitimidade”, seu espírito “golpista” ou seu “reformismo de direita”, coisas que de resto são discutíveis. Ele é só parte do problema, e não a parte principal. A crise envolve tudo o que respira na política nacional: parlamentares, juízes, procuradores, partidos, sindicatos, intelectuais, ativistas.

É esse conjunto — ou seja, “nós” — que precisa ser responsabilizado e que deveria se responsabilizar a si próprio, saindo das respectivas zonas de conforto em que repousam seus inúmeros pedaços.

 


A segunda chance de Temer

A vasta e pouco estruturada área democrática do país permanece na expectativa, em stand-by, sem saber o que lhe reservará o dia de amanhã

Não foi a lavada que o governo esperava, mas deu para o gasto, com alguma folga. Foram 263 votos, contra 227. Deram a Michel Temer uma segunda chance.

Conseguida na bacia das almas, a vitória do governo precisa ser relativizada. Não é daquelas que deixam o vencedor dormir o sono dos justos. A articulação que a possibilitou teve de tudo: pressão, promessas, ameaças, troca de favores, negociações, liberação de emendas. O “centrão” nadou de braçada nesse ambiente sem substância democrática e pouco republicano. O PSDB bateu cabeças o tempo todo, fiel a seu estilo desunir para perder. Desqualificou-se. O próprio PMDB não votou unido. Os Democratas de Rodrigo Maia se saíram melhor, trabalhando a boca pequena.

A oposição não caprichou no discurso, não foi persuasiva, não mostrou habilidade, deixou-se levar pelo histrionismo vazio de suas principais lideranças. Subiu no surrado pedestal da moralidade, como se não tivesse que olhar para os próprios pés e fazer sua autocrítica. Manteve a lenga-lenga de que, antes, éramos felizes e não sabíamos, sem nem sequer explicar por quais motivos Temer foi vice de Dilma por duas vezes.

Nada de novo no front. Tem sido assim de forma recorrente.

Foi um dia feio para a democracia brasileira. O governo ganhou porque não teve oposição à altura e porque soube se beneficiar da ideia pragmática e prudencial de que é melhor com Temer do que sem ele, que ao menos está “sabendo reduzir a inflação”.

O cenário mostrou uma Câmara em um de seus piores momentos, extensão daquilo que ocorreu no impeachment, em 2016. Não foi por acaso que Temer se projetou como vice de Dilma. O estrago vem lá de trás e sempre seguiu vias tortuosas, que agora cobram o preço. Tudo medíocre demais, patético demais, como se nada de muito sério estivesse em discussão. O que importava era aparecer para os eleitores, valendo-se da retórica inflamada, de caras e bocas, de apelos passionais, de juras de ódio ou amor. Até tatuagens foram feitas, ou encenadas.

Saberá Temer aproveitar a segunda chance?

Não é de esperar. Ele fez um pacto de sangue com o “centrão”, viu o grupo de Rodrigo Maia crescer em articulação, distanciou-se das correntes que poderiam emprestar alguma credibilidade, alguma dignidade programática e alguns quadros teóricos a seu governo. Não dá para acreditar que, de um dia para o outro, reformulará tudo e se reinventará. Jura que voltará a se empenhar por reformas, mas não mostra ter forças ou votos para isso. Continua a ser puxado para baixo pelo perfil rasteiro do ministério, pela mediocridade parlamentar e pelo discurso chocho do próprio Presidente.

A decisão de ontem deverá ter pouco impacto no processo político que já aponta para as urnas de 2018. Ninguém ganhou com ela.

Temer não ficará sangrando em céu aberto, ainda que parte de suas vísceras estejam expostas. Pesará nada em sua sucessão, com poder zero para influenciá-la. Há uma interrogação flutuando sobre ele: como chegará até o fim? Lula tem imensos problemas e até os passarinhos do Planalto sabem que sua eventual candidatura é mais um problema que uma solução, inclusive para ele próprio. Bolsonaro segue em busca de um partido e de uma plataforma civilizada, fazendo o possível para cortejar a direita, os ressentidos e os incautos. Tucanos estão em revoada, sem saber em que galho pousar. E Marina está, por enquanto, em fase de aquecimento.

A vasta e pouco estruturada área democrática do país permanece na expectativa, em stand-by, sem saber o que lhe reservará o dia de amanhã.


As razões de Janot

Tudo é feito na vida segundo princípios, projetos, cálculos, intenções. Às vezes há planejamento rigoroso, projeções e avaliação criteriosa de ganhos e perdas, custo e benefício. Na maioria das vezes, porém, as coisas simplesmente acontecem. Ou por desígnios “misteriosos”, ou pela interveniência de fatores imprevistos ou por aquilo que deriva da ação de terceiros. O acaso existe. O mundo objetivo (as estruturas socioeconômicas) prega suas peças. A dinâmica institucional pesa, até porque costuma com frequência escapar do controle dos que dirigem as instituições.

Na política, a impressão é que todos carregam um plano claro na cabeça e fazem cálculos milimétricos para definir os passos a serem dados. Emprega-se essa imagem para se concluir que sempre há uma conspiração em marcha, que os políticos estão o tempo todo a tramar. Estão mesmo, mas nem sempre sabem disso ou têm clareza de onde querem chegar. São humanos. Acham-se acima do bem e do mal. Deixam-se contagiar pela cobiça, por vaidades e paixões, que cegam. Tropeçam. Falam coisas que não devem. Esquecem-se de combinar com os russos e de medir as consequências de suas escolhas.

Qual o propósito, por exemplo, do Procurador-Geral Rodrigo Janot? O que o tem movido nos últimos meses, com o vendaval provocado pelas delações de Joesley Batista?

Há quem diga que suas ações estão na base da crise que atingiu o coração do governo Temer e o imobiliza. Para esses críticos, Janot alimenta a turbulência e a confusão, ao submeter o presidente a uma denúncia repleta de ilações. O Procurador-Geral certamente seria capaz de jurar que nada é mais estranho a ele do que agir como um incendiário, que ele só está a defender a integridade da República e as máximas da Justiça. Mas os efeitos de suas decisões não desmentem a acusação que lhe tem sido feita.

Uma de suas motivações poderia ser a de equilibrar o jogo e mostrar que “todos” (políticos, partidos) são farinha do mesmo saco, estão igualados e irmanados na dedicação com que se entregam à corrupção e se refestelam na lama. Temer é Lula, Lula é Dilma, Dilma é Temer e Aécio, Loures é Temer e todos são Joesley. A delação da JBS deu-lhe uma oportunidade, e ele a aproveitou.

Outra seria dar um salvo-conduto a Lula, que apanhava sozinho num canto do ringue. Deixá-lo respirar um pouco e trocar socos com os adversários, lá pelo 5º round, para mostrar que resistirá até o fim da luta. Ajudar a Lula, neste momento, pode servir a mais de um propósito. Mostraria, por exemplo, isenção, recurso não desprezível no ambiente conturbado em que se vive.

Com o salvo-conduto em mãos, Lula voltou a falar contra a “perseguição” que estaria a sofrer, contra os “golpistas”, a Lava Jato e Temer. Passou a defender “diretas já” para ocultar seu desejo obscuro de que Temer fique no Planalto até 2018, sangrando por todos os poros. Nenhum gesto de grandeza, nenhuma conclamação à retomada da “normalidade” ou em defesa da democracia, nenhum pronunciamento destinado a mobilizar a população para defender a República e a Constituição. Saltitando no centro do ringue, o ex-presidente manteve-se sugando as energias do PT e da militância, momentaneamente iludida com a súbita recuperação do líder. Sem necessariamente planejar isso, Lula bloqueia a reformulação indispensável do PT e empurra boa parte da esquerda para o imobilismo.

Uma terceira razão é que Janot parece ter querido mostrar que tem bala na agulha e pode causar desconforto ao grupo de Temer, espalhando pregos e pedras pelo caminho presidencial. Flertou, assim, com a possibilidade de interferir na escolha de seu sucessor na PGR. Neste particular, a manobra não deu certo, o que não significa que não tenha sido tentada.

O jogo atual é complexo, complicado. Tem vários jogadores, regras cambiantes e muitos pedidos de tempo. Janot bate de um lado, Fachin e Marco Aurélio atiram de outro, o Legislativo cozinha em banho-maria ao passo que o Executivo faz o possível para subordinar os parlamentares. Todos, porém, brigam com todos, sem que haja uma lógica dominante. Os Poderes falam línguas diferentes e no interior de cada um deles há tudo, menos consenso ou dinâmicas colegiadas.

Janot integra uma ala do Judiciário e particularmente do Ministério Público. Não é Lava Jato, mas com ela comunga muitos ideais, como por exemplo o de encurralar os políticos e promover a “purificação” do país. À sua maneira, faz política em tempo integral, valendo-se dos ritos e da alegada imparcialidade da Justiça.

Janot não é Jano, mas no cargo que ocupa deveria sempre se guiar pelo deus romano, que tinha poder sobre os inícios e as mudanças, condição que o fazia dominar as portas, as passagens, as transições, o passado e o futuro (as duas faces de Jano). Ao não fazer isso, vai pondo mais lenha na fogueira que arde em Brasília, com o que imagina prolongar o desgaste de Temer e do sistema político.

Temer balança, mas não parece estar prestes a cair. A Lava Jato continua forte, mas não há garantias de que assim seguirá. Muitos são contra ela — contra sobretudo sua estratégia, sua ideologia moralizante e seus procedimentos —, na política, no Executivo, no Judiciário e até mesmo na opinião pública, em que pese a aparência de unanimidade que cerca a operação.

Enquanto isso, o desencanto cresce na população, que permanece na expectativa de que fatos novos apareçam e acendam uma luz no fim do túnel.