Luiz Sérgio Henriques: Esquerda positiva, a hora e a vez?

É necessária uma aguda reflexão sobre a ‘questão democrática’ e o centro político

Luiz Sérgio Henriques / O Estado de S. Paulo

Num momento em que nosso passado de golpes e atropelos parece obstinar-se em não querer passar, oprimindo como um pesadelo, segundo a frase famosa, o cérebro dos vivos, podemos também, paradoxalmente, nele buscar sinais que nos orientem ou permitam discernir rotas menos tortuosas. É que tivemos tempo suficiente de aprendizado na luta contra o autoritarismo e nos educamos coletivamente por meio de experiências que não se deixam apagar e, seja como for, estão disponíveis para quem veio depois e não as viveu em primeira pessoa.

Exercícios contrafactuais são sempre arbitrários, mas não de todo inúteis. Não era inevitável, por exemplo, que a modernização brasileira se revestisse do caráter autocrático assumido a partir de 1964. Tal caráter não estava escrito nas estrelas ou latente na “natureza do processo”, mas decorreu também de más escolhas políticas. No seu conjunto, os atores do campo “progressista” tinham da democracia uma concepção limitada, como se ela fosse uma variável subordinada às “reformas de base”. Defender a Constituição de 1946 e apostar nas eleições de 1965 teria sido um caminho menos aventuroso, cuja viabilidade dependia da existência mais vigorosa de uma “esquerda positiva”, à moda de San Tiago Dantas, que desgraçadamente não tínhamos.

A seguir, a luta contra o regime autoritário conheceria uma esquerda dividida e muitas vezes impotente, a travar o seu “combate nas trevas”. Parte dela negava as transformações em curso e se apegava aos fortes mitos revolucionários da época, como o da China ou o de Cuba. Outra parte, no entanto, que por sinal abrigava a maioria dos egressos do putsch de 1935, seguia rumo diametralmente oposto ao do passado, avalizando – mesmo na clandestinidade – o partido dito de “oposição consentida”, o MDB de Ulysses e Tancredo. Sem dúvida, um sinal de esquerda positiva, preocupada com os humores e as posições do centro político, sem o qual não seria possível derrotar o arbítrio.

O País que surgiu dos anos de chumbo carregava promessas radiosas. Antes de mais nada, uma sociedade civil plural, pujante e diversificada. Entre tal sociedade e o seu Estado se consolidava uma relação mais equilibrada, de tal forma que parecia banida a hipótese que sempre estimula as aventuras autoritárias, a saber, a tentação de impor mudanças “pelo alto”, depois de controladas as alavancas do poder estatal. O que os atores políticos prometiam generalizadamente, desde os dissidentes da velha Arena até os representantes da esquerda velha e nova, era o rompimento definitivo com toda e qualquer ideia de golpe. O golpismo, em suma, passaria a ser palavra censurada naquele Brasil reinaugurado em 1988.

É possível, antes, é certo que havia alguma ingenuidade sobre a fase que se abria. Reformas sociais, mesmo de grande alcance, seriam possíveis, e de fato algumas o foram, como atestado pelo magnífico exemplo da construção (ainda em progresso) do SUS. A crença, afinal, era de que a democracia política não discrimina interesses nem valores e, por conseguinte, promove e requer a recomposição de todos os conflitos com base no consenso. Reformas assim obtidas, rigorosamente legais e nunca “na marra”, pavimentariam a via mestra de uma contínua democratização social. Para coroar, eleições competitivas, travadas com a regularidade “monótona” típica das sociedades ocidentais a que agora nos juntávamos, garantiriam a obtenção de patamares cada vez mais altos de igualdade e liberdade.

Dispensamo-nos aqui de descrever o impacto que os processos de mundialização tiveram sobre a estrutura de classes, a ordem social e os variados sistemas políticos nacionais. Em boa parte os benefícios da “globalização chinesa” possibilitaram avanços sociais generalizados na primeira década do novo século, e não só no Brasil, mas é duvidoso que entre nós se tenha afirmado com intensidade a “alma democrática” que dá vida interior às instituições, para lançar mão de uma imagem de Fernando Henrique Cardoso. Nas brechas e fissuras aí surgidas se insinuaria paulatinamente, com uma audácia que poucos poderiam supor, uma nova direita autocrática, fortemente crítica dos mecanismos da democracia clássica, a começar pelo que preside a alternância regular de poder.

A esquerda certamente é um fator indispensável para a saída do abismo em que nos metemos. Indispensável, mas muito longe de ser o único. O aprendizado coletivo a que nos referimos sugere que, uma vez mais, é necessária uma aguda reflexão sobre a “questão democrática” e, em consequência, o centro político. Recorrendo à conhecida metáfora, esse é o único elo a partir do qual se consegue dominar toda a corrente. Por isso mesmo, não se trata de prometer, com as mãos contritas, eventual “aliança com a burguesia” para “acalmar os mercados” e, menos ainda, de reincidir em esquemas de cooptação e loteamento. Trata-se, bem ao contrário, de redefinir a própria posição diante dos mais delicados temas da democracia e da República, sem o que não será possível a obra de reconstrução nacional que nos desafiará.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,esquerda-positiva-a-hora-e-a-vez,70003811050


Luiz Sérgio Henriques: Os vivos e os mortos

Não é mais incomum ver EUA e Brasil associados sob o rótulo de ‘párias’ ambientais e sanitários

Que os mortos possam julgar os vivos não é um absurdo. O que nos educa para cenas desse tipo, naturalmente, é a arte, uma forma extraordinária de conhecimento. E aqui ressurge a lembrança do “incidente” imaginado por Érico Veríssimo na sua fictícia Antares. Uma greve de coveiros faz com que se acumulem os insepultos. E são esses mortos sem sepultura que retornam, exigindo providências para poderem enfim descansar. Revisitam parentes e amigos, testemunham discussões e conflitos embaraçosos, até ocuparem a praça da cidadezinha, onde encenam um duro juízo sobre a mediocridade e a vileza que desgraçadamente puderam constatar entre aqueles que assombraram com sua volta fantástica.

Deixamos para trás a ditadura, em cuja atmosfera, na arrojada ficção de Veríssimo, se quis cancelar da memória o “incidente”, e já há três décadas vivemos o mais longo período democrático da História republicana. Nesta pandemia, contudo, os mortos ao redor parecem reatualizar a incômoda alegoria. É que eles são em número muito maior do que se poderia esperar de um país cuidadoso com seus cidadãos, mesmo que esta seja uma catástrofe sanitária sem paralelo desde 1918 e, nascida na globalização, se tenha espalhado feito rastilho de pólvora, cobrando pesadíssimo tributo, em especial das populações do Brasil e dos Estados Unidos, os líderes mundiais na contagem de corpos.

Não são poucas as dessemelhanças entre os dois países-contintente. A riqueza e o poderio americano, de alcance global, contrastam com o tamanho menor da nossa economia e sua projeção externa obviamente mais contida. Paradigma do capitalismo liberal – que às vezes, para o bem e para o mal, tentamos reproduzir, rasgando nossa certidão “ibérica” de nascimento –, os Estados Unidos conseguem mobilizar mais recursos científicos, apesar de se contarem entre os heróis brasileiros sanitaristas da altura de um Oswaldo Cruz ou de um Vital Brasil, que nos legaram uma tradição valorosa de pesquisadores e instituições. Sobretudo, apesar da nossa abissal desigualdade, temos o SUS, que, como se diz com precisão, é a barreira que nos separa da barbárie e nos diferencia da medicina privada dos americanos.

A semelhança conjuntural entre as duas Repúblicas consiste na ação de dois mandatários singularmente afins em estilo, métodos e propósitos. Uma afinidade buscada conscientemente pela figura menor – pelo “Trump latino-americano” – até o ponto da caricatura. Figuras da cisão e da cizânia, desmentem a noção de que o governante, uma vez eleito, representa todos os governados, compondo e mediando os mais diversos interesses, ainda que, legitimamente, busque dar um rumo de acordo com a vontade majoritária que expressa. Externamente, ostentam particularismo nacional similar. Como se vê quase todo dia, os Estados Unidos retiram-se barulhentamente do mundo que eles próprios contribuíram para construir durante “o século norte-americano”; já o Brasil demite-se da liderança regional, afasta-se por motivos rasos dos seus vizinhos e amigos naturais, fazendo tudo para apagar os traços mais atraentes do soft power delineado por gerações de políticos, diplomatas e artistas. Dois desastres cuja proporção ainda nos deixa atônitos.

Natural que, nestes termos, ambos os governantes sejam, rigorosamente, os responsáveis pelo rotundo fracasso da resposta dos respectivos países à pandemia. Não importa que o vírus tenha vindo de Wuhan e que, a princípio, a autocracia chinesa, como é inerente às autocracias, tenha também querido cancelar a má novidade. O fato é que o vírus, de índole “globalista”, constitui ameaça generalizada, sem mencionar que outros mais hão de vir, até como efeito provável do desmatamento – e aí já estamos falando de corda em casa de enforcado. Uma situação-limite que exigiria dos Estados Unidos a liderança do capitalismo democrático; do Brasil, o reforço da Federação, da coesão social e a articulação de um discurso público orientado para a solidariedade, particularmente com os mais frágeis.

Trump e Bolsonaro, ao contrário, esmeram-se no “economicismo”, exatamente à maneira do marxismo vulgar que apregoam detestar. Opõem a preservação de vidas e a de empregos, sabotam a ciência e as informações, mesmo provisórias, que ela tem gerado no calor da hora. Conseguiram inserir o uso de máscaras e a distância social no repertório das tais guerras de cultura, que dividem, enfraquecem e esgotam seus desatinados combatentes. E assim terminaram por se colocar, e aos seus países, sob suspeição geral: não é mais incomum ver Estados Unidos e Brasil associados sob o rótulo de “párias” ambientais e sanitários.

Na ficção de Veríssimo, uma certa “operação borracha” é montada para apagar o abalo causado pelos mortos sobre os vivos, subvertendo a rotina destes à luz do evento inesperado. Mas Antares, literariamente poderosa, era pequena e os mortos no coreto da praça eram poucos. Agora os corpos se empilham e, mais até do que no tempo do grande romancista, não será possível contar nenhuma história ingênua sobre eles.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Luiz Sérgio Henriques: Fascismo e antifascismo

Cabe ter esperança na ação de uma esquerda que assuma a ideia democrática

Há pouco mais de um ano, não deixou de causar furor e indignação a atitude de Matteo Salvini, o expoente da ultradireita italiana e, na época, a figura mais forte do governo, ao se recusar a celebrar a data de libertação do seu país da ocupação nazista e do despotismo mussoliniano. O 25 de abril, na visão de Salvini, não marcava nenhum renascimento nacional por trazer um vício de origem: independentemente da catástrofe cujo fim aquela data assinala, trata-se de uma contraposição – entre fascistas e antifascistas – já arquivada nos desvãos do passado. O fascismo está derrotado e, por isso, o antifascismo não tem mais razão de ser. E, sobretudo, não tem mais razão de ser porque entre os antifascistas, na primeira fila, estão os odiados comunistas, a quem Salvini, como os demais companheiros de cruzada, não reconhece nenhum papel positivo, em contexto algum.

No entanto, o antifascismo, apesar de Salvini e companhia, é um termo que tem atravessado gerações, redefinindo-se em diferentes conjunturas críticas. Seus símbolos, suas palavras de ordem e até canções, como a Bella Ciao, que os jovens voltam a entoar nas manifestações em várias línguas, mostram que ali, naquele termo, há matéria de memória e de reflexão, especialmente por quem, considerando as frentes antifascistas um tema relevante ainda hoje, nem por isso se abstém de enfrentar contradições muitas vezes dilacerantes no próprio campo.

O comunismo, por exemplo. Onde quer que tenha havido fascismo, ou arremedo dele, como no Brasil do Estado Novo, os comunistas lutaram o bom combate. E a URSS staliniana foi um componente essencial da aliança com as democracias ocidentais que afastou o pesadelo de um Reich de mil anos. Mas é forçoso reconhecer que, lutando pela democracia, os comunistas no poder construíram Estados repressivos e, para falar com franqueza, totalitários; na oposição, ao contrário, tornaram-se pouco a pouco fatores importantes de várias democracias, moderando-se ao longo do tempo num sentido social-democrata e dando origem ao proverbial “reformismo” legalista dos velhos PCs. Eles, em tais contextos, sempre menos antissistêmicos e mais preocupados com a integração dos “de baixo”, eram meios para a expansão virtuosa das democracias, e não para a explosão revolucionária, o que ia ao encontro dos interesses de toda a sociedade.

O antifascismo original não anulava nem escondia a diversidade das suas partes constitutivas. Conservadores, liberais e socialistas democráticos, entre outros, deviam calar temporariamente suas fundadas restrições à versão jacobina que da tradição marxiana davam os partidários da Revolução de 1917. Estes últimos, comprometidos com a estatolatria implantada no país-modelo, se batiam na frente antifascista ao lado de aliados que defendiam com firmeza as liberdades “negativas”, as que protegem cada indivíduo contra a onipotência do Estado e sem as quais os melhores ideais da igualdade degeneram em igualitarismo grosseiro. A coragem demonstrada nas frentes de batalha, embora pudesse atingir tons heroicos, não ocultava a subalternidade “ideológica” dos comunistas e da matriz bolchevique, incapaz de assimilar ou sequer entender o papel das liberdades “burguesas”.

O antifascismo consistiu assim numa aliança entre atores diferentes, e até muito diferentes, em razão de um mal maior. Mas se só houvesse diferenças entre eles a aliança se definiria negativamente e teria muito mais dificuldade para se formar. Ainda que de modo parcial e imperfeito, todos os atores aliancistas compartilhavam uma fundamental orientação democrática inerente à modernidade, que lentamente corroía o mundo rigidamente hierárquico, opressivo e “orgânico” de outrora. Por isso se desprendia do campo conservador, e a este acabava por se contrapor ferozmente, uma versão reacionária da modernidade, capaz obviamente de elaborar programas de reerguimento econômico, como no caso do corporativismo italiano ou das políticas nacional-socialistas contra a depressão, mas associados à liquidação radical dos direitos civis e políticos, à uniformização compulsória da vida social e aos mitos mais regressivos do solo e do sangue. Em suma, a grande noite do irracionalismo, a temida temporada do assalto à razão, que deram, por contraste, o cimento essencial para o bloco antifascista.

Com todos os conflitos internos, esse bloco esteve na origem de desenvolvimentos positivos, como, de certo modo, o reformismo rooseveltiano e, seguramente, os “30 anos gloriosos” do capitalismo europeu socialmente regulado. Há décadas tudo isso está sob fogo cerrado não propriamente dos conservadores, que costumam ter uma consciência serena do que merece ser mantido, mas da sua ponta mais extremada e “revolucionária”, a exemplo de Salvini, que, como bem se vê, não é um lobo solitário. Cabe ter esperança na ação de uma esquerda que, desta vez, ao contrário dos avós bolcheviques, assuma a ideia democrática, sem adjetivos, como convicção íntima e incontornável. A alternativa é a barbárie.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Luiz Sérgio Henriques: Os heróis da retirada

Precisamos deles para traçar uma linha nítida diante dos que semeiam caos e tempestade

Um dos muitos encantos de ler Javier Cercas, o autor de Soldados de Salamina e de Anatomia de um Instante, reside na sua consciente mistura de ficção e História, imaginação e política, alimentando-se mutuamente e dando-nos, como compensação, a certeza de que o mundo não é um conjunto de fatos de fácil catalogação. A matéria de Cercas é a Espanha, amada e amarga, como a definiu certa vez o marxista italiano Pietro Ingrao, com sua história atribulada, repleta de violência, golpes e revoluções, e sua democracia tantas vezes interrompida, o que certamente a traz para bem perto de nós.

A ferocidade da guerra civil de 1936, contudo, não tem paralelo possível na nossa própria vida política. Aqui, o putsch de 1935 foi episódio cruento, doloroso, mas circunscrito, sem a fúria das paixões desatadas em torno da República espanhola, verdadeiro ensaio geral para o grande conflito que viria a seguir. E a Espanha, mergulhada na longa noite do franquismo, só em meados dos anos 1970, ainda antes de nós, é que se libertaria do regime do garrote vil e restabeleceria a liberdade perdida no fim dos anos 1930, quando o nazismo e o fascismo pareciam vitoriosos, impondo-se mediante a violência e o irracionalismo tornado ideologia de massas.

O instante cuja anatomia Cercas empreende tem um simbolismo a toda prova. Como em toda jovem democracia, o golpe costuma estar à espreita. No início da década de 1980, chefes militares essencialmente franquistas, não convertidos à ideia fundamental da obediência ao poder civil, encontravam terreno fértil para maquinações. O terrorismo ameaçava a integridade nacional. O princípio da tutela militar sobre as instituições voltava a se insinuar, ameaçando fazer a Espanha retroceder muitas casas no tabuleiro das democracias modernas.

Como consta na generalidade dos manuais de golpe, até hoje e em toda parte, a sedução de um gesto “heroico” empolgava corações e mentes de patentes inferiores. E a invasão do Parlamento, em fevereiro de 1981, pareceu dar vazão a tal instinto predatório. Os parlamentares, vistos com desconfiança por parte grande da opinião pública, como é comum na crise das democracias, foram de fato sequestrados. Entre os poucos que desafiaram as balas dos fuzis, Adolfo Suárez, o primeiro-ministro sob pressão, e Santiago Carrillo, deputado comunista, dirigente do seu partido, lendário inimigo público número um do franquismo.

Este, o instante fixado, prenhe de significados, aberto a múltiplas interpretações. Suárez e Carrillo, o delfim do franquismo e o veterano comunista, tinham sido paradoxalmente, nos anos anteriores, grandes artífices da redemocratização do seu país, a ponto de terem seus destinos políticos associados para sempre, até mesmo no declínio dos anos subsequentes. Na bela expressão de Hans Magnus Enzensberger, que Javier Cercas invoca a propósito dos dois políticos, eles eram heróis da retirada, um tipo de personagem extremamente rico, denso e, em muitos contextos, insubstituível. Ao “se imolarem” metaforicamente, e arrastarem consigo as ideias de toda uma vida, ainda por cima vividas coletivamente, esses heróis permitem que desponte um futuro que, no entanto, não os abrigará.

Detenhamo-nos neste ponto. Lugar-comum entre estrategistas a noção de que uma retirada em ordem é manobra que exige rara inteligência tática. Ela poupa armas e homens, permite uma rearticulação de forças, possibilita alguma contraofensiva. Na política, o herói da retirada é mais do que isso. A manobra, aqui, é mais radical. Ao retirar-se, o herói “desconstrói” os próprios valores sobre os quais desenhara seu percurso, assim como o de todo um grupo social. Não se trata, porém, de ato niilista que provoca perda de referências, mas de percepção do esvaziamento das antigas orientações em face de nova configuração do mundo. Um ato do mais puro realismo, portanto, que parte da constatação de que determinadas percepções subjetivas e categorias de pensamento viraram pó diante do juízo severo da realidade.

Suárez, criatura do franquismo, toma consciência da sua caducidade. Carrillo, combatente antifascista desde sempre, sabe que o leninismo dos PCs não faz nenhum sentido em democracias modernas. No contexto da transição, direita e esquerda, se quisessem contribuir para a nova democracia, deveriam renovar-se de alto a baixo. E só heróis da retirada têm consciência dos próprios limites ideológicos, uma consciência que se manifesta em cada um dos seus atos. No instante decisivo podem até ser aniquilados, mas só eles se empenham em dissolver antagonismos esclerosados e, ao menos, apontar o caminho das pedras.

Já admitimos que a carga de dramaticidade que nos envolveu no passado e agora nos envolve é bem menor. Golpistas não faltam, até em posição de mando, mas não há guerra civil nem fascismos invencíveis à vista. Mesmo assim, precisamos daquele tipo particular de heróis – por ora, e com urgência, terão de vir da direita moderada, civil e militar, para traçar uma linha nítida diante dos que semeiam caos e tempestade.

*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil


Luiz Sérgio Henriques: O romance (em aberto) do nosso tempo

Não há autoria individual nem se pode discernir o espírito do mundo numa figura de herói

Uma parcela da grande arte do século passado e a reflexão que ela inspirou apresentam a estratégia de isolar artificialmente personagens em situações inesperadas a fim de captar mais e melhor suas reações e respostas aos desafios humanos fundamentais. Assim, por exemplo, a vida cotidiana está como que suspensa na Montanha mágica, de Thomas Mann, ou no Primeiro círculo, de Alexander Soljenitsyn. Num teatro “irreal”, disposto arbitrariamente num único lugar, que pode ser um sanatório ou um gulag, os dramas afloram e se acirram, as orientações de valor mudam num sentido ou no outro, a morte ou a sobrevivência se decidem com um grau de intensidade que é difícil ver em tempos normais.

Essa fina observação de Lukács, um velho comunista capaz de insights poderosos, misturados obviamente ao pesado jargão da tribo, pode talvez iluminar a trágica condição humana, aqui e agora, assediada como está pelo espectro da ruína e da morte. O teatro único em que nos encontramos - nós, de carne e osso, momentaneamente reclusos nas nossas casas - é o mundo inteiro, tal como definido pela globalização “neoliberal”. A unidade do gênero humano é já um fato denso, palpável, ineliminável, ainda que levada adiante pelas forças cegas da economia, deixando para trás a política, vale dizer, a capacidade de controlar minimamente tais forças e diminuir a opacidade do seu movimento.

Na circunstância inédita do mundo hiperconectado, a vida nos chega codificada em algoritmos, a desinformação torna-se uma estratégia conscientemente buscada por grupos extremos, a cacofonia das redes sociais ameaça abafar qualquer exercício de racionalidade, enquanto os políticos de profissão, mais visíveis, ocupam a ribalta e parecem reger o conjunto. Sua fala, porém, soa vazia e muitos confundem seus gestos com a agitação de marionetes. Há uma grita geral por faltarem grandes atores, mas a nota esperançosa é que, em situações críticas, os papéis podem variar e é preciso saber ler as mudanças ou até pequenos sinais delas.

Bufões dificilmente deixarão de ser o que são - nenhuma esperança para a generalidade dos líderes da extrema direita mais em evidência, subversivos da ordem democrática por definição. Mas Emmanuel Macron, um democrata, surpreendeu-nos com a ênfase renovada na importância dos bens públicos, como a saúde. O Estado de bem-estar social, para ele, não deve ser contabilizado como um investimento qualquer, como fardo, mas, sim, recurso que define uma França e uma Europa soberanas. E mesmo um personagem reativo como Boris Johnson se emocionou em cena aberta ao voltar do seu quase encontro com a “indesejada das gentes”. Certamente é um nativista, mas seu elogio rasgado ao Serviço Nacional de Saúde e sua menção afetuosa aos enfermeiros imigrantes que o assistiram zelosamente, tal como o fariam com qualquer outro doente, escapam rigorosamente do script de uma extrema direita perigosa e farsesca. Essa fala comovida deixará algum traço, mínimo que seja, nas ações futuras do personagem?

No fundo, o que está em jogo é saber se as orientações nativistas, com sua carga de egoísmo e particularismo local, levarão a melhor sobre a estrutura econômica bem ou mal já mundializada e os organismos multilaterais que ela requer, a começar pela ONU. Não é despropositado ver que, no primeiro caso, antes da grande crise o projeto era o de dar rédea solta à religião de mercado no limite de cada Estado nacional, que sempre deveria vir “em primeiro lugar” ou “acima de todos”. As maciças injeções de recursos públicos agora necessárias desarticulam por muitos anos a utopia mercadista, mas as tendências iliberais ou antiliberais, presentes em muitos lugares, podem se agravar. Para ficar num só exemplo, a Hungria de Viktor Orbán, que, aliás, tem amigos poderosos no Brasil, puxa o cortejo fúnebre das liberdades democráticas - tecnicamente, já é uma ditadura.

A perspectiva internacionalista - sendo a mais razoável e a mais adequada à ideia de que o gênero humano, afinal, é um só - não está isenta de problemas. Não desaparecerão num passe de mágica as complicações geopolíticas e os desígnios hegemônicos, ou, mais precisamente, os desígnios de dominação nem sempre assentados em consenso. O poder que ora se retrai abdica das suas responsabilidades na gestão da ordem global e não esconde a intenção de solapar as instituições que ajudou a criar, como se vê agora por suas atitudes em face da Organização Mundial da Saúde (OMS); o poder emergente, por seu turno, é uma singular mistura de economia de mercado e autoritarismo político, cuja universalização não é desejável e só se concretizaria à custa da perda de valores inestimáveis da tradição ocidental.

O atribulado romance do nosso tempo está, assim, rigorosamente em aberto. Não há autoria individual possível nem se pode discernir, como outrora, o espírito do mundo encarnado numa figura de herói. Sabe-se só que a melhor perspectiva exige a permanência e o aprofundamento dos processos de democratização em cada nação e, por conseguinte, na comunidade de todas as nações.


Luiz Sérgio Henriques: A Venezuela como questão de método

Com seus remédios salvadores, hipóteses ‘revolucionárias’ arruínam sociedades

A palavra “venezualização” passou a fazer parte do vocabulário político, por motivos óbvios. E como é próprio de palavras que nascem em contexto de ódio, divisão e radicalismo, trouxe consigo uma atemorizante carga negativa. Segundo próceres da direita, ou, mais propriamente, da extrema direita, a começar por Donald Trump, processos degenerativos como os que aquele termo implica decorrem inevitavelmente de qualquer experimento ou política associados, ainda que remotamente, ao “socialismo” e à “esquerda”.

Bem verdade que não há modos suaves para qualificar a tragédia venezuelana. Houve quem, no campo progressista, desconfiasse desde o princípio - e claramente a ela se opusesse - da aventura do comandante Hugo Chávez, mas é forçoso reconhecer que boa parte da esquerda brasileira e latino-americana não viu motivos para se distanciar de um militar ultranacionalista que prometia refundar ou regenerar o país, explorando a crise da democracia liberal e a debilidade da estrutura econômica, incapazes ambas - aquela democracia e aquela economia - de se abrir para uma participação maior dos venezuelanos. Com aguçado faro para a demagogia, Chávez relançou, pela primeira vez no século, menos a ideia do que o slogan do socialismo, o que bastou para que muitos deixassem num canto, sem uso, as armas da crítica e aceitassem como verossímeis as bravatas do caudilho.

O chavismo e o madurismo, para também mencionar o precário sucessor, constituem também, e sobretudo, um método. Como tal, o processo de venezualização não está restrito a uma desafortunada nação latino-americana, sangrada ainda por cima pela fuga de parte expressiva da população, não só dos setores mais ricos. E também não se restringe aos episódios massivos de tortura, violência policial e miliciana, que ninguém mais pode desconhecer - quando menos desde a publicação, em meados de 2019, do relatório da ONU sobre sistemáticas violações de direitos humanos organizado sob a direção de Michelle Bachelet, egressa das fileiras do socialismo chileno e vítima, ela própria, da ditadura no seu país.

Se nos limitássemos a esse tipo de constatação, diríamos que Chávez e depois Maduro seriam “somente” a versão populista de esquerda de um ditador infame como Pinochet. No entanto, o método que passaram a simbolizar tem que ver com algo ainda mais grave, a saber, o esvaziamento obstinado e contínuo das formas da democracia, rumo a um regime autocrático supostamente legitimado por expedientes plebiscitários e pela ligação direta entre o povo e seu líder. Um e outro se identificam a ponto de tornar tendencialmente impossível o papel da oposição e a alternância regular de poder. Opor-se ao líder, que encarna sem restos a pátria e as virtudes cívicas (quando não as religiosas!), é trair o povo, agindo como quinta-coluna de inconfessáveis interesses. E é nesse ponto que governantes extremistas se dão as mãos: nenhuma diferença essencial entre todos os que, a exemplo do presidente Jair Bolsonaro, prometem “varrer” os opositores, tratando-os ora como agentes do império norte-americano, ora como emissários do comunismo apátrida.

Foram incontáveis as vezes que Chávez ou Maduro denunciaram as tentativas de “magnicídio”, as tramas mirabolantes extraordinariamente próximas das fake news hoje “cientificamente” propagadas pela extrema direita no poder. Numa circunstância infeliz em que alguns dirigentes da “maré rosa” latino-americana se viram acometidos de câncer, Chávez aventou, com fingida seriedade ou autêntica paranoia, a hipótese de um vírus preparado nos laboratórios da CIA para assassinar os líderes e frear a marcha de redenção dos povos. Donald Trump foi um dos corifeus do movimento birther, que negava, com deslealdade a toda prova, o nascimento de Barack Obama em solo americano. E move-se com tanta maestria na “arte” da manipulação que, segundo afirmou certa vez, ainda que atirasse em alguém numa avenida nova-iorquina, nem por isso perderia um só voto. A tanto, sem dúvida, chega a cegueira deliberada.

A “venezualização” não é um risco associado unicamente ao populismo de esquerda. A “maré rosa” da primeira década do século tinha como área mais radical os regimes ditos bolivarianos, com a tática, num primeiro momento aparentemente invencível, de concentrar o poder em torno do Executivo, desautorizar os Parlamentos regularmente constituídos e destruir os delicados equilíbrios entre as instituições de Estado e entre este último e a sociedade civil. Contudo a régua e o compasso desse projeto infaustamente “revolucionário” se transferiram recentemente para outras mãos não menos ameaçadoras. E a ameaça presente - da parte da extrema direita liberticida - só faz confirmar que hipóteses “revolucionárias” de qualquer natureza, com seus remédios salvadores, costumam arruinar sociedades inteiras ou, no mínimo, encerrá-las em estéreis e prolongados conflitos e convulsões. Apesar do que somos e do que aspiramos a ser como povo e como nação, não podemos mais dizer que estamos alheios a esse tipo de atribulação.

* Tradutor e ensaísta, um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil, é autor de ‘Reformismo de esquerda e democracia política’ (Fundação Astrojildo Pereira)


Luiz Sérgio Henriques: Quando os bárbaros bateram em retirada

Um desafio global, sistêmico, como o do comunismo histórico, é improvável que se repita...

No tempo em que a luta final parecia ser entre sistemas irremediavelmente contrapostos, a cultura bolchevique, tradução arriscada para o “Oriente” político de um pensamento claramente ocidental, como o de Marx, protagonizou não poucos episódios de fechamento sectário sobre si mesma. Exemplar, nesse sentido, o combate prioritário que em certo ponto os partidos comunistas deram aos “social-fascistas” – rótulo infame dado à esquerda social-democrata –, mesmo diante do avanço do nazismo e do fascismo. Ou, ainda nos anos 1930, a política interna da URSS stalinizada, que proclamava estar a caminho do socialismo e contraditoriamente apregoava o acirramento incessante da luta de classes, com processos falsificados, fuzilamento de velhos bolcheviques e afirmação de uma implacável estrutura verticalizada de mando.

Evidentemente, esse poder monolítico não duraria para sempre. Em face da vida política do capitalismo avançado, muito mais articulada e complexa, mesmo a versão atenuada do comunismo no poder, com a queda do ditador e a denúncia (parcial) dos seus crimes em 1956, mostrava-se primitiva e destituída de atração. Como no poema de Kaváfis, aquela constelação de partidos-Estado era como que a fonte e a razão de ser dos bárbaros à porta da cidade, que ameaçavam invadi-la e só provocavam reações irracionais, como a dos macarthistas e demais anticomunistas de profissão. Em 1989, por isso, entre esses setores atrasados da “cidade” capitalista viria a instalar-se um sentimento de frustração: para tais setores, os bárbaros eram uma “solução”, uma motivo de viver, um pretexto para cerrar fileiras e golpear os fantasmas prediletos. E agora batiam em retirada...

Ainda na última década do século 20 um novo e estridente grito de guerra se faria ouvir. É que o inimigo, sempre igual a si mesmo, mas ainda mais insidioso, teria passado a disputar corações e mentes com as armas mais lentas e, decerto, mais letais da cultura. Em consequência, gente treinada na linguagem da guerra fria reciclou-se rapidamente, apetrechando-se para ruidosas e intermináveis “guerras culturais”. Uma situação, aliás, que se agravaria exponencialmente no novíssimo ambiente das redes “sociais”, com sua capacidade inaudita de dinamitar pontes, criar tribos irascíveis e minar o terreno comum da convivência civilizada. E isso a ponto de se poder prever que minas potentes continuarão a explodir e causar danos no futuro, ainda depois de os guerreiros culturais ensarilharem as armas ou deixarem de fazer parte da corrente principal dos acontecimentos, ao contrário do que acontece hoje.

O alvo de tais guerreiros – que dão cobertura ideológica ao “populismo”, palavra ambígua e escorregadia, mas cujo conteúdo essencial consiste num ataque à democracia representativa tal como a conhecemos – deslocou-se: o comunismo perde a dimensão de desafio estatal e identifica-se sumariamente com o legado de 1968 e com a New Left multicultural. O ano que faz questão de não terminar, na frase de Zuenir Ventura, aparece agora como um nó a atar coisas díspares, mas todas muito “perigosas”: a rebelião antiautoritária, o feminismo, o pacifismo, o ambientalismo, tudo isso reunido numa crítica aos modelos de vida e consumo das sociedades desenvolvidas. Para os populistas de direita, eis a nova face do comunismo, empenhado como sempre em destruir a propriedade, mas desta vez, sobretudo, preocupado em corroer os valores familiares e os da tradição.

Como se trata de uma visão marcadamente ideológica, construída para organizar uma extrema direita de cunho anti-institucional, nada importa que o nó representado por 1968, no contexto real das coisas, não tenha muito em comum com a antiga posição comunista. Afinal, a Primavera de Praga também incendiou a imaginação de 1968. No clima da época, o velho ascetismo revolucionário sofreu golpes fatais. E num sentido que, na verdade, os enaltece, os comunistas da tradição se chocaram com uma derivação marginal, mas extremamente problemática, do espírito soixante-huitard, a saber, a trágica sedução da violência política.

Numa avaliação mais realista, um desafio global, sistêmico, como o do comunismo histórico, é altamente improvável que se venha a repetir num mundo interdependente em termos não mais só econômicos. E a New Left “multicultural”, mesmo quando vocaliza exigências essenciais, como o combate ao racismo e a defesa do ambiente, muitas vezes reproduz a própria superfície fragmentada da vida, sem estabelecer conexões entre os variados grupos que poderiam expressar alguma hipótese de ruptura. Se este diagnóstico sumário fizer sentido, então o agressivo populismo de direita dos nossos dias aparecerá como o que de fato é: um desses fenômenos regressivos que de tempos em tempos reagem virulentamente a mudanças havidas na estrutura do mundo e tentam restaurar um passado de papelão pintado. Para quem não aceita tal regresso, trata-se de uma oportunidade e tanto para alianças que defendam e aprofundem a experiência democrática em toda a sua plenitude.

 


Luiz Sérgio Henriques: Guerras falsas, guerreiros de fancaria

A atual generalizada redução das classes a massas não prenuncia nada favorável

Guerras culturais têm uma aparência kitsch e costumam girar em torno de monstros fabulosos, a tal ponto que nunca se sabe muito bem se os contendores argumentam de boa-fé ou estão mesmo perdidos entre sofismas que inventaram com intenções pouco claras. Quando ouve falar da ameaça rediviva do bolchevismo mundial ou de inimigos imaginários apontados à execração pública - inimigos que, a depender da latitude, podem ser um milionário judeu, como George Soros, um pedagogo brasileiro, como Paulo Freire, ou ainda o demoníaco Antonio Gramsci de mil faces -, qualquer pessoa formada segundo padrões racionais e contemporâneos haverá de torcer o nariz com certo enfado. “Paranoia ou mistificação?”, poderá perguntar a si mesma, ecoando talvez Monteiro Lobato, grande intelectual moderno paradoxalmente reativo à modernidade artística que abria caminho há cem anos.

Esse nosso personagem de formação razoável sabe, entretanto, que com ideias não se brinca. Elas podem ser abstrusas e até divertidas, se consideradas com distanciamento, mas num tempo ideologicamente confuso e agitado, que a tantos chega a lembrar a crise dos anos 1930 e as soluções totalitárias então engendradas, têm o poder de formar convicções e sentimentos de grandes massas, tornando-se por isso mesmo uma força material tão densa e concreta quanto qualquer fato bruto da economia ou mesmo da realidade natural. Ideias podem matar ou, no mínimo, propiciar catástrofes históricas. Podem configurar aquele “assalto à razão” que um grande filósofo marxista do século passado denunciou com vigor na cultura alemã e que seria a antessala do nazismo - o mesmo filósofo que, no entanto, não viu acontecer o assalto semelhante que iria corroer por dentro a experiência do socialismo inaugurada em 1917.

Este não será um tempo de partidos - oficialmente em crise, eles que foram moldados segundo os requisitos da sociedade industrial, hoje em trânsito acelerado para a digitalização -, mas continua a ser de homens partidos e de má política. Expliquemo-nos sobre esta última expressão: a política é má quando, por deficiência subjetiva dos atores ou pela natureza inédita das transformações que varrem o mundo, não dá conta dos fenômenos, vê-se atropelada por eles, sem conseguir identificar as boas possibilidades existentes mesmo durante os processos mais tumultuosos. E não se trata, obviamente, de uma condição fatal: ela, a política, é má quando ainda não compreende tais processos e deixa homens e mulheres comuns sem a capacidade, tanto intelectual quanto emocional, de tomar conta das forças que dirigem sua vida. Como se costuma dizer, em tais momentos os fatos, e não os sujeitos, parecem estar no comando. E os resultados em casos assim são, no mínimo, sofríveis, se não desastrosos.

A política, quando parece ausentar-se nos momentos de crise aguda, “orgânica”, logo se vê substituída pela ideologia no pior sentido da palavra. Ágnes Heller, a dileta aluna do acima mencionado Georg Lukács, cujo horizonte se abriu para além do marxismo, incorporando, entre outros, o pensamento de Hannah Arendt, insistiu exatamente nesse ponto às vésperas da sua morte, no ano passado. Não é que a sociedade de classes seja um momento luminoso do passado ou que a política havida no seu âmbito seja um farol da razão ou um modelo inalcançável. Houve ditaduras, e ditaduras cruéis, no século 20; mas a atual redução generalizada das classes a massas não prenuncia nada particularmente favorável. Ontem e hoje, as formas totalitárias de poder medram exatamente quando essa redução se consuma.

A ideologia torna-se o alimento de má qualidade manipulado demagogicamente pelos tiranos ou aspirantes a tiranos. Na Hungria, a pátria de Heller, um nacionalismo étnico invade o espaço público e sufoca a vida democrática: a retórica xenófoba toma conta de um país que praticamente não tem imigrantes. A vida institucional sofre continuadas agressões da parte do Executivo todo-poderoso. A imprensa vê-se comprada pelos amigos ou apaniguados do poder - ou calada. Uma estratégia “hegemônica” rudimentar - uma espécie de “gramscismo” da extrema direita -, baseada em agressivo conservadorismo pseudorreligioso, limita os espaços de liberdade individual, vistos como o lugar por excelência do perigoso comunismo cultural e suas sedutoras “teorias de gênero”, sua anarquia espiritual, seu espírito globalista e apátrida.

Tudo isso, dizíamos, é um tanto kitsch, ou, para falar a verdade, tem a marca registrada do mau gosto e da mediocridade, da paranoia e da mistificação. Alguns ainda argumentarão que a pequena Hungria tem uma história democrática modesta, reduzida, como lembrava a própria Heller, ao tempo da primavera dos povos em 1848 ou da rebelião antissoviética de 1956. E que, por isso mesmo, os maus ventos que lá sopram não poderiam empestear as casamatas e as trincheiras mais robustas que são próprias do Ocidente, a começar pela mais antiga das democracias modernas, apesar de hoje assolada pela vulgaridade de um Trump. E mesmo o Brasil, depois de 1988, teria trocado os parênteses democráticos da sua história por uma democracia estável, amparada estruturalmente numa sociedade civil e econômica complexa e diversificada, que não mais autoriza aventuras autoritárias.

Há verdade neste último argumento, mas não convém subestimar os perigos do caminho. Entre eles, e não em último lugar, as belicosas guerras de cultura, que têm o condão de corromper a sociedade, dividi-la e empobrecê-la. A viva dialética da cultura, com seus combates e desafios, com seu lento e molecular trabalho de construção de valores e ideais comuns, é uma coisa. Bem ao contrário, as guerras e os guerreiros culturais, não importa a bandeira que ostentem ou o motivo que os agite, são um decalque simultaneamente farsesco e trágico de tal dialética. Há que evitá-los.

 


Luiz Sérgio Henriques: Uma defesa do liberalismo

Defesa das instituições, e da Constituição que as afirma, é obrigatória para todo democrata

Neste ano em que voltamos a viver perigosamente, muito além do que recomendam elementares normas de prudência, descobrimo-nos, nós, brasileiros, não só leitores da densa e significativa literatura sobre crise e morte das democracias, mas também participantes em primeira pessoa do drama que tais livros expõem. A bem da verdade, examinando nossa trajetória recente, o perigo rondava já há algum tempo, pelo menos desde que as multidões tomaram as ruas em 2013, sem que seu mal-estar fosse entendido ou metabolizado pelo sistema político e abrisse um horizonte de mudanças; ou quando cada um dos episódios eleitorais passou a assumir o aspecto irrazoável de luta de vida e morte, um combate feroz entre “nós e eles”, como se a alternância no poder não fosse um fato rotineiro em sociedades maduras.

Seja como for, e quaisquer que tenham sido as causas, o fato é que passamos a escrever – ou, mais apropriadamente, deixamos que outros passassem a escrever e, assim, “controlassem a narrativa” – a história da nossa própria crise. Não é preciso mais olhar para longe e mencionar nomes surpreendentes, como Donald Trump, e até desconhecidos, como Viktor Orbán. Abandonamos a leitura mais ou menos angustiada sobre os destinos do mundo, ou a ela não nos dedicamos mais com exclusividade, uma vez que experimentamos na própria pele a possibilidade de involução autoritária ou, o que vem a ser a mesma coisa, de compressão dos elementos especificamente liberais da democracia.

Uma “democracia iliberal”, na verdade, só se tornaria viável com o cancelamento do regime constitucional de 1988, daí o aspecto “revolucionário” de que inevitavelmente se reveste. De fato, implicaria levar até o fim, com radicalidade “jacobina”, dois processos em andamento, ainda que entre si contraditórios e, por isso, potencialmente desestabilizadores do próprio bloco político que os promove. Desde logo, a hipotética “nova ordem” seria o veículo para a refundação econômica do País nos termos do ministro Paulo Guedes, com escassa ou nenhuma preocupação social – de resto, não constitui ofensa ao ministro afirmar que a desigualdade, mesmo quando disruptiva, está muito longe de figurar entre suas maiores preocupações. “Perdedores” não lhe tiram o sono, sem importar que o número deles atinja as proporções catastróficas que nos rodeiam.

Mas há mais. O mercadismo radical não produz adesão generalizada nem entusiasma muita gente por muito tempo. Distantes estão os tempos em que, por exemplo, o industrialismo de tipo americano podia nutrir a expectativa de moldar quase por si só toda a sociedade, conformando comportamentos individuais e coletivos adequados à sua reprodução. A racionalização da produção e a da sociedade inclusiva podiam então caminhar em conjunto ou era razoável esperar que assim fosse. Na ordem que se projeta, contudo, ocorre o inverso: impossível deixar de lado a muleta da ideologia, neste tempo em que os populistas no poder, por toda parte e sem exceção, lançam mão de pesada couraça de ideias regressivas em torno do projeto de sociedade que propugnam.

Pois a democracia em causa é, exatamente, iliberal, de acordo com a fórmula inventada pelo autocrata húngaro acima mencionado. Uma das primeiras virtudes cívicas de que abre mão é a tolerância: com as oposições, com os diferentes, com as minorias. A relação direta entre o Líder e a parcela fanatizada da população também dispensa a intermediação do tipo de sociedade civil que costumamos atribuir ao Ocidente político e que impede golpes de mão e aventuras autoritárias. O uso manipulatório das redes sociais põe em crise a verdade ou, antes, a possibilidade de buscá-la mediante o diálogo de boa-fé travado em condições paritárias. Os direitos civis, a liberdade de imprensa ou a separação de Poderes parecem aspectos de um mundo decadente e ultrapassado, capazes de trincar a unidade em torno do Líder, segundo a versão simultaneamente conservadora e revolucionária que se tenta tornar senso comum.

A democracia iliberal apropria-se de lemas, valores e práticas que há algumas décadas caracterizavam franjas extremistas do lado oposto. Em 1968, o agitado ano que não termina, ela se mira como num espelho invertido. “Tudo é política”, o cinquentão slogan rebelde, tem agora sua versão contrarrevolucionária. A ciência do clima, com seus alertas quase consensuais sobre o desastre que se avizinha, dissolve-se nas brumas da ideologia: se sou ultraconservador, ignoro esses alertas e desprezo evidências que me contrariem. Não há por que falar em aquecimento global ou agir para salvaguardar o ambiente, cenário agora disposto para um produtivismo inacreditavelmente predatório. E outras conquistas civilizatórias – até vacinas! – estão postas em questão, para não mencionar dúvidas sobre a esfericidade da Terra. Darwin, aliás...

A verdade é que não sabemos bem como enfrentar a mistura explosiva entre fundamentalismo de mercado e de valores. Por contraditórios – o primeiro, individualista; o segundo, não –, esses dois fundamentalismos nos pareciam inconciliáveis até há bem pouco tempo. Mas, evidentemente, enquanto estiverem mesclados, orientarem governos e arrebatarem parte da opinião pública, eles projetarão formas de convivência avessas à sociedade aberta de que se diz adepto o ministro Guedes.

Se ainda não descobrimos como conter este revolucionarismo de novo tipo, temos, porém, uma boa pista – contra o despotismo iliberal, cabe retomar, reviver e aprofundar todos os valores do liberalismo político, que são, afinal, momentos altos de liberdade corporificados em instituições notavelmente resistentes. Abandoná-las nunca deu bons frutos para ninguém, em momento algum, e previsivelmente continuará sem dá-los. A defesa de tais instituições, bem como da Constituição que as afirma, é a via real e obrigatória para todos os democratas.

 


Luiz Sérgio Henriques: De curtos-circuitos e centelhas

A sedução do homem providencial percorre como praga a política latino-americana

Nas sociedades de risco em que nos movemos, conflito e mudança social parecem não seguir caminhos mapeados e, por isso, dotados daquele mínimo de previsibilidade que mesmo precariamente nos dava certo conforto intelectual. Era possível especular, com mais ou menos certeza, como e quando a lenta evolução da “base material” iria dar lugar aos movimentos mais velozes e intrincados da “superestrutura”, para usar a terminologia marxiana de curso comum. Erros de previsão, diga-se de passagem, eram bem mais constantes do que os poucos acertos, mas havia alguma familiaridade com o mundo que nos cercava e aparentemente podia ser decifrado com as categorias da política ou da economia política.

Pois essa aparência se dissolveu de vez. Vemo-nos agora, como sugere Fernando Henrique Cardoso, em meio a fios desencapados cujo contato acidental pode desencadear curtos-circuitos de proporções imprevistas, passando transversalmente por classes e camadas sociais, ignorando ou redefinindo interesses materiais brutos, acirrando demandas de reconhecimento ou explorando ressentimentos difusos. Um conhecedor das revoluções do século 20 poderia mencionar, a propósito, a centelha – a iskra, não por acaso o título de um jornal operário russo – que faria incendiar todo o edifício da ordem, mas o que falta agora, irremediavelmente, é o agente político – o partido – que compreende a si mesmo como capaz de dominar todo o processo e encaminhá-lo para o fim previamente disposto.

Na falta desse demiurgo – o que não é de lamentar –, requerem-se doses adicionais de cautela e comedimento, atenção aos riscos que assediam nossas sociedades e afeição inabalável às formas da democracia. Já é alguma coisa que tenha desaparecido do horizonte, a não ser no caso de seitas francamente minoritárias, o apelo revolucionário que, estivéssemos nos anos 1960, teria imposto o recurso às armas e a militarização da política – ou, na verdade, a anulação desta última da pior forma possível. Cuba, o símbolo daquela época, hoje é parte do problema, não hipótese de solução. A manutenção do autoritarismo na antiga ilha rebelde chega a ser funcional para a extrema direita da região, unida, como se viu em recente voto nas Nações Unidas, na estratégia infame do bloqueio, que enrijece o regime, garante-lhe algum consenso passivo e, acima de tudo, castiga cruelmente o povo cubano.

No mundo em rede, a centelha pode vir de qualquer parte, até mesmo de Hong Kong, e nascer de fatos rotineiros, como o aumento no bilhete de metrôs. Foi o que vimos em junho de 2013, sem, no entanto, apreender os sinais inquietantes emitidos sobre o descolamento entre política e cidadãos, e é o que estamos vendo por estas semanas no Chile, ainda há pouco tido como “oásis” num continente campeão de injustiças e desigualdades. Mera miopia ter visto só “direita” nas ruas brasileiras de 2013, assim como miopia total é ver “subversão de esquerda” no Chile de agora, tal como interessadamente o faz quem sonha com a reedição de atos institucionais ou com o advento de uma democracia plebiscitária em torno do “homem forte”.

A sedução do homem providencial, aliás, percorre a política latino-americana de fio a pavio, como praga daninha. Os presidentes ou ditadores “eternos” pulam da História diretamente para as páginas do realismo fantástico – e vice-versa. E que a praga não está restrita aos caudilhos caricatamente reacionários comprova-o a safra de reeleições ilimitadas protagonizada pelos recentes chefes bolivarianos, como Chávez, Maduro e Morales.

Sob aspectos essenciais o Chile se afasta desse padrão e precisamente por isso a grande crise atual da sua democracia nos inquieta de modo agudo. Trata-se de uma realidade a desafiar automatismos pró-governo, por parte da extrema direita brasileira, ou pró-oposição, por parte da esquerda populista. O Chile, como se sabe, conseguiu não só ter números macroeconômicos consistentes, como também, nas duas décadas que o separam do pinochetismo, reduziu a pobreza e passou a ostentar bons resultados sociais por qualquer índice que se adote, sempre tendo em conta o contexto latino-americano. Mas é indiscutível que fundamentos do pinochetismo persistem, como o atesta a previdência individualizada, que é antes índice de uma sociedade de mercado que de uma economia de mercado. E sociedades assim, em que escasseiam bens públicos, como, entre outros, a proteção à velhice, são um terreno propício para centelhas e curtos-circuitos.

A esquerda brasileira oficial, contudo, treinada historicamente no confronto por conta do corporativismo radicalizado, não deveria deter-se nesta primeira constatação, sob pena de perder o essencial. Num país de partidos e tradições longamente enraizadas, a longa noite pinochetista seria superada de modo gradual, ainda nos anos 1990, com recursos puramente políticos. Democratas-cristãos e socialistas, ao convergirem num projeto comum, o da Concertación, realizaram o que o ex-presidente Ricardo Lagos recentemente chamou de “épica da sua geração”: com meios ínfimos diante do poder do ditador, a política democrática trouxe de volta o Chile para o lugar que lhe é próprio num continente martirizado como nuestra América.

Para desconsolo até da direita chilena que atua nos marcos legais, é sabido que nossos governantes, sem dúvida eleitos legitimamente, contam-se entre os admiradores confessos do déspota, embora, sob a Constituição de 1988, estejamos distantes de qualquer pinochetismo ou coisa parecida. Mesmo assim, uma estratégia de choque frontal alimentaria tensões, cindiria ainda mais o tecido social e abriria espaço para todo tipo de curto-circuito. O caminho da concertação aponta em outro sentido, exigindo a autocontenção dos atores oposicionistas, mas não é certo que tomemos rapidamente esta segunda via para escrever a épica que precisa ser escrita.

 


Luiz Sérgio Henriques: Fado tropical

Nada mau se nós pudéssemos recriá-lo, o Brasil se tornando um imenso Portugal...

Na vida cotidiana, geringonça é um mecanismo mal-ajambrado, de escassa utilidade para quem o concebe ou quer usar para fins práticos. As artes da política, por contraste, têm tal natureza que são capazes de transformar um mecanismo fadado a ter curta duração numa solução razoável e até bem-sucedida, unindo parceiros improváveis – daí o aspecto de “geringonça” – para dirigir um país moderno e arejado, que já registra expressivos ganhos civilizatórios desde que deu partida à “terceira onda” redemocratizadora nos anos 70 do século passado. A mesma onda, por sinal, em que, alguns anos depois, nosso próprio país ingressaria, tanto assim que não poucos especialistas associam as Cartas que, em ambos os países, assinalaram a ruptura com o antigo regime.

Referimo-nos, evidentemente, a Portugal, cujas recentes eleições devolveram alguma esperança aos que avaliamos, com preocupação difícil de disfarçar, a atual “estrutura do mundo”, trincada por ataques frontais à ideia de democracia que nos pareceriam inimagináveis ainda há alguns anos. Uma esperança, aliás, que rebrota aqui e ali – tal como a flor no asfalto do poeta – com os freios e contrapesos que ultimamente começaram a ser acionados contra as transgressões de Donald Trump ou de Boris Johnson, bem como contra as pretensões autoritárias de Matteo Salvini e outros arautos menores do antiliberalismo político.

Ao falar de Portugal, os paralelos com o Brasil devem ser bem medidos. Não se trata só das óbvias questões de dimensão ou de geopolítica. Limitando-nos à esfera propriamente política, salta aos olhos o fato de que desde a redemocratização esse país teve – e tem até agora – o que rigorosamente não soubemos construir de modo duradouro: um sistema partidário com um mínimo de racionalidade, previsivelmente bem mais resistente a eventuais tentativas de transformá-lo na terra arrasada que, entre nós, se mostrou propícia ao sucesso do bolsonarismo. Uma aventura parecida em terras lusas pressuporia a desarticulação de tal sistema e mesmo a desmoralização da direita constitucional, com a ascensão de grupúsculos da extrema direita ainda insignificantes na sociedade e no Parlamento, o que não está à vista.

Como muito pouco ou quase nada está inscrito nas coisas a ponto de determinar fatos inexoráveis, o bom resultado não teria sido possível sem a ação de uma esquerda democrática, representada de modo majoritário, mas sem exclusividade, pelo Partido Socialista (PS) de Mário Soares já a partir da Revolução dos Cravos. Por alguns breves anos o pequeno país voltaria a estar na rota dos grandes acontecimentos, atraindo a atenção de personalidades políticas e intelectuais ávidas por um processo revolucionário que rompesse com o que parecia ser a “mesmice” social-democrata da Europa. Uma espécie de Cuba na ponta do continente pode ter estado na cogitação de “revolucionários sinceros, mas radicais”, hipótese que, no entanto, se distanciava dos interesses e das aspirações de uma sociedade que mal se livrava de décadas de asfixia.

Os socialistas interpretaram o sentimento majoritário. Mesmo subjugado por um regime retrógrado e depauperado por um empreendimento colonial extemporâneo, Portugal pertencia ao mundo ocidental. Devia, por isso, reconstituir as instituições correspondentes e, por meio delas, encaminhar sua revolução democrática. O papel do ator é, aqui, digno de nota. Enquanto os comunistas, combatentes antifascistas da primeira hora, se cingiam eleitoralmente aos cinturões industriais e ao bravo Alentejo rural, os socialistas decifravam com muito maior clareza o enigma do centro político, disputando-o com os partidos constitucionais de centro-direita, também participantes, com todos os títulos de legitimidade, dos prélios eleitorais e, em geral, da reconstrução pós-ditadura. O PS, em suma, jamais se deixou encerrar num gueto.

O ator socialista surpreendeu ainda por outro aspecto. Numa terra que viu nascer e vigorar por séculos o sebastianismo – a irracional espera por um herói salvador perdido num ponto do passado, mito que, por sinal, se transportaria em alguma nau desgovernada também para a Terra brasilis –, o PS não restou em estado de menoridade, aprisionado à figura de Mário Soares. O pai fundador seria influente até o fim, especialmente do ponto de vista simbólico, mas outros dirigentes foram oferecidos ao País, como Jorge Sampaio, António Guterres (atual secretário-geral da ONU) ou José Sócrates (cujas desventuras judiciárias não contaminaram o PS além de certa medida).

E o mais recente nome desse elenco, António Costa, foi o idealizador da “geringonça”, habilíssima manobra que, em 2015, levaria a um competente governo socialista com apoio parlamentar “externo” de até então renhidos adversários do próprio campo, como o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda.

Nestes tempos de turbulência incomum, toda previsão, até sobre o futuro próximo, parece temerária: de fato, não sabemos como será o novo governo, por quanto tempo durará e se os ventos raivosos do extremismo de direita continuarão a poupar o país. Não sabemos sequer se o ator socialista vai fazer, como tem feito, os movimentos típicos da grande política. Só o que se pode afirmar é que, vistas retrospectivamente, estas quase cinco décadas do Portugal redemocratizado são – basicamente – exemplares e não seria nada mau se pudéssemos recriar, também nós, o fado tropical que em outro momento, e de modo irônico, o atual vencedor do Camões nos ensinou a entoar. O Brasil se tornaria um imenso Portugal, próspero e pacificado – ainda por cima com a participação decisiva, mas não monopolizadora, de uma esquerda mudancista, plural e tolerante, como bem o sabem os milhares de compatriotas que, nos últimos anos, passaram a ver no outro lado do Atlântico uma possibilidade de vida decente e segura, que por aqui a tantos se nega.


Luiz Sérgio Henriques: A luta hegemônica, hoje

Vivemos em primeira pessoa um dos paradoxos mais agudos da democracia, que é o de permitir que antidemocratas às vezes triunfem

Um diagnóstico expressivo sobre situações de crise estrutural, dessas que nos dão a impressão de se arrastarem indefinidamente e trazem só a certeza de que, depois de se estabilizarem, nada será como antes, chama a atenção para o perigoso interregno entre o velho, que já está morto, e o novo, que ainda não nasceu ou mal se deixa entrever. Esse interregno – diz o diagnóstico formulado nos anos 1930 por intelectual da esquerda marxista – estará povoado de fatos e ações incompreensíveis, movimentos fora dos padrões “normais” e até fenômenos patológicos, dotados, por isso mesmo, de carga explosiva.

Naqueles anos, áreas reducionistas da esquerda supunham que fantasmas e assombrações surgiam só de um lado. Vivia-se, segundo o esquema mais simples, a era da transição entre modos de produção radicalmente antagônicos e a reação contra esse horizonte revolucionário é que entorpeceria a razão e geraria monstros como o fascismo e o nazismo. Correntes mais atentas às lições da História passaram progressivamente a entender que o século das massas, agrupadas em partidos e sindicatos, não seria necessariamente um tempo de revoluções catastróficas, podendo constituir, ao contrário, rara oportunidade de ampliação e mudança do mundo liberal, com o enriquecimento da pauta original dos direitos civis com novos direitos sociais e econômicos.

Ao contrário do que pensavam os autoritários dos anos 1930, aquilo que por convenção chamamos Ocidente político, com sua sociedade civil rica e diversificada, iria afirmar-se nas décadas “gloriosas” do pós-guerra como um modelo que contém em si elementos de universalidade. Nesse Ocidente não haveria, por exemplo, lugar para o choque frontal de adversários irredutíveis, uma vez que todos – indivíduos e grupos sociais – têm sempre algo valioso a perder. Por exemplo, a ideia de produtividade do conflito. Longe de dilacerar o tecido social e arruinar os países, esse conflito, balizado por regras institucionais, seria antes sinal de vitalidade, renovação e progresso. O caos aparente das democracias, sua vida muitas vezes conturbada constituíam a razão básica da atração praticamente universal que irradiavam – atração que nós, brasileiros, pudemos muito bem sentir nos longos períodos de autoritarismo.

A política como hegemonia, não como força bruta, foi o que então propuseram mais ou menos explicitamente as correntes de esquerda identificadas com o Ocidente político. E, note-se bem, hegemonia não de classe ou de partido, o que só disfarçaria antigas taras autoritárias nelas também presentes, mas, sim, de algumas ideias-base suscetíveis de serem aceitas e apropriadas por todos. A dignidade de cada ser humano. A reconversão ecológica da economia, em face da crise do clima que a ciência afirma e se desenvolve sob nossos olhos.

A emancipação da mulher e o surgimento de novas subjetividades, contra toda forma de discriminação. E se de esquerda falamos, não caberia esperar que renunciasse à tradição igualitária, o que seria de todo modo uma perda, mas que associasse a essa tradição a afirmação convicta da liberdade – e liberdade até, e sobretudo, para os que pensam diferente.

Nesse plano “superestrutural”, que deixa de lado deliberadamente a redefinição em curso da economia pela globalização, o específico da crise contemporânea parece consistir em que demasiados atores, em diferentes latitudes, abandonaram a política como luta hegemônica que supõe todos os valores do liberalismo clássico, a começar pelo pluralismo. Sob o rótulo discutível, mas eficaz, de populismo, surgiram à esquerda e à direita vozes do atraso que ora fazem referência direta à força (à “borduna”), ora apregoam um simulacro de luta hegemônica, apelando para (des)valores arcaicos de um passado ideal e, a rigor, falsificado.

O campo fica assim aberto para os fenômenos patológicos do nosso tempo, de cuja condenação ninguém se pode eximir. Ao lado de nós, a Venezuela de Chávez e Maduro protagoniza uma das maiores tragédias da América Latina, rivalizando com o general Pinochet ou, a bem da verdade, superando-o em crueldade e capacidade de destruição, como atestado por Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para os Direitos Humanos. A Europa do compromisso social-democrata, que tenta há décadas uma inédita arquitetura supranacional que relegue aos manuais escolares sangrentas rivalidades seculares, vê-se assediada por demagogos que se agarram a uma noção medievalizante de pátria, inimiga de refugiados e imigrantes.

Como a linguagem dos nacionalismos é feita de ficções e simulacros mais ou menos globais, um pouco por toda parte – na Rússia de Putin ou nos Estados Unidos de Trump – vê-se a instrumentalização grosseira das religiões, mobilizando-as de modo espúrio para legitimar modos de crença e comportamento que ignoram a ciência, o iluminismo e a ética dos modernos. É como se sociedades internamente estilhaçadas por desigualdades crescentes pudessem ser reunidas num céu de religiosidade duvidosa, manipulada por figuras como um ex-agente secreto de regime totalitário ou um milionário cercado de acusações de estupro, cujas biografias nem de longe sugerem o odor de santidade que lhes atribuem seguidores fanáticos.

Não é preciso muito esforço de imaginação para notar que, hoje, o Brasil oficial está enganchado nesse trem de ideologias fantasmas. Segundo o ministro Celso de Mello, aliás, trevas dominam o poder de Estado ou ameaçam dominá-lo. Vivemos em primeira pessoa um dos paradoxos mais agudos da democracia, que é o de permitir que antidemocratas às vezes triunfem. Mas os democratas, sem abdicar dos próprios meios legais e pacíficos, saberão travar a luta hegemônica, que agora é, em essência, luta por difusão e enraizamento de valores civilizatórios comuns. Por isso, o triunfo dos outros será sempre provisório.

*Tradutor e ensaísta, é autor de ‘Reformismo de esquerda e democracia política’ (Fundação Astrojildo Pereira, 2018)