Marco Aurélio Nogueira: O vírus Bolsonaro
Onde estão as forças, as instituições e as pessoas dispostas a frear a insanidade presidencial?
É difícil não se horrorizar ao ver as fotos de Jair Bolsonaro participando de um ato contra o Congresso, abraçando pessoas e apertando as mãos de seguidores.
É pavoroso constatar que existem pessoas que tratam a atual situação de calamidade pública como se fosse uma “armação da mídia”, pessoas cegas em seu fanatismo, indiferentes a milhões de brasileiros. Posam de verde e amarelo e se dizem patriotas, mas são traidores da Pátria, se quisermos falar assim.
Um presidente que infringe regras e orientações estabelecidas por seu próprio governo é uma aberração. Ele debocha daquilo que deveria ser norma de conduta. Põe em risco a saúde da população e mostra não estar à altura da crise em que nos encontramos, que é epidemiológica e mundial, mas é também política, moral, econômica. O País está parado, à espera de alguém que o lidere e governe.
Em se tratando de Jair Bolsonaro, não dá para dizer que chegamos ao fundo do poço. Dele podemos esperar coisas sempre piores, mais graves, deletérias. Trata-se de um presidente que faz do poder um jogo de vida e morte, o contrário do que se esperaria de alguém eleito para governar um País enorme, complexo, diversificado. É um exibicionista, agarrado a ‘lives’ patéticas, nas quais demonstra toda a sua grosseria, seus maus modos, seu egocentrismo, sua irresponsabilidade. Tanto pode aparecer de máscara como se estivesse em quarentena, quanto pode cair nos braços da galera que o acompanha como se não houvesse amanhã.
Bolsonaro é uma versão do vírus do fanatismo populista e retrógrado, essa monstruosidade que se espalhou pelo mundo como uma pandemia. É uma ameaça à sociedade, à democracia, à dignidade humana.
Até quando o País suportará? Onde estão as forças, as instituições e as pessoas dispostas a frear a insanidade presidencial? O presidente hoje conspira abertamente contra seu próprio governo. Seus ministros e assessores parecem achar graça em suas peripécias, pensam que não atrapalharão demais, acham que ‘o cara é assim mesmo, é o jeito dele’. E a trupe de seguidores segue atrás, batendo bumbo e tirando fotos, contra tudo e contra todos.
Aqueles que compõem o governo atual e lhe dão sustentação ou são covardes irresponsáveis, que temem fazer alguma coisa, ou estão mancomunados com a mesma fúria de destruição que o presidente exibe, de modo cada vez mais escancarado.
Marco Aurélio Nogueira: O gabinete fardado
‘Militarização’ coincide com o comportamento autoritário e debochado do presidente
E eis que, sem maior alvoroço, os militares voltaram a ter importante peso político no Brasil. Passaram a dominar o Palácio do Planalto, onde fica o presidente, ele também um ex-militar. Vários generais e um almirante ocupam da Casa Civil à Vice-Presidência da República.
O gabinete fardado está sendo analisado como um freio ao extremismo histriônico da ala ideológica do governo, formatada pelo olavismo. O fato poderia ser visto como uma oportunidade para que se imprima um novo estilo de atuação ao governo, reduzindo seu sectarismo e sua visão obnubilada da realidade. Um estilo mais frio não daria trela às baixarias dos ideólogos.
Nessa avaliação, o novo gabinete poderia funcionar como um freio de arrumação, que acomodaria as melancias que o governo deixa chacoalhar na carroceria. Ajudaria a reduzir o destempero presidencial. Formar-se-ia um colegiado decisório que, apoiado na hierarquia militar e na cultura da caserna, faria um contraponto às manifestações bélicas do bolsonarismo. Afinal, em tempos de paz é mais importante saber guardar e reforçar posições do que atacar, sobretudo se os inimigos são imaginários.
Tudo isso a se ver. Antes de tudo será preciso descobrir se os oficiais têm um plano para recuperar a imagem do governo, se atuarão como fator de equilíbrio ou se darão um cheque em branco ao presidente Jair Bolsonaro, estimulando suas intervenções desqualificadas. Aconteceu algo assim com o general Heleno, no início visto como “moderador”, mas que logo se revelou um ativista do bolsonarismo, um “incendiário”.
A Casa Civil está com o general Braga Netto, militar experiente. Órgão estratégico, dele depende a coordenação governamental e a organização de um ambiente favorável no Congresso. Militares são, como todos os cidadãos, seres políticos qualificados para pensar o Estado, a comunidade política. Fazem isso, porém, com uma sólida ideia de lealdade e uma forte carga corporativa, que os impulsiona a verem a si próprios como diferentes dos demais e com interesses que precisariam ser defendidos a ferro e fogo. São treinados para “desconfiar” dos políticos, não para fazer política.
Se não tiver jogo de cintura, um general na Casa Civil pode dificultar ainda mais as relações entre o Executivo e o Legislativo. Pode, também, aprofundar a inserção das Forças Armadas no governo, com o risco de que terminem por trocar o perfil técnico e a missão institucional de proteger o Estado pela gestão dos negócios governamentais e pelos conflitos políticos a eles inerentes. Militares num governo autoritário, como é o de Bolsonaro, não beneficiam a imagem de isenção democrática das Forças Armadas. É algo que as lança no olho do furacão, ainda que sejam apenas alguns oficiais a assumir o encargo.
Um governo com uma ala militar ativa pode transitar em campo minado. Como observou o sociólogo Rodrigo Prando, em caso de rompimento com os militares o governo poderia ver-se numa crise de desfecho imprevisível. Militares sabem ocupar territórios, mas não necessariamente estão preparados para dialogar, mover-se entre ideias plurais e pressões típicas do mundo político.
No Brasil as Forças Armadas são vistas como patrióticas, disciplinadas e “desinteressadas”. Mas carregam o fardo do golpismo e do autoritarismo. Acreditam que os militares existem para salvar o País. É provável que os oficiais mais jovens não compartilhem esse fardo. A caserna, porém, é mais ampla. Seja como for, já estão dadas as condições para que as Forças Armadas contenham os seus impulsos históricos e atuem democraticamente.
A presença militar tenderá a incentivar uma postura focada em resultados estruturais, alheios ao jogo eleitoral. É onde repousa o risco de atrito com a política. Também terá de se haver com as resistências do núcleo civil do governo. A “militarização” coincide com o comportamento autoritário e debochado do presidente, com seu familismo exacerbado. É difícil imaginar que Bolsonaro adote uma conduta mais digna e educada, mais criteriosa com as políticas estratégicas e os interesses nacionais. A questão não é de espaço e poder de pressão, mas de biografia, estilo e modo de pensar.
Deveria ser constrangedor, para a ética militar, que as grosserias, ofensas e aberrações do presidente estejam a ser cometidas nas barbas dos oficiais que integram o núcleo principal do governo. Militares costumam ser discretos, falam pouco, cuidam da linguagem. Não deveriam lavar as mãos diante dos descalabros que jogam a Presidência da República num poço sujo e sem fundo.
O gabinete fardado dará força à tecnocracia? Vai depender, também, da capacidade que tiverem os políticos de equilibrar a balança. O Congresso tem contrastado a falta de iniciativa do Executivo no que tange às reformas e à formulação de políticas públicas. Se calibrar bem a sua atuação e reunir as forças democráticas de oposição, o Congresso poderá ajudar a que se organize uma agenda nacional e se modifique a orientação de uma população que acredita que a saída está fora da política e longe do Parlamento.
Marco Aurélio Nogueira: A voz dissonante de Risério
Em polêmico novo livro, o antropólogo aponta os limites e contradições da luta identitária e denuncia as polarizações políticas dos nossos tempos
O novo livro do antropólogo baiano Antonio Risério, Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária, veio para desafinar o coro dos contentes. A começar do título, calculado para chamar atenção e provocar. Sem papas na língua, com critério, erudição e domínio do tema, dispara contra a cultura política e teórica pós-moderna, privilegiando em especial os movimentos identitários que, nas últimas décadas, assumiram a dianteira na contestação política e cultural, produzindo, porém, mais ruído e dissonância que hegemonia.
Risério parte do suposto de que a guinada identitária ressignificou a contracultura derivada dos anos 1960 e contribuiu para abalar a ideia de esquerda. Para ele, com a difusão das postulações feministas e racialistas radicais, teria havido um empobrecimento geral da contestação e um apagamento das possibilidades da esquerda democrática. O identitarismo produziu fissuras e divisões justamente onde a unidade democrática mais se mostrava necessária. Fixou mentalidades gregárias fechadas em si, em vez de abertas a interações comunicativas.
Convencido da necessidade de alertar a opinião pública contra os desacertos identitários, Risério não faz concessões. Não se desvia da rota com digressões acadêmicas: seu livro é um ensaio “de intervenção intelectual e combate político frontal”. Comete excessos nessa operação, mas procura justificá-los o tempo todo: não há porque ter tolerância contra quem é intolerante e não admite divergência.
Risério quer denunciar as polarizações do nosso tempo, que estiolam o campo democrático. Sabe que sempre haverá gente divergindo de gente, um lado contra o outro. Seu problema é a polarização que se converte em intolerância e agressão, como ocorre hoje no Brasil, seja nos confrontos alimentados pelo bolsonarismo sectário, seja nas refregas identitárias. Misturando-se confusamente com as rusgas entre esquerda e direita, com a luta política cotidiana, a ênfase na identidade tornou-se combustível adicional para a exasperação verbal, a fragmentação política e o enfraquecimento da democracia.
Postulações identitárias rapidamente se tornam ideologias de mobilização e leitura do mundo, dando musculatura a pregações morais bastante discutíveis, que menosprezam a história fática e ficam a um passo de cair no fanatismo. Negros passam a hostilizar brancos como resposta a uma hostilidade que remontaria aos tempos da escravidão, feministas radicais condenam todos os homens como expressão de um machismo secular. Risério critica os “racialistas neonegros” por insistirem na negritude dos mulatos e não compreenderem que no sistema escravista brasileiro até escravos compravam escravos. Já as neofeministas radicais, que atacam um Ocidente “patriarcal” que não mais existe, fecham os olhos para a opressão sofrida pelas mulheres no mundo islâmico e nas culturas tradicionais africanas.
A batalha identitária nasceu da luta pelo reconhecimento do outro, pela afirmação da “outridade”. Sua vitória progressiva, porém, produziu o contrário, na visão de Risério. Os neo-identitários passaram a negar o outro, recusando legitimidade argumentativa aos que estão fora das agendas de identidade. O exagero irracional na defesa do “lugar de fala”, por exemplo, levaria a que somente negros pudessem falar de problemas dos negros e somente mulheres feministas pudessem abordar questões femininas.
Identitários radicais querem aceitação plena de seus dogmas. Exigem lealdade incondicional e estigmatizam quem foge de suas teses. Consideram-se donos absolutos da verdade, moralmente superiores ao resto dos humanos. Põem-se da perspectiva de um “oprimido” mais imaginário que real, a partir do qual constroem uma ideologia de autovitimização. Polarizam sempre em termos negativos: por mais que se refiram positivamente às causas e pessoas que defendem, a maior parte da energia que consomem volta-se para desmascarar e “desconstruir” adversários. Com isso, perdem-se muitas possibilidades de interação, diálogo e cooperação. O resultado é fácil de ser imaginado: em vez de avanços consistentes em direitos e políticas públicas, tem-se retração e desaceleração.
É tema central do livro. Risério está interessado em dessacralizar os que põem a identidade como questão principal e atuam como “juízes” do que é certo e errado, fechando-se em “tribos” particularistas, setoriais, que problematizam a unidade política e produzem um apartheid ao revés: para defender os diferenciados, criam mais diferença e segregação, bloqueando o diálogo e as interações. Seu objetivo é fazer com que a esquerda saia da complacência e “denuncie o fascismo em suas próprias fileiras”.
O livro abusa do conceito de “fascismo”. Ciente da reação, Risério esclarece: “emprego a expressão em seu sentido corriqueiro de tentativa de exercer controle ditatorial sobre a postura e o discurso dos outros”. É um risco assumido. Ao qualificar a esquerda identitária como “fascista”, Risério cria uma polarização adicional, que incrementa aquilo que deseja combater. Ele também não deixa espaço para que se pense o tema das identidades de modo democrático. Procede como se se tratasse de uma não-questão. Não esclarece suficientemente que sua crítica se dirige a um pedaço da esquerda que deseja alcançar o radicalismo identitário, não as preocupações com a identidade.
A crítica de Risério merece ser levada em conta, excessos retóricos à parte. Nos dias atuais, há mesmo que se recuperar perspectivas mais totalizantes, que incluam mais que excluam, que privilegiem o que é comum a todos ou à maioria. Nichos corporativistas, partidários, religiosos ou identitários travam a vida democrática, sobretudo quando se põem num círculo moral superior e se apresentam como expressão máxima da democracia.
Muitos torcerão o nariz para o livro. Mas Risério faz o que se espera de um bom ensaio político-cultural: força o leitor a pensar, a rever conceitos e explorar novas pistas.
*Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política e coordenador do núcleo de estudos e análises internacionais da Unesp
Marco Aurélio Nogueira: As indefinições do novo PSDB
Dória venceu a luta interna, mas não estão claras as ideias e nem definidos os parâmetros organizacionais do novo PSDB
Estará mesmo nascendo um novo PSDB?
Segundo frase do governador João Dória estampada na coluna da jornalista Rosângela Bittar no Estadão de 28/01/2020, o novo partido estaria apoiado em um grupo de políticos: “Bruno Araújo, Eduardo Leite, Bruno Covas, eu, o Reinaldo Azambuja, esse é o novo PSDB”.
Se de fato o partido se renovou, seria conveniente que alguém o apresentasse formalmente. Política não são somente nomes, por mais expressivos que possam ser eles. Partidos, em especial, precisam de nomes, quadros, organização, marca e ideias. Sem isso, não passam de agregados de pessoas ligas por interesses particulares e circunstâncias episódicas.
A luta interna que estiolou o PSDB foi vencida por Dória. Ponto claro, estabelecido, insofismável. Em decorrência, afastaram-se, discretamente ou com ruído, importantes lideranças tucanas do passado recente, parte delas composta por fundadores da legenda, em 1988, décadas atrás. Foi assim com FHC, Serra, Aloysio Nunes, Tasso Jereissati, José Aníbal. Antes de falecer, o ex-governador Alberto Goldman bateu de frente com Dória.
Explicações e justificativas não faltaram.
Para Dória, era preciso “oxigenar” o partido, afastar a turma mais velha, convencida do valor da social-democracia. Para tanto, cabeças teriam de ser cortadas e um novo grupo dirigente deveria ser imposto.
Os perdedores, que se retiraram do cotidiano partidário, alegaram que Dória joga pesado demais, com poucos princípios e muito personalismo, impedindo qualquer oposição interna de respirar.
Com a divisão, o PSDB ficou à deriva. Foi mal nas eleições de 2018: era a 3ª maior bancada em 2014, declinou para o 9º lugar, 25 deputados a menos. O bunker paulista caiu por inteiro nas mãos de Dória, que passou a atrair políticos de outros estados, formando boa maioria. Ao disputar a reeleição em 2018, o governador fez campanha praticamente abraçado a Bolsonaro, em nome do pragmatismo.
Não estão claras as ideias do novo PSDB, assim como não há indícios de que o projeto inclua alguma iniciativa diferente em termos organizacionais. O abandono da social-democracia se traduziu numa tentativa para enxertar na doutrina do partido alguns princípios mais consistentes de “neoliberalismo”, deslocando a legenda para a direita: mais mercado, menos Estado, retórica fiscal mais aguda, um tipo particular de populismo tecnocrático que flutua conforme a necessidade e uma busca obstinada de visibilidade midiática. Tudo evidentemente bem amarrado pelos barbantes de Dória.
Sobrou entretanto o nome, a marca: PSDB, indicação clara de um compromisso social-democrático que já não mais existe. O que será feito dessa marca ninguém sabe. O que se sabe é que ela virou algo postiço, que incomoda e não contribui para modelar uma imagem. Pode ser que se espere para ver se o enxerto de Dória vingará e produza, com o tempo, folhagens de outra coloração. Pode ser que não se dê tempo ao tempo e se promova um retrofit radical, que mude a legenda de cima a baixo, com alterações doutrinárias, de linguagem e cultura.
Porque, no fundo, a alma social-democrática do PSDB já subiu aos céus. Ou desceu aos infernos. E sem uma nova alma nenhum partido terá como se renovar e sobreviver, de modo a fazer alguma diferença.
Marco Aurélio Nogueira: São Paulo, a metrópole e o futuro
Na azáfama cotidiana, paulistano sofre sem compreender as razões de tanto sofrimento
As cidades dos dias atuais intrigam, causam perplexidade. Os humanos fizeram delas seu principal hábitat a partir da revolução moderna. A vida urbana generalizou-se, mas não a urbanidade. Faltam coisas demais para que as cidades possam ser tratadas como ambientes de plena civilidade, onde todos vivam com igual dignidade. Umas mais, outras menos, estão todas atravessadas por desafios e imperfeições, que avançaram à medida que avançou o capitalismo, se mundializou, ganhou maior ímpeto tecnológico, mas não conseguiu ser democraticamente regulado.
São Paulo, que em 2020 comemora 466 anos de existência, não é exceção. Instalada na periferia do mundo, coração de um país continental, dinâmica e superpovoada, com uma evolução que não conseguiu amalgamar adequadamente as populações que nela buscaram abrigo e que convive com problemas que parecem imunes à ação humana racional, a cidade é uma metrópole pujante, síntese expressiva dos problemas, promessas e virtudes da modernidade.
Metrópoles são espaços de ritmo acelerado, impessoalidade, isolamento e encontro. Sempre fascinaram os estudiosos, atraíram as massas e desafiaram os gestores. Foi nelas que a política moderna ganhou face e corpo. São lugares de muitos lugares, onde se combinam excessos e carecimentos, inclusões e exclusões, gente variada, múltiplos projetos existenciais.
O modo de vida industrial e pós-industrial turbinou as cidades. As maiores conheceram a conurbação, formando um gigantesco tecido de municípios unificados em termos socioeconômicos, ainda que preservando autonomias no plano jurídico e político. As cidades ficaram ainda mais vibrantes, heterogêneas, repletas de empresas e ofertas culturais, sobrecarregadas de automóveis e deslocamentos, só em parte atenuados com o avanço das tecnologias de comunicação. Nas grandes cidades o movimento e a circulação de pessoas, ideias, mercadorias são a regra.
As cidades encontram-se agora com a era digital. Precisam se adaptar a ela, aproveitá-la para melhorar a qualidade de vida e os parâmetros da gestão pública. A informatização geral, as novas tecnologias, o uso ampliado de energias alternativas, a reconfiguração do trabalho, o transporte movido a eletricidade, os “carros voadores”, a otimização do tempo, tudo isso já bateu às portas. Não são mais meras tendências.
A assimilação da era digital pode ser um importante fator de renovação das cidades, ajudando-as, no mínimo, a combater a praga da poluição ambiental, que ameaça a saúde e compromete o bem-estar. São Paulo convive intensamente com isso: a poluição encarece o dia a dia, o ar pesado e o barulho incessante dificultam o descanso, a cidade é a cada dia mais quente, o trânsito enlouquece e impacta o consumo, a produção, a cultura. Pouco se faz para equacionar essas questões. Há reclamações e promessas, mas a sensação é de que se está sempre no mesmo lugar, piorando.
A poluição ambiental é tóxica, visual e sonora. Torna feio o que poderia ser bonito. Segrega e distingue bairros, fazendo com que pouquíssimas regiões usufruam o que uma cidade deveria oferecer a todos. Na azáfama do cotidiano, a maioria dos paulistanos sofre sem compreender as razões de tanto sofrimento: no ar que se respira, no tempo desperdiçado, na tensão inerente às interações, na brutalidade de tantos comportamentos, no silêncio escasso.
O ruído é uma marca de São Paulo, produto da efervescência urbana e do tumulto por ela provocado. Diferentemente do ruído político, que confunde e distrai, os ruídos urbanos demarcam um espaço, exprimem a “potência” de quem os produz. Não são inocentes. Repetindo-se sem intervalo e sem controle, convertem-se em barulho. Fazem parte de um mesmo pacote, misturam-se com o ar contaminado, a falta de regras, o frenesi urbano, a multiplicação dos negócios, a concorrência, a orgia de informações, o extravasamento. Como escreveu a socióloga Isla Antonello, nos grandes aglomerados urbanos dá-se uma “ocupação através do barulho”, vontade de deixar tudo dominado.
Vivendo numa estrutura social definida por códigos morais que valorizam mais a liberdade individual do que a solidariedade cívica e o espaço público, o cidadão paulistano aceita como fatalidade o que o incomoda: um “custo do progresso”. A problematização da urbanidade vem na esteira, impulsionada pela pressa, que impede que se veja e sinta a cidade como “coisa sua” e de todos.
Desse ponto de vista, há um quê de terra de ninguém em São Paulo. A certeza da impunidade convive com a falta de consciência cívica e a ineficácia governamental. A poluição ambiental potencializa a confusão urbana, dificulta o encontro de culturas, a reposição de energias, atirando o paulistano num looping em que sempre se volta ao tumulto de que se deveria escapar.
Não é algo que diminua a grandeza de São Paulo, sua riqueza como locus de experiências, experimentação e oportunidades. Mas é um item estratégico da agenda com que a cidade ingressará no futuro.
*Professor titular de Teoria Política da UNESP
Marco Aurélio Nogueira: O desafio de Huck à esquerda
Apresentador incomoda porque manifesta posições avançadas, faz propostas e busca viabilizar uma ideia de articulação democrática que explora caminhos não usuais
Lula pontificou: “Luciano Huck não representa a centro-esquerda. Representa a Central Globo de Televisão”.
Reverbera o que vários petistas e parte da esquerda falam. Ao mesmo tempo, dá o tom para que se continue com a campanha de desconstrução de Huck.
É do jogo. Lula faz o que dele muitos esperam. Quer limpar a área, não ser desafiado, fazer com que as coisas girem em torno dele. Sua frase sobre Huck pode até mesmo ser um chega-prá-lá no governador Flavio Dino (MA), que andou conversando com o apresentador dias atrás.
Chama mais atenção a conduta dos que seguem cegamente a catilinária lulista. Destruir Huck tornou-se a diversão preferida de tantos que se proclamam democratas. É um veto bem pouco democrático, que parte de supostos falsos, hipócritas, politicamente atrapalhados.
A associação Huck-Globo é uma bobagem oportunista, que intenciona carimbar o apresentador como direitista, um empresário servil aos interesses da “mídia conservadora” e do grande capital. Trabalhar numa empresa significaria, para essa turma, incorporar automaticamente a cultura, o modo de ser, o pensamento e os projetos do empregador.
Acrescente-se a isso a ideia de que Huck não tem experiência, como se antes dele, em 1994, 1998 e 2002, Lula a tivesse, por exemplo. Se o cara é jovem e não integra um partido tido como de esquerda ou centro-esquerda, não presta. Ora…
Fala-se ainda que Huck nada tem a propor, que é um ventríloquo, um pau-mandado, fato ostensivamente desmentido por suas recorrentes intervenções públicas.
Age-se segundo a máxima “não importa o que é dito, mas sim quem o diz”, postura no mínimo burra e preconceituosa. Bem típica de quem se recusa a olhar o todo e a analisar textos e contextos, pessoas que se sentem assim desobrigadas de avaliar o que criticam, tipo não li e não gostei.
Ninguém sabe se Luciano Huck será candidato a algum cargo. O que se sabe é que ele está se posicionando, e não de hoje. Tem manifestado posições avançadas e bem concatenadas. Ousa fazer propostas e tenta por de pé uma ideia de articulação democrática que explora caminhos não usuais. Talvez seja precisamente isso que incomoda os guardiões da pureza de esquerda.
Em vez de se ficar tachando seus movimentos e suas iniciativas como se fossem a expressão de um bolsonarismo light, “neoliberal”, todos ganhariam muito mais se passassem a decifrar o que ele fala e propõe, o circuito que percorre, os compromissos que está assumindo, os apoios que agrega.
Huck tem potência midiática e juventude. Pode ajudar a injetar sangue novo na política nacional, a bloquear a ascensão da extrema-direita e a desafiar uma esquerda que insiste em repisar terreno esburacado e não traz qualquer ideia de futuro nas mãos. Por que não levá-lo a sério? Deixá-lo circular em paz e ver o que tem a propor?
O veto, o preconceito, o medo e a discriminação são as piores armas com que se pode entrar numa batalha política.
Marco Aurélio Nogueira: Um ano de bizarrices, sectarismo e ideologia
Complexidade do Brasil e do mundo esteve além do entendimento médio do governo em 2019
Para dizer o mínimo: 2019 foi perturbador.
Chegamos a dezembro com sinais de que a economia começa a se recuperar. A taxa de crescimento bateu em 1% no ano, mas o desemprego e a renda continuaram a martelar os brasileiros. A produtividade permanece baixa, o crescimento não se mostra sustentado. Nos bastidores da estridência governamental, escorreu uma política econômica que se proclama liberal, mas age em nome de um governo que ameaça as liberdades básicas.
Nenhum país anda só com as pernas da economia. Depende de coisas que têm alto poder de determinação. É preciso olhar o todo, avaliar o que impacta o cotidiano da população, prestar atenção na política, naquilo que fazem as oposições e o governo, na repercussão de escândalos como o do senador Flávio Bolsonaro, nas atitudes intempestivas do presidente.
O balanço do ano não é animador. A política externa, ideologizada de modo caricatural, converteu o País em chacota mundial. Combinou sem critério o fundamentalismo religioso e o patriotismo rasteiro, trocando o pragmatismo característico do Itamaraty por pregações moralistas, subservientes, fechadas ao interesse nacional: uma visão que se aliena do mundo e do próprio País.
O meio ambiente foi tratado com desdém. As populações indígenas foram vistas como “entraves” à exploração do território e das florestas. Queimadas, desmatamento, óleo emporcalhando mares e praias, todo um cenário complicado a requerer uma atenção que não apareceu: em vez dela, sucederam-se insultos que isolaram o País.
A letalidade policial continuou a assustar. As mortes absurdas afetam principalmente os jovens, os mais pobres, os negros e mulatos, as periferias das grandes cidades. Uma parcela importantíssima da sociedade está sendo dizimada, encurralada, amedrontada.
A área da Cultura concentrou as principais aberrações, com encarregados a exibir seu reacionarismo e seu desprezo pelos produtos e produtores culturais. O aparelhamento é ostensivo: o que importa é a fidelidade ao chefe, não a competência. Artistas foram caçados como inimigos públicos. A Educação não ficou muito atrás, com a agravante de que o responsável por ela não só demonstrou completa falta de cultura e educação, como foi de uma inoperância a toda prova. Travou uma “guerra cultural” de baixíssimo nível contra escolas, professores, universidades, pesquisadores. Fez do MEC um deserto de ideias e iniciativas.
Das áreas que deveriam iluminar e fornecer diretrizes somente saíram fachos de obscurantismo e ideologia.
Um bizarro festival de besteiras assolou o País. Entre tapas, mentiras e fake news, instituiu-se a era da pós-verdade. A complexidade do Brasil e do mundo foi ignorada, esteve além do entendimento médio do governo. Autoridades públicas e agentes do Estado disputaram entre si para estabelecer quem fala a barbaridade maior, quem exibe a grosseria mais extremada ou demonstra a ignorância mais avessa à ciência e aos valores básicos da vida moderna. O presidente não demonstrou compostura ou respeito à liturgia do cargo que ocupa. Houve racismo explícito, preconceitos, difamações, ataques a direitos. A milícia digital foi abertamente incentivada. Consta que é coordenada por um “gabinete do ódio” instalado no Palácio do Planalto. O sectarismo deu o tom.
Obscurantistas empedernidos, monarquistas sem nobreza, filósofos de araque capricham em discursos e postagens que usam a religiosidade xucra para imbecilizar a população. O compósito é chocante. A Terra é plana, o aquecimento global é uma balela, o rock é satânico, os territórios e a natureza devem ser apropriados sem dó. Aos que pensam de outro modo, o fogo do Inferno.
Os colaboradores de Bolsonaro – civis e militares – mostraram-se mais serviçais do que se poderia imaginar. O capitão submeteu os generais. 2019 terminou com o País em regressão civilizatória, com muitos ataques e denúncias, à esquerda e à direita, mas nenhum debate.
Reforçou-se uma estranha dialética: o presidente tem alta impopularidade, mas é seguido por uma trupe de apoiadores que bebem suas palavras como se destilassem o soro da verdade e acreditam que é preciso, mesmo, “evitar a volta da esquerda”. É o que permite a um governo fraco falar grosso e sonhar com o futuro.
O Executivo não produziu, mas houve quem fez por ele. A Câmara e o Senado organizaram uma pauta “reformadora” e compensaram a inação governamental. O Supremo Tribunal Federal limitou excessos. Até a alquebrada Lava Jato ficou em evidência. A impressão foi de que havia um governo ativo, mas a falta de articulação entre os Poderes foi completa.
Consolidou-se a ideia de que é preciso administrar a crise fiscal e dinamizar a economia. Mas, no jogo que está sendo jogado, as cartas escondem blefes, os jogadores não revelam seus truques e a plateia acompanha sem entender os desfechos prováveis. Nada se fala sobre bem-estar, distribuição de renda, igualdade social e respeito. Na falta de um projeto nacional que proponha a reorganização democrática do País, as propostas governamentais vão passando, sem alternativas.
Um gestual, uma narrativa, atos em série – coerção à imprensa, ataques às instituições, agressões a minorias – soltaram um bafo de autoritarismo. O oficialismo quis passar a sensação de que tudo está “normal”. É uma “normalidade” fajuta, que intimida a população e abre espaços para fanáticos e radicais de direita, impulsionados pela ignorância que vai sendo decantada para a população a partir das cúpulas do governo.
Os democratas não podem assistir passivamente à onda de boçalidade e autoritarismo que se impõe, meio como pastiche, meio como pantomima. Precisam organizar uma agenda que congregue os que fazem da democracia uma praia comum, a ser defendida e valorizada. Não há mais tempo para projetos personalistas e cálculos partidários egoístas. Basta de divergências inúteis, diversionistas.
Marco Aurélio Nogueira: Polarizações paralisantes
A que está dada entre o bolsonarismo e o lulismo só beneficia o atraso político
Política é luta, disputa, busca de poder. Não pode ser vivida e praticada como se a harmonia e o entendimento apagassem contradições e diferenças. O elogio do conflito como fator de propulsão política é comum ao pluralismo liberal e à teoria da luta de classes.
O dissenso – o direito a ele, a liberdade de expressão, pensamento e crítica – faz parte da democracia, que não pode viver sem ele e sem os embates por ele propiciados. Nem toda polarização produz guerra de extermínio. Nas democracias os polos se respeitam, convivem, fiscalizam-se, podem até cooperar.
A ideia de consenso deve ser posta em termos claros, determinados. Apresentada em abstrato é uma ilusão perigosa, que pode levar à banalização do conflito e à “reconciliação” entre atores que precisam manter-se como diferentes para que a luta política adquira pleno significado e possa até mesmo dissolver os antagonismos maniqueístas. Consenso de modo algum significa a suspensão do conflito ou a dissolução das diferenças.
Observadores da cena política nacional dizem que a atual polarização entre bolsonarismo e lulismo não pode ser eliminada por um consenso centrista, que não teria força social para prevalecer. Alguns veem o consenso não como algo a ser construído, mas como mera tradução da realidade. Acreditam que, se nenhum bloco de forças é suficientemente forte, a proposição de um amplo entendimento seria diversionismo fadado ao fracasso.
Para complicar, entendem a polarização de modo restrito: só a percebem como virtude, numa reprodução empobrecida da visão liberal-pluralista que concebe o conflito como impulsionador da democracia. Preocupam-se em atacar uma hipotética “terceira via”, que entendem em chave funcionalista, como “meio-termo”. Pensam que ser radical é proclamar as razões de um polo contra outro, com o que rejeitam qualquer esforço de mediação.
A política é sempre polarizada, mas nem toda polarização fornece oxigênio à política. É necessário ir além das abstrações teóricas, admitir e reconhecer especificidades para, então, compreender o limite e o equívoco das polarizações binárias, não dialéticas: nós contra eles.
Polarizações paralisantes podem ser inevitáveis, mas não são virtuosas. Envenenam a luta política e alienam a população, na medida em que sugerem que toda decisão sempre reflete o interesse de um polo em combater o polo oposto. Nelas não há um movimento de superação, o encontro de um terceiro termo que negue os termos polares e os incorpore num novo arranjo.
É o caso da atual contraposição entre bolsonaristas e lulistas, que impede a sociedade de conhecer propostas renovadoras. Tudo é exibido na cena pública como um filme já visto. Vive-se o conflito polarizado com doses extra de intolerância e agressividade, de onde sai uma névoa de desentendimentos (mais aparentes que reais) que incrementam o atrito e a fragmentação.
Romper polarizações desse tipo requer tenacidade, liderança personalizada, símbolos fortes, ideias. Nenhum sucesso virá da repetição ad nauseam do mantra do “centro”. Mas é improvável que haja avanço substantivo na vida nacional sem uma inflexão para o centro de um dos polos dominantes. Se tal não ocorrer, uma eventual disputa eleitoral será vencida pelo polo que detiver mais recursos de poder, usá-los com frieza e alcançar uma boa narrativa de campanha. Não é preciso muita inteligência para descobrir qual polo seria esse.
O bolsonarismo não tem capacidade de infletir para o centro, nem sequer para o centro liberal-conservador, em que pese ter hoje a seu lado uma figura como Paulo Guedes, que está no governo por questões outras. Seu autoritarismo retrógrado e suas grosserias abjetas o tornam repulsivo ao moderantismo liberal, do mesmo modo que o “libertarismo” cosmopolita dos liberais causa engulhos nos bolsonaristas.
Uma unidade democrática pelo centro e com o centro só será vitoriosa se for progressista. Ou seja, se estiver aberta para a esquerda, se for sensível aos problemas sociais do País e fizer da democracia política uma cláusula pétrea. Seu sucesso depende da capacidade que tiver de articular as correntes moderadas numa operação democrática com vocação para se aprofundar. Nas circunstâncias de hoje, significa pensar em unidade democrática: um teto sob o qual os diferentes se reúnam.
A hipótese de um “centro progressista” que exclua ao mesmo tempo os eleitores do bolsonarismo e do lulismo não tem espaço suficiente para progredir, o que explica suas recorrentes dificuldades de afirmação.
Muita coisa passa pelos cálculos de Lula e do PT, que hoje oscilam entre uma frente ampla e um frente de esquerda. Nas personalidades e forças que orbitam o partido, a ideia de “frente ampla” não é tão ampla assim e prevê alta dose de protagonismo petista, o que a restringe. Se o foco for o confronto generalizado – rage against the machine –, com ataques às instituições e apelos a um revolucionarismo retórico, se essa esquerda agir em nome da autoafirmação e de uma visão programática sectária, ela se autoexcluirá e o “centro progressista” terá de buscar novas fontes de energia, por ora inexistentes.
O problema são os vetos cruzados.
A sociedade e a opinião pública continuam divididas entre lulistas e bolsonaristas, conservadores e reacionários, liberais e socialistas, mas essa divisão não assume forma política perfeita. Estrutura-se como choque de “narrativas” que se excluem reciprocamente, misturadas com postulações identitárias e batalhas corporativistas. A polarização paralisante reflete a dificuldade que democratas liberais, de centro e de esquerda têm de apresentar à sociedade uma via que contraste a extrema direita no poder. Cada um, até agora, permanece mergulhado em seus meandros e fantasias.
A polarização entre lulismo e bolsonarismo está dada, mas não interessa à democracia. Só beneficia o atraso político. Não deveria ser alimentada.
Marco Aurélio Nogueira: A República imperfeita
Um novo Manifesto Republicano é uma tarefa democrática de primeira grandeza no Brasil atual, tão carente de respeito aos princípios da República
Nascida em meio às crises que abalaram os equilíbrios políticos, militares, religiosos, sociais e ideológicos do Segundo Império, a República sacudiu o torpor que tomava conta da sociedade brasileira em decorrência da morosidade e do caráter seletivo da Monarquia, travada que estava pelos compromissos com o mundo rural e o conservadorismo.
O Manifesto Republicano divulgado em 3 de dezembro de 1870 abriu a fenda inicial, com um conjunto de promessas e compromissos voltados para a crítica da Monarquia e o início de uma nova fase ético-política no Brasil, na qual prevalecessem os valores da liberdade, da democracia e da descentralização. Seu foco era a denúncia dos estragos causados ao País pela “irresponsabilidade” do Imperador, que atrofiava as províncias, impedia a democracia e produzia grave “prostração moral” da Nação.
O Manifesto passava ao largo da questão social: da escravidão. Concentrava-se na questão do regime político, deixando assim de se preocupar com seus fundamentos materiais. Seu texto era vibrante, mas tinha um único alvo: “a influência perniciosa do poder pessoal”, o “absolutismo prático sob as vestes do liberalismo aparente”.
Escreveram os signatários: “A centralização, tal qual existe, representa o despotismo, dá força ao poder pessoal que avassala, estraga e corrompe os caracteres, perverte e anarquiza os espíritos, comprime a liberdade, constrange o cidadão, subordina o direito de todos ao arbítrio de um só poder, nulifica de fato a soberania nacional, mata o estímulo do progresso local, suga a riqueza peculiar das províncias, constituindo-as satélites obrigados do grande astro da Corte — centro absorvente e compressor que tudo corrompe e tudo concentra em si — na ordem moral e política, como na ordem econômica e administrativa.”
Na verdade, o Manifesto subordinava a luta pela abolição ao tema da liberdade em geral, abstrata. Não era uma impropriedade, mas a insistência no regime dificultou a difusão popular da ideia republicana.
Foi preciso que a efervescência chegasse às senzalas e mobilizasse os elementos urbanos abolicionistas durante a década de 1880 para que a Monarquia perdesse capacidade de se reproduzir. O golpe de 15 de novembro de 1889 estabeleceu em cima o que estava sendo imposto por baixo. O regime político mudou, depois de que também se alterou, pouco mais de um ano antes, o regime de trabalho.
A mudança se fez com suavidade, com algum barulho mas quase nenhuma violência. Viu-a bem o Conselheiro Aires do grande Machado de Assis: “Nada se mudaria; o regímen, sim, era possível, mas também se muda de roupa sem trocar de pele. No sábado, ou quando muito na segunda-feira, tudo voltaria ao que era na véspera, menos a constituição”.
O republicanismo, ontem e hoje
A instalação da República representou um avanço, mas o que se seguiu ao 15 de Novembro não garantiu a abertura de um caminho consistente de democratização, liberdade, descentralização e organização eficiente do Estado. Nem sequer a ampliação dos direitos políticos foi instituída de modo pleno. O voto popular permaneceu represado, as eleições continuaram a ser manipuladas e o País não se livrou das múltiplas manifestações de autoritarismo e exclusão. A desigualdade social não foi atacada com veemência e a própria igualdade cívica – os direitos iguais para todos – não saiu categoricamente do lugar.
No caso da educação pública, em particular, a imperfeição foi completa: instituiu-se um sistema educacional, mas ele não chegou ao conjunto da sociedade e nem ganhou estabilidade. Adquiriu legitimidade nas décadas de 1940 e 1950, mas aos poucos foi sendo corroído e confrontado pelo avanço do sistema particular de ensino. Chegamos ao século XXI em situação lamentável: ao lado da desigualdade social profunda, o fracasso da educação pública representa o mais retumbante descumprimento das promessas republicanas.
O Manifesto Republicano foi um marco, mas paradoxalmente perdeu-se nos meandros do regime republicano que então se constituiu. O que deveria ter sido sua realização maior permaneceu um dever ser. O programa e os princípios que o inspiraram eram nobres, mas não dialogavam de fato com os fundamentos e os personagens da sociedade imperial. Pairavam sobre ela. Mesmo a marcha da modernização, a industrialização e a urbanização, não sacudiu por inteiro os andrajos da sociedade tradicional enraizada no Segundo Império.
Mas houve progresso, a materialidade social mudou, criou-se uma nova sociedade e um novo Estado foi-se afirmando com base num pacto social que evitou a guerra civil e o choque violento das classes. Compromissos e conciliações deram o tom do processo, suavizando as transições e o arbítrio do sistema, dos governos e regimes que se sucederam no tempo. O Brasil não se tornou um caso perdido, muito menos um zumbi entre as democracias contemporâneas.
Um novo Manifesto Republicano seria uma tarefa democrática de primeira grandeza no Brasil atual, tão carente de respeito aos princípios da República. Em termos de valores a serem fixados, a liberdade precisa ser mais uma vez reiterada, “abrir as asas sobre nós”, em todos os planos. A igualdade deve ocupar lugar de destaque, em termos substantivos. A democracia requer defesa e valorização. Uma pedagogia democrática consistente precisa ser posta em circulação, para promover civicamente a população e prepará-la para a complexidade inerente à era em que estamos.
Numa época como a nossa, de “excessos”, redes e informações, será imprescindível enfatizar a educação pública, a liberdade de pensamento, a autonomia dos cidadãos, a liberdade de imprensa, o combate à corrupção. Deve-se, também, modular com clareza a questão da propriedade privada e fazer com que a liberdade do mercado se componha com distribuição de renda. Temos de voltar a discutir a questão da regulação pública da economia. O mercado hoje é tudo e não há como seguir em frente em termos republicanos e democráticos sem que a dinâmica mercantil abrace a justiça e a inclusão social.
Marco Aurélio Nogueira: Partidos, movimentos, democracia - riscos e desafios do século XXI
Nascidos como esteios das grandes democracias representativas de massa surgidas gradualmente na Europa a partir das últimas décadas do século XIX e com maior ímpeto após a Segunda Guerra Mundial, os partidos políticos ingressaram no século XXI em franco processo de crise. Ainda permanecem como personagens centrais do jogo político e parlamentar, mas perderam protagonismo como agentes de mobilização, educação política e formatação da cidadania. Por caminhos múltiplos, puseram em xeque suas próprias autoimagens culturais e o modo mesmo como são vistos e assimilados pela opinião pública. Deixaram, em suma, de atuar como fatores de hegemonia — de formação de consensos e da fixação de diretrizes ético-políticas –, processo que se transferiu sempre mais para o mercado (o marketing, a publicidade), a indústria cultural e os diferentes ambientes virtuais.
O mundo político foi assim literalmente invadido por políticos personalistas, regra geral demagógicos e populistas, bem como pela efervescência caótica das redes sociais e do ativismo associativo. A derrocada dos partidos, especialmente em sua formatação tradicional, com máquinas administrativas pesadas e ritos verticalizados, passou a reforçar a ideia de que a democracia representativa ingressou em crise de igual proporção, com a ampliação da fuga dos eleitores, o aumento do desinteresse político da população e a desvalorização das eleições como método para a escolha dos governantes.
Nos países ocidentais, a abstenção eleitoral chega a ultrapassar um quarto do eleitorado, ao mesmo tempo em que crescem os protestos de todo tipo e as críticas aos sistemas políticos, aos partidos e a seus líderes. As vozes dos cidadãos, porém, não chegam aos vértices do Estado, o que despoja a democracia de parte ponderável de sua capacidade de limitar o poder.
Eleitores se afastam das urnas, partidos perdem inscritos e militantes, decai a confiança nas instituições. A movimentação associativa parece ignorar a política institucionalizada e esta, por sua vez, tende a se oligarquizar, a aprofundar seus nexos com o sistema econômico-financeiro e a virar as costas para os cidadãos, que passam a se sentir “sem representação”. A sensação é de que há muita “política” e pouquíssima política ao mesmo tempo. Estaríamos frente ao esgotamento da “democracia representativa fundada sobre uma relação de osmose entre os cidadãos e seus representantes”? Tal crise somente poderia ser superada se a estrada dos cidadãos voltasse a se encontrar com os caminhos da política.
O populismo ressurge
Movimentos populistas apareceram recentemente em quase todas as democracias, impulsionando o que costuma ser visto como uma inflexão mundial da extrema direita, renacionalizante e conservadora. Mas é um fato que “políticos de todas as colorações apelam para os interesses do povo, e todo partido de oposição faz campanhas contra o establishment”, o que complica a distinção entre o populismo e a política democrática corriqueira. Para Nadia Urbinati, “o populismo deve ser considerado uma nova forma de governo representativo”, baseado em uma relação direta entre o líder e as pessoas que ele define como “boas” ou “corretas” e com as quais ele se relaciona sem a necessidade de intermediários — em particular, sem partidos políticos e meios de comunicação independentes. Ainda que tais governos populistas se distingam de regimes ditatoriais ou fascistas, sua dependência da vontade do líder, sua baixa tolerância, sua repulsa às oposições e às rotinas constitucionais da democracia fazem com que estejam sempre a um passo do autoritarismo.
Democracias iliberais
Marca registrada dessa situação é o surgimento, em diversas sociedades, de formas variadas do que tem sido chamado de “democracia iliberal”: sistemas em que se dá a eleição regular dos dirigentes políticos mas onde pouco respeito há pelos direitos humanos, pelo pluralismo e pela tolerância, com a formação de um circuito que tende a garantir a reposição dos detentores do poder. Os casos de Viktor Orbán (Hungria), Recep Erdoğan (Turquia) e Vladimir Putin (Rússia) são considerados emblemáticos. Donald Trump (Estados Unidos) e Jair Bolsonaro (Brasil) seguem a tendência, na qual os instrumentos legais da democracia são empregados de modo autoritário e mediante uma coreografia demagógica que, prolongada no tempo e articulada mundialmente, sugere a cristalização do risco daquilo que Steven Levitsky e Daniel Ziblatt chamaram de “morte das democracias”.
O voto serviria para legitimar governos que corroem a democracia. “O retrocesso democrático hoje começa nas urnas”, escrevem Levitsky e Ziblatt. Ampliam-se os espaços para a emergência de outsiders que, aproveitando-se com maior ou menor inteligência dos espaços democráticos existentes e contando com a conivência de forças sistêmicas, do Legislativo ao Judiciário, promovem práticas que rebaixam a democracia e, como decorrência, minam a capacidade de oposição dos partidos políticos e movimentos. Não somente descaracterizam as regras democráticas e roubam legitimidade das oposições, como agem para limitar as liberdades civis e fazem vistas grossas ao emprego da violência, quando não a estimulam abertamente.
Há ritos, rotinas e instituições democráticas, mas não há um processo organizado de produção de democracia e de disseminação da consciência de cidadania. Clãs familiares, organizações fanatizadas, patriotismo artificial agressivo, violência verbal e ameaças à imprensa e ao jornalismo, tuítes bizarros e falas destemperadas liberam toxinas antidemocráticas que vão dissolvendo o que existe de sentimento de pertencimento a um povo comum, a um demo, um “nós” democrático.
Para complicar, os governos assim constituídos apresentam-se como se carregassem nas mãos todas as promessas de renovação política e regeneração moral. Fomentam confusão e mal-estar, contribuindo para desorganizar e paralisar os partidos que a eles poderiam se opor. A “desunião democrática” serve, assim, de alimento para a chegada ao poder dos novos autoritários e para sua reprodução.
No caso brasileiro, pôs-se em circulação uma retórica reacionária de fundo evangélico e concentrada nos costumes. Valores conservadores que defendem a família, a pátria, a autoridade paterna, a masculinidade e a religião são proclamados ao mesmo tempo em que se faz o elogio do ultraliberalismo na economia, formando um compósito paradoxal.
Em sociedades divididas e fragmentadas, carentes de pontes e mediações políticas, como são muitas das atuais, o reacionarismo consegue se reproduzir. As “democracias iliberais” alimentam-se da insegurança e das incertezas que cercam os cidadãos que, reunidos em grupos pequenos e autorreferidos, tornam-se presas fáceis de líderes que se apresentam como “fortes” e dispostos a tudo para ajudar os mais “fracos”.
Passa-se a falar em “pós-democracia”: “ainda que as eleições continuem a transcorrer e a condicionar os governos, o debate eleitoral é um espetáculo firmemente controlado, conduzido por grupos rivais de profissionais especializados nas técnicas de persuasão e concentrado em um número restrito de questões selecionadas por esses grupos. A massa dos cidadãos desempenha um papel passivo, aquiescente, até mesmo apático, limitando-se a reagir aos sinais que recebe. À parte o espetáculo da luta eleitoral, a política é decidida em privado pela interação entre os governos eleitos e as elites que representam quase exclusivamente interesses econômicos”.
Especialmente na esfera superior do sistema político, o clima é de mudança de paradigma e perda de qualidade da democracia: entre as muitas dimensões caóticas das modificações políticas contemporâneas, “o primeiro aspecto que se deve destacar é o processo de regressão oligárquica da democracia”, ou seja, o “deslocamento para cima dos mais relevantes centros de tomada de decisões, com o que as decisões políticas escapam das sedes mais amplas e se refugiam em lugares menos acessíveis, reservados a restritos grupos oligárquicos”, traduzindo-se assim em “um verdadeiro processo de des-democratização”.
Nesse ambiente, os governos e a classe política se soltam de suas comunidades e as deixam sem muitas saídas, ao mesmo tempo que pioram seu desempenho. Nos vazios que se abrem, projetam-se uma cidadania ativa, mas excessivamente posicionada contra o sistema político, mídias tradicionais e novas mídias, muitas tribos e nichos identitários, um mercado que funciona com moto próprio e indivíduos “empoderados”. Economia, política e sistema de comunicação estão conectados, mas há pouca articulação democrática: falta solidariedade (coesão e unidade) entre as classes e dentro de cada classe. Tudo isso encapsula e comprime a democracia política.
O social fica mais complexo
A guinada iliberal da democracia, embora se dê em um terreno imediatamente político e ideológico, tem determinações sociais profundas. Nas sociedades hipermodernas dos dias atuais, as experiências cotidianas sofrem o efeito cruzado da financeirização e da mundialização. A revolução tecnológica faz com que a vida se acelere, se diferencie, se fragmente e se individualize. A “estabilidade” é problematizada em termos individuais, nos relacionamentos, na vida profissional e nas organizações, sejam elas empresas, escolas, movimentos ou partidos políticos, que precisam empenhar sempre mais recursos (financeiros, humanos, técnicos, emocionais) para funcionarem de modo razoável. As sociedades passam a ser eminentemente comunicativas, com a informação adquirindo valor crescente como recurso essencial de atuação, especialmente precioso quando se tem em vista a intensificação de um firme “desejo social de participação”.
Reitera-se, desse modo, o processo registrado por Norbert Elias: o “equilíbrio entre a identidade-eu e a identidade-nós” é abalado, radicalizando uma dinâmica que vinha, a rigor, desde o final da Idade Média. “Mais e mais frequentes se tornaram os casos de pessoas cuja identidade-nós se enfraqueceu a ponto de elas se afigurarem a si mesmas como eus desprovidos do nós”, com a consequência de que a “identidade-nós das pessoas, embora decerto permanecendo presente, passou a ser obscurecida, em sua consciência, pela identidade-eu”. Trata-se de um processo que explica a gradual perda de coesão social provocada pela complexificação globalizada da vida e que, ao mesmo tempo, ajuda na compreensão da reação renacionalizante que se manifesta com regularidade ao longo da história, com particular destaque nos dias atuais, que poderiam ser percebidos como atravessados por uma espécie de “vingança” da “identidade-nós”.
Nessas sociedades, a mundialização da economia exerce um efeito desagregador sobre os diversos aspectos da vida organizada. Há mais do que transformação e mudança acelerada, a ponto de Ulrich Beck falar em “metamorfose”, uma transformação da natureza humana: estão todos — sociedades, grupos, classes, indivíduos, organizações — projetados no mundo, que se cosmopoliza e passa a exercer forte “atração gravitacional” sobre os Estados nacionais e suas instituições. Ocorreria então uma “metamorfose abrangente, não intencional, não ideológica, que se apodera da vida diária das pessoas e acontece de maneira quase inexorável, com uma enorme aceleração que supera constantemente as possibilidades de pensamento e ação”.
Em uma “sociedade de risco mundial”, na qual se empilham “incertezas fabricadas”, descontroles e descuidos, a maior parte dos problemas não encontra resposta institucional, criando a sensação de caos e insegurança. As instituições fracassam porque, concebidas que foram no interior de uma lógica nacional, não estão equipadas para a realidade cosmopolita. Ingressa-se em uma “zona crepuscular entre o falecimento da era nacional e a emergência de uma era cosmopolita”, zona essa em que o indivíduo se torna o ponto de referência, mas “afunda em uma inimaginável quantidade de dados”. A comunicação digital intensificada “força os indivíduos a confiar em si mesmos porque solapa a matriz de identidades coletivas dadas e a usar os recursos que os espaços cosmopolitas de ação possuem”. A experiência cotidiana fica cortada por uma espécie de “reflexividade organizada”, na qual tudo se torna reflexo e reflexão.
A vida fica saturada de tecnologia de comunicação e informação. Ganhos conseguidos com o progresso mostram-se sempre mais carregados de perigo. A paisagem mundial fica tingida por crises econômicas sucessivas e tragédias ambientais, tsunamis inesperados, incêndios arrasadores, em um quadro de irresponsabilidade de governos e instituições. A atual questão climática e do aquecimento global insere-se precisamente nesse contexto: tratada ora de forma apocalíptica, ora com desdém, ela expressa, ao mesmo tempo, a incompetência dos governos — muitos dos quais, por não saberem como enfrentar o problema, alegam que ele não existe –, e a ausência de um consenso internacional sobre como gerenciar a gravidade da situação ambiental.
A expansão e a consolidação da globalização se fazem acompanhar de uma generalizada multiplicação dos sujeitos sociais, mas não trazem consigo um particular reforço da institucionalidade, o que faz com que a vida social fique mais solta em relação ao Estado e ao aparato institucional. A crise de poder do Estado-nação implica uma crise de confiança dos cidadãos em relação a seus governos e sistemas políticos, corroendo parte das condições de legitimidade.
Constrangidos pelo capital financeiro, pelas agências internacionais, por redes e fluxos globais, os Estados obrigam-se a despender esforços ininterruptos para manter viva sua operacionalidade “para fora” e sua capacidade de resposta “para dentro”, ficando com mais dificuldade para atender às demandas de seus cidadãos. Como observou Yuval Harari, “estamos encalhados em políticas nacionais” ao passo que tudo o mais se globaliza: a dissonância produz um descolamento entre Estado e sociedade, gerando um vácuo difícil de ser preenchido.
É o que permite a Alain Touraine falar em “situação pós-social”: sistemas e atores não mais se integram, jazem separados do mesmo modo que a economia e a sociedade, e somente conseguem ser politicamente unificados em patamares universais (os direitos humanos, o ambientalismo, a regulação da economia globalizada, por exemplo). Os partidos políticos progressistas, formados e treinados em outra estrutura social, sofrem para se adaptar ao mundo “pós-social”. O ambiente geral é de rupturas, dissociação e ruídos.
Dinâmicas sociais desse tipo produzem múltiplos efeitos sobre as ações coletivas. As lutas passam a ser mais segmentadas e individualizadas, orientadas por identidades e direitos. Com a ampliação do “desejo de participação”, as agendas se fragmentam e se torna mais difícil unificá-las, especialmente porque cresce a intolerância com organizações “pesadas”, lentas, burocráticas e centralizadas, como são os partidos políticos. As lutas tendem a ser performáticas e “expressivas”, espetacularizadas, concentradas na busca por identidade, autonomia e reconhecimento.
Os embates sociais tornam-se claramente “disputas de significados”, de “narrativas” e de modelos culturais. Para os movimentos que surgem a partir dessa dinâmica, o que importa não é mais o poder do Estado ou do sistema político e de seus agentes, mas o poder do cidadão e de suas organizações, a dignidade do indivíduo e dos pequenos atores sociais. O “empoderamento” torna-se a meta. Não se trata de mudar a ordem capitalista ou reformá-la, como na esquerda tradicional, mas sim de garantir espaços sempre maiores de autonomia individual, solidariedade cívica, cooperação, tanto quanto possível gerando atritos que modulem a força e as restrições do sistema institucional e do sistema econômico.
Movimentos e partidos
Se, por um lado, demagogos e populistas são vistos como fatores negativos, que rebaixam a qualidade da democracia e fazem com que prevaleça uma atuação política desprovida de grandeza cívica, as redes e o ativismo associativo costumam ser tratados como fatores que expressariam os novos termos da vida social e carregariam consigo algumas promessas de revitalização democrática.
Ainda que nem sempre o ativismo cidadão seja uma ferramenta efetiva de democratização, é um fato que sua expansão ao longo das últimas décadas reflete uma busca por participação que não estaria a ser fornecida pela vida política institucionalizada e pelos partidos políticos, que atuariam sempre mais fechados em si mesmos. A contestação feita pelos novos movimentos em rede, nacionais e transnacionais, seria assim tanto uma “virtude cívica”, que fomenta a participação dos cidadãos, como um desafio para a democracia, graças aos efeitos disruptivos que tendem a ter sobre governos e sistemas políticos.
Como, porém, os partidos controlam os canais institucionais da política e são particularmente decisivos nos processos eleitorais, criou-se a percepção na opinião pública de que eles seriam os verdadeiros donos da representação, personagens do fenômeno da “partidocracia” e daquilo que, no Brasil, designou-se como “velha política”. Em uma época na qual a política não é devidamente valorizada no âmbito estatal e na opinião pública, os partidos são rejeitados por serem vistos como excessivamente poderosos no controle do processo decisório, o que afastaria os cidadãos das decisões políticas e bloquearia a participação cívica, com o efeito colateral de entregar a política aos interesses unilaterais dos políticos e à corrupção.
O incômodo causado pelos partidos, porém, nem sempre foi uma regra, ainda que tenha se manifestado de forma recorrente em diversas sociedades. Os partidos políticos de massa, em particular, conheceram períodos de prestígio, identificação e interação ético-política com os cidadãos, durante os quais atuaram de maneira efetiva tanto na governança das sociedades como na formatação de políticas públicas e na ampliação de direitos e garantias. Os “trinta anos dourados” do Estado de bem-estar, na Europa, por exemplo, foram vividos com um claro protagonismo partidário, sobretudo da social-democracia, do trabalhismo, da democracia cristã e do comunismo democrático. Muitos processos de transição democrática, como no Brasil de 1982 até a primeira década do século XX, foram vividos com a presença de partidos políticos com capacidade de liderança e articulação, casos do MDB, do PT e do PSDB, que obtiveram expressivo reconhecimento social.
Como observou Norberto Bobbio, dentre outros, “a polêmica antipartidos é tão antiga quanto os próprios partidos”. Como são associações de pessoas que “fazem acordo para estimular certas decisões políticas mais do que outras e determinar a política nacional”, é inevitável que os partidos sejam vistos como grupos privados de poder, mesmo que revestidos de funções públicas. Além do mais, a tipologia dos partidos é elástica e acomoda desde associações personalistas, instrumentalizadas pelos chefes, nas quais nada se discute ou se formula, até organizações especializadas no controle de recursos de poder e que operam como verdadeiros clusters dentro do Estado, com as devidas variações (partidos-Estado, partidos ideológicos, partidos-rede, partidos de massa). Tal fato faz com que se amplie com facilidade a imagem negativa dos partidos, ao mesmo tempo que dificulta sobremaneira o estabelecimento de fronteiras ou distinções entre o que é um partido e o que é um movimento cívico ou um movimento de ideias.
Acrescente-se a isso que os partidos foram fortemente afetados pelas “consequências da modernidade” tardia, que aprofundaram a reflexividade social, ou seja, geraram um universo de ação estruturado mediante práticas sociais que são constantemente “examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre as próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter”. O “conhecimento reflexivamente aplicado” e a revisão daquilo que está dado são radicalizados e reverberam em todos os aspectos da vida, fazendo com que cada pessoa seja impelida a refletir sobre suas próprias condições existenciais, ao mesmo tempo em que a dinâmica estrutural repercute sobre si mesma, gerando um permanente movimento de transformação.
Ao se combinar com a reorganização global da produção econômica capitalista, a modernização reflexiva sacrificou o mundo do trabalho, fragmentou as sociedades e pôs em curso uma revolução tecnológica-digital que imprimiu inédita velocidade à comunicação, reconfigurando os relacionamentos sociais, a cultura, as formas de organização. Movimentos de todo tipo surgiram na sociedade civil, impulsionados por lutas identitárias ou pela contestação ao sistema, desafiando as organizações partidárias. Tais circunstâncias modificaram o peso relativo dos partidos vis-à-vis as sociedades civis, os Estados e os mercados.
Os partidos passam a aprofundar sua crise, seja porque têm dificuldades para ajustar seus procedimentos aos novos ritmos da vida, seja porque suas bases de referência (classes sociais, grupos, regiões) se fragmentaram e adquiriram outras formas de agregação, seja enfim porque a própria democracia passou a sofrer abalos em sua tradução institucional. No afã de compensar a crise, os partidos ingressam em metamorfose permanente, perdendo as características que lhes davam sustentação e coerência.
Está nesse ponto o dilema que tem levado seja ao desaparecimento de grandes partidos da tradição comunista, como o italiano, seja aos problemas da social-democracia e do trabalhismo nos países em que conheceram sua maior fortuna (França, Alemanha, Inglaterra). A rigor, as organizações partidárias vivem hoje a processar conflitos internos e a estabelecer relacionamentos com movimentos que as acossam e com elas competem. O quadro é de busca de reposicionamento, de recuperação de um protagonismo que se perdeu no tempo.
Configura-se assim um quadro no qual a proliferação de movimentos empurra a política para uma dinâmica sempre mais centrífuga, sem que os partidos consigam compensar isso com a afirmação de uma dinâmica oposta, de tipo centrípeta. Em decorrência, prolongam-se processos que ampliam a fragmentação, não beneficiam a democracia e minam a “consciência da coletividade”.
A crise dos partidos de massa (especialmente dos perfilados mais à esquerda) coincide, por um lado, com o esgotamento das duas tradições que moldaram o mundo moderno, o liberalismo e o socialismo, e, por outro, com a disseminação social da democracia e dos direitos humanos. O desdobramento disso é que a luta política fica desprovida de agentes capazes de levar a democracia para o plano institucional, que é onde se pode de fato garantir direitos e ampliar a cidadania. Crescem assim os dilemas do campo progressista, ou seja, das correntes políticas e intelectuais sustentadas pela interpenetração vigorosa da liberdade com a igualdade social. Como viver numa “era de perplexidade”, pergunta-se Yuval Harari, na qual o gênero humano enfrenta revoluções sem precedentes, ao mesmo tempo em que “todas as narrativas antigas estão ruindo e nenhuma narrativa nova surgiu até agora para substituí-las”?
Se a velha ordem industrial e pós-industrial se mostra esgotada, também é verdade que ainda não se estabeleceu um novo padrão de vida coletiva, que se ressente da ausência de agentes unificadores e de um projeto de sociedade que reunifique o que está separado e prefigure o futuro, fornecendo uma imagem de como a vida comum pode ser na época de complexidade social e de preponderância da tecnologia e da inteligência artificial.
A proliferação de movimentos cívicos está diretamente determinada por esse quadro de metamorfose do mundo. Ela expressa a modificação dos humores sociais, o aumento da fragmentação e da complexidade societal, em um contexto no qual a política deixa de fornecer respostas satisfatórias, convincentes. Desejosos de participação e refreados pelas idiossincrasias dos sistemas políticos, muitos cidadãos buscam novos espaços de agregação e atuação. Os movimentos tornam-se, assim, uma espécie de desaguadouro do ativismo que floresce na hipermodernidade, expressando uma vontade coletiva de limitar as oligarquias partidárias, reformar a política e inventar novas formas de atuar politicamente. No horizonte de todos esses movimentos, anuncia-se a perspectiva de não repetir a organização tradicional dos partidos políticos.
Invariavelmente, os novos movimentos trouxeram, na agenda, a contestação da política institucional e das práticas nela ancoradas, algo que se expandiu na mesma medida em que avançaram a crise do Estado de bem-estar e a ultrapassagem da sociedade industrial. Como demonstram os fatos das duas primeiras décadas do século XXI, um clima de mal-estar, indignação e revolta se colou à vida cotidiana. “Não foram apenas a pobreza, a crise econômica ou a falta de democracia que causaram essa rebelião multifacetada. Mas sim a humilhação provocada pelo cinismo e pela arrogância das pessoas no poder, seja ele financeiro, político ou cultural”. Redes multitemáticas se formam tendo na base um interesse comum: “controlar a capacidade de definir as regras e normas da sociedade mediante um sistema político que responde basicamente a seus interesses e valores”.
Dadas as circunstâncias de crise da política, os movimentos sociais podem de fato ajudar a tirar o poder e o sistema político da zona de conforto em que vivem. Podem pressioná-los de fora para dentro, forçá-los a se atualizar e a se democratizar. Podem introduzir, no sistema, novas regras, novos critérios de inclusão, novos direitos e novos processos de tomada de decisões. Podem fazer com que a “política-vida” se cole na “política-poder”. Fica, porém, em aberto, o problema de saber em que medida os movimentos podem atingir esses fins sem uma articulação com o sistema político, ou seja, com partidos, instituições sistêmicas e governos.
Os movimentos sociais da hipermodernidade não podem ser tratados como expressão típica da esquerda ou do progressismo democrático. Refletem muito mais a complexidade social, as falhas do sistema político e as próprias características adquiridas pela democracia representativa no correr das modificações estruturais. No Brasil atual, por exemplo, os movimentos sociais surgidos nos últimos anos têm um perfil mais propriamente “conservador”, privilegiando o questionamento de instituições como o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, a pressão em favor do combate à corrupção — visto como um pleito de caráter mais moral que político –, a reivindicação de melhores políticas públicas.
Se considerarmos particularmente o Brasil, não será difícil constatar a presença de traços que definem essa paisagem de metamorfose e transfiguração. A própria redemocratização, iniciada nos distantes anos 1980, parece sem força para se desdobrar. Faltam-lhe, entre outras coisas, atores e projeto. Os partidos brasileiros não conseguem dar conta de uma realidade que escapa à sua compreensão e que os empurra para a condição de meros reprodutores do sistema. Dividem-se e subdividem-se ao sabor da dinâmica política, o que os enfraquece e amplia a fragmentação do sistema partidário. Deixam escapar pelas mãos algumas oportunidades importantes para melhorar seu funcionamento, amenizar os estragos sobre a democracia e encontrar pontos de cooperação e unidade que transfiram substância a seus programas de ação e às grandes linhas doutrinárias que os referenciam: o liberalismo, o conservadorismo, o socialismo.
Movimentos e crise da política no Brasil
A situação partidária no Brasil é marcada por um paradoxo: ainda que pouco eficientes no diálogo com a sociedade e a opinião pública, os principais partidos funcionam e conseguem transferir alguma estabilidade ao sistema político. Vivem em um ambiente de disputas incessantes por espaços e recursos de poder, algo amplificado pela forte fragmentação do Congresso e pelo funcionamento de “bancadas suprapartidárias” que em boa medida retiram força e coesão dos próprios partidos. São também acossados, ao menos desde 2013, pelos movimentos que se dedicam à seleção e formação de lideranças cívicas, que terminam por opor aos partidos uma dinâmica externa a eles, fonte de não poucos problemas.
Apesar disso, as principais agremiações — PT, PSDB, PMDB, PL, DEM, PSD, PSB, PDT (não necessariamente nesta ordem) — conseguem manter uma surpreendente unidade de atuação parlamentar, graças aos influxos da política subnacional (o peso dos governadores e das bancadas estaduais) e a uma relação de barganha com o Poder Executivo. Suas estratégias “corporativistas” de defesa dos próprios interesses fazem com que o sistema partidário se reproduza, mas sempre em tensão com a opinião pública.
Um sistema partidário estável não é sinônimo de eficiência na gestão pública, na governança, no controle do Poder Executivo ou na revitalização da democracia. Pode mesmo ser o contrário disso. Os partidos brasileiros funcionam, mas carecem de capacidade de apresentar projetos de sociedade. Entregam-se sem pudor ao jogo eleitoral e à manipulação dos recursos de poder de que podem dispor. Não selecionam adequadamente seus representantes, preocupam-se pouco com sua formação e seu preparo técnico-político e cultural.
Um sistema desse tipo funciona com brechas evidentes, por onde entram as críticas da opinião pública, as táticas de captura dos partidos pelos grandes interesses organizados e a busca incessante, pela sociedade civil, de caminhos alternativos de pressão e representação.
No Brasil, o alarme soou em 2013, quando massas de manifestantes desceram às praças sem organização e sem lideranças, posicionando-se como fatores de pressão sobre o sistema político e de recusa à intermediação partidária. Ficou evidente a distância entre o sistema político e a polissêmica voz das ruas.
Os protestos surpreenderam, mas as razões de sua efervescência estavam inscritas na realidade do capitalismo globalizado, na história nacional e na conjuntura política em sentido mais estrito. Falou alto a reestruturação da vida brasileira, que se fazia sem ultrapassar a desigualdade e a má oferta de serviços públicos, as injustiças, a má qualidade da política democrática, a corrupção e os desmandos governamentais.
Dos protestos de 2013 vieram movimentos que se mantiveram ativos nas ruas e desaguaram no impeachment de Dilma Rousseff e, depois, na eleição de Jair Bolsonaro. Se, antes, a contestação social era feita por iniciativas de esquerda, gradualmente houve um deslocamento: da exigência de mais igualdade, distribuição e reforma social, passou-se a uma pauta de questionamento dos políticos, da corrupção, dos poderes instituídos, algo que terminou por ser assimilado pela direita e pelo campo mais conservador. O verde-e-amarelo tomou conta das ruas, a expressar um “patriotismo” extemporâneo e uma repulsa ao “petismo” que dominara a política nacional até a queda da ex-presidente.
Em 2013, o protesto contra as deficiências na prestação de serviços públicos trincou a imagem de “paz social” que havia no ar. A revolta não organizou uma agenda clara, mas fez com que ressoasse por longos dias um grito de indignação e angústia coletiva. Ignorou parlamentares, sindicatos e partidos políticos. Ainda que de modo espontâneo e improvisado, deixou evidente que se dirigia contra o governo representativo tal qual estruturado no Brasil: contra todos os governos, o sistema político, seus atores, seus procedimentos e sua cultura. O protesto escancarou uma crise da política que vinha de longe, que trocara sua manifestação explícita por uma latência recorrente que aos poucos foi corroendo a representação política e pondo em xeque a legitimidade dos governos. O que se questionou, portanto, foi o arranjo político protagonizado por pessoas, grupos e classes, interesses econômicos e organizações que, por vias ora dissimuladas, ora explícitas, têm-se associado para governar o país.
A crise germinou e se aprofundou com o correr do tempo. Foi impulsionada pelos governos, que continuaram a exibir falhas graves e mau desempenho, tanto em termos de gestão e de políticas públicas, como em termos de comunicação e diálogo com a população. A corrupção cresceu ininterruptamente. Os partidos políticos seguiram em frente como associações parasitárias, sem vida e sem ideias. Não contribuíram para transferir maior politicidade à sociedade civil, que cresceu em dimensão e ativismo sem conseguir contornar a fragmentação. O sistema foi permitindo que se agigantasse o contraste entre a miséria de boa parte da população e os gastos desnecessários, o desperdício e o uso suntuoso de recursos públicos pela elite política e administrativa (Executivo, Legislativo e Judiciário). Foi se distanciando da sociedade e a incentivando a se tornar “contra a política”.
Para complicar, a perversão sistêmica ganhou uma sobredeterminação. Tornou-se mais grave durante o período em que o vértice do Estado passou a ser integrado por quadros e políticos do Partido dos Trabalhadores, que sempre se apresentou e cresceu como expressão do progressismo e da justiça social. Sob seus governos, porém, reproduziram-se as bases do clientelismo, do patrimonialismo e da corrupção, o que gerou ainda mais frustração e indignação, que aumentaram na medida em que foi ficando claro que persistiam os privilégios das grandes empresas, a impunidade dos mais ricos, os gastos exorbitantes e sem critérios claros, o enriquecimento dos dirigentes políticos.
Em junho de 2013, a hipermodernidade proclamou sua presença na política. Dali em diante, as ruas brasileiras ficaram mais ativas, mas o estupor se fixou no campo democrático. Uma incessante disputa por visibilidade e “narrativas” tomou conta da vida política e foi corroendo, pouco a pouco, todos os protagonistas do sistema político e da política tradicional, abrindo espaços generosos para outsiders e novas agendas, de tipo conservador. A derrota dos partidos de centro, centro-esquerda e esquerda nas eleições de 2018 revelou uma democracia carente de eixo, exposta ao autoritarismo regressista e demagógico de Jair Bolsonaro, que se alimentou da desilusão social, do antipetismo e da denúncia da “velha política” para vencer de modo insofismável nas urnas.
A eleição de Jair Bolsonaro no Brasil, em 2018, explica-se em boa medida por esse quadro. Naquele ano, com o sistema político abrindo falência, a economia em recessão e a sociedade mostrando apetite anti-establishment, as correntes democráticas (liberais, social-democratas, de esquerda) privilegiaram as diferenças entre elas e deixaram campo aberto para a ascensão vitoriosa da extrema-direita. Mostraram incompetência e ausência de visão estratégica. Prepararam o terreno para a eleição de um candidato improvável e despreparado, sem conseguir compreender as razões de sua progressiva afirmação.
Bolsonaro mostrou senso de oportunidade ao endossar um figurino específico na hora mesma em que o eleitorado demonstrava estar cansado das ofertas políticas usuais. Suas proposições autoritárias, seu estilo informal, o uso abusivo de valores religiosos e moralistas e sua habilidade em utilizar as redes sociais encontraram eco nos eleitores, que viram nele uma opção ou para derrotar o PT e virar a página, ou para depositar esperanças num líder de novo tipo.
A extrema-direita vitoriosa chegou ao poder disposta a promover a eliminação da esquerda e de suas filosofias, transformando a democracia progressista em inimigo, desprezando postulações identitárias, criminalizando gays e feministas em nome de uma moralidade regressista. Estigmatizou a política, os políticos e seus partidos, menosprezou o ritmo democrático e o sistema de freios e contrapesos da República, sempre apelando à sociedade para atacar o “sistema”. Passou a atuar em nome do combate a aspectos deplorados pela opinião pública — a “velha política”, os políticos, a corrupção — , articulando tais pontos com uma bizarra postura contrária ao “globalismo”, à democracia representativa, ao ambientalismo, ao socialismo.
A hostilidade como procedimento tornou-se metódica, um recurso de mobilização. O governo permanece em campanha sem alcançar muita coordenação e sem entregar resultados concretos. O risco de isolamento social despontou, fazendo com que o governo aumentasse seu estilo belicoso.
A guerra ideológica da extrema direita contra partidos, “velhos políticos” e sociedade civil desorganiza a democracia, aumenta os custos da transação política, enfraquece instituições e órgãos públicos. Em vez de promover a superação da polarização fratricida que reinou nos últimos anos, ela a agrava, a esvazia de dignidade e a empurra para a violência explícita. Por um lado, impede que se atinja uma sociedade mais coesa e um Estado administrativo mais eficiente. Por outro, faz com que se reforce a crise de confiança nas instituições e na própria democracia, fomentando a concentração das expectativas sociais na autoridade presidencial.
Conclusão: o futuro em aberto
O principal problema do progressismo brasileiro não é a existência de um governo de extrema direita presidido por um demagogo fundamentalista e retrógrado. O problema é que ele governa em um quadro de desarticulação, de desconexão dos partidos democráticos entre si e com a sociedade civil. A verborragia provocativa, a narrativa tóxica e o estilo agressivo do presidente precisam ser decodificados. Não são o dado mais importante: são parte do drama, integram a coreografia, mas não definem o drama.
Por trás da violência verbal, há uma disputa direcionada para refazer o pacto social brasileiro, as regras vigentes no mundo do trabalho e do emprego, o modo como historicamente se concebeu o desenvolvimento econômico entre nós, com seus devidos acordos interclasses. Ainda não está suficientemente claro o fôlego que terão as forças políticas que hoje governam o País. Não se sabe, também, se do projeto governamental sairá alguma nova situação econômica, se haverá ou não retomada do crescimento e melhoria das condições de vida dos brasileiros. Sabe-se, porém, que Bolsonaro é o instrumento de uma aposta, de uma maneira de conceber o império do mercado, que se combina, paradoxalmente, com isolacionismo internacional e alinhamento meio atabalhoado com as correntes “soberanistas” que tentam se fixar no mundo. O ultraliberalismo econômico serve de instrumento para a afirmação do reacionarismo na política, na cultura, na moral.
O comportamento presidencial e de parte de seus ministros prenuncia uma era de regressão ética e barbárie social, funciona como uma cortina de fumaça que oculta a fraqueza técnico-política do governo e a ausência nele de um projeto para a sociedade.
O sistema político mantém seu perfil e seu equilíbrio, sem ter sido abalado pela vitória de Bolsonaro e a ascensão inesperada de seu partido, o PSL. A “velha política” continua no comando, com os mesmos expedientes de sempre. Os partidos mais fortes permanecem votando em uníssono, em que pesem os ruídos provocados pela voz dissonante de alguns parlamentares, como por exemplo nas votações da reforma previdenciária.
O sistema resiste e demonstra, em alguns momentos, ser capaz de impulsionar o processo de tomada de decisões e de compensar a conduta errática do Executivo. Mas é um sistema que reitera suas marcas negativas, que opera olhando para o próprio umbigo e em nome de interesses próprios. Em parte ele se contrapõe aos movimentos do governo e mostra independência, em parte se consome em seu próprio fogo corporativista.
Falta articulação ao governo, que carece da capacidade de produzir consensos e arregimentar as próprias forças no Congresso, como tem sido evidenciado pela marcha da reforma previdenciária, tida como estratégica pelo governo e necessária pela maior parte dos parlamentares. A reforma avançou mais por empenho da Câmara dos Deputados do que por iniciativa governamental. Foi sendo reformulada no âmbito legislativo sem que as bases do governo atuassem de forma coordenada.
A falta de articulação política é um problema dos partidos, mas é antes de tudo expressão de uma grave falta de liderança. Sem líderes consistentes e com um presidente da República desinteressado do tema, despreparado para imprimir qualidade ao processo decisório, a política transcorre com dificuldade. Seria uma oportunidade para os democratas, não estivessem eles afetados pela mesma carência de lideranças e agregação.
A repercussão desse vazio atinge o conjunto das relações políticas: entre o Executivo e o Legislativo, entre os três poderes, entre a Câmara e o Senado, entre os entes da federação. Os dispositivos de “checks and balances” (pesos e contrapesos) tornam-se pouco eficientes e a dinâmica política, por sua vez, deixa de produzir efeitos virtuosos, travando o avanço de reformas econômicas, o controle das políticas públicas e a proteção de direitos.
Há muita contestação e resistência aos atos, palavras e decisões governamentais, mas não há propriamente oposição. A sociedade e a opinião pública continuam divididas entre bolsonaristas, petistas, conservadores, liberais e socialistas, mas essa divisão não assume forma política. A polarização se mantém em parte como produto passivo da longa exposição à dialética do “nós contra eles” que vem dominando a política nacional, e em parte graças à insistência governamental em hostilizar o PT, o socialismo, as esquerdas, a democracia. Assim disposta, a polarização reflete a paralisia dos democratas liberais, de centro e socialistas, que não se articulam para apresentar à sociedade uma via que contraste a extrema direita no poder.
Crise de pensamento e ação dos democratas
Como a economia não dá mostras de que sairá do lugar no curto e médio prazo, pode-se antever que não haverá espaços para bonança fiscal, empregabilidade e expansão do consumo. Poderá evaporar, assim, parte importante das promessas de Bolsonaro. Somando-se a isso o desmascaramento da sua postura anticorrupção, seu familismo recorrente, o comportamento folclórico de alguns de seus ministros e o mau funcionamento da máquina administrativa, é de prever que sua popularidade não subirá.
Nem isso, porém, tem servido para energizar as forças políticas que se opõem ao governo. Elas permanecem desorientadas, contaminando os cidadãos e os movimentos sociais de viés democrático. Não há lideranças, faltam propostas e ideias, a perspectiva de uma coalizão democrática permanece no papel.
Palavras são palavras: têm mil e uma utilidades. Em política, influenciam, organizam, são recursos de hegemonia. Podem educar, iludir, inflamar, envenenar. Precisam ser, por isso, decodificadas, decifradas, criticadas, levadas em conta, em si mesmas e na “narrativa” que impulsionam. No caso de Bolsonaro, antes de tudo, porque elas contrastam a Constituição, especialmente no que diz respeito ao capítulo dos direitos e da ordem social. As frases racistas, preconceituosas, misóginas, anticientíficas, abrigam uma violência que turva e colide com o modo de ser dos brasileiros. Deseducam para a cidadania.
Diante das tropas fanatizadas do bolsonarismo, palavras servem para mobilizar, sem elas a base se desmancha e a narrativa não se sustenta. O “mito” deve ser reposto dia após dia, para que sua demagogia populista e patrioteira sobreviva. É uma reposição que se faz com atos e decisões, mas também com palavras, que mobilizam e persuadem. É preciso separar o caricato do substantivo, descobrir o que há por trás do palavrório de Bolsonaro. Sua narrativa funciona como um filtro que bloqueia a visão da paisagem. É tóxica sobretudo por isso. Desconstruí-la é recuperar uma perspectiva e um entendimento que se perderam pelo caminho.
O progressismo brasileiro precisa abrir novas portas. Buscar maior interlocução, abandonar projetos parciais de poder e cálculos eleitorais de curto prazo. Ir além da “resistência” e da contestação retórica. Deve converter-se em oposição e disputar a sociedade, sem medo de ousar, correndo riscos que valham a pena.
Marco Aurélio Nogueira: Longe da democracia e do Brasil real
O elogio do endurecimento político, da ditadura e do passado autoritário serve para que Eduardo Bolsonaro agrida a Constituição e ataque a esquerda, sem definir do que está falando
Dado o histórico dos expoentes do bolsonarismo, não chegam a surpreender as declarações do deputado Eduardo Bolsonaro divulgadas na manhã desta quinta-feira, dia 31. Mas elas são espantosas e estão causando profundo mal-estar e ruído na política nacional.
Até semanas atrás, o deputado era candidato a representar o Estado brasileiro em Washington. Posava de estadista, de alguém talhado para se movimentar no xadrez internacional, atividade que, para ele e para seu pai, não requer maior preparo ou experiência. De modo recorrente, ele exibe despreparo e falta de temperança, distanciando-se ostensivamente da figura de estadista, que ele traduz de forma invertida: em vez de falar pelo Estado, porta-se como alto-falante de um nicho ideológico fanatizado e cego para a complexidade do mundo.
Ao dizer que tem informações de que as manifestações no Chile estão vinculadas ao “Foro de São Paulo” e podem ter sido financiadas por dinheiro desviado do BNDES, o deputado se intromete indevidamente nos negócios chilenos, além de acender uma fogueira dentro do Brasil. Esbofeteia parte expressiva dos cidadãos brasileiros.
“Estarrecedoras”, “repugnantes” e “irresponsáveis” foram os adjetivos mais suaves empregados pelas inúmeras pessoas (militares, parlamentares, juristas, sociedade civil) que repudiaram as declarações do deputado. O pai presidente disse que o filho estava “sonhando” e lamentou que tenha falado o que falou. Pouquíssimos o defenderam. Muitos pediram sua cassação.
Eduardo nem sequer se preocupou com a Constituição e a verdade dos fatos. Dispara sua verborragia com enorme desfaçatez. Para ele, havendo manifestações de rua como as que estão a sacudir o Chile, o tratamento terá de ser policial, duro, violento. “Se a esquerda radicalizar a esse ponto, vamos precisar dar uma resposta. E essa resposta pode ser via um novo AI-5, pode ser via uma legislação aprovada via plebiscito, como ocorreu na Itália. Alguma resposta vai ter que ser dada”, afirmou.
O deputado talvez não saiba, mas a “resposta italiana” a que se refere ocorreu durante o fascismo, em 1929, quando as eleições foram substituídas por plebiscitos, nos quais o povo dizia sim ou não a uma lista de candidatos escolhida pelo Grande Conselho Fascista.
Quanto ao AI-5, ele com certeza está bem informado, pois as medidas de exceção, o autoritarismo e o desrespeito às garantias constitucionais são objetos de desejo do bolsonarismo. Editado em dezembro de 1968, o Ato Institucional nº 5 revogou direitos fundamentais e delegou ao presidente da República o poder de cassar mandatos de parlamentares, intervir nos municípios e Estados. O Ato suspendeu princípios importantes, como o habeas corpus, e restringiu dramaticamente as liberdades. A partir dele, a violência, a censura, o arbítrio e a repressão aumentaram.
A apologia do endurecimento político, o elogio à ditadura e ao passado autoritário, serviu para que o deputado atacasse, com veemência e desprezo, a esquerda: “A gente, em algum momento, tem que encarar de frente isso daí. Vai chegar um momento em que a situação será igual ao final dos anos 1960 no Brasil, quando sequestravam aeronaves, quando executavam, sequestravam grandes autoridade como cônsules, embaixadores, execução de policiais, de militares”, disse. “É uma guerra assimétrica, não uma guerra onde você está vendo seu inimigo do outro lado e você tem que aniquilá-lo, como acontece nas guerras militares. É um inimigo interno, de difícil identificação aqui dentro do País. Espero que não chegue a esse ponto, mas a gente tem que estar atento.”
De uma só tacada, Eduardo Bolsonaro provocou, agrediu e exibiu ignorância. Falou de “esquerda”, “radicalização”, “inimigos internos” e “guerra assimétrica” sem se preocupar em definir do que está precisamente falando. E sem se importar em pagar de autoritário, de adversário da Constituição e da democracia.
É a cara de um Brasil mitificado e perverso, que o bolsonarismo insiste em recuperar. Um Brasil que não é dos brasileiros, mas de um segmento assentado no ódio, na violência, na mesquinharia. E que, ciente de seu isolamento, esbraveja e esperneia, jogando no lixo a racionalidade, o equilíbrio, a serenidade.
Marco Aurélio Nogueira: Atos e venenos
A polarização se mantém graças à insistência do governo em hostilizar o PT...
Durante os nove meses do governo Bolsonaro a opinião pública, a mídia e a sociedade civil entraram em contato com um estilo particular de governação, repleto de grosserias, idas e vindas no plano decisório, muito desencontro administrativo, pouca qualidade técnica nas proposições governamentais e um espírito beligerante nas relações internacionais. O discurso presidencial na ONU, terça-feira, foi um exemplo eloquente disso.
As patacoadas e barbaridades ditas por ele, dentro e fora do País, precisam ser postas no devido lugar. Não são o dado mais importante, nem servem para ocultar o que escorre por baixo do pano. A verborragia provocativa, a narrativa tóxica e o estilo deixa que eu chuto do presidente são parte do drama, integram a coreografia, mas não definem o drama.
Por trás há uma disputa direcionada para refazer o pacto social brasileiro, as regras vigentes no mundo do trabalho e do emprego, o modo como historicamente se concebeu o desenvolvimento econômico entre nós, com seus devidos acordos interclasses. Ainda não está suficientemente claro o fôlego que terão as forças políticas que hoje governam o País. Não se sabe também se do projeto governamental sairá alguma nova situação econômica, se haverá ou não retomada do crescimento e melhoria das condições de vida dos brasileiros. Sabe-se, porém, que Bolsonaro é o instrumento de uma aposta, de uma maneira de conceber o império do mercado, que se combina, paradoxalmente, com isolacionismo internacional e alinhamento meio atabalhoado com as correntes “soberanistas” que tentam se fixar no mundo. Direitismo combinado com ultraliberalismo econômico.
O comportamento presidencial e de parte de seus ministros prenuncia uma era de regressão ética e barbárie social, funciona como uma cortina de fumaça que oculta a fraqueza técnico-política do governo e a ausência nele de um projeto para a sociedade
O sistema político mantém seu perfil e seu equilíbrio, sem ter sido abalado pela vitória de Bolsonaro e pela ascensão inesperada do PSL. A “velha política” continua no comando, com os mesmos expedientes de sempre. Os partidos mais fortes permanecem votando em uníssono, em que pesem os ruídos provocados pela voz dissonante de alguns parlamentares, como, por exemplo, nas votações da reforma previdenciária.
Ainda que aos trancos e barrancos, o sistema tem resistido, chegando mesmo em alguns momentos a demonstrar certa capacidade de impulsionar o processo de tomada de decisões e de compensar a conduta errática do Executivo. Mas é um sistema que reitera muitas marcas negativas, opera olhando para o próprio umbigo e em nome de interesses próprios, como se pode ver nas discussões sobre o fundo eleitoral. Em parte ele se contrapõe aos movimentos do governo e mostra independência, em parte se consome em seu próprio fogo corporativista.
Há muita contestação e resistência aos atos, palavras e decisões governamentais, mas não propriamente oposição. A polarização política tornou-se inoperante: a sociedade e a opinião pública continuam divididas entre bolsonaristas, petistas, conservadores, liberais e socialistas, mas essa divisão não assume forma política. Produto passivo da longa exposição à dialética do “nós contra eles” que tem dominado a política nacional, a polarização mantém-se graças à insistência governamental em hostilizar o PT, o socialismo, as esquerdas, a democracia. É uma inoperância que reflete a paralisia dos democratas liberais, de centro e socialistas, que não se articulam para apresentar à sociedade uma via que contraste a extrema direita no poder.
A falta de oposição expressa grave crise de pensamento e ação dos democratas. Em se reproduzindo, tem um único resultado possível: o prolongamento do bolsonarismo. A paralisia cobrará um preço mais adiante.
Como a economia não dá mostras de que sairá do lugar no curto e médio prazo, pode-se antever que não haverá espaços para bonança fiscal, empregabilidade e expansão do consumo. Vai evaporar, assim, parte importante das promessas de Bolsonaro. Os portões do paraíso não serão abertos por ele. Somando a isso o desmascaramento da sua postura anticorrupção, seu familismo recorrente, o comportamento folclórico de alguns de seus ministros e o mau funcionamento da máquina administrativa, é de prever que sua popularidade não subirá.
Nem isso, porém, tem servido para energizar as forças políticas que se opõem ao governo. Elas permanecem desorientadas, contaminando os cidadãos e os movimentos sociais de viés democrático. Não há lideranças, faltam propostas, a ideia de uma “frente democrática” não sai do papel.
Em política, as palavras contam. Precisam ser decifradas, criticadas, levadas em conta, em si mesmas e na “narrativa” que impulsionam. No caso de Bolsonaro, antes de tudo, porque elas contrastam a Constituição, especialmente no que diz respeito ao capítulo dos direitos e da ordem social. As frases racistas, preconceituosas, misóginas, anticientíficas abrigam uma violência que turva e colide com o modo de ser dos brasileiros.
Palavras são palavras: têm mil e uma utilidades. Diante das tropas fanatizadas do bolsonarismo, servem para mobilizar. Sem elas a base se desmancha e a narrativa não se sustenta. O “mito” deve ser reposto dia após dia, para que sua demagogia populista e patrioteira sobreviva. É uma reposição que se faz com atos e decisões, mas também com palavras, que mobilizam e persuadem.
Palavras influenciam, organizam, são recursos de hegemonia. Podem educar, iludir, inflamar, envenenar. Precisam ser, por isso, decodificadas.
É preciso separar o caricato do substantivo, descobrir o que há por trás do palavrório de Bolsonaro. Sua narrativa funciona como um filtro que bloqueia a visão da paisagem. É tóxica, sobretudo, por isso. Desconstruí-la é recuperar uma perspectiva e um entendimento que se perderam pelo caminho.