Marco Aurélio Nogueira: Lula, entre slogans, caravanas e estandartes
A tática da “fraude” e do Lula-estandarte contra as elites é ruim, mas serve para agitar. É um desdobramento da retórica do “golpe”, que já bateu no teto mas ainda circula por aí
O ano nem bem começou , mas já se sabe que janeiro será inteiramente tomado pelo julgamento de Lula em Porto Alegre, marcado para o dia 24.
Eleição sem Lula é fraude?
O slogan atiça, encapsulado pelo afã de fazer do ex-presidente o centro do processo político nacional e das eleições que se aproximam. Traz consigo uma tática voltada para preservar e reerguer o PT. Pode ser que funcione, pois em política não há nada propriamente líquido e certo. Mas o tiro também pode sair pela culatra e aprofundar a agonia petista, empurrando o partido para o gueto, longe do mundo da vida.
Eleição sem Lula não é fraude. Como não seria sem Ciro ou Marina, Alckmin, Manuela ou Boulos. Não é fraude porque processos eleitorais democráticos são disputas entre vários postulantes e o impedimento (a morte, uma doença, a desistência ou a prisão) de um deles não macula o processo inteiro. Só haveria fraude caso houvesse censuras e proibições atrozes, interferências estranhas ou manipulação desbragada dos resultados.
Mesmo quando manipuladas ou “controladas”, eleições podem exibir virtudes. Foi o que aconteceu, em certa medida, na pior fase da ditadura de 1964. Sabia-se que as eleições transcorriam em clima de exclusão, perseguição, repressão, censura e arbítrio, mas nem por isso os democratas deixaram de disputá-las. Exploraram as fissuras do regime, suas contradições, fazendo com que fossem aproveitados os espaços em que circulava algum oxigênio. O voto nulo e a luta armada foram derrotados. A democratização avançou. A ditadura ruiu.
Se vier a ser impedido, Lula o será por ter cometido crime de corrupção aos olhos da Justiça. Impedir que condenados disputem eleições não é fraude, mas, ao contrário, é valorizar as eleições, possibilitar que ocorram com maior paridade e limpeza.
Ah, mas Lula está sendo condenado sem provas! Vários anos depois de iniciadas as investigações, acreditar na inocência de Lula é acreditar em Papai Noel. Há quem acredite, evidentemente, mas os que defendem a tese da fraude não estão entre os crentes: agem em nome da exploração da figura de Lula, devidamente santificada. Para eles, pouco importa se Lula é ou não culpado. A ideia é carregá-lo como um estandarte, um “mito” que funcionaria para resgatar um projeto de poder que em algum momento esvaneceu.
Ah, mas não é só isso! O processo que investigou, julgou e condenou Lula estaria cheio de atropelos e desrespeitos, teria avançado de forma seletiva, com o único intuito de impedir que o ex-presidente volte a governar o país. A Justiça que o condena é a “Justiça do capital”, não a do “verdadeiro Estado democrático de direito”. O ex-presidente somente copiou o que todos os políticos brasileiros sempre fizeram: valeu-se das benesses do poder, dos expedientes de caixa 2, dos agrados dos poderosos, não muito mais que isso. Enriqueceu, é verdade, mas só depois de uma longa trajetória de suor e lágrimas. Enriquecer e promover a família, além do mais, não é crime. É o que se espera de todo cidadão responsável.
Lula não é mais nem menos inocente do que muitos outros políticos brasileiros. Integra uma classe que aprendeu a fazer política num sistema corrompido que terminou por formatá-la e devorá-la. Não é melhor nem pior. Seu prontuário é enorme, mas ele também tem méritos. Cumpriu uma função na vida nacional, sabe se mexer no terreno escorregadio da política, é pragmático, não liga para ideologias e topa qualquer acordo que o beneficie.
Poder-se-ia, portanto, atenuar as culpas de Lula, relativizá-las, distribui-las de maneira mais equilibrada. Por essa via, seria possível até mesmo livrá-lo da prisão eventual: passe-se um pano limpo na sujeira acumulada, celebre-se um “pacto” para que se comece a fazer política de outro modo e, com isso, recriem-se as bases e a cultura do sistema político. Com tudo o que tem a seu favor, Lula poderia ser um dos artífices dessa repactuação.
Nada disso, porém, é buscado pelos que falam em “fraude”. Ao se aproximar o julgamento em segunda instância, ameaçam invadir Porto Alegre com uma caravana de proporções bíblicas, integrada por ativistas de movimentos sociais, parlamentares e dirigentes petistas. A ideia é intimidar os juízes e mostrar o prestígio de Lula para a plateia.
Lula na prisão teria um efeito simbólico não desprezível: o de se ter um poderoso atrás das grades. Não muito mais do que isso. Lula, porém, é um poderoso de tipo especial: tem poder, sabe usá-lo e é ao mesmo tempo uma força popular, que fala ao coração de muitos brasileiros, dorme em seu imaginário. Não é uma reserva moral, mas um recurso político.
Ele sabe disso. A sua maneira, metamorfose ambulante, tem feito o possível para escapar do cerco em que se encontra. Fala contra os “golpistas”, mas promete aliar-se a eles e aos que estão “arrependidos”. Corteja as classes médias e o empresariado, apresenta-se como moderado, alguém que não é radical e aprecia o centro, alisa o MDB como se fosse seu bichinho de estimação, prometendo mundos e fundos caso venha a ser eleito. Combina tudo isso com uma dedicação extremada ao seu próprio mito (base de seu prestígio popular) e com a retórica indignada que compartilha com certas alas do PT.
Esticará a corda até o limite, abusando de todos os recursos jurídicos para escapar da condenação e da Ficha Limpa. Se não conseguir, tentará transferir seus trunfos para um substituto, do qual será a sombra. De um modo ou de outro, não ficará alijado da disputa. Ao contrário, irá protagonizá-la em posição de força.
Como então “fraude”?
Hoje já não é certo que Lula seja um candidato imbatível. Seu brilho não é tão intenso quanto antes. Sua força eleitoral depende do prolongamento da inoperância do campo democrático. Ele paga um preço pela trajetória que seguiu. Não pelos oito anos em que governou, mas pelo que veio depois e contou com sua aprovação. Não porque tenha sido “desconstruído” pela direita e sim porque não soube ser adequadamente construído pela esquerda. Afinal, o que ele pensa e propõe hoje, além da promessa de um retorno ao passado risonho dos anos de fartura? O que pensa e propõe seu partido?
A tática da “fraude” e do Lula-estandarte contra as elites é ruim, mas serve para agitar. É um desdobramento da retórica do “golpe”, que já bateu no teto mas ainda circula por aí.
No fundo, trata-se mesmo de agitação, não mais do que isso. A tática funciona como confissão de um partido que desistiu de disputar hegemonia (de dirigir as massas e disseminar valores democráticos), que optou por se dedicar a cuidar das próprias forças e a se recolher para lamber as próprias feridas. É uma escolha, com seus efeitos e consequências.
A insistência em fazer de Lula o seu plano A, de levá-lo como estandarte pelo país afora, de se recusar a buscar alternativas que passem por dentro da grande política, poderá fazer do PT o instrumento de que necessitam as direitas para encaixotar a esquerda e despachá-la para o espaço.
Marco Aurélio Nogueira: Anitta e os corpos que fazem política
Muito auê e muita discussão sobre o “Vai malandra” da Anitta. Como sempre, tribos se formam e se engalfinham numa guerra generalizada. O clip está bombando, o que excita ainda mais.
Há nele muito de um factoide típico da nossa era líquida, uma torção sofrida pela cultura pop, que sempre soube explorar/representar/expressar o que repousa no imaginário popular, escondido nas camadas mais profundas. Anitta parece querer comprar essa briga. Uns veem nisso mais méritos que deméritos, falam que a cantora está “empoderando” as mulheres e ressignificando as fantasias masculinas, que são por ela submetidas. Bundas com celulite e poses lascivas ostensivamente debochadas seriam veículos para a exposição plena de uma malandra que conhece os caminhos e sabe se impor. A lascívia desbragada, fake, caricata, ocupa toda a duração do clip.
No clip, Anitta circula pela periferia como se fosse sua casa. Apropria-se dos trejeitos, das práticas atuais, da fita isolante, da motoca, da laje, do funk provocador. Incorpora a diversidade da favela, a etária, a física, a de gênero. Os cenários e muitos figurantes são da comunidade do Vidigal. Finge-se de negra, incorporando tranças e pele escura numa fantasia despojada, que não reflete de verdade a negritude. Parece debochar dela também, como se quisesse dar à sua própria negritude e à sua própria condição periférica uma distância prudente, que lhe permite fazer precisamente o deboche. Tem sido assim não só em “Vai malandra”. Em sua carreira, a cantora ora escolhe parecer negra, ora circula livremente como branca, transformando a cor (uma marca social) num atributo qualquer, menor, circunstancial e “usável”. Teria havido uma intenção de crítica? Até pode ser, mas Anitta não é uma militante, muito menos das causas negras.
Há feministas, intelectuais e ativistas de esquerda ovacionando Anitta pelo clip. Ele é grosseiro esteticamente, não há melodia, a letra é paupérrima. Tudo é intencional, não se trata de uma falha de produção ou de falta de recursos. O jogo de imagens insinua, mas pouco esclarece. Não convida a que se mudem comportamentos, antes incentiva a que se disseminem os que estão dados ou em constituição. Não é pedagógico. Mas questiona, provoca, sugere.
O carro-chefe dos elogios é a ideia de que se está reiterando que o corpo feminino é propriedade das mulheres, que com ele fazem o que antes era privilégio masculino. Bundas, peitos, coxas são convertidos em instrumentos de afirmação, um feminismo de novo tipo, mais “natural” e menos doutrinário, impulsionado pelas mulheres do funk. Um feminismo deselitizado, vindo de baixo, com a cara da periferia, movido a corpos carregados de desejo, gozo e prazer, com os quais se põem em xeque tantas cristalizações tradicionais, racistas e machistas.
Anitta seria uma das musas dessa onda feminista fora de controle, que vai criando uma cultura própria e de alguma maneira “empoderando” quem não se via como sujeito. Corpos que fazem política, proclamam independência e transgridem.
Algo para se pensar. É um Brasil que está sendo narrado, pedindo passagem. Não pode ser tratado como se fosse de Marte.
O clip é esperto. Deve ajudar na carreira internacional de Anitta, fazendo com que ela se ligue a uma pegada mais “bruta”, menos pop, mais trash, mais funk de favela, brasileiro. Uma aposta, a ser verificada à frente.
Anitta sabe onde pisa. Não é de modo algum uma tonta. Tem talento e garra, parece embalada por bons patrocinadores. Está entrando no circuito mundial, acontecendo. Faz aquilo que repercute e a projeta. Agrada multidões, pois dialoga com suas fantasias e oferece um produto bem-feito. Tem gás. Não é uma improvisadora. Seu time e seu timing têm feito com que se aperfeiçoe e fixe uma imagem artística de mulher com opinião e vontade própria.
Não é pouca coisa.
Marco Aurélio Nogueira: A polarização está na política
Nossos políticos se dividiram em tribos sem identidade, cada qual com suas taras
O Brasil não é um país polarizado. No chão duro da vida, há mais consenso que dissenso. Diferenças de opinião e de visões do mundo convivem lado a lado, mas a base é uma só.
Todos querem viver em paz, tocar a vida, criar os filhos, trabalhar e se divertir. Torcem para que surjam governos vocacionados para fazer as coisas melhorarem, na economia, no emprego, no cotidiano. Vive-se na expectativa de que o Brasil consiga deixar de ser injusto e desigual, ainda que um conformismo fatalista ande de mãos dadas com o ceticismo e com uma enorme dificuldade de saber que providências tomar para que a desigualdade desapareça ou ao menos seja atenuada a ponto de curar a chaga que mantém 50 milhões de brasileiros na miséria, enquanto 30% da renda se concentra nas mãos de apenas 1% dos habitantes do País.
A maioria despreza a corrupção. Mas são muitos os que pensam que ela é intrínseca aos políticos e aos poderosos. Os brasileiros aprenderam a ver o corrupto como símbolo de um país que não consegue sair do lugar, onde a lei não vale para todos e o “malfeito” nasce como erva daninha adubada pela arrogância e pela certeza de impunidade dos que têm poder. A relação dos brasileiros com a corrupção é confusa. Há quem aceite o “rouba, mas faz” e tenha pena dos corruptos “bonzinhos” vitimizados por terceiros. É crescente, porém, o número de pessoas que deploram a inocência fingida dos acusados. Aplaudem por isso intervenções como a Lava Jato, que pela primeira vez está pondo na cadeia gente que se achava inatingível, acima do bem e do mal.
Todos sabem que estamos carentes de bons serviços públicos, que a educação e a saúde deixam a desejar, direitos são desrespeitados a céu aberto, o Estado não cumpre corretamente suas obrigações. Milhões sentem na pele o efeito dos preconceitos, da humilhação, da insegurança, da violência policial. Atribuem tais desgraças tanto à incompetência dos governos quanto à “certeza” de que os governos são conduzidos com os olhos nos mais ricos e privilegiados.
O brasileiro médio tem fé e esperança. Vê o Estado como provedor geral e protetor. Por essa via, transfere sua expectativa para políticos habilidosos em explorar a ingenuidade popular. Não entende por que a elite nacional se mostra cega e indiferente à miséria e à pobreza. Deixa-se seduzir por quem se anuncia como “salvador”.
A população brasileira não está em guerra consigo mesmo. Assiste, entediada, às disputas no Parlamento, entre a Justiça e a política, entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, como se fossem capítulos de uma novela sem data para acabar. Passam-se os dias, os personagens continuam os mesmos, como se não envelhecessem e não se recusassem a sair de cena.
O desentendimento entre os brasileiros é fruto do estupor de ver o País cheio de políticos que não cumprem seu papel e, ao longo das últimas décadas, perderam qualidade, alienaram-se das mudanças sociais, criaram atritos impregnados de ódio retórico. Foram se desmoralizando e, ao mesmo tempo, forçando a população a digerir a “raiva” e a “combatividade” manifestadas nos embates eleitorais.
A linguagem do ódio – cultivada sobretudo pelos extremos da esquerda e da direita – atiçou o conflito social, fazendo-o derivar para a baixaria cívica e a ignorância política. Basta atentar para as intervenções apopléticas que infestam as redes sociais. Vinda de uma esquerda que não sabe como agir longe do poder, tal postura alimenta uma direita grosseira e violenta repleta de convicções regressistas. E vice-versa.
As consequências estão aí. A intolerância leva à incompreensão do valor das alianças e negociações. Gente de esquerda radicaliza a pretexto de recusar a “conciliação”. O próprio PT, campeão das últimas “conciliações”, prega que haverá uma “rebelião popular” caso Lula seja condenado no dia 24 de janeiro. Ameaça com a “desobediência civil”, como se as massas estivessem furiosas e prontas para a “resistência”.
Fala em conspiração das elites e do Judiciário, apostando numa saída “nacional-popular” que iria além das regras do jogo democrático e sanearia o País.
Estamos pagando o preço da opção feita pelos políticos de criar na sociedade a percepção de que tudo se resolveria quando o lado A sobrepujasse o lado B. Descobriram o fantasma do neoliberalismo, a perversão do “comunismo”, a maldade das “elites brancas e endinheiradas”, a fantasia paradisíaca e alienante do presidente “igualzinho a você” que distribuiria dinheiro e benesses a bel-prazer.
Tanto fizeram que cresceu a sensação de que o País está cindido em dois polos incomunicáveis. Trocaram o fundamental pelo perfunctório, o trabalho político pertinaz pela agitação irresponsável, o reformismo progressivo pela estridência de promessas fáceis, o contato virtuoso com a população pelo jogo cínico dos bastidores e pela conclamação demagógica da “rebelião”.
Nossos políticos se dividiram em tribos sem identidade, cada qual com seu credo, suas taras e suas manias. Bloquearam os caminhos da sociedade. Nessa operação, mataram a serenidade e a inteligência política, levando consigo os mediadores, que constroem soluções.
A polarização criada pelos políticos continua ativa. Voltará com tudo nas eleições de 2018, que mais uma vez não nos apresentarão polos autênticos, substanciosos, mas tão somente uma caricatura deles.
Assim como em outros momentos da História recente, caberá aos brasileiros corrigir os desmandos e a mediocridade de seus políticos. Chamando-os às falas, quem sabe varrendo parte deles do mapa, quem sabe corrigindo o rumo dos que ainda terão serventia. Para tanto a sociedade terá de afirmar a unidade que lhe é própria, valorizando a democracia e as garantias constitucionais.
Não dá para saber quanto disso será alcançado em 2018.
Bom ano novo para todos.
Marco Aurélio Nogueira: Brincando com fogo
A discussão está posta já faz tempo. As paixões, excitadas ao extremo, falam mais alto que qualquer racionalidade ou sensatez. Os políticos fogem do tema como o diabo da cruz. O governo, por sua vez, entra no jogo do toma-lá-dá-cá, o que gera na opinião pública a sensação de que o problema será tratado como moeda de troca para sabe-se lá o quê.
Foi assim com FHC, com Lula e Dilma. Está sendo assim com Temer. Se nada for feito, será assim com o próximo presidente.
Estamos brincando com fogo na discussão sobre a reforma da Previdência.
Antes de tudo porque ela afeta milhões de brasileiros e pode ter efeito devastador sobre os mais pobres. Basta errar a mão um pouquinho.
Mas também porque é um fato que a expansão das despesas – provocada tanto pela multiplicação inercial dos beneficiários quanto pelo envelhecimento da população – pode comprometer seriamente o que há de Estado de Bem-Estar e arrasar a rede de proteção social no país.
Uma reforma faz-se necessária no mínimo por isso. Se bem calibrada, pode ser um fator de redução da desigualdade, dos privilégios e da injustiça social em que vivemos.
Há um alegado e controvertido déficit. Mas o problema principal é a disparidade entre os termos a partir dos quais são recebidas e usufruídas as distintas pensões e aposentadorias.
Não dá para simplesmente começar do zero e redesenhar de uma só vez todo o sistema. Será preciso não só considerar os “direitos adquiridos” como fazer os devidos descontos para não prejudicar ainda mais os já prejudicados.
É difícil compreender porque há tanta resistência a que se alterem as idades mínimas e o tempo de contribuição. Além de ser um ajuste pequeno, não produzirá prejuízo maior se vier acompanhado da fixação de algum tipo de bônus para quem começou a trabalhar mais cedo ou o fez em condições insalubres, por exemplo.
Outro ponto diz respeito à resistência ainda mais encarniçada para que se mexa na esfera do que vem sendo chamado de “privilégios”, que engloba as aposentadorias especiais, o RPPS-Regime Próprio de Previdência dos Servidores, específico dos funcionários públicos, civis e militares, dos três Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios.
É compreensível que os servidores aí envolvidos se inquietem e sejam contrários a uma reforma que venha a afetar o que consideram ser as regras com as quais assinaram os respectivos contratos de trabalho. Mas não é compreensível que não se disponham a discutir o problema. Afinal, a convivência em paralelo do RPPS com Regime Geral de Previdência Social-RGPS cria como que dois países, compostos por pessoas com direitos distintos. O paralelismo pode ter sido justificável nos primórdios da organização da Administração Pública brasileira, mas hoje já não é mais.
O correto é tomar providências para que tal disparidade vá sendo reduzida aos poucos até desaparecer.
Em recente artigo publicado na revista eletrônica Será?, a economista Helga Hoffmannenfatiza, com argumentação clara e ponderada, que o regime de pensões e aposentadorias no Brasil é injusto e contribui para a desigualdade, coisa já conhecida mas quase nunca enfrentada a sério. Não se trata de condenar as aposentadorias elevadas, mas sim de compreender que elas somente se convertem em “privilégios” quando são subsidiadas pelos mais pobres. É nesse ponto que nos encontramos.
Hoffmann explica como o funcionamento atual do sistema previdenciário no Brasil faz essa transferência dos mais pobres para os mais ricos.
“Segundo dados de 2016, o déficit do RGPS foi de R$ 150 bilhões, enquanto o do RPPS foi R$71 bilhões. Só que o RGPS paga benefícios a quase 29 milhões de pessoas, enquanto o RPPS banca menos de 1 milhão de aposentadorias e pensões. Grosso modo, o subsídio da sociedade brasileira à aposentadoria de seu funcionalismo é de R$6 mil por benefício/mês, enquanto é de R$ 430 por benefício/mês o subsídio aos aposentados do setor privado. Como em 2016 o valor médio do benefício do RPPS foi R$9.400 e do RGPS foi R$1.450, vemos que a transferência é proporcionalmente maior no caso das aposentadorias do funcionalismo público. Enquanto no caso do INSS a contribuição recolhida cobre cerca de 70% do benefício, no caso do funcionalismo ela não chega nem a cobrir 40% do benefício”.
Ou seja, os impostos são empregados para subsidiar mais o regime de aposentadorias especiais do que o outro. Nas palavras da economista, “a injustiça maior ocorre nesse processo de transferência para cobertura do rombo, pois este é pago pela sociedade em seu conjunto”.
Além disso, os elevados gastos com benefícios previdenciários e cobertura dos rombos reduzem o espaço para outras despesas públicas, como o custeio de saúde, educação, segurança, mobilidade urbana, infraestrutura e saneamento básico.
Uma reforma terá de ser inevitavelmente feita. Agora ou mais à frente. Não somente por causa de déficits e rombos, mas por uma questão de justiça social. Quanto mais tempo levar, mais dolorosa ficará. O país não aguentará ver sua população crescer em velocidade muito menor do que a população de aposentados. Será bom que todos se deem conta disso.
Aumentar a idade mínima não é um castigo, mas uma tentativa de ampliar a sintonia com as mudanças demográficas, que promovem o envelhecimento da população e aumentam a proporção dos inativos. Idem com o tempo de contribuição. Será preciso também, em algum momento, pôr fim às aposentadorias especiais, como a das mulheres, dos professores e dos policiais, a partir do reconhecimento de que não funciona compensar erros de política salarial com aposentadoria mais benevolente. Seria mais correto pagar melhor os professores do que acenar com uma aposentadoria generosa no final da carreira, justamente quando eles se tornam melhores.
O fato é que a reforma da previdência – assim como outras que produzem impacto nos gastos públicos – expressa com clareza meridiana a necessidade que se tem no país de um novo “pacto social”, entendido como a constituição de uma plataforma política e legal na qual os brasileiros se reconheçam como parceiros de um mesmo país e delineiem um futuro comum. Gastos públicos precisam ser tratados como elementos geradores de solidariedade e não como simples contabilidade fiscal. É disso que se trata quando se fala em “ajuste fiscal”. Estados desajustados não geram solidariedade.
Resistências dedicadas a defender privilégios que somente servem, no fundo, para proteger os que já estão protegidos não levam a nenhum tipo de “pacto”.
Nada disso deveria ser associado à “reforma do Temer”. Até porque ela, feita como está sendo, destina-se a sinalizar algo para os investidores e não integra nenhum programa de recomposição social. É mais simbólica que efetiva. Para se tornar palatável e ter chances de aprovação, a proposta do governo foi desidratada. Afeta parte pequena dos trabalhadores e não põe ordem no sistema. Melhor assim, mas desde que se discuta a fundo a questão durante o processo eleitoral que se avizinha.
Precisamos ir além. Pôr na mesa o que imaginamos ser uma “boa e justa sociedade” e ver de que maneira podemos nos aproximar dela. Não há reformas previdenciárias que possam ser feitas sem que alguém se sinta ou seja prejudicado. Mas há como agir para que os eventuais prejuízos sejam distribuídos com algum critério de justiça e igualdade.
Deixar que o ônus continue caindo sobre os mais pobres e que o sistema fique inviável a ponto de comprometer as gerações futuras é uma demonstração de incapacidade política e cegueira cívica. Revela uma sociedade sem disposição para tomar decisões que digam respeito ao que ela imagina dever ser um padrão de solidariedade entre classes, gerações e profissões.
* Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política da Unesp
Marco Aurélio Nogueira: A unidade difícil e os dilemas do PSDB
Unidade política é sempre algo dinâmico, que depende de gestos permanentes de aproximação e entendimento. Pisa-se em ovos. Quando se dá um passo, no momento seguinte tudo parece desmoronar e é preciso dar novos passos ou até mesmo começar do zero. Em partidos políticos, o tema é crucial.
Partidos políticos são organizações que necessitam de unidade, sem a qual respiram com dificuldade. Podem consegui-la de modo burocrático, com a imposição de diretrizes da cúpula sobre as bases e a institucionalização do silêncio interno. E podem consegui-la de modo democrático, mediante o aprofundamento de discussões e a busca coletiva por pontos de convergência, que vão sendo assimilados pelas direções até um ponto em que viram pensamento comum, diretrizes.
Quando são substantivas, divergências não se suprimem por decreto nem por conclamações unitaristas. Chegam mesmo a ser produtivas, na medida em que forçam a que a discussão avance e as posições se esclareçam. Quando são pontuais, precisam ser processadas à base de muitas interações, concessões e boa vontade das partes. E quando refletem tão-somente a busca por poder, espaço e controle tendem a ser desagregadoras e a requerer esforços que muitas vezes não são suficientes para dar conta do recado, levando a mais tensão e desagregação.
O grande problema é que quase sempre essas divergências se misturam. A dimensão substantiva se confunde com a pontual e ambas são requalificadas pela luta por poder. Fica difícil separar uma da outra, que se retroalimentam. Nesse ponto, a crise interna se agudiza e ameaça fazer sangrar o organismo todo.
Dias após ensaiar a suspensão de uma luta interna que lhe ameaçava corroer as entranhas e paralisá-lo, o PSDB vê em uma nova zona de litígio, dessa vez em torno do programa partidário. Nada mais, nada menos. Se a convergência entre os principais interessados em comandar a legenda sugeria a abertura de uma fase proativa e a recuperação do tempo perdido, tudo se desfez com rapidez. O cenário voltou a ficar turbulento a indicar que as coisas não serão fáceis para os tucanos, sobretudo se for do interesse deles voltar ao primeiríssimo plano da política nacional.
Diante de um texto provisório (“Gente em Primeiro Lugar: o Brasil que queremos”) apresentado pelo Instituto Teotônio Vilela (ITV) , braço de formulação política da legenda, como ponto de partida para a definitiva elaboração programática do partido, as reações foram tão intensas e furibundas que a casa tremeu de cima a baixo. Tucanos de alta plumagem, alguns quadros históricos e intelectuais de envergadura disseram ter sabido do documento pelos jornais. Não teriam sido consultados nem convidados para agregar sugestões. A acusação principal é que o texto empurra o partido para trás, amontoando “platitudes” que em nada ajudam e não definem o que deveria ser uma posição mais aguerrida e arejada, mantendo o PSDB em cima do muro e agarrado a uma agenda ultrapassada. Os defensores do texto retrucaram afirmando que se trata justamente de um material preliminar, para ser discutido, esmiuçado e digerido.
O centro da divergência é duplo. Os críticos, por um lado, alegam que o partido não estaria deixando clara sua posição sobre reformas destinadas a produzir racionalidade e maior equilíbrio fiscal, como a da previdência. Por outro, não deixaria clara sua postura diante do complicadíssimo tema do Estado, se mais liberal ou mais “desenvolvimentista”. O documento permaneceria numa zona cinzenta em que o Estado necessário surge não como “mínimo” ou máximo, mas como “musculoso”, metáfora que de fato pouco diz. Assim como o slogan recuperado pelo texto, o do “choque de capitalismo”.
Diante da celeuma, a constatação a que é que o PSDB encontra-se numa encruzilhada dilemática.
Numa das pistas, perfila-se a reiteração da tradição socialdemocrática, agarrada à ideia de um Estado regulador ainda que não dilatado, bem como a políticas pró-social não necessariamente refratárias ao mercado mas atentas ao quadro de pobreza e desigualdade. Por aqui trafega também uma atenção dedicada à competição eleitoral de 2018, com a busca de certa distância em relação ao ritmo do governo Temer e a seus efeitos no eleitorado.
Na outra pista, afirmam-se a ênfase no livre-mercado, uma redução firme do papel do Estado, maior ousadia em privatizações e uma preocupação em colar o partido aos novos termos da economia e da sociedade líquida moderna. Trafegam aqui os que defendem uma refundação vigorosa do partido, que o obrigue a “descer do muro” e a rever o próprio modo de ser socialdemocrático.
Não são pistas que se excluam, até porque estão interligadas por um mesmo respeito ao liberalismo político e à democracia. Mas, se tiverem de ser compostas em uma unidade partidária efetiva, muito trabalho terá de ser despendido, com concessões mútuas e uma idêntica disposição de fazer com que o PSDB se reponha na vida nacional. Sem isso, será difícil.
Marco Aurélio Nogueira: Huck, Alckmin e a política
Com o artigo de Huck e o acordo que põe Alckmin na presidência do PSDB, a política poderá entrar em outra etapa
O Estado de S. Paulo - 27 Novembro 2017 | 18h57
Dia movimentado na política nacional.
Começou com o artigo em que Luciano Huck deixa claro que não será candidato a Presidente, embora pretenda manter uma agenda cívica e política. Muita gente criticou, em nome do que seria uma falsidade do apresentador, areia usada para encobrir alguns maus passos que ele teria dado ao longo de sua trajetória recente. As suas seriam palavras lançadas ao vento, prontas para serem consumidas por quem quer que seja. As redes sociais foram invadidas por vozes indignadas, algumas intolerantes e outras simplesmente contrárias ao que poderia estar associado ao projeto Huck.
No artigo em questão, ele deixou algumas pontas soltas e manteve um certo suspense sobre os rumos que tomará. Houve mesmo quem viu no texto uma manobra “sebastianista”, na linha “se é para o bem de todos e interesse geral da Nação, digo ao povo que volto”. Parte do jogo. O texto, muito bem redigido, contém também uma mensagem interessante, especialmente por estar sendo emitida por uma celebridade como Huck. É que o artigo faz a devida valorização da política e da atividade política, podendo assim auxiliar a que se reduza o preconceito que parte da sociedade tem em relação a isso. Ajuda muito, portanto, mostrando que há muitos espaços a serem explorados para que se criem verdadeiras pontes democráticas na sociedade, que interliguem “velhos” e “novos”, política tradicional e momentos cívicos.
Fico imaginando o efeito que teria a seguinte passagem do artigo caso fosse levada para o “Caldeirão do Huck”, e repetida ao vivo e a cores: “não há nada mais importante do que tomarmos consciência da importância da política e de que precisamos nos mover concretamente na direção da atuação incisiva, para que não sejamos mais vítimas passivas e manobráveis de gente desonesta, sem caráter, despreparada e incapaz de entender o conceito básico da interdependência ou de pensar no coletivo. A hora é de trabalhar por soluções coletivas inteligentes e inovadoras para o país, e não de focar o próprio umbigo ou de alimentar polêmicas pueris e gritas sem sentido”.
Depois do artigo, abre-se um outro momento, mais rico e promissor, na política brasileira. Claro, sempre a se ver. Embora a candidatura de Huck não esteja mais posta na mesa, o futuro a Deus pertence e o “centro democrático” ainda não encorpou. Os mares que atazanavam o pobre Ulysses usado por Huck como imagem continuam a atazanar nós outros seres viventes.
O mesmo deve ser dito do anúncio do acordo que praticamente celebrou a ida do governador Geraldo Alckmin para a presidência do PSDB. O partido vivia em um estado de turbulência interna jamais visto em sua história. Os tucanos sempre se bicaram uns aos outros, especialmente seus caciques. Perderam muitas oportunidades por causa disso. Na fase atual, corriam o risco de perder até mesmo o protagonismo político e a força eleitoral em 2018. As luzes amarelas piscaram forte e devem ter ajudado a que um acordo fosse alcançado. Se o armistício for levado a sério, todos ganharão com ele. Até os que não são tucanos, pois a democracia ganha quando os partidos principais se revigoram. É de se esperar que algo assim ocorra no PSDB.
Com o equacionamento da questão da presidência e a suspensão dos atritos internos mais visíveis, o PSDB poderá se dedicar a dois outros movimentos igualmente estratégicos. Um, será o de formular uma plataforma consistente em termos doutrinários, anexando a ela uma agenda nacional com sensibilidade social, que pelo menos honre a tradição socialdemocrática que o partido carrega no nome. Tal passo poderá começar a ser dado já na Convenção Nacional marcada para o início de dezembro. Seria uma espécie de cartão de visitas de Alckmin.
O segundo movimento é ainda mais importante. Vai para fora, para além das fronteiras tucanas. Seria o de se projetar como artífice de uma articulação democrática que traga a marca da renovação política e também esteja impregnada de sensibilidade social. Afinal, nada está decidido nesse campo e muita poeira ainda nele terá lugar.
Se o PSDB se dedicar a caminhar nessa direção, poderemos estar ingressando em outra etapa, na qual todos os cálculos terão de ser refeitos.
Olhos atentos, portanto, para o que farão os tucanos a partir de agora.
Marco Aurélio Nogueira: Um centro inclinado à esquerda
Ele poderá organizar uma agenda com sensibilidade social e disputar as multidões. Pouco se faz para enfrentar esse quadro desagregador, que se vai naturalizando. Fala-se muito em “centro democrático”, mas ele não se materializa, com o que não se introduz mais racionalidade na competição política nem se oferecem ideias e propostas substantivas claras aos cidadãos.
A democracia alimenta-se do conflito. Polarizações não somente são inevitáveis, como ajudam a manter a temperatura política no limite do suportável e a explicitar diferenças que pulsam no terreno social.
Acontece que uma multiplicidade de polos não é uma virtude. Pode mesmo funcionar para impedir a plena manifestação dos polos “verdadeiros”, aqueles que carregam no ventre os interesses fundamentais da sociedade, as contradições principais. Divisões artificiais e pouca disposição para o diálogo terminam por criar campos ideológicos antípodas, soltos no ar, sem pé na realidade. Parte-se da ideia de que a sociedade é mais dividida do que se vê, e com isso se criam divisões por sobre divisões. A intolerância cresce, as tensões tornam-se insuperáveis e provocam rupturas. Esfuma-se assim o que poderia haver de virtude nas polarizações.
O Brasil dos últimos anos esteve condicionado pela polarização PT x PSDB. Tamanha foi sua força que a sociedade se deixou encantar com o que se anunciou como sendo duas matrizes de governança e de projeto nacional. Nem petistas nem tucanos, porém, conseguiram se firmar como forças dotadas de densidade programática e vocação hegemônica. Foram se desconstruindo ao longo do tempo e chegaram hoje ao ponto mais baixo de sua trajetória. A sociedade, por sua vez, foi-se saturando da reiteração dessa polarização, roubando-lhe chances de reposição.
Polarizações podem funcionar como fatores de organização, nos quais o antagonismo qualifica o quadro geral. Nem sempre os polos estão fechados para entendimentos e composições. Podem conviver no interior de polos maiores e convergir para um patamar comum. É o segredo da unidade democrática, que é feita de soldagens dialógicas, e não impositivas, entre correntes distintas.
A política sofre quando não dispõe de patamares unificadores, que possibilitem o diálogo entre campos distintos. Afasta-se dos cidadãos, assiste à apresentação de propostas diversionistas e ao surgimento de candidaturas voluntaristas ou regressistas.
No Brasil atual, as forças democráticas enfrentam dificuldades para romper os círculos que estreitam sua movimentação e impedem sua reposição vigorosa na cena nacional. Precisam recusar o papel subalterno a que foram relegadas. Devem contestar os ataques da direita jurássica, confrontar a ingenuidade social e problematizar a ideia de que a solução passaria por um condottiere acima do bem e do mal, apresentando em contrapartida uma renovada ideia de País e uma agenda nacional inclusiva.
A esquerda democrática cumpre um papel nessa operação. Um “centro” sem ela terá reduzida potência reformadora e tenderá a ser hegemonizado pelo conservadorismo. Um centro democrático inteligentemente inclinado para a esquerda, por sua vez, poderá organizar uma agenda com sensibilidade social e disputar as multidões.
Uma esquerda democrática não é “inimiga do mercado”: seu anticapitalismo é realista, respeita a correlação de forças e apoia-se numa teoria social que se dedica a compreender as novas formas do capitalismo, da luta de classes, do modo de vida, do mundo do trabalho e do emprego. Seu eixo é a regulação política do sistema econômico, de modo a que se reduzam suas incongruências e sua capacidade de produzir desigualdades.
Mas essa esquerda aprendeu que também é preciso regular e controlar o Estado, de modo a fazê-lo atuar em consonância com as expectativas de crescimento econômico e de justiça social, sem se comprometer com políticas de gasto público desprovidas de “responsabilidade fiscal”. Incorporou os valores do liberalismo político e da democracia progressiva, com os quais defende a necessidade de um reformismo gradual aberto para a justiça social, os direitos e a modificação das estruturas sociais que produzem desigualdade.
Um centro que se componha a partir do liberalismo político precisa assimilar a generosidade democrática e social da esquerda. Num país como o Brasil, aliás, somente assim poderá cumprir uma função progressista e preparar a pista para que o País derrote seus piores inimigos: a desigualdade, a injustiça, o crescimento não sustentável, a corrupção sistêmica, o desrespeito, as discriminações que vitimizam pobres, negros, pardos, índios, homoafetivos e mulheres.
Concebido como plataforma suprapartidária integrada por diferentes formas de pensar – um permanente compósito de conflito e consenso –, tal centro poderia organizar a parte mais ativa da sociedade, hoje afastada da política, mas interessada em fiscalizar os governos e que necessita, por isso mesmo, das práticas e dos valores que a esquerda democrática cultua.
A construção requer habilidades artesanais raras, foco no fundamental, respeito à diversidade, tolerância e sabedoria política para administrar interesses e modular o tempo. Necessita de lideranças, mas não de um líder todo-poderoso. Precisa contar com o desprendimento dos partidos, especialmente dos maiores, que costumam olhar as eleições como uma “oportunidade de negócios”, não como uma oportunidade política, organizacional. Por isso será preciso haver engajamento e pressão cívica, social, algo que, de resto, também precisa ser construído.
O “centro democrático” não cairá do céu. Depende de muito empenho e determinação. Mas precisa ser martelado desde logo, para ter chances de produzir a indispensável convicção política e social.
Marco Aurélio Nogueira: Precisamos falar sobre o Huck
Pesquisa Barômetro Político Estadão-Ipsos divulgada nesta sexta-feira (23) evidenciou o que se sabia: Luciano Huck é uma figura popular e goza de uma imagem positiva junto à opinião pública brasileira. A aprovação ao seu apresentou um salto de 17 pontos porcentuais desde setembro, passando de 43% para 60%. Já a desaprovação caiu de 40% para 32% no mesmo período. Deixou Lula comendo poeira.
No universo mais propriamente político, porém, a desconfiança é grande, a crítica se espalha, corrosiva. Como assim, Luciano Huck candidato a presidente?
Ele vem embalado pela ideia do novo em política, algo sempre controvertido e sujeito a muitas ponderações. Novo ou novidade? Algo novo, em política, não se apoia em currículo, fama ou visibilidade, mas em ideias, propostas e articulação, de modo inclusive a que se façam as devidas ligações com o que há de “velho” na vida.
Os outsiders sofrem vetos generalizados e, em geral, têm vida curta. Dificilmente dão certo, ate porque não se caracterizam por possuir dotes organizadores expressivos, conhecimento dos ritmos da vida pública e paciência para contornar obstáculos, estender-se em negociações demoradas, engolir sapos e cascáveis. Ou seja, são estranhos no ninho e tendem a ser forçados a um aprendizado longo. A ideia de carreira política cabe aqui: não se começa por cima, mas por baixo e pelas margens. Não é preciso ter sido vereador ou deputado para postular uma candidatura presidencial, mas o manual do bom-senso diz que tal experiência funciona como uma espécie de vestibular, de preparatório, um recurso que ajudará mais à frente.
Outsiders dificilmente entram de forma triunfal no primeiro plano da política. Há exceções, claro. Lula não fez carreira e era um outsider quando enfrentou Collor em 1989, outro que só não era um estranho no ninho porque vinha de família entranhada na política. Lula talvez tenha perdido justamente por ser um outsider. Tentou ser deputado, foi eleito mas nada fez com o mandato, foi um fiasco. Seu vestibular foi a vida sindical. Dilma foi inventada por Lula, mas não era uma estranha no ninho. Não tinha talentos especiais, nem sequer currículo ou visibilidade, mas esteve sempre nas proximidades do poder, conhecia alguns dos caminhos.
Ah, mas há Emmanuel Macron! Nada disso. Ele pisou num longo terreno antes de se lançar candidato. Foi ministro, conviveu com políticos e governos, aprendeu um monte de coisas. Venceu não porque era “novo”, mas porque soube perceber certos sinais emitidos pela vida social francesa e os incorporou a uma linguagem política adequada, desconstruindo os grandes partidos e ligando-se aos jovens e aos bolsões de novidade socioeconômica que passaram a pulsar com mais força nas últimas décadas.
Os que vêm patrocinando o projeto Huck, como o deputado Roberto Freire (PPS), por exemplo, têm sido criticados por estarem promovendo a ascensão de um “outsider do centro”, como escreveu Demétrio Magnoli na Folha. São vistos como oportunistas, que usam Huck como veículo de marketing, na falta de melhores opções, um expediente para dar vida a uma coalizão de centro que funcionaria como fator de superação da polarização Lula-Bolsonaro.
A crítica é recorrente: Huck é um globeleza, um cara treinado para cortejar e iludir as massas, que mergulham em seu caldeirão como moscas na sopa. Não seria mais que isso e, portanto, não teria méritos para postular nada, muito menos a Presidência.
Nessa avalanche crítica, não se procura saber o lado do Huck, que pouco fala e não se expõe. O que lhe estaria a passar pela cabeça? Vislumbra a campanha presidencial como uma aventura, uma “oportunidade de negócios”, ou carrega no peito uma sincera preocupação com a situação nacional, dispondo-se a usar a que tem de visibilidade e prestígio televisivo para impulsionar uma renovação política que muitos reputam fundamental?
Não se trata de avaliar o curriculum vitae de Huck, seus diplomas, as escolas que frequentou, a família intelectual, as iniciativas filantrópicas e o engajamento com movimentos cívicos de ultima geração. Tampouco faz sentido perguntar se se trata de uma pessoa de direita, centro ou esquerda.
Currículos desse tipo pesam pouquíssimo na política prática. O que importa mesmo é a intenção, o projeto, o arco de forças. De resto, sabe-se bem que prestígio e visibilidade nem sempre se traduzem em votos.
É aí que entram Roberto Freire e aqueles que, dentro ou fora do PPS, dão oxigênio para Luciano Huck. Tais articuladores representam a política tradicional e de fato estão em busca de alguma opção que tenha brilho e força suficientes para furar essa verdadeira muralha da China que cerca a política nacional, formando um recinto blindado que protege suspeitos, investigados, gente pouco qualificada, mas que conhece o caminho das pedras, um recinto que tritura, enquadra e pasteuriza tudo o que nele respira. Não se trata de uma terceira via entre Lula e Bolsonaro, mas de uma articulação que dê sustentação a um programa mais ousado de governo nacional e promova algum tipo de “limpeza”.
Implodir essa muralha é sonho de muitos brasileiros, cansados de verem sempre os mesmos fazerem sempre as mesmas coisas, indiferentes seja ao clamor da massa pobre e excluída, seja às expectativas políticas, morais e culturais dos setores mais “modernos”.
Vista por esse ângulo, a iniciativa de Roberto Freire merece mais aplausos do que vaias. Impulsionada pela perplexidade geral, ela contém ao menos uma sensibilidade, uma percepção de que é preciso problematizar o coro dos contentes por meio de articulações que se façam de fora para dentro.
O problema é que a iniciativa não responde ao fundamental. Qual seu propósito: uma jogada de marketing para se ganhar tempo? Por que justamente Huck? Seria ele representativo dos novos movimentos cívicos que vocalizam um efetivo desejo de mudança? Não seria mais adequado trabalhar para que esses novos movimentos se reúnam às formas tradicionais, criando condições para uma fusão que seja impregnada por novos projetos e ideias? Um centro democrático encorpado só teria a ganhar com isso.
Erguer pontes que tragam a “nova sociedade” para a política é uma tarefa essencial nos dias atuais. Afinal, o Brasil tornou-se um arquipélago composto por ilhas que vão sendo multiplicadas pela “vida líquida”. Há muitas multidões em ação, à procura de opções, interessada em limpar Brasília dos “maus elementos”, da corrupção, da indiferença social.
Esse Brasil real cansou de polarizações vazias de substância e dedicadas tão somente a disputas de poder. A rigor, ninguém se mostra interessado nas rixas PT x PSDB. Muitos ainda serão levados por elas, que organizaram a política nas últimas décadas e se converteram num vício difícil de largar. Mas a maioria – e seguramente os habitantes dos nichos de vida líquida que crescem sem parar – querem algo mais: querem uma nova proposta, uma nova filosofia política e um novo campo democrático que possa funcionar de fato como um polo generoso, refratário a regressões, aberto a todo, plural e dinâmico.
Apresentar Luciano Huck como alguém com disposição para ajudar na construção dessa ponte, trazendo consigo os novos movimentos cívicos, é bem melhor do que dizer que é preciso achar um meio-termo entre Lula e Bolsonaro ou que o desejado centro político necessita de um nome novo para se materializar.
Huck não é o fator que salvará a articulação democrática de que o país necessita. Pode vir a ser um soldado a mais, emprestando sua visibilidade, suas ideias e sua audiência ao difícil trabalho de construção da fuselagem de um novo campo político que tenha potência suficiente para se converter num efetivo polo de poder democrático. Seria o passo mais nobre e produtivo que daria.
Marco Aurélio Nogueira: Polarizações suicidas
PSDB em crise, PT recolhido, PMDB às voltas com as dificuldades de Temer, partidos em geral excitados com a aproximação de 2018. Todos fazem cálculos, tendo em mente a conquista dos eleitores. O troca-troca de legendas combina-se com a abertura da temporada de caça aos “melhores nomes”, a busca da posição ideal para apoiar esse ou aquele candidato, a preocupação com os desdobramentos do “efeito Temer” e das escolhas governamentais.
A fragmentação agradece, penhorada.
O estoque de artefatos polarizadores é grande: avanço ou retrocesso, reforma ou conservação, progresso ou reação, populismo ou responsabilidade, desenvolvimentismo ou neoliberalismo. Não faltam, evidentemente, os conhecidos esquerda x direita e PT x PSDB, ora em versões repaginadas ora no formato anquilosado de sempre.
A pergunta que ninguém faz é: a quem interessa a reposição dessas polarizações? Qual delas pode expressar os dilemas atuais do país e organizar os interesses fundamentais dos cidadãos?
O ponto comum das construções polarizadoras é a recusa ao diálogo, a reiteração de divisões improdutivas, a falta de uma articulação política que ofereça uma perspectiva de futuro para os brasileiros e modernize o país. Para dar vida a isso, criam-se campos ideológicos antípodas, soltos no ar, alimentados por frases de efeito modeladas sob encomenda e sem pé na realidade. Parte-se de uma visão de que a sociedade é mais dividida do que se vê, e com isso criam-se divisões por sobre divisões, agravando ainda mais o quadro.
Polarizações não devem ser temidas. São intrínsecas ao jogo político e ganham peso quanto mais a situação social é complexa, quanto mais a agenda nacional se mostra difícil e desafiadora, quanto mais o poder se mostra disponível.
Se não há consenso sobre quase nada, por que na política os polos não cresceriam? Se os próprios partidos não conseguem preservar seu molejo democrático e sua capacidade de alcançar uma autêntica “unidade dos distintos”, que autoridade teriam para condenar as polarizações?
O problema surge quando as polarizações fogem do controle e se artificializam, traduzindo-se em tensões insuperáveis, rupturas e intolerância. Podem assim se tornar crônicas, levando ao infinito a dialética amigo-inimigo e corroendo as bases mesmas de um consenso mínimo. Com isso, o que poderia haver de virtude nas polarizações se traduz por inteiro em seu contrário. Todos perdem. O caldeirão das crises políticas esquenta.
Com mais polarizações, aumenta a tentação de enquadrar tudo em esquemas binários tipo esquerda x direita. Com isso, pela própria dinâmica da luta ideológica radicalizada, deixa-se de lado o diagnóstico em benefício da agressividade verbal, do ardor retórico, do exagero performático. Para que tenha efeito, tudo é simplificado ao extremo, vira coisa plana, rasteira.
Vai-se assim num crescendo. No topo da escalada, o convite à boçalização cívica, o empobrecimento político, o desprezo pelos adversários ou pelos que pensam diferente, tudo devidamente empacotado por convicções e propagandas que simulam soluções rápidas e radicais, facilidades e biografias heroicas. Mentiras, invencionices e mistificações ganham livre curso.
É uma “guerra” complicada, pois não são se limita aos entrechoques ideológicos. Entram na liça também as opiniões – sempre mais desenfreadas – e as identidades, que buscam se afirmar por sobre classes, grupos de referência e partidos. Tudo devidamente turbinado pelas redes, onde as propostas para que se criem conexões e “pontes” (bridging) são fuziladas como se estivessem a priori comprometidas com concessões inadmissíveis. E nas redes, aliás, que melhor se expressa a tendência a que se hipervalorize o próprio gueto ou tribo e se menospreze tudo o que respira fora dele.
A consequência disso é a dificuldade para que se formem maiorias razoáveis, reflexivas, sem as quais propostas reformadoras ou lutas por direitos não têm como avançar. Viver a vida como se fosse uma batalha permanente pela afirmação de identidades particulares, por exemplo, pode ser o caminho mais curto para que os preconceitos se reproduzam. O eixo virtuoso – o combate sem trégua ao preconceito explícito ou subentendido – cede, por falta da capacidade de produzir apoio e persuasão.
Ao se engalfinharem em confrontos artificiais ou secundários, os “guerreiros” perdem de vista aquilo a que se deve dar prioridade. Vão ajudando a produzir quantidades absurdas de informação de má qualidade, saturando a agenda de proposições excludentes que nada acrescentam à construção democrática ou ao reformismo de que se necessita.
Essa modalidade inconsciente de burrice não é privilégio de nenhuma corrente política ou ideológica. É comum a todas.
Ela se mostra, à esquerda, pelas lentes do maniqueísmo e do esquematismo, que anunciam um “novo mundo” que estaria ao alcance da mão, bastando tão-somente uma boa dose de intransigência, de espírito contestador e de “vontade política”.
O bestialógico mais à direita é seguramente muito pior. Agrega gente que não se envergonha de praticar o reacionarismo mais tosco, burilando-o com frases de efeito e justificativas pífias. São pessoas que exibem publicamente sua simplicidade argumentativa, que falam de “marxismo cultural” sem saber do que estão falando, que manipulam descaradamente alguns gigantes do pensamento crítico (Marx, Benjamin, Gramsci, Marcuse) e são incapazes de reconhecer as sutilezas da política e do debate de ideias.
Para gente desse último tipo, tudo que respira, tudo que questiona o que está errado, tudo que canta um futuro mais justo, tudo que divulga sonhos e esperanças cabe em uma única caixinha: “comunistas”, que não somente comem criancinhas como querem infernizar a vida de todos e envenenar a alma dos viventes. Com tamanha estultice, só fazem empurrar o carro para trás.
Marco Aurélio Nogueira: Políticos imperfeitos
Crítica a Temer deve ser bem calibrada. Ele é produto do quadro político atual...
Na conhecida conferência A política como vocação, proferida em 1919, o sociólogo alemão Max Weber sugeriu que o verdadeiro homem político deveria possuir ao menos três qualidades essenciais: precisaria combinar a paixão por uma causa, o sentimento de responsabilidade e o senso de proporção. Poderia ter uma dessas qualidades em maior dose, mas não poderia deixar de ter as três. Com elas, entre outras coisas, haveria como controlar a vaidade, o desejo de permanecer sempre no primeiro plano, e dar o devido peso à missão política propriamente dita.
A sugestão é útil para que se discuta, por exemplo, a conduta de parlamentares e governantes, seu maior ou menor sucesso, seu estilo de liderança, as razões que os fazem mais eficientes na representação política e na gestão e lhes dão maior capacidade pedagógica de interagir democraticamente com as massas.
Há governantes que se seguram tão somente na paixão pela causa, conseguindo compensar a ausência (relativa) das outras qualidades mediante a organização de uma boa equipe de auxiliares. Enquanto o chefe faz política e enfatiza sua causa, os assessores cuidam da administração e garantem alguma margem de responsabilidade e senso de proporção no processo de tomada de decisões. Lula pode ser aqui tomado como exemplo positivo. Dilma seria um exemplo negativo.
Em seus dois mandatos, o ex-presidente não deixou um minuto sequer de fazer política e reverberar sua causa. Conseguiu terminar seus governos nos braços do povo, sua equipe de auxiliares se encarregou, com eficiência, de fazer a máquina administrativa funcionar e estabilizar a base política, que forneceu ao governo a necessária sustentação. As circunstâncias nacionais e internacionais foram-lhe favoráveis e o beneficiaram com os ventos da Fortuna, mas é evidente que houve Virtù e bom desempenho entre 2013 e 2010.
Com Dilma Rousseff ocorreu o contrário. Apresentada ao mundo como “gestora rigorosa e técnica competente”, não mostrou aptidão particular para a política, não conseguiu expressar causa alguma nem exibiu a exaltada competência administrativa. Seu senso de proporção e responsabilidade foi reduzido, o que impulsionou a crise. Em decorrência, entrou em atrito com amigos, aliados e auxiliares, não estruturou uma equipe leal e eficiente, teve de aceitar a contragosto a transferência da operação política para outros personagens e não conseguiu organizar um Estado administrativo vigoroso. As circunstâncias não a beneficiaram e passaram, em decorrência, a exigir sempre mais talento político, que lhe era escasso. Dilma plantou, assim, os ventos que iriam transformar-se na tempestade perfeita do impeachment. A desgraça configurou-se quando ela, em 2014, bateu pé e fez questão de concorrer à reeleição. Sua vitória nas urnas foi de Pirro e só serviu para bloquear as chances que o PT teria de ajustar o curso do navio.
Faltaram a Dilma, portanto, as três qualidades essenciais estabelecidas por Weber, com o que ela foi devorada pela vaidade e pela dificuldade de interagir democrática e pedagogicamente com as massas. Sua queda foi uma espécie de profecia que se autorrealizou.
Trazendo o argumento para os dias correntes, encontramos Michel Temer como exemplo de político com dificuldades para combinar as três qualidades. Falta-lhe antes de tudo a devoção a uma causa, já que a ideia de fazer de seu governo um artífice da retomada do crescimento econômico e do ajuste fiscal não aquece mentes e corações. Com o tropeço nas pedras que surgiram pelo caminho (Joesley e Janot), Temer viu evaporar o que tinha de força para aprovar reformas, sobretudo porque não soube reunir os consensos sociais necessários para fazê-las e foi sendo desconstruído pelo próprio Congresso, que esperava ver apoiá-lo. O presidente também não demonstra possuir um apurado senso de proporção e responsabilidade, o que fez com que vacilasse na composição de seu Ministério, para o qual convocou pessoas que pouco o ajudam e têm opaca imagem pública, e se entregasse desmesuradamente ao jogo político miúdo e fisiológico. Foi, assim, sendo devorado por predadores de várias espécies, perdendo condições de fazer política abrangente, a ponto, por exemplo, de influenciar sua própria sucessão. Tornou-se um governante inercial, refém do Congresso e sustentado pelos relacionamentos que amealhou durante a longa carreira parlamentar. Seus baixíssimos índices de aprovação e popularidade fecham a moldura.
Mas a crítica a ele deve ser bem calibrada. Temer é produto do quadro político atual, que está majoritariamente ocupado por políticos imperfeitos. Alguns têm causas, outros se declaram responsáveis, mas há poucos que se dediquem a unir uma qualidade à outra. Não porque não as tenham, mas porque não se dispõem a confrontar as bandas podres do sistema e recuperá-lo.
Bons políticos existem e continuarão a existir sempre. O que falta é que eles se reúnam, se articulem, se imponham nos espaços políticos institucionais e dialoguem abertamente com a sociedade. Sem a paixão que promove a entrega a uma causa e sem um sentido superior de responsabilidade (pública), os políticos são atraídos mais pelo brilho do que pela realidade do poder; e terminam por usufruir o poder pelo poder, sem cumprirem funções positivas. Precisam romper com isso.
Constatar que um país como o Brasil esteja entregue nos últimos 15 anos às desventuras de políticos “imperfeitos” – e imperfeitos porque “incompletos” – certamente levaria Max Weber a tremer no silêncio sepulcral em que repousa.
Quanto a nós, pobres seres viventes, a constatação provoca pasmo e uma perturbadora inquietação. O momento é exigente, pede empenho e discernimento. Não precisamos de “chefes”, mas de políticos dispostos ao sacrifício e vocacionados para colocar os dedos nas engrenagens da História, assumindo compromissos claros com uma agenda corajosa.
*Professor titular de teoria política e coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Unesp
Marco Aurélio Nogueira: A união indispensável
Democratas de todos os partidos e quadrantes, uni-vos! Vocês nada têm a perder a não ser os grilhões que os aprisionam ao atraso, à inoperância, à demagogia. Têm um mundo a conquistar: um país mais justo, mais dinâmico, menos atropelado pelas estripulias obscenas de corruptos e aproveitadores, assim como de exploradores da ingenuidade política das multidões.
A paráfrase da frase célebre do Manifesto de Marx e Engels serve para indicar o caminho das pedras que os brasileiros devem seguir. Não há meio termo, atalhos alternativos. A estrada pode não levar de imediato a um novo mundo, mas se quisermos ter chances reais de futuro é por ela que teremos de trafegar.
Reúnam-se todos, liberais, socialistas, comunistas, ex-comunistas, liberais-socialistas, conservadores liberais, católicos, umbandistas e evangélicos. Façam com que importe menos o que os divide e deixem tremular mais alto a bandeira da democracia, que generosamente os abrigará a todos.
Unam-se, porque se não o fizerem a desesperança cívica corroerá os laços já débeis que ligam a sociedade à política. Os cidadãos fugirão da democracia representativa, como vêm demonstrando a pouco e pouco querer fazer. Os autoritários avançarão, as soluções mágicas cairão como perdigotos de ouro da boca dos salvadores de plantão, que não se pejam de chorar lágrimas de crocodilo em público e de posar de vítimas impolutas. Sem a união ativa dos democratas, crescerão os chamamentos à caserna, as vozes favoráveis a intervenções militares saneadoras, que limpariam a sujeira acumulada, como se fosse possível fazer isso contra cidadãos, políticos e democratas. Ganharão corpo, também, as iniciativas para trancar a política com as cordas da Justiça, vistas como antídoto infalível contra os “maus” políticos.
Se os democratas continuarem divididos e inertes, o futuro será comprometido. Escaparão pelos poros do sistema todos aqueles que desejam que tudo fique como está ou que pregam as virtudes de uma volta para trás, o retorno da força e da autoridade perdidas, a reiteração da interpelação direta e sem mediações do “chefe” e do “líder” com as massas marginalizadas e os crentes fanáticos, a absolvição generalizada dos corruptos e dos escroques de todas as correntes políticas. Ganharão fôlego os nefelibatas fundamentalistas, os sonhadores que com suas maquinações nos roubam o senso de realidade e nos empurram para o reino da fantasia.
Sem o concurso desprendido dos democratas, unitário a ponto de superar discordâncias tópicas, vaidades despropositadas e obstáculos circunstanciais, aumentarão os apelos ao protagonismo antipolítica de magistrados e procuradores, investidos de atribuições substitutivas que não lhes competem. Atenção cuidadosa, porém, deverá ser dada ao papel que vem sendo desempenhado pelo STF, pelo MPF e pela Polícia Federal. Pode haver algum viés jacobino aí, mas é melhor jogar o jogo nos tribunais do que sob o tacão das baionetas. O fato é que o protagonismo judicial se impôs quanto mais o Executivo e o Legislativo foram perdendo credibilidade e legitimidade. A raiz da crise não está nem nunca esteve no Judiciário. Assim como não é uma crise derivada da corrupção galopante. Trata-se de um problema político, grudado naqueles que fazem da política sua razão de viver.
Podemos dizer: a crise se alimenta da distância que se abriu entre um sistema político fragmentado, sem lideranças de coordenação, e uma ordem social em transformação acelerada, tudo devidamente assentado numa democracia política que subsiste e se reafirma. Se nada for feito, o choque produzirá conflitos de grande magnitude. Se a crise, porém, for democraticamente administrada, dela poderão nascer uma nova sociedade e um novo modo de fazer política.
A força do processo
Olhem um pouco mais atentamente para o processo. Nas últimas três ou quatro décadas, o Brasil evoluiu, melhorou em inúmeros aspectos, deu mostras de que pode ultrapassar as barreiras do atraso secular, das deformações estruturais, da improvisação, da espoliação dos pobres pelos poderosos, do excesso de Estado, do desperdício.
É bem verdade que essa marcha foi descontinuada de 2013 para cá, período em que o desatino se sobrepôs ao discernimento e à responsabilidade e em que a corrupção veio a público com a força de um vulcão que libera uma lava tóxica que só provoca horror e desilusão.
Mas o eixo do processo – desenvolvimento com inclusão social – permaneceu vivo e mesmo neste ciclo político aziago e temerário em que estamos pode ser reativado, retomado, recuperado. A um único preço: o da suspensão dos antagonismos artificiais, das polarizações estéreis, dos particularismos exacerbados, do radicalismo retórico.
Unam-se pois, democratas! Passem um pano vigoroso na velharia político-partidária que nos atazana, na impunidade que nos envergonha, no desperdício de recursos e talentos que nos mantém parados no tempo, girando em falso.
Assumam o papel de vanguarda moderna que lhes cabe. Saiam da letargia, mobilizem a sociedade, rompam os grilhões do sistema político, resistam ao corporativismo multifacetado que vigora no Estado e na sociedade civil. Abracem o povo, interpelando-o ativamente para escutar suas pulsações e com ele elaborar uma agenda que nos impulsione para frente e nos distancie do regressismo autoritário, da palavra fácil que incendeia e da demolição política. As urnas de 2018 estão logo ali. Não cheguem desarvorados a elas.
Marco Aurélio Nogueira: A carta de Palocci
Palocci foi um deles, um dos grandes e poderosos generais que reinaram nos anos de ouro do petismo no poder. Aos poucos, pelo que se pode especular, perdeu as ilusões, foi preso e resolveu parar de se sacrificar por uma causa que esmaeceu e perdeu sentido
Será difícil, daqui há muitos anos, quando a história dos nossos dias for escarafunchada e contada de forma adequada, rigorosa, que o dia 26 de setembro de 2017 não seja validado como ponto de referência.
Foi nessa data que o ex-ministro Antonio Palocci se desfiliou do PT e enviou, à presidente do partido, uma carta-exocet, um míssil que fez tremer mesas, paredes, tribunas, conversas de bar e cálculos racionais. Não tinha havido, até então, algo tão contundente e vigoroso, tão desbragadamente disposto a expor o mar de lama que invadiu o campo petista e particularmente a biografia de Lula. A carta também constrangimento e embaraços para a ex-presidente Dilma Roussseff.
Já foram ditas muitas coisas contra Lula e o PT. Parte delas vieram pelos antipetistas de carteirinha, sempre dispostos a fazer tempestades em copo d’água quando se trata de desancar a esquerda, a inventar alguns fatos e a exagerar outros para prejudicar Lula e o PT. Em vez de travar a boa luta de ideias, essa ala militante segue a trilha da denúncia, pouco importando se se vale, em alguns momentos, de condutas bem próximas do fascismo.
Mas também há coisas que já foram ditas sobre Lula e o PT que aos poucos têm sido comprovadas, principalmente pela lógica das narrativas mais do que por “provas materiais”. Nenhum brasileiro razoavelmente informado ignora do que se trata: em poucas palavras, uso do Estado e do poder político para finalidades escusas, regra geral associadas a dinheiro. Houve um pouco de tudo nesse universo. Favorecimento de empresas e pessoas, financiamento eleitoral, protecionismo familiar, enriquecimento pessoal, articulações políticas perniciosas que beneficiaram um mundão de gente, desperdício de recursos públicos. Pode-se dizer que tais práticas são usuais na vida nacional, que “todos” delas se valeram, que o montante elevado ligados aos fatos recentes (bilhões de reais) deve-se tão somente a uma espécie de evolução natural da força do dinheiro, do custo das operações. Mas não há como simplesmente ignorá-las, dizer que não existem.
É um exagero dizer que nos anos do PT no poder montou-se a “mais formidável organização criminosa” da história brasileira. Não há como demonstrar isso. Mas há como dizer que nunca a corrupção ocupou posição tão central na política e na vida do Brasil. Também não há como dissociar esse fato de Lula e do PT. Não porque tenham sido eles os campeões da ilicitude, mas simplesmente porque ocuparam o poder, usaram o poder e, com isso, ficaram na berlinda: tornaram-se o adversário que todos queriam derrotar.
É um quadro simples de ser visualizado. Um partido popular chega ao poder depois de trafegar pelas margens do sistema durante anos. Passa a acumular mais poder, impulsionado pela força e pelo talento de sua maior liderança. Faz alianças com o fisiologismo reinante, pois precisa de votos no Congresso e de apoio nas eleições. Precisa de dinheiro para se financiar e alimentar a gigantesca máquina que vai sendo levado a organizar. A cada eleição, o preço sobe. O partido vai assim deslocando para fora de si a elaboração teórica e programática, acabando por ter de se sustentar cada vez mais por acordos e contatos espúrios, que corroem sua identidade de esquerda e minam sua legitimidade reformadora. Quanto mais cresce, mais passa a depender desses arranjos. Lula vai ao limite. Não tem com quem dividir as múltiplas tarefas. Cerca-se de assessores e auxiliares. Com o tempo, a cúpula do partido já não mais tem autonomia, não responde às bases, e vai vendo, um a um, seus capitães serem denunciados e presos.
Palocci foi um deles, um dos grandes e poderosos generais que reinaram nos anos de ouro do petismo no poder. Aos poucos, pelo que se pode especular, perdeu as ilusões, foi preso e resolveu parar de se sacrificar por uma causa que esmaeceu e perdeu sentido. O silêncio não mais lhe interessava. Negociou uma delação para tentar reduzir a pena. Nisso, foi lançado contra o muro de explicações e justificativas do PT, trombando também com a cultura petista e de parte importante da esquerda, passando a ser tratado como traidor, mentiroso, um reles inventor de histórias preocupado exclusivamente em salvar a própria pele.
Podemos achar o que quisermos do gesto e da trajetória recente de Antonio Palocci. Podemos chamá-lo de fraco, oportunista e traidor. Mas não temos o direito de achar que ele simplesmente mente e inventa coisas. Ao fazer o que está fazendo, também sofre, se quisermos olhar as coisas por esse ângulo. Ninguém passa em revista a própria biografia e se expõe sem experimentar alguma dor. Talvez seja esse o preço que se paga para expiar os próprios demônios.
O que Palocci relata tem sido repetido em vários outros depoimentos, vem sendo rastreado por investigações, faz sentido. A lógica narrativa precisa ser considerada com atenção, pois é com base nela que poderemos entender a lógica da corrupção que nos assola.
Particularmente a esquerda deveria aprender algo com a carta de Palocci. Ela funciona como uma espécie de Relatório Kruschev sobre o culto à personalidade no interior do PCUS, documento que criou um antes e um depois no universo dos partidos comunistas do mundo inteiro, na metade dos anos 1950. Muitos comunistas daqueles anos não acreditaram, passaram mal ao lê-la, acharam que nada mais era que a mão do imperialismo em ação. Quando as fichas caíram e a verdade veio à tona, o alvoroço foi completo. Serviu para que alguns partidos buscassem passar as coisas a limpo e caminhassem para a autorrenovação, mas também foi tratada com indiferença por outros, que continuaram na mesma toada até baterem de frente com o Muro de Berlim em 1989.
Hic rhodus hic salta! É a hora da verdade para o PT, hora de mostrar que pretende escapar do abismo e ter futuro. Recuperar o tempo perdido é o único modo de recuperar a imagem que se deixou abalar com o passar dos anos.