Marco Aurélio Nogueira: Oliveiros Ferreira, uma ausência sentida
Oliveiros ficou quase meio século vinculado ao Estadão, como editorialista, redator chefe e diretor
Marco Aurélio Nogueira / O Estado de S. Paulo
Nos momentos mais agudos de crise e confusão institucional, muitos o procuravam, em busca de uma opinião diferenciada, fora do mainstream, uma compreensão mais abrangente da vida.
Oliveiros S. Ferreira (1929-2017), que faleceu há exatos quatro anos, é uma voz cuja ausência nos faz falta. Heterodoxo, provocador, observador atento dos processos políticos e de seus bastidores, era um intelectual completo, que não fugia da responsabilidade de trabalhar com ideias. Não evitava as críticas, gostava de atrai-las, transformando-as em alimento para as próprias elucubrações.
Oliveiros ficou quase meio século vinculado ao Estadão, como editorialista, redator chefe e diretor. Trabalhou também como professor na USP (desde 1953), na PUC, na Unesp. Notabilizou-se como um dos pioneiros no estudo das relações internacionais. Foi meu orientador no doutoramento, período em que descobri quanto ele era um intelectual diferenciado, que reunia o erudito ao analista político minucioso, os grandes quadros interpretativos aos fatos cotidianos muitas vezes apagados pela valorização unilateral das estruturas. Era um professor cativante, sabia ensinar e instigar, atiçava os estudantes com suas elipses e metáforas.
Ainda hoje me valho da “teoria das posses essenciais” (das almas, dos corpos, do poder, do excedente), que fundamentava a ciência política de Oliveiros. Nela havia influências múltiplas: Durkheim, Weber, Marx, Ortega y Gasset, Rosa Luxemburgo, Oliveira Viana, Hobbes, Maquiavel, Clausewitz, Rousseau, Trotsky, Gramsci. Ao marxista italiano, Oliveiros dedicou estudo sistemático, convencido de que Gramsci era um vigoroso pensador do Estado. Sua tese de livre-docência, defendida na USP, foi uma leitura dos Cadernos do Cárcere de Gramsci. Oliveiros deu-lhe o título de Os 45 Cavaleiros Húngaros, numa remissão à história dos soldados húngaros que, em reduzido número, submeteram a população inteira de uma cidade.
Em seu pensamento, a teoria social, as relações internacionais, a História e a política mantinham-se sempre articuladas. Estava convencido de que não pode haver teoria política sem Sociologia, o “nacional” é sempre parte do “global” e os fatos políticos devem ser compreendidos “à luz do Espaço e do Tempo em que se
Hoje, o intelectual poderia dizer que a ascensão da extrema-direita populista ‘prostituiu’ o Estado e suas instituições
dão”, da “densidade e do volume dos grupos sociais” que se relacionam e lutam entre si.
Em momentos de crise como o que enfrentamos hoje, a teorização de Oliveiros é esclarecedora. A dominação política não se reduz a posses materiais e uso da força. Domina quem exerce uma “direção intelectual e moral” (Gramsci), ou seja, unifica pensamento e vida prática, emoções, valores e interesses, de modo a soldar “as experiências de vida num projeto votado a transformar o mundo, ou a conservá-lo aparentemente como tal”, escreveu Oliveiros.
Assim ele chegava ao Estado, o ente que organiza, define uma ordem normativa, garante a soberania. O Estado, para ele, era unidade de decisão e ação, mas também um “espaço” onde as classes sociais lutavam para se tornar dirigentes, ou seja, um lócus de disputa hegemônica, no qual venciam os que conseguissem elaborar uma concepção do mundo que alcançasse o “grande número” e neutralizasse os adversários.
Oliveiros foi um unitarista preocupado em ver o Estado como articulador da sociedade, defensor de seu território e de seu patrimônio. Pensou a política a partir desse registro, sem nunca aceitar que em nome da unidade estatal (ou do “amor pela Pátria”) se aniquilassem as diversidades regionais, a cultura e a democracia.
Para ele, no Brasil, as classes sociais não souberam unir politicamente o País e sobrecarregaram o Estado. Passamos a viver sob a sombra ameaçadora de ditaduras e guinadas autoritárias. Com isso, um pedaço da estrutura estatal – os “militares” – terminou por agir com maior desenvoltura política, como Oliveiros salientou no livro Os elos partidos (2007).
Após a democratização dos anos 1980, o capitalismo se reorganizou, a sociedade se diferenciou e o País enveredou por trilhas inquietantes. Piorou com a eleição, em 2018, de um governo que age sem responsabilidade, limites e escrúpulos. Oliveiros poderia dizer que a ascensão da extrema-direita populista “prostituiu” o Estado e suas instituições. A política deixou de fixar grandes objetivos nacionais com que alimentar os órgãos do Estado e, por meio deles, chegar à população. Oliveiros estaria atento aos fatos, mobilizando sua “dialética da Ordem” para analisar o que muda e como pode mudar a realidade.
Hoje, ainda falta ao Brasil a solução de seu enigma fundacional: a organização autônoma da sociedade e a articulação entre Estado e vida social. Continuamos sem sujeitos capazes de promover “políticas dirigidas para o futuro”.
Oliveiros ajudou-nos a compreender melhor o mundo em que vivemos. Foi uma referência para jornalistas e cientistas sociais, para os que se dedicam à ciência política e às relações internacionais sem esquemas atrofiadores. Sua ausência faz uma falta danada.
*Professor titular de teoria política da Unesp
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,oliveiros-ferreira-uma-ausencia-sentida,70003876927
O poder, os tiranos e os piores. Não há quem escape de seu fascínio
O poderoso tirânico cerca-se de cópias de si mesmo, incompetentes, ignorantes, vulgares
Seja no Estado, no mercado ou na sociedade civil, o poder arrebata. Ele oferece vantagens e recompensas, mesmo que também traga sacrifício e sobrecarga.
São as recompensas que seduzem. Ver-se obedecido, admirado e elogiado faz brilhar os olhos de muita gente. É o que leva a que se cometam excessos e estripulias, cresçam as ilusões e os autoenganos. O poderoso nunca está sozinho. Seu círculo mais próximo é fonte permanente de intrigas, inveja e cobiça, o que provoca atritos e colisões. O poder não pode tudo. Numa democracia, tem de se haver com o povo livre, a sociedade civil, o sistema de controles, os demais poderes.
O poder fascina anjos e demônios, pessoas com vocação para o bem público e pessoas mesquinhas, agarradas aos próprios interesses. Quando um anjo se deixa seduzir pelo poder, ele perde integridade e pujança reformadora. Seus planos e projetos deixam de ser factíveis e se tornam dependentes de acordos espúrios, batendo às portas da corrupção. Quando um demônio chega ao poder, ele se realiza como excrescência perversa. Exala maldade por todos os poros e trafega pelos becos escuros da sociedade, onde vicejam a boçalidade, a ignorância, a violência, o desregramento. Alia-se a quadrilhas e redes corruptas, na ilusão de conseguir com elas uma base sólida de apoio e financiamento. Apela para manobras populistas para chegar ao povo, mas o seu é um populismo regressista, malévolo, mais nefasto que qualquer outro.
O poderoso tirânico acredita que ser autoritário e impositivo é a principal ferramenta para intimidar subalternos e aliados. É por isso que ele se cerca de cópias de si próprio, pessoas incompetentes, ignorantes e vulgares, dispostas a todo tipo de serviços. A “kakistocracia”, o governo dos piores, é seu modelo de atuação. Ele o faz valer destruindo a política, os partidos, as instituições. Abre os portões para que a mediocridade se imponha em todos os lugares.
A poliarquia confunde e desafia o poderoso. Faz que fique acuado e enverede pelas trilhas obtusas do destempero e da agressão verbal. Quanto mais tosco o poderoso, mais a tirania o atrai, pois não sabe conviver com a diferença, com quem o contrasta e desafia.
Nenhum tirano é democrata. Sempre tende a fugir da realidade. Parafraseando Macbeth, sua desgraça são as loucuras paranoicas da imaginação, mais que os temores do presente. Num Estado democrático, o tirano se dissimula. Diz que segue as regras constitucionais, mas age sistematicamente para burlá-las. Aceita eleições desde que sejam moldadas para referendá-lo. Quando não consegue, passa a atacá-las e ameaça suspendê-las. Boicota o controle entre os Poderes, procura interferir em todos eles. Invade o Congresso e as Cortes judiciárias com atos bombásticos e tropas de ataque. Enxerta amigos nos espaços institucionais para impedi-los de funcionar com independência. Deseja-se absoluto. Seu orgasmo é o exercício coreográfico do poder.
Como em seus antepassados, o poder do tirano moderno pede exibição, na glória e na dor. Ele necessita expor, calculadamente, até mesmo suas entranhas. Mostra-se em trajes de gala ou escrachado, forte e saudável ou estropiado numa maca hospitalar. Tudo para ele é produção de imagem, com a qual pretende chamar a atenção para sua condição de escolhido, vítima, sobrevivente, mito. O objetivo é enfeitiçar os que o seguem. Quer que seu corpo seja visto como imune aos males que afetam as pessoas comuns. Ele é atlético e dinâmico mesmo quando mostra apatia e fragilidade.
Tiranos discretos não são usuais. A marca distintiva deles – sobretudo em nossos tempos de redes hiperativas, identitarismo exacerbado, velocidade tecnológica e informacional – é a estridência, a conduta espalhafatosa: discursos inflamados, frases grosseiras, atos espetaculosos, ameaças. Sua meta é controlar as fontes de informação, calar a imprensa, espalhar boatos. O fermento que os move é o ódio e o ressentimento. Eles adulam os poderosos da economia para alcançarem o poder ideológico.
O poder constrói, mas também destrói. Quando compartilhado democraticamente, é uma alavanca em prol do progresso econômico e social. Mas seu uso abusivo e torpe violenta populações inteiras, desativa direitos adquiridos, amplia a desigualdade e degrada arranjos institucionais consolidados.
Para ser construtivo o poder precisa ser controlado. A democracia representativa madura é a principal invenção para conter o poder, regulá-lo, impedi-lo de transgredir e violentar. O tirano só a aceita quando consegue parceiros que concordem em fazer seu jogo. Ele é inimigo da educação e da escola, pois sabe que cidadãos educados ajudam a que a democracia funcione de modo pleno.
Épocas de política titubeante, de partidos flácidos e sem coerência, de crise permanente, são um convite para que o poder político fique ao alcance não somente dos piores, mas de candidatos a tiranos. Quanto antes acordarmos para isso, melhor.
*Professor titular de teoria política da Unesp
Marco Aurélio Nogueira: Reposicionamento e impasse
O ministério da Economia divulgou em 24 de agosto três programas básicos voltados para a área social: Renda Brasil, Carteira Verde Amarela, Minha Casa Verde Amarela. A convicção é que eles impulsionarão a retomada do crescimento, via monetização da assistência, criação de empregos e financiamento habitacional.
O governo tenta se reposicionar no mercado. Os programas já existem com outras designações e não estão claras as alterações a serem feitas, nem de onde virão os recursos para custear a nova versão. Há o teto de gastos e ainda está para ser equacionada a questão do auxílio emergencial (pago em decorrência da pandemia), que hoje beneficia 64 milhões de pessoas. Não se sabe como se chegará ao Renda Brasil, que terá caráter mais permanente. A equipe econômica fala em extinguir programas sociais e suprimir o abono salarial para obter receita e o presidente diz que não quer “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos”.
O impasse desgasta, em vez de fortalecer. Aprofundou-se uma rota de colisão que a rigor estava desenhada ainda na campanha de 2018, quando o ultraliberal Paulo Guedes aliou-se a Jair Bolsonaro. A convivência foi mantida enquanto não entrou no radar a disposição eleitoral do presidente, que resolveu antecipar a tentativa de reeleição em 2022. Como observou com precisão o cientista político Paulo Fábio Dantas Neto, o disparo do radar mostrou que “Guedes quer entregar resultados ao mercado econômico-financeiro e Bolsonaro quer ofertar mercadorias no mercado político-eleitoral”.
Uma pacificação que deixe o barco singrar mansamente até 2022 parece pouco provável, mesmo que os bombeiros entrem em ação e apaguem as labaredas que ardem no relacionamento do presidente com seu ministro. De novo Paulo Fábio: “Se se deseja esse avanço será preciso apelar à inteligência artificial da política. Se o processo correr solto, deixado aos apetites naturais, bolsonarismo político e liberalismo econômico precisarão se separar para viverem suas vidas em liberdade. Cada qual buscando novo par no repertório já testado no campo que lhe é mais estranho”.
Bolsonaro deu um xeque em Paulo Guedes. Suspendeu a criação do Renda Brasil e exigiu que uma nova proposta fosse apresentada a toque de caixa. Chamuscado, o ministro se fingiu de morto e retrucou: “As coisas são assim mesmo: a economia é o cara que faz o papel de mau, e a política é o cara que faz o papel do bom”.
A bagunça fez a tensão crescer no Planalto.
O governo não tem de onde tirar dinheiro, mas quer usar os programas sociais para politizar a relação com a população mais dependente de assistência. De olho nas eleições de 2022, Bolsonaro cobiça o eleitorado do Norte e Nordeste, tido como estratégico. Não pode, por isso, aumentar impostos ao bel-prazer da equipe econômica. Sabe que precisa conter a sangria de votos da classe média, que já é acentuada, ao mesmo tempo em que precisa fidelizar a população mais pobre, o que tem tentado com o auxílio emergencial e os acenos para a repaginação do Bolsa Família. Em ambos os caso, o ultraliberalismo de Guedes é dissonante e não tem serventia.
A trombada do presidente com a equipe econômica deixou mais evidente a ausência de consensos e articulação.
O quadro é agravado pela inconsistência das propostas cozinhadas no Ministério da Economia, que não se apoiam num planejamento estratégico básico e reiteram uma opção fiscalista que colide com a já pesada carga tributária, hoje na casa dos 33% do PIB, além de atritar os planos eleitorais do presidente.
No cenário atual, qualquer proposta do Executivo que chegar à Câmara será modificada e não obedecerá à cartilha governamental. Como disse a deputada Tabata Amaral (PDT-SP), “não haverá adesão” a nenhum programa: “Tenho uma preocupação muito grande de que a criação de um projeto de renda básica não signifique nenhuma perda de direito para a população”. Vindas com as digitais de Paulo Guedes, as propostas encontrarão dificuldades.
Além da conhecida falta de visão social, o ministro da Economia não tem qualidade para atuar como negociador. É um criador de problemas, se não mesmo o próprio problema. Sugere fechar a Farmácia Popular, eliminar deduções do Imposto de Renda, recriar a CPMF e criar novos tributos. Fala muito, mas executa pouco.
O fator Guedes
Paulo Guedes é conhecido na praça. Não foi por acaso que chegou ao governo Bolsonaro. Seu radicalismo neoliberal compôs-se sem dificuldade com o autoritarismo do presidente. O “Posto Ipiranga” deu a Bolsonaro um programa mínimo com que caminhar para além da guerra cultural contra a democracia, os liberais e as esquerdas. Esta contribuição um dia será cobrada, pois não há indícios sólidos de que a política de Guedes fará o País crescer a taxas suficientes para a vida melhorar como um todo. A pandemia é um agravante, mas não explica o fracasso.
O programa de Guedes apoia-se numa visão tosca de mercado e livre concorrência. É hostil aos trabalhadores e a políticas sociais de proteção e distribuição de renda. Caminha de costas para os temas ambientais e não está nem aí para o desmatamento amazônico. É uma forma de autoritarismo econômico, combinado com egoísmo e darwinismo social. Não tem, por isso, dificuldade de conviver com o bolsonarismo.
Tudo isso implica um custo social elevado. Quem pagará a conta das “maldades” antissociais e da inação governamental? Paulo Guedes enviou ao Congresso uma proposta de reforma tributária sugerindo 12% de impostos para os serviços, 6% para os bancos. Igrejas, partidos e fundações — que em tese não exercem atividade econômica – ficariam isentos. Por baixo do pano, para piorar, a ideia é recriar a CPMF, agora com novo nome e voltada taxar “transações eletrônicas”, típicas da vida digital.
Pode-se admitir que as propostas do ministério da Economia carregam no remédio com o propósito de abrir negociação. Depois serão suavizadas. Faz parte do jogo, mas chama atenção a crueldade que está nela embutida. Drenar recursos dos mais pobres e poupar os mais ricos, com a desculpa de transferir recursos para os pobríssimos, via uma rebatizada Bolsa Família, é uma perspectiva perversa e pouco lógica. Os economistas do governo acenam, também, com uma perspectiva de “desoneração da folha”, que já foi vetada pelo presidente meses atrás. Ninguém sabe bem como ficará.
Guedes é desses casos perdidos na política nacional. Não é economista brilhante, fez carreira como operador financeiro e sempre manifestou desprezo pela economia do setor público. Seus olhos brilham quando se apresenta como guardião do mercado. Sua competência, porém, nunca foi verdadeiramente posta à prova. Desde que passou a integrar o governo fala muito em reforma, mas não entregou nada até agora. É um péssimo negociador, mercurial e sem estofo político.
Em busca do eleitor
O governo trata como assentado que a população mais carente está à disposição dos governantes de plantão. Esse tem sido um caminho trilhado por governos anteriores. A “ocupação” político-eleitoral feita pelo PT no Nordeste, por exemplo, não evitou o impeachment de Dilma, nem garantiu sobrevida sólida ao petismo. No caso de Bolsonaro, pode ser ainda mais complicado, levando-se em conta que ele não dispõe de estrutura partidária e se move por meios de redes, que nem sempre são acessíveis à população de menor renda.
O governo deseja disputar o eleitorado nordestino, que pode de fato estar novamente disponível depois da crise do PT. Mas não há certeza de que conseguirá isso, em parte porque o eleitorado pode não ser tão “cativo” quanto se imagina, e em parte porque os estados do Nordeste são, na maioria, governados por partidos que se opõem a Bolsonaro.
As propostas anunciadas pelo ministério da Economia repõem o conflito entre o fiscalismo de Paulo Guedes e o desenvolvimentismo, bandeira ora desfraldada por Rogério Marinho, ministro do Desenvolvimento Regional, que saiu do PSDB e migrou de mala e cuia para o governo Bolsonaro. Colidem também com a movimentação eleitoral do presidente. O Estado está mal das pernas, a tentação de cortar gastos é enorme e a tesoura de Guedes é seletiva e particularmente hostil à situação da maioria da população. O bolsonarismo, e em especial o presidente, não tem um programa claro nem uma “teoria” sobre o País que deseja governar. O impasse, portanto, é gritante.
Precisamente por isso, Bolsonaro tenta se equilibrar em duas canoas, dando sinais contraditórios e sem saber qual estrada seguirá até 2022. Não é propriamente uma demonstração de força. E ele sabe disso.
E a oposição?
Em um ambiente de crise externa e de tensão interna ao governo, seria o caso de dar como certo que as oposições crescerão em protagonismo. Não é, porém, o que se tem.
O jogo não está sob controle delas. Os interesses reunidos no bloco que sustenta Bolsonaro seguem pautando a política. O extremismo ideológico do presidente parece a cada dia mais incomodado com o ultraliberalismo de Guedes, mas algum arranjo poderá acalmar a situação. Pesquisas de opinião, favoráveis ao governo, fornecem oxigênio adicional para o continuísmo. A paralisia domina as forças do centro e da esquerda, com exceção do DEM, graças ao ativismo institucional de Rodrigo Maia. O PT reitera sua permanente disposição de fazer carreira-solo e os demais partidos somente praticam o jogo miúdo. Há pouco esforço de agregação e articulação que comece a pavimentar a pista para 2022.
Não é difícil compreender que, mantidas a disputa e a dispersão no terreno do centro e da esquerda, sem a interpelação da sociedade civil e sem a incorporação dos dissidentes bolsonaristas, 2022 será uma repetição, corrigida aqui e ali, do que houve em 2018.
O diagnóstico de Paulo Fábio Dantas Neto vai ao ponto: “DEM e PT podem delimitar (não centralizar) um campo democrático de grande política. Precisam entender-se sem demora e de modo objetivo, na direção de adubar terreno para futura aliança no segundo turno de um 2022 que há um mês parecia longínquo e hoje já se impõe às agendas dos atores. Esse entendimento entre pontas pode envolver pactos de não agressão e mesmo de cooperação, sem a obsessão paralisante da frente única a qualquer preço. Mesmo que em cada um dos dois eixos o processo se afunile para uma unidade do respectivo campo – e mesmo que esse afunilamento transborde, como é desejável, para abarcar atores outsiders positivos e se conectar a uma nova sociedade civil – sem um realismo programático orientado a uma grande política ainda mais aberta, o horizonte de eventuais candidaturas relevantes tende a ser a disputa para chegar ao segundo turno e ter a primazia de perder por último”.
Esse é o nervo da questão política atual. E é para ele que precisam convergir as atenções e energias dos democratas.
*Marco Aurélio Nogueira é Professor Titular de Teoria Política da Universidade Estadual Paulista-UNESP.
Marco Aurélio Nogueira: Pandemia – o antes, o durante e o depois
O conflito será entre a vida reclusa e a exposição ao risco: segurança ou liberdade
Aos poucos, sem muito critério, as coisas estão voltando ao que era vivido como normalidade. Embora haja menos agitação, as pessoas passaram a circular com intensidade. Há um cansaço solto no ar.
São superficiais as expectativas de que entraremos num “novo normal”, expressão desprovida de significado claro. Não é de repente que um modo de vida se altera. A rigor, não há um antes e um depois. A vida é continuidade, processo permanente de acúmulo e adaptação. Impossível ir de um padrão a outro só pela força da vontade. A pandemia, no entanto, já deixou suas pegadas e estamos sendo impelidos a adotar novas práticas e ideias. O convite é para que incorporemos condutas sustentáveis: menos agressivas com a natureza, a cultura, a sociedade, mais generosas, humildes e voltadas para o bem-estar comum.
Precisamos aumentar nossa capacidade de pensar em termos de complexidade, como gosta de dizer Edgar Morin. Ver o local e o global, o particular e o universal, a cultura e a natureza, partes de um único todo.
O abandono da quarentena se dá sem que a covid-19 tenha arrefecido. Na maioria dos Estados a doença se estabilizou, mas a média nacional de óbitos segue em patamar elevado. Hoje são 4 milhões de infectados, 115 mil mortes, números que continuam a crescer. É uma desgraça, para a qual o governo federal contribuiu e diante da qual a população não soube e não teve como reagir.
A briga pela quarentena foi permanente. Fiquem em casa, evitem aglomerações, pediram médicos, gestores, profissionais da saúde. O que houve de distanciamento social ajudou a reduzir o impacto do vírus, especialmente nas grandes cidades. A vida digital avançou, o teletrabalho mostrou ser factível e tão produtivo quanto o presencial. Perdeu-se o receio de comprar à distância. Mas ninguém se conformou em deixar de ver filhos, netos, amigos. Têm sido meses angustiantes.
Há uma dura estrada pela frente. O País não encontrou um eixo para combater o vírus e retomar a “normalidade”. Não sabe como voltar a crescer, reativar a economia, reduzir o desemprego e a desigualdade. Os sistemas nacionais – educação, saúde, infraestrutura, cultura, saneamento, ciência e tecnologia – estão sem coordenação e tenderão a ficar também sem recursos, pessoas e verbas, risco que aumenta quando se vê o governo brasileiro falar em diminuir o orçamento da Educação e da Saúde em benefício da Defesa.
A expectativa de que a vacina resolverá tudo no curto prazo é ingênua. A competição entre os laboratórios torna o processo sombrio. A Sputnik, russa, está sendo lançada sem testes públicos confiáveis, em nome de uma “guerra” insensata. Por mais que as vacinas saiam no início de 2021, não há como atestar preliminarmente sua qualidade, nem saber como será feita sua aplicação em massa. Serão necessários 8 bilhões de doses se a ideia for imunizar a população terrena. Além disso, o mundo superconectado, frenético e desigual em que vivemos é propício a novas ondas pandêmicas.
O “depois da pandemia” somente virá à custa de cuidados e sacrifícios. Serão indispensáveis novas modalidades de políticas públicas, governos de outro tipo, outros critérios de promoção da justiça e da igualdade, que incorporem e valorizem os direitos. Teremos de aprender a levar uma vida com máscaras e higiene redobrada, com distanciamento social e mais tempo em casa. Aglomerações serão focos de irradiação e perigo.
Mas, e o transporte urbano, com sua precariedade, seus vagões e ônibus que amontoam pessoas como sardinhas em lata? E a vida escolar, com suas interações comunicativas? E os encontros, os relacionamentos, as amizades? E o caráter festivo e social do brasileiro?
O conflito será entre a vida reclusa e a exposição ao risco: segurança ou liberdade. O que tem mais importância e valor? Como voltar a olhar para si e para os seus queridos quando na memória latejam as imagens da vida aberta, sem freios? Como controlar nossos desejos e pulsões, recompô-los e deixá-los fluir de outro modo? Teremos de experimentar de maneira distinta o prazer e os prazeres? Saberemos fazer isso?
São perguntas para as quais não há respostas cabais. Formam o enigma freudiano que acompanha a marcha da civilização naquilo que contém de “mal-estar” e de substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade. Estão sendo repostas, hoje, de modo dramático, e teremos de nos haver com elas uma vez mais, aproveitando o que temos de cultura da psicanálise, conhecimento e informação.
A vida digital joga a favor. Oferece-nos um novo campo de sensações e possibilidades, ainda que, ao mesmo tempo, crie novas postulações éticas e novas zonas de atrito com a vida no plano físico. É uma transição, difícil como qualquer outra.
A educação é o recurso de que dispomos para construir atitudes cooperativas e aprender a desenvolver hábitos coletivos que garantam um mínimo de convivência saudável. Não se trata somente de valorização da escola, mas de educação com E maiúsculo.
Resta saber se venceremos a batalha.
*Professor titular de teoria política da Unesp
Marco Aurélio Nogueira: Os democratas norte-americanos e seus demônios
Como toda boa organização política, o Partido Democrata norte-americano é um compósito de correntes. Tem sua direita, seu centro e sua esquerda, que se batem entre si especialmente durante as convenções partidárias, quando as eleições presidenciais chegam à fase das definições e as campanhas ganham cara, força e ritmo.
As alas à esquerda costumam ser mais combativas, como é de esperar. Vocalizam grupos enraizados no mundo cultural e acadêmico. São expressivas nos movimentos por direitos e reconhecimento. Fazem política de um modo particular, no qual a ideologia e o simbolismo têm papel de destaque. Renegam o pragmatismo e gostam de promover o desgaste das candidaturas partidárias, sobretudo as presidenciais. Alegam que a pressão interna é decisiva para que o Partido Democrata não esmoreça e combata o sistema.
Em 2016, fuzilaram Hillary Clinton e contribuíram, indiretamente, para afastar eleitores progressistas ou predispostos a apoiar a candidata do partido. Os demônios partidários terminaram por tirar parte dos votos de Hillary.
Estão ensaiando fazer o mesmo hoje, mediante a interposição de vetos (discretos ou ostensivos) a Joe Biden e à escolha da senadora Kamala Harris como sua companheira de chapa. As ressalvas se apoiam em críticas à “elite democrática”, que só olharia para os próprios interesses, não ouviria as vozes mais jovens nem daria a devida ênfase às questões identitárias e às reformas sociais. Em certos setores, dá-se maior importância ao passado de Kamala Harris – que foi procuradora do estado da Califórnia – que a seu significado político na disputa eleitoral de 2020. Chega-se mesmo a dizer que a senadora é uma “policial” travestida de democrata e indiferente aos eleitores negros mais jovens.
Ainda faltam três longos meses para as urnas e pode ser que o furor esquerdista arrefeça. Vozes importantes, como Bernie Sanders, não estão a insuflar os ventos da discórdia, o que é um sinal unitário significativo, que reconhece a dimensão estratégica da atual disputa eleitoral. Uma vitória sobre Donald Trump é vista como uma espécie de tábua da salvação para os democratas, um impulso para que o partido volte a ser pujante e recupere sua marca política e social.
A escolha de Kamala Harris como vice-presidente foi inteligente. Negra, feminista, militante de direitos civis e com larga experiência administrativa, a senadora é uma moderada na arena partidária. A ideia é que ela atraia votos de setores que se abstiveram em eleições anteriores, dialogue com o movimento negro e por direitos civis sem, ao mesmo tempo, assustar os eleitores republicanos.
Trump sentiu o golpe e tem se dedicado a bater insistentemente em Kamala.
Ao opor vetos ideológicos à chapa de Joe Biden, os esquerdistas mais inflamados reforçam aquela “abdicação pelo imaginário americano” que o professor Mark Lilla (em O progressista de ontem e o do amanhã, publicado em 2017 pela Companhia das Letras) entende ser a principal fragilidade dos liberals, ou seja, dos democratas. Dizem pouco para o americano comum, as grandes multidões, ajudando a empurrar os democratas para “as cavernas que construíram para si próprios na encosta do que um dia foi uma grande montanha”, nas palavras de Lilla.
O professor é um crítico firme das inflexões identitárias que adquiriram expressivo peso no movimento social e nas áreas intelectuais próximas do Partido Democrata. Na sua visão, tais inflexões enfraquecem a solidariedade social e incentivam o populismo, com o enfraquecimento da dimensão institucional da cidadania. De quebra, põem em circulação uma “pseudopolítica de autoestima e autodefinição estreita e excludente”, que celebra um posicionamento refratário a avanços políticos consistentes, trocando-o por uma “evangelização” de baixa produtividade política. A diferença, para Lilla, é que “evangelizar é dizer verdades ao poder e fazer política é conquistar o poder para defender a verdade”.
O que vale para os Estados Unidos vale também para outras sociedades. A insistência em demarcar identidades partidárias ou ideológicas tem sido, em todas as partes, o laço que asfixia as forças democráticas e impede sua articulação. A eventual derrota de Trump em novembro próximo terá impacto significativo e poderá representar uma nova temporada de florescência democrática, com efeitos que se espalharão pelo mundo.
*Professor titular de teoria política da Unesp
Marco Aurélio Nogueira: O futuro que nos escapa
Hoje não temos governo e a boçalidade se instalou em diversos setores da vida nacional
Não é só pela pandemia, pela ameaça de uma segunda onda do vírus ou pelas indicações de que ninguém fica imunizado contra ele por muito tempo. Também não é só porque a OMS advertiu que a pandemia continua em expansão, com efeitos que serão sentidos por décadas. É por tudo isso, mas também porque estamos perdendo a ideia de futuro.
Ninguém sabe com certeza como será a retomada. Fala-se em “novo normal” como um esforço para afirmar que as coisas encontrarão um eixo, um padrão regular. É um reflexo automático daquela necessidade primal que temos de segurança, ordem, estabilidade, rotina.
A verdade é que o futuro está coberto por trevas obscurantistas e promessas de regressão. É como uma paisagem na neblina. Sabemos que há algo lá e que lá chegaremos, mas não conseguimos deslindar a imagem por inteiro. O futuro escapa-nos por entre os dedos. Não temos mais uma ideia de “progresso”, que moveu a modernidade e o capitalismo desde que se projetaram na História. Mas intuímos que não voltaremos a viver como nossos pais, mesmo que conservemos muito do seu legado de hábitos e valores. Estamos meio que a esmo, perplexos.
O arranjo socioeconômico, institucional, cultural é outro. A começar da família, que modelou até hoje a sociedade. Nossos filhos adotam novos formatos de vida familiar, de casamento, vivem juntos de maneira distinta, são felizes ou infelizes de um modo todo deles.
A mesma coisa na economia. Damos como óbvio que todos querem empregos estáveis, longas carreiras em empresas sólidas, rotinas estabelecidas, carteira assinada. Seria a receita contra a “precarização”, um remédio para valorizar o trabalho e os trabalhadores. Não sabemos se é isso mesmo que as pessoas querem. Talvez não seja a expressão do desejável para as novas gerações, mais chegadas ao improviso, à excitação do movimento, da velocidade. Também ignoramos se tal cenário é factível num mundo de tecnologias onipresentes e mudanças aceleradas. E as empresas, por sua vez, têm dificuldades para se reposicionar no mercado e reformular plantas e procedimentos.
Dá-se algo parecido na política. É quase impossível admitir que os partidos voltarão a ser o que foram no século 20, estruturas burocráticas, pesadas, focadas na conquista e no controle do poder, com dirigentes que se eternizam no cargo. A democracia está posta como valor, inquestionável para a maior parte dos humanos. Mas os sistemas democráticos estão em crise, são chantageados e corrompidos por líderes e movimentos fundamentalistas, que se querem “patrióticos”, mas minam sistematicamente as bases da Nação e do Estado.
A vida mudou, arrastando consigo as imagens que tínhamos do futuro. Diante de nós se abrem uma interrogação, muitas distopias e nenhuma utopia.
Foi-se o tempo em que o escritor suíço Stefan Zweig podia se encantar com o “país do futuro”, que ele via com uma generosa pitada de ufanismo, como uma comunidade que sabia harmonizar seus contrastes. Zweig viveu no Brasil entre 1940 e 1942, auge do Estado Novo e do hitlerismo, que avançava na Europa. Suicidou-se em Petrópolis.
De lá para cá, houve grandes transformações. Aprendemos muito, o País transfigurou-se de cima a baixo. Mas não temos motivos para nos ufanarmos. Continuamos a carregar o fardo da desigualdade. Nossa produtividade estagnou, junto com a educação. O Brasil está cheio de carências e buracos. Metade da população não dispõe de água encanada e saneamento básico. Hoje não temos governo e a boçalidade se instalou em diversos setores da vida nacional.
O futuro está oculto. Em parte porque pouco sabemos sobre ele e tememos o que imaginamos a seu respeito. E em parte porque o futuro, ele próprio, se oculta de nossos olhos, desarrumado pela realidade. Há um enorme volume de conhecimentos, mas não sabemos, com nossas ciências especializadas, como organizá-los de modo a capturar o fluxo, o processo. Precisamos de uma abordagem que ultrapasse as visões parceladas, “religue-as” (Morin) e apreenda o que está conectado, o todo.
O futuro, a rigor, já está aí, incorporado à vida cotidiana sem que percebamos. Não há por que fazer previsões proféticas. “A dificuldade de conhecer o futuro depende também do fato de que cada um projeta no futuro as próprias aspirações e inquietações”, escreveu certa vez Norberto Bobbio.
A ordem geral é sempre sobreviver. Não é por acaso que tanto se valoriza o aqui e agora, o que pode ser minimamente “apalpado”, é menos incerto e duvidoso.
Mas não há somente trevas à frente. Bem ou mal, o mundo se move, os protestos se acumulam, as perversões ficam mais transparentes, a ciência se afirma, a democracia permanece no horizonte. Buscamos o tempo todo ver além da neblina, para agarrar o futuro que nos escapa.
Para sobreviver com dignidade precisamos manter a lucidez e a serenidade, combinando-as com a indignação que nos faz recusar injustiças, nos mobiliza e nos ajuda a manter a esperança e a grandeza de espírito. Essas são nossas estrelas-guia.
Marco Aurélio Nogueira: As ruas como recurso e dilema
A democracia não vive sem protestos e gente nas ruas. Se um governo ameaça a sociedade, como pedir para os que se sentem afetados não se manifestarem? Há, porém, a pandemia e a correlação de forças
Como fazer manifestações presenciais – nas ruas – em plena pandemia? O vírus está vivo, em propagação ascendente, e todo contato é fonte de perigo. Manifestações aglomeram, mesmo quando feitas com organização.
Mas como pregar que as pessoas não se manifestem? É provável que muitas estejam cientes do contágio a que estarão expostas. Mesmo assim aceitam o risco, o que é meritório. Há um quê de paradoxal aqui: combate-se a crise sanitária com uma mobilização que, no limite, pode agravar a própria crise. Também ocorre que muitos manifestantes são pessoas já expostas diariamente ao vírus, para as quais ir ou não às ruas pode não fazer maior diferença em termos de segurança sanitária.
Talvez não haja outro modo de proclamar o mal-estar, a indignação, a revolta. Afinal, tem sido o próprio governo a promover tal estado de espírito coletivo. Martelando o conflito e o autoritarismo o tempo todo, Bolsonaro entrou em atrito com fatias crescentes da sociedade. Hoje, pesquisas indicam que seu apoio não passa de 30%, e é declinante. Inevitável que sempre mais gente queira ir às ruas, por a angústia para fora, sacudir o pó acumulado pelos longos meses de quarentena. É um estado de espírito que necessita de ponderação e análise circunstanciada da realidade concreta.
A democracia e a luta por ela não vivem sem protestos e gente nas ruas. Se um governo ameaça a sociedade com retrocessos autoritários, como pedir para os que se sentem afetados não se manifestarem? Além disso, precisamos admitir que a política institucional não está respondendo à sua própria crise, aos abusos do governo e ao sofrimento popular. Seus setores mais “saudáveis” estão carentes de pressão e apoio.
Deste ponto de vista, as ruas podem ajudá-los.
Manifestações de rua não são a única forma de luta, certamente. Tão importante quanto elas é a articulação dos democratas e a abertura, no mundo político em sentido estrito, de fendas que propiciem a construção de melhores patamares de negociação.
Nenhuma ida às ruas é sem consequências. Mesmo que a intenção seja tão somente dar vazão a uma revolta, o ato em si tem desdobramentos. Hoje, não é difícil visualizar dois desdobramentos potenciais.
Um é a ampliação do enfraquecimento do governo, com a explicitação mais ostensiva de que ele não goza de consenso inequívoco, como o bolsonarismo vem declarando. Por esse caminho, as vozes da rua podem ecoar no campo político e incentivar a ação mais firme dos políticos, dando a ele condições de dar passos além. No terreno concreto em que nos encontramos, isso pode significar impulso para que avancem as tratativas dedicadas a formar frentes e alianças pela democracia.
Outro desdobramento é mais complicado. As ruas podem ser instrumentalizadas pelo governo. A disposição à violência pode não integrar os planos iniciais, mas simplesmente acontecer graças a provocadores, infiltrados ou não, e à exacerbação dos ânimos. Afinal, são “torcidas”. Se ocorrerem colisões com a polícia repressora ou com os bolsonaristas, as ruas podem servir de pretexto para um reforço demagógico da narrativa governamental, qual seja, a de que há “baderneiros” querendo atacá-lo e prejudicá-lo.
Neste segundo desdobramento, há quem argumente que as ruas podem facilitar a manobra golpista do bolsonarismo. É um risco real, não há como negar. E cabe, aos democratas, firmeza para dizer isso com todas as letras.
Mas será que, perante tal ameaça, as ruas também não poderão funcionar como antídoto, criar um cordão protetor da democracia? Caso consigam se organizar com um mínimo de eficiência e afastem de si as tentações maximalistas e voluntaristas, uma página será virada. Os democratas também precisam reconhecer isso, com seriedade e cautela.
O dilema das ruas está justamente na intersecção destes pontos.
Bolsonaro não tem forças para dar um golpe contra o governo democrático, ou seja, um autogolpe. Não tem maioria sustentável na sociedade e seus apoios nas Forças Armadas parecem não ser tão expressivos quanto se imagina.
Durante a corrente semana, o governo perdeu batalhas importantes. Viu crescer a tragédia da epidemia sem oferecer qualquer resposta ou demonstrar qualquer empatia. Revelou-se também que o Ministério da Saúde camufla e retarda a divulgação de dados. Ampliou-se seu desgaste entre a população. E, com as manifestações da OAB e da Câmara dos Deputados, o presidente perdeu a possibilidade de permanecer defendendo a “intervenção constitucional” das Forças Armadas.
Estamos numa encruzilhada complicadíssima. As “torcidas” estão de algum modo “empoderadas”. Há “heroísmo” de um lado. As hordas bolsonaristas são insufladas pelo presidente e pelo gabinete do ódio. O confronto será trágico, caso ocorra. Por outro lado, não há força política para interromper isso. Vozes em prol da ponderação são importantes e devem se posicionar. Podem alguma coisa, mas não podem tudo e não são ouvidas pelos ativistas. Também não têm representatividade suficiente para conclamar as pessoas a que não se manifestem fisicamente.
Falta ao país um megafone, uma liderança. Instituições como o Congresso e o STF estão cumprindo um papel decisivo, com cautela e paciência, de certo modo travando os movimentos do Poder Executivo. Mas, como instituições, seus ritos e ritmos não acompanham a insatisfação social no mesmo andamento dela. Ainda são vistos com desconfiança pela sociedade. Os partidos não dirigem nem orientam, estão a dever.
Tudo isso está necessitando de reforço: criar uma opinião democrática no âmbito da opinião pública, valorizar as instituições e trabalhar para que elas sejam compreendidas pela população.
Temos muito coisa em marcha, mas faltam-nos coesão, liderança clara, narrativa e capacidade de compreensão do que há de novo na sociedade.
Manifestos são excelentes como forma de vocalizar o grito de angústia preso na garganta. Indicam que a sociedade passou a se mexer em sentido democrático. Mas precisamos ir além da reverberação deles. A direita democrática, o centro liberal e a esquerda precisam se articular e honrar o “Basta!” que vem sendo proclamado. A hora é de unidade política. Quem não se dispuser a ela, que fique para trás.
*Marco Aurélio Nogueira, professor titular de Teoria Política da Unesp
Marco Aurélio Nogueira: Democratas de todas as colorações, uni-vos!
Ou se unem com determinação, ou o Brasil ficará inviável por longo período
Não é preciso arrolar, pela enésima vez, os ilícitos e as perversões que desabam sobre a sociedade. Formam robusto prontuário. Só não os vê quem não quer.
A continuidade do governo Bolsonaro ameaça a vida, a Nação, a sociedade. Lança-nos num vórtice de destruição, que potencializa o vírus e infecta a reprodução da ordem social.
Precisamos dar um basta a essa situação, em que a insanidade governamental se mistura com o ativismo fanatizado da extrema direita e com o silêncio dos democratas. Bolsonaro é a crise viva, em expansão. Sua remoção precisa ser posta na mesa, para que se evite o abismo.
Mas não é só o impeachment. Será preciso reorganizar o País. Disputas internas não ajudarão, por mais que sejam inevitáveis.
Também somos responsáveis pelo que está aí. Cometemos erros, que não foram processados. Continuamos a nos dividir, a brigar com a própria sombra, a insistir em atitudes e discursos que não dialogam com as pessoas, não as direcionam, não as esclarecem. Somos prisioneiros do cálculo eleitoral, do oposicionismo retórico. Estamos carentes de ideias, de luzes, de lideranças. De articulação.
Temos de encontrar um meio de fazer oposição com eficácia e generosidade. Sem vetos. Sem postulações doutrinárias. Sem maniqueísmos. Sem tergiversações. É um suicídio continuarmos a repetir fórmulas que não funcionam mais e prolongam uma agonia paralisante.
Há que agir. No Parlamento, nas redes sociais, na imprensa, nos núcleos da sociedade civil. A quarentena não é pretexto para ficarmos à espera de um raio que caia em Brasília. A cautela não dispensa a denúncia veemente, antes a exige.
Ainda há muitos brasileiros impregnados pela imagem redentora do “mito”, ressentidos, frustrados, com raiva, sem compreensão dos tempos da política, do valor da democracia e da representação parlamentar. Precisamos alcançá-los, trazê-los para o terreno da racionalidade democrática. Não avançaremos repetindo mantras surrados, que não levam a lugar nenhum, nem convencem quem precisa ser convencido.
Devemos reconhecer nossas limitações, insuficiências, falhas de compreensão da realidade.
Os democratas brasileiros – de centro, liberais, conservadores, de esquerda – deixaram-se dividir por excessos, querelas ideológicas, batalhas infrenes de poder. Levaram longe demais a exploração de suas diferenças. Não olharam atrás da porta. Não perceberam que pela direita crescia uma onda contrária a eles, hostil a seus programas, às perorações de seus líderes, ao modo como se apresentavam ao mundo.
Não decodificaram a linguagem da época. Continuaram amarrados aos mesmos dogmas, às mesmas diatribes e polêmicas, reunindo-se em tribos impotentes, agredindo-se reciprocamente.
Menosprezaram o adversário principal, achando que poderiam derrotá-lo com um sopro. Assistiram à propagação de uma gosma venenosa que contagiou parte importante da população. Permaneceram agarrados às obsessões de antes, a fantasmas insepultos, a promessas ocas e frases de efeito.
Em 2018 perderam a eleição presidencial para um político tosco, inescrupuloso e manipulador, que fez seus adversários comerem poeira. Foi um espetáculo vergonhoso, trágico, pelo qual estamos pagando alto preço.
Passada a refrega, os democratas permaneceram a lamber suas feridas. Viram o circo pegar fogo, orbitando lideranças que não lideram, rotinas engessadas, partidos estraçalhados e impotentes. Hoje zelam pelas instituições e pelos ritos constitucionais, o que é ótimo. Mas suas falas não reverberam, só fazem prolongar a existência de um governo perdido e descompensado.
Continuaremos a brigar as mesmas brigas? Teremos coragem e disposição para reorganizar a agenda, aposentar o que não mais agrega valor à política, buscar o que lateja em meio aos escombros do sistema que ajudamos a erguer, mas não mais nos ajuda? Saberemos afastar preconceitos e abrir espaço para os jovens, as novas linguagens, os youtubers e comunicadores, os parlamentares que não seguem ordens partidárias rígidas? Ou vamos prosseguir achando que somos donos do futuro?
Muitos acreditam que o sistema de pesos e contrapesos está intacto. Em nome disso, ignoram o arbítrio e a violência legal do Executivo. Não criticam os jogos procrastinadores do Congresso, a covardia de suas lideranças. São benevolentes com o Judiciário.
Chegamos à hora da verdade. Necessitamos de pessoas que ajam com firmeza democrática e republicana. Nossa fronteira está além de contraposições inúteis entre esquerda e direita, liberalismo e socialismo, mercado e Estado. Temos de nos reposicionar. Reaprender a dialogar, com paciência e tolerância. Que os moderados se disponham a lutar, que os radicais lutem de outro modo. Que todos baixem o tom, dispensem maximizações extemporâneas e apurem o foco.
Ou os democratas se unem com determinação – para fazer política, travar a luta cultural, interpelar a população – ou o País ficará inviável por um longo período.
Unamo-nos, enquanto há tempo!
Marco Aurélio Nogueira: Fazendo o que o mestre mandar
Osmar Terra previu que o coronavírus seria leve no Brasil, com no máximo 800 óbitos. Agora, fala que o problema é sério. Mas continua a banalizar a situação: o que são 11 mil mortos perante a desgraça econômica que a quarentena produz?
O deputado Osmar Terra (MDB-RS) tem 70 anos, é médico, formado pela UFRJ. Na juventude, andou pelo PCdoB e pela ala esquerda do PMDB. Chegou a fazer campanha pela reforma sanitária e pelo SUS. Foi prefeito de Santa Rosa e secretário da Saúde no Rio Grande do Sul. Virou ministro do Desenvolvimento Social no governo de Michel Temer.
Apesar disso, não é propriamente um quadro brilhante. Mexe-se e articula bem, pelo que dizem. Foi ganhando projeção e se tornou estrela de primeira grandeza quando Bolsonaro assumiu. Tornou-se reacionário assumido, ampliando a pauta conservadora que foi modelando ao longo da carreira. Durante dois meses, passou pelo ministério da Cidadania do novo governo, terminando por ser substituído por Ônix Lorenzoni sem nem ter esquentado a cadeira.
No sábado à noite, participou de um debate na GloboNews com o ex-ministro Mandetta e o senador Humberto Costa (PT-PE). Uma bancada de médicos, propícia a uma discussão de alto nível.
Acontece que Terra não é propriamente uma pessoa independente, ou particularmente responsável. Está no circuito para causar e reverberar as posições governamentais. Foi ao debate com uma única ideia fixa: denunciar o isolamento social, a quarentena, o combate firme ao coronavírus.
A defesa foi recheada de momentos patéticos. Chegou-se ao ápice quando o deputado enfatizou que tudo o que Bolsonaro fala e faz segue parâmetros científicos. E quando argumentou que a disseminação do vírus é tanto maior quanto mais as pessoas ficam em casa, pois é em casa que a infecção se generaliza. Esqueceu-se de dizer que o vírus só pode circular em um ambiente fechado se alguém levá-lo para lá, vindo da rua sem cuidados higiênicos rigorosos.
Osmar Terra é o mesmo que, em março do corrente ano, disse que o coronavírus passaria pelo Brasil sem deixar vestígios, prevendo que no máximo seriam 700 ou 800 óbitos, coisa pouca. Lembram?
Agora, ele admite que o problema é mais sério. Continua, porém, a banalizar a situação. O que são 11 mil mortos perante a desgraça econômica que a quarentena produz?
Com desfaçatez extravagante, contrariando médicos e pesquisadores do mundo todo, ele apresentou gráficos para mostrar que o curso do coronavírus não é diferente do curso de outros vírus, como o H1N1. Apresenta a mesma curva, a mesma evolução em 13 semanas (?), é só esperar com calma que tudo passará sem deixar maiores sequelas, além da perda triste de algumas vidas. Desnorteante.
Para ele, as mortes em série são causadas pela quarentena. Presas em casa as pessoas se contaminam com mais facilidade. Deveriam ser liberadas para ir à praia, às praças e – surpresa! – aos shoppings centers, que seriam tão higiênicos quanto farmácias e supermercados.
Os que com ele debateram longamente deram um baile. Não se cansaram de alertar para a ameaça pública inerente às posições de Terra, que são as mesmas de Bolsonaro. Ele nem corou. Seguiu impávido, pouco se importando em passar por farsante, sustentado por um ostensivo despreparo técnico-científico e por uma sabujice extrema.
Marco Aurélio Nogueira: O pão de cada dia
Ficar em casa é atitude de solidariedade, respeito ao próximo e responsabilidade
Quarenta dias depois de iniciado o confinamento domiciliar recomendado pelos órgãos sanitários, duas questões chamam atenção quando se observa a cena brasileira. Ambas são de natureza comportamental.
Em que pesem todos os alertas e apelos médicos, as mortes que se acumulam, uma parte da população não aceita ficar em casa. Movimenta-se, aglomera-se sem necessidade, criando o ambiente de que necessita o vírus para se espalhar. São pessoas que parecem imunes à dor e à solidariedade. Para elas, o problema é sempre dos outros.
Há que fazer um desconto nessa constatação. Muitos simplesmente não podem ficar em casa. Precisam trabalhar, ganhar o pão de cada dia, tocar a vida. Outros não têm como se isolar, vivem em habitações exíguas, sub-humanas, em bairros de densidade demográfica tão alta que as casas parecem formar um monólito indivisível. Sem levar na devida conta essas circunstâncias, não conseguiremos ir além de uma leitura moralista da situação.
Há, porém, uma fatia importante da população que não se enquadra nesses casos. São pessoas que jogam futebol ao ar livre, fazem atividades em grupo, não dispensam os contatos interpessoais. Também não tomam precauções nem procedem com cautela. Enchem os belvederes em dia de sol, levam os filhos para brincar nos parquinhos, frequentam bares, vão às “feiras do rolo” que continuam a se realizar, como na Sé, em São Paulo.
Sabe-se que continuam a ocorrer bailes funk em periferias urbanas. Em Manaus, onde a epidemia tem sido particularmente devastadora, noticiou-se que o Estádio Carlos Zamith, que funcionou como centro de treinamento para a Copa do Mundo de 2014, abrigou uma festa regada a bebidas alcoólicas. Em Blumenau, uma multidão invadiu os shopping centers reabertos pela prefeitura, sendo recebida com aplausos pelos lojistas.
É um assombro que haja tanta indiferença justamente entre nós, com nossa alma latina, sempre pronta a se derramar em lágrimas e a se comover com a desgraça alheia.
Algumas dessas pessoas pretendem-se “ativistas”. Protestam contra o isolamento, fazem carreatas, detonam políticos e autoridades, agitam faixas e bandeiras nos portões de palácios e quartéis. Aceitam o obscurantismo anticientífico e o negacionismo, atacam as instituições e pregam a volta da ditadura, como se isso fosse um desejo da maioria dos brasileiros. Muitas delas são manipuladas por profissionais e influencers de extrema direita. Mas nem sequer se dão conta disso. Deixam-se levar, convictas de que prestam um serviço ao País.
Intriga que tais pessoas não mudem mesmo quando tudo indica que o caminho não é do confronto e da negação dos fatos, quando o presidente, em plena pandemia, dispara uma cretinice por segundo, que só faz piorar a situação. A atitude não tem que ver com posição política ou ideológica. É de natureza psíquica, liga-se a um egoísmo entranhado na alma e na mente.
São pessoas levadas pelo ódio: ao PT, às esquerdas, aos políticos, à democracia. Muitas dizem carregar Jesus no coração, mas estão orientadas por uma raiva doentia, que as cega e embrutece. Estão expostas a um tipo de veneno que inebria e aliena, que vai sendo destilado dia a dia pelo presidente e por seu “gabinete do ódio”, com seus robôs incansáveis e suas fake news. São pessoas reativas, que não pensam. Acreditam que o “mito” está certo, haveria mesmo uma “conspiração” sendo articulada contra ele. No fundo, agem contra a sociedade, a ordem institucional, o Estado como comunidade política de homens e mulheres. Sua mentalidade é de manada, de tribo.
Sair do confinamento não é uma questão econômica, ligada à retomada dos negócios. Só terá sentido se souber se articular com a preservação da vida. A solução não é a saída abrupta de milhões de pessoas sem que o sistema de saúde esteja preparado para a multiplicação dos doentes graves. Porque todos serão infectados, não haverá como evitar. A volta à normalidade é algo muito mais sanitário que econômico. Precisa, por isso, ser planejada com inteligência estratégica, considerando que o vírus permanecerá ativo e agressivo.
Ficar em casa é uma medida defensiva, de proteção à vida pessoal e familiar. Mas é também uma atitude de solidariedade, respeito ao próximo e responsabilidade. Com base nela, pode-se retardar a disseminação do vírus para que todos os doentes, em especial os mais frágeis, possam ser atendidos pelo sistema de saúde.
O “ficar em casa” a que estamos sendo conclamados não é uma restrição opressiva. Há como se movimentar um pouco, tomar sol, caminhar. O que não se pode é agir como manada, sem manter distância cautelar mínima e cuidados de higiene. Não é difícil de entender.
Constatar que existem pessoas que não conseguem compreender isso faz com que se desconfie da humanidade dos humanos e da sua capacidade de reagir com lucidez nos piores momentos. Prova que estamos carentes de fraternidade e solidariedade, entregues à crueldade do mundo, como costuma dizer o filósofo Edgar Morin.
Marco Aurélio Nogueira: Sobre homens e monstros
O personagem que governa o País encontrou na pandemia a oportunidade que acalentava para produzir caos, morte, desunião, confusão.
Ninguém pode dizer que está surpreso. Em 2018 elegeu-se um presidente com um prontuário bem fornido. Como indisciplinado, arruaceiro, com dificuldades para cumprir ordens ou bater continência. Foi expulso do Exército por insubordinação. Enquanto na ativa, quis jogar bombas em quartéis e se preocupou em agitar a tropa. Contra o que? Contra tudo, em nome de ideias vagas e de simpatia explícita pela violência, pela tortura e pela ditadura.
Elegeu-se assim uma pessoa que ao longo da vida se mostrou despreparado para as batalhas mais simples. Um personagem tosco, sem qualquer refinamento intelectual, que durante 30 anos montou um bunker com os filhos e alguns fanáticos para tomar de assalto o Estado brasileiro. O quartel-general foi a Câmara dos Deputados, de onde a malha se expandiu, envolvendo políticos tradicionais, milicianos e uma chusma de desqualificados. Nenhum técnico, nenhum intelectual, mas muitos oportunistas, à espreita para descolar uma boquinha quando a hora chegasse.
2018 foi um ponto fora da curva. Há quem prefira analisá-lo como decorrência do impeachment de Dilma Rousseff, visto como um “golpe” que teria aberto a estrada para a extrema-direita. Não é uma visão majoritária, especialmente porque não leva na devida conta a decomposição política que vinha em marcha desde antes e a responsabilidade do PT na ausência de governo, que encorpou a ponto de provocar verdadeira metástase no sistema político, misturando-a com doses cavalares de corrupção e instrumentalização da máquina pública.
Naquele ano, o desencanto do eleitorado com o PT e a esquerda somou-se à incompetência dos políticos democráticos, que se deixaram consumir pela vaidade e pela arrogância, não foram capazes de articular um programa de ação e acabaram por entregar a Presidência de mão beijada para o personagem que estava ali, pronto para agitar, na hora certa, uma hora agônica, que simbolizava o fim de uma época política.
O que assistimos hoje é só um desdobramento desse quadro. O personagem continua solto, com o mal crescendo dentro dele. Piorou muito depois que chegou ao poder. Sentiu-se em condições de fazer tudo e mais um pouco. Contou com militares a seu lado, que aderiram a ele com a expectativa de conseguir controlá-lo. Organizou uma rede de robôs e influencers para espalhar suas mensagens, suas mentiras, seu veneno. Beneficiou-se da covardia de tantos políticos, da falta de clareza dos partidos, da reprodução na opinião pública de uma ideia de que a “política tradicional” era inútil, um desperdício para o País. Foi-se mantendo, ora esperneando, ora agitando os fanáticos, ora minando as instituições. De governo mesmo, não se teve notícia.
O personagem se isolou no seu novo bunker, o Palácio do Planalto. Foi perdendo a guerra que se prontificou a lutar. Manteve a pose de que estava vencendo com a ponta da caneta, demitindo e nomeando. Fazendo lives diárias com os seguidores amontoados na porta do Palácio. Agredindo e ofendendo os que ousavam discrepar ou fazer fluir a informação, como os jornalistas.
O monstro passou a dominar por completo o personagem. Encontrou na pandemia a oportunidade que acalentava para produzir caos, morte, desunião, desencontro, horror, confusão. Adubou esse habitat e fez dele a rampa de lançamento para seguir atacando a população, os políticos, o STF.
Manteve a ressonância entre os fanáticos, como era de se esperar. Eles são como o rebanho que se deixa arrastar para lá e cá. Batem bumbos, fazem carreatas, agridem e ameaçam.
O personagem foi sendo levado pelos aplausos fáceis, tirando vantagem da lentidão das instituições, que não reagem com rapidez, jogando um partido contra outro, governadores contra prefeitos, povo contra povo.
Agora que o caldo está entornando, algumas perguntas ficam soltas no ar.
Como foi possível que um País como o nosso tenha chegado a esse ponto?
Onde estão as figuras “responsáveis” que integram o governo, que nada falam, nada fazem, a tudo assistem como se se tratasse de uma comédia bufa ou de um drama de horror? Continuarão escondidos atrás da “prudência”, da “minimização de danos”, enquanto o fogo se alastra na Esplanada e invade recônditos inesperados?
Onde estão os democratas ativos e responsáveis, permanecerão adormecidos, confusos, olhando para urnas, fazendo cálculos mesquinhos, bem nessa hora em que boa parte do destino nacional pode estar sendo definida? Onde estão os grandes da República, os chefes das instituições, os defensores das melhores tradições?
E os eleitores que sufragaram o personagem em 2018, continuarão a vê-lo como uma solução, como o “mal menor”, agora que o monstro tomou conta daquele corpo e daquela mente de modo irremediável?
Marco Aurélio Nogueira: O vírus, a era global e a oportunidade que se abre
Se conseguirmos suportar o impacto da doença e não formos muito atrapalhados por governantes inescrupulosos, o vírus será controlado. A pandemia, porém, deixará marcas profundas
Pandemias já houve muitas na história. Todas produziram abalos e levaram a grandes transformações. Mas nenhuma foi como está sendo a do novo coronavírus.
A gripe espanhola (1917-1918), “a mãe de todas as pandemias”, foi uma variante mutante do vírus Influenza. Os cálculos sugerem que de 30 a 40% da população mundial foram infectados, com cerca de 50 milhões de mortes. Só no Brasil morreram 35 mil pessoas. Os números são imprecisos, mas indicam bem a letalidade da doença.
Antes dela houve a epidemia da cólera (1817-1824), que matou milhares de pessoas em praticamente todos os continentes. Causada por uma bactéria intestinal, a doença continua produzindo estragos pelo mundo, especialmente onde faltam condições básicas de saneamento básico e higiene.
A “peste negra”, a peste bubônica, causada por uma bactéria presente em ratos pretos assolou o norte da Europa e atingiu a China, o Oriente Médio e a Rússia, entre 1347 e 1352. Calcula-se que provocou mais de 25 milhões de mortes, ou seja, cerca de 1/3 da população europeia à época.
Depois da gripe espanhola, o mundo foi periodicamente sacudido por doenças pandêmicas. Quanto mais o mundo se integrou e manteve acesas as turbinas do produtivismo, mais os problemas se tornaram comuns a todos. Em 1957 houve a Gripe Asiática (2 milhões de mortos), dez anos depois a Gripe de Hong Kong (H3N2), que matou 1 milhão de pessoas, em 2009 foi a Gripe Suina (H1N1), que chegou a 187 países e provocou cerca de 300 mil mortes. De 1980 em diante, mais de 20 milhões de pessoas morreram devido a complicações da AIDS, causada pelo vírus do HIV, transmitido sexualmente. Uma epidemia trágica, ainda sem cura ou vacina.
O que há de diferente na pandemia do novo coronavírus?
Primeiro de tudo, ela é a primeira pandemia de uma época categoricamente global. Coincide com a expansão dos mercados, a porosidade das fronteiras nacionais, o desenvolvimentismo produtivista e antiecológico, a alta mobilidade e a circulação intensa das pessoas. Tudo isso facilita enormemente a que o vírus se espalhe. A própria estrutura complexa da vida atual, com seus componentes de fragmentação e individualização, contribui para que tudo reverbere com intensidade e meio fora de controle. Há risco, insegurança, incertezas, que se integram à experiência da vida cotidiana e fazem, entre outras coisas, com que todas as decisões se tornem dilemáticas. Ao mesmo tempo, vamo-nos dando conta do que há de intolerável e inadmissível no modo como vivemos: a desigualdade, o racismo, a miséria, a falta de condições dignas de existência, o desperdício, à agressão ao meio ambiente.
A época também é de crise da política e da democracia representativa. Isso abre buracos complicados entre os cidadãos, os legisladores e os governantes, dificultando a que as decisões tomadas no vértice estatal repercutam positivamente na vida comunitária. Os cidadãos desconfiam de seus governos e tendem a problematizar tudo o que parte deles. Recusam-se a obedecer, em nome de suas verdades e da convicção de que os governantes nada mais são do que “politiqueiros”. Sem uma dose mínima de “obediência”, uma pandemia como a do COVID torna-se quase impossível de ser debelada.
Como lembrou Byung-Chul Han, filósofo coreano que vive em Berlim, uma das vantagens dos asiáticos é que eles aceitam com facilidade a autoridade do Estado e suas ordens. Estariam mais predispostos a aceitar um Estado autoritário, que procede por tecnologia da informação e controles digitais. É um recurso de sobrevivência, mas também pode ser a porta de entrada de formas ditatoriais e não democráticas de organização da comunidade política, com controles permanentes sobre tudo e todos.
Em segundo lugar, a pandemia atual convive com redes e trocas frenéticas de informação. Isso, por um lado, é excelente, pois facilita a comunicação e a cooperação entre médicos, pesquisadores e cientistas. Ter dados disponíveis e acessíveis é uma poderosa ferramenta de conhecimento e gestão. A malha digital e a inteligência artificial são preciosas seja para monitorar ameaças, seja para debelá-las.
Por outro lado, porém, essa nova estrutura de informação e comunicação promove a produção incessante e a disseminação de notícias falsas, boatos e mentiras, que geram confusão e dificultam a gestão do problema. É o que a OMS chamou de “massivo infodêmico”, algo como um vírus que espalha desinformação e ideologias regressivas, anticientíficas e irracionais. No caso concreto do COVID-19, ativistas desse tipo – humanos e robôs, sistemas programados para disparar mensagens – estão na dianteira do “negacionismo” obscurantista (recusando-se a reconhecer a pandemia, o aquecimento global e até a curvatura da Terra) e da pregação de saídas nacionalistas hostis ao entendimento entre os Estados.
O COVID-19 irrompeu num momento de exuberância científica, de conhecimento ampliado, de reconhecimento do valor da ciência e de suas aplicações na área médica e sanitária.
Se os humanos conseguirem suportar o impacto inicial da doença (o confinamento) e não forem prejudicados por governantes inescrupulosos, que manipulam politicamente o problema e duvidam de sua gravidade, é de esperar que o vírus seja controlado. A vida, porém, não será mais a mesma. A pandemia deixará marcas profundas na experiência humana individual e coletiva, afetando a economia, o modo como se trabalha, os relacionamentos, a política.
O sistema produtivo conhecerá crise profunda, agravando ainda mais o mundo do trabalho, muita coisa nova surgirá, os desafios serão grandiosos. Será difícil que o neoliberalismo se reponha e uma nova versão do Estado social baterá às portas. Em meio a dor e medo, poderá se abrir uma oportunidade para que se comece a por em xeque o desenvolvimentismo produtivista, com sua cegueira ecológica, climática, ambiental, sua voracidade predatória. Poderá ser um bom momento para que se recupere a ideia, tão mal aproveitada antes, de “sustentabilidade”.
O problema é que falta uma alavanca que faça a roda reformadora girar: política democrática, programas de ação, agentes organizados que unifiquem os cidadãos e pautem os governos. Há um “vazio” existencial e político que impede a materialização de propostas democráticas consistentes. Caso não se reverta essa situação, a pandemia causará um efeito negativo adicional: levará à acomodação dos interesses dominantes e à reprodução (modificada em maior ou menor grau) do desenvolvimentismo prevalecente, com sua voracidade destruidora.
Poderá até ser pior. Em vez de reformas para frente, a pandemia poderá impulsionar o ressurgimento do “nacionalismo”, das pulsões “patrióticas”, em detrimento dos esforços de articulação internacional, a imposição do unilateralismo no lugar do multilateralismo. O que levará de roldão a democracia e parte importante do que há de humanismo, fraternidade e liberdade na experiência moderna.
*É professor titular de Teoria Política da Unesp