Luiz Carlos Azedo: Caixeiro viajante
A China, hoje, é o maior parceiro comercial do Brasil e trava uma disputa pelo controle do comércio mundial com os Estados Unidos, o nosso principal aliado na política internacional
O presidente Michel Temer viajou à China, onde participa de uma visita de Estado ao presidente Xi Jinping e do encontro da cúpula dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), como um caixeiro-viajante, o popular “mascate”, levando nas malas um pacote de 57 projetos de privatizações para oferecer a chineses, russos, indianos e sul-africanos. No Brasil, o vocábulo está associado à imigração árabe, devido ao grande contingente de libaneses e sírios que migraram para nosso país do antigo Império Otomano. A origem do termo “mascate” vem do árabe El-Matrac, usado para designar os portugueses que, auxiliados pelos libaneses cristãos, tomaram a cidade de Mascate (Omã), em 1507. Na escala em Lisboa, Temer se reuniu com o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa.
Fazem parte do pacote 14 aeroportos, 15 terminais portuários, 11 linhas de transmissão de energia elétrica e 2 rodovias, que podem alavancar investimentos privados da ordem de R$ 44 bilhões. Além da Eletrobras e da Casa da Moeda, estão no programa de privatizações Congonhas e outros 13 aeroportos, a serem leiloados até setembro de 2018, no valor estimado de R$ 19,4 bilhões. Do valor total, R$ 6,4 bilhões serão pagos à vista. Congonhas será licitado separadamente e deve responder por R$ 5,6 bilhões, pagos no ato de compra. Os demais foram agrupados em três grupos: Nordeste (Recife, Maceió, João Pessoa, Aracaju, Campina Grande e Juazeiro do Norte), Mato Grosso (Cuiabá, Alta Floresta, Sinop, Barra dos Garças e Rondonópolis) e Sudeste (Vitória e Macaé). Além disso, a Infraero venderá 49% de participação em Guarulhos (SP) Galeão (RJ), Brasília e Confins (MG). A estatal está quebrada, com um rombo no orçamento de R$ 3 bilhões.
Também estão no pacote as rodovias BR-153 (GO/TO) e BR-364 (RO/MT), os terminais de GLP de Miramar e de granéis líquidos do Porto de Belém; os terminais de granéis líquidos em Vila Conde, no Pará; os três terminais de grãos de Paranaguá (PR), os terminais de granéis líquidos de Vitória; a Codesa; a hidrelétrica de Jaguará, em Minas; 11 lotes de instalações de linhas de transmissão; a 3ª rodada sob regime de partilha de produção do pré-sal; a 15ª rodada de blocos para exploração e produção de petróleo; a 5ª rodada de licitações de campos terrestres maduros; a 4ª rodada de blocos sob regime de partilha de produção; a Casem, a Ceasa Minas, a PP da rede de Comunicações Integradas do Comaer; e a Lotex. A dúvida é a Cemig, que os políticos de Minas não querem privatizar. E a polêmica Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca), leia-se também: de ferro, manganês, nióbio, níquel, ouro e petróleo.
Rota do Pacífico
Não custa nada reiterar que a modelagem dessas privatizações ainda é uma incógnita para os investidores e a sociedade brasileira, mas esse problema pode ser bem resolvido tecnicamente se houver disposição política. A grande questão subjacente à viagem de Temer é geopolítica. A China, hoje, é o maior parceiro comercial do Brasil e trava uma disputa pelo controle do comércio mundial com os Estados Unidos, o nosso principal aliado na política internacional. Nossa infraestrutura foi toda montada para o comércio no Atlântico, mas o eixo do comércio mundial se deslocou para o Pacífico, o que contribuiu para tornar nossa infraestrutura ainda mais obsoleta, sob forte impacto da necessidade de novos corredores de exportação para o agronegócio, principalmente no Centro-Oeste e no Norte do país.
No século passado, a disputa entre uma potência continental, a Alemanha, e uma potência marítima, a Inglaterra, pelo controle do comércio no Atlântico resultou em duas guerras mundiais. Agora, a disputa se instalou no Pacífico, novamente entre uma potência marítima (os EUA) e uma continental (a China), numa escala ainda maior, porém, num ambiente de cooperação mundial e regras de jogo definidas, embora existam elementos de instabilidade na península da Coreia, cuja divisão em dois países é uma herança da guerra fria.
É ingenuidade acreditar que a entrada maciça de capitais chineses no programa de privatizações de Temer seja uma miragem. Existe a possibilidade real de que isso aconteça. A vocação natural da economia brasileira na nova divisão internacional do trabalho é a de grande produtor de commodities, de alimentos e minérios. Nosso problema é a situação da indústria, que sofre as consequências de uma política equivocada de adensamento da cadeia produtiva nacional, quando a estratégia deveria ter sido a sua transnacionalização. Nada disso, porém, está sendo discutido mais profundamente. O programa de privatizações está sendo lançado sob a lógica de vender ativos para cobrir o deficit fiscal, sem reinventar o Estado brasileiro nem a nossa economia.
Calma aí
O ministro Edson Fachin, relator da Operação Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), devolveu a delação premiada do doleiro Lúcio Funaro para a Procuradoria-Geral da República (PGR) por causa de uma cláusula do acordo que blindava o operador de ações de improbidade. Seguiu a jurisprudência da Corte, que decidiu recentemente que acordos firmados pelo MPF só podem ter efeito na esfera penal, não nas esferas cível e administrativa. A segunda denúncia do procurador Rodrigo Janot contra o presidente Michel Temer, que seria baseada na delação de Funaro, subiu no telhado.
Luiz Carlos Azedo: O abismo ao lado
A situação é mais ou menos como a de uma família que começa a vender tudo o que tem para pagar as dívidas, mas não reduz os gastos de forma a compatibilizá-los com a renda familiar
A divulgação do deficit primário das contas do governo dos últimos 12 meses (até julho) acendeu uma luz vermelha no mercado. O rombo é de R$ 183,7 bilhões, muito acima da nova meta fiscal que o governo pretende aprovar no Congresso, de R$ 159 bilhões. Segundo o Tesouro, o resultado negativo se deve à frustração de receitas na ordem de R$ 7,4 bilhões. O corte de R$ 3 bilhões na despesa mensal não foi o suficiente para compensar a perda de arrecadação menor, razão pela qual o resultado primário de julho ficou R$ 4,5 bilhões abaixo do programado. Diante desse quadro, resta ao Ministério da Fazenda mexer com as despesas obrigatórias, principalmente as da Previdência, para trazer os gastos do governo para dentro da meta prevista.
A aprovação da reforma da Previdência, porém, continua no telhado, porque a base governista vende caro o apoio ao presidente Michel Temer. Às voltas com uma reforma política polêmica, cujo objetivo é garantir a reeleição do maior número de deputados e senadores, o Congresso emite sinais de que começa a se descolar do Palácio do Planalto e a atuar com maior autonomia, de olho em 2018. Pelos corredores da Câmara, por exemplo, os deputados choramingam as promessas não cumpridas pelo governo, em troca de rejeição da denúncia contra Michel Temer. O clima tumultuado da sessão do Congresso de ontem mostra bem a qualidade do ar que se respira nas duas Casas.
É nesse cenário que todos esperam a segunda denúncia do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, contra o presidente da República. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), já avisou ao presidente Michel Temer que o ambiente na Câmara não é bom. Além de refugar a reforma da Previdência, parte da base começa a chantagear o Palácio do Planalto. Tudo indica que a denúncia virá na primeira quinzena de setembro, ou seja, no apagar das luzes do mandato de Janot. A não ser que o relator da Operação Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal, ministro Édson Fachin, não homologue a delação premiada do doleiro Lúcio Funaro, enviada ontem ao STF.
De acordo com investigadores, Funaro trata das suspeitas de que o presidente teria cometido obstrução de Justiça. Para o Ministério Público Federal, o diálogo do presidente com Joesley Batista, um dos donos da JBS, mostraria a suposta concordância de Temer com o pagamento de propina ao ex-deputado Eduardo Cunha e ao próprio Funaro, para que eles não fechassem acordo de delação.
Os dois principais pilares de sustentação do governo Temer são a credibilidade da equipe econômica e a base parlamentar robusta. Ambos sofrem desgastes por causa da fricção política originada pela Lava-Jato. Entretanto, o maior problema do governo é a gravidade da crise social causada pelo desemprego, que chegou a 13% no segundo trimestre deste ano, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na semana passada. São 13,486 milhões de desempregados. O governo não sabe o que fazer com isso, pois a economia não cresce o suficiente para reduzir o índice de desemprego.
Investimentos
Todos os sinais são de que os investimentos privados estão com o freio de mão puxado e assim continuarão até o desfecho das eleições de 2018. A única possibilidade de mudança no cenário é a implementação do programa de privatizações do governo, que foi anunciado sem uma modelagem jurídica que dê segurança aos agentes econômicos. Passada a euforia inicial do mercado de ações, todos continuam com as barbas de molho. As previsões para o desempenho do Produto Interno Bruto do segundo trimestre aproximaram-se do 0%. O consumo das famílias fechará o ano com avanço de 0,9% e as exportações, de 0,7%.
A reação do governo é uma espécie de mais do mesmo: estimular o consumo das famílias do jeito que pode. Mas isso tem pouco impacto nos investimentos porque a capacidade ociosa das indústrias ainda é muito grande. O governo liberou R$ 42,8 bilhões das contas inativas do FGTS e vai lançar mão de R$ 16 bilhões do PIS-Pasep para aposentados com 65 anos (62 anos, no caso das mulheres), a fim de injetar mais dinheiro na economia. São quase R$ 60 bilhões, uma quantia nada desprezível. Mesmo assim, a economia deve continuar devagar. Qual é o problema? O governo promove reformas da economia sem fazer o dever de casa.
A situação é mais ou menos como a de uma família que começa a vender tudo o que tem para pagar as dívidas, mas não reduz os gastos de forma a compatibilizá-los com a renda familiar e, assim, sair do vermelho para o azul. Sem fazer um ajuste fiscal que corte na própria carne, o que inclui a Previdência e os gastos de custeio e pessoal do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, a venda dos ativos da União não vai resolver o problema das contas públicas. Será apenas um grande fim de festa, com muita ressaca no dia seguinte.
Luiz Carlos Azedo: Dispersão de forças
A natureza da próxima eleição presidencial pode ser muito diferente do que aconteceu em 2010 e 2014
Há um ano a ex-presidente Dilma Rousseff subia ao cadafalso do Senado, que aprovou o seu impeachment em 31 de agosto, após a longa agonia iniciada em 2 de dezembro de 2015. Tudo começou pelas mãos do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, que foi cassado pelos colegas e condenado à prisão pelo juiz Sérgio Moro, de Curitiba, titular da Operação Lava-Jato. Dilma era passageira do fracasso do projeto nacional populista do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva; hoje, é um espectro que ronda as caravanas petistas na pré-campanha de seu padrinho político pelos grotões do país.
Os números do desgoverno Dilma não devem ser esquecidos: queda de 16% do PIB per capita entre 2013 e 2016, isso é, de R$ 30,5 mil para R$ 25,7 mil por ano. Aumento do desemprego de 6,4% para 11,2%, com a demissão de 12 milhões de trabalhadores. A pior recessão da história: chegou a 6%. Para se ter uma ideia do que isso significava, a grande recessão de 1929-1933 foi de 5,3%; a de 1980 a 1983, 6,3%; e a de 1989 a1992, 3,4%. O deficit fiscal subiu de R$ 145 bilhões para R$ 200 bilhões. A dívida pública chegou a 70% do PIB ao fim do ano. Esse cenário foi revertido pelo impeachment.
Dilma foi julgada por causa das “pedaladas fiscais”. Mas já estava bastante enrolada nas investigações sobre o caixa dois de suas campanhas eleitorais de 2010 e 2014. De acordo com a Constituição, não podia, porém, ser investigada por fatos anteriores ao exercício do mandato. O julgamento de Dilma Rousseff no Senado foi um grande mise-en-scène petista para construir a narrativa do “golpe de estado” e dele sair como vítima, sem assumir a responsabilidade principal pela crise econômica, política e ética da qual o país agora tenta emergir.
A passagem do PT pelo poder foi um assalto ao Estado. Em dois sentidos: primeiro, o aparelhamento do governo por meio da ocupação de milhares de cargos comissionados, tanto na administração direta, como na indireta, inclusive estatais, de forma fisiológica e clientelística; segundo, o sistemático desvio de recursos públicos para financiamento eleitoral e formação de patrimônio pessoal, via superfaturamento de obras e serviços. Mas o PT não assaltou o poder sozinho, parte das forças que hoje estão no governo Temer, a começar pelo PMDB, participou de tudo isso. E não dá para ignorar que setores da antiga oposição também se atolaram na lama da crise ética.
O resultado é um tremendo desgaste das instituições políticas, dos partidos e dos seus líderes. O presidente Michel Temer, ao assumir, herdou o estrago do governo de Dilma, do qual fizera parte, e seu índice de aprovação é baixíssimo. O desprestígio do Congresso dispensa comentários. Pesquisa recente do instituto Ipsos sobre a percepção dos brasileiros em relação a 27 figuras públicas mostra a decepção com os principais líderes políticos do país. Os níveis de rejeição são um verdadeiro strike na elite política: Michel Temer (93%), Aécio Neves (91%), Eduardo Cunha (91%), Renan Calheiros (84%), José Serra (82%), Fernando Henrique Cardoso (79%), Dilma Rousseff (79%), Geraldo Alckmin (73%), Rodrigo Maia (72%), Lula (66%), Marina Silva (65%), Ciro Gomes (63%), Henrique Meirelles (62%), Marcelo Crivella (60%), Jair Bolsonaro (56%), Paulo Skaf (55%), Tasso Jereissati (55%), Nelson Jobim (54%), João Doria (52%) e Luciano Huck (42%).
Onde está o centro?
Quem mira as eleições de 2018 vê o potencial dos possíveis candidatos com sinal trocado na mesma pesquisa. Huck tem 44% de aprovação; Lula, 32%; Marina, 24%; Jair Bolsonaro, 21%; Doria, 19%; Dilma, 18%; Renan, 15%; Alckmin, 14%, Ciro Gomes, 11%; FHC, 10%, para ficar nos dois dígitos. Vejam bem: não se trata de uma pesquisa eleitoral; é uma pesquisa de imagem dessas personalidades, algumas das quais são pré-candidatas assumidas; outras nem cogitam disputar as eleições.
Como as pré-campanhas mais agressivas são de Lula e Bolsonaro, quando são feitas as pesquisas eleitorais, ambos aparecem como protagonistas de uma radicalizada polarização direita versus esquerda. Considerando-se, porém, os índices de rejeição, pode ser que essa probabilidade não seja tão grande assim. Ao olharmos com atenção a pesquisa Ipsos, veremos que a possibilidade do surgimento de alternativas de centro-direita (Huck, 44%; Doria, 19%) e centro-esquerda (Marina, 24%; Alckmin, 14%) realmente existe. Mas qual é a dificuldade para isso? É a rejeição aos partidos e políticos que aí estão.
O grande problema da construção de uma candidatura do “centro democrático” tem a ver com isso. E com a natureza da próxima eleição, que pode ser muito diferente do que aconteceu em 2010 e 2014, quando as estruturas de poder tiveram um peso decisivo na construção das alianças e no desfecho do resultado das urnas. As eleições municipais passadas, principalmente nas principais cidades do país, revelaram enorme descolamento da sociedade em relação à política tradicional. A eleição de domingo no Amazonas revelou índices astronômicos de abstenção. Pode ser que essas tendências persistam até o próximo ano. Uma candidatura ao centro também pode surgir a partir da sociedade e não das estruturas de poder, como sempre acontece. Huck e Marina, muito mais do que Doria e Alckmin, estão sinalizando isso.
Luiz Carlos Azedo: A riqueza pública
O valor dos nossos ativos é muito maior do que a dívida pública; administrá-los melhor poderia ajudar a resolver o problema do endividamento e, ao mesmo tempo, financiar o crescimento econômico
Sem preconceito, o governo Michel Temer virou um grande balcão de negócios. O seu novo programa de privatizações, que pretende se desfazer de 57 ativos, entre os quais a Casa da Moeda, a Eletrobras e a Reserva Nacional de Cobre (Renca), para citar os mais emblemáticos, pretende alienar boa parte da riqueza da União. Os argumentos a favor da decisão são verdadeiros: primeiro, o país não tem como financiar investimentos na modernização de nossa infraestrutura sem a venda de ativos e a entrega de serviços à exploração das empresas privadas; segundo, as empresas estatais e a gestão dos serviços públicos sempre estiveram a serviços dos partidos políticos, que miram seus próprios interesses e não os da sociedade. O problema é como isso será feito.
A necessidade de voltar a crescer e a impossibilidade de investir, com um Orçamento cujo deficit este ano será da ordem de R$ 159 bilhões, repôs o debate sobre as privatizações na ordem do dia. A tendência é a discussão reproduzir a velha polarização esquerda versus direita, ou seja, o embate entre um projeto nacional desenvolvimentista e o modelo neoliberal. É a mesma polêmica aberta nos anos 1980 por Margaret Tatcher, a primeira-ministra conservadora que reformou a economia britânica. E que pautou a discussão sobre as privatizações do governo Fernando Henrique Cardoso, na década seguinte. Será que vale a pena reprisar esse debate, que pautou as eleições presidenciais de 1998, 2002, 2006, 2010 e 2014?
Os suecos Dag Detter e Stefan Fölster, autores do livro A riqueza pública das nações, põem o dedo na ferida quando afirmam que o centro da questão é a qualidade da governança dos ativos públicos. Segundo eles, “a malaise” da riqueza pública não é consequência da incompetência dos políticos, mas do fato de a administração de empresas e de serviços desviar o foco dos políticos de sua principal missão: promover o bem comum. O resto é consequência. Detter foi presidente da Stattum, a holding do governo sueco; Fölster, economista-chefe da Confederação das Empresas Suecas. Ambos foram protagonistas da mais bem-sucedida reforma do Estado da Europa.
No mundo inteiro, estão em crise o Estado de bem-estar social e o sistema de representação política. O problema é que isso pôs em risco a democracia. O dilema é o mesmo desde a velha crítica de Platão: enquanto os eleitores põem a satisfação imediata acima da prudência duradoura, a corrupção dos políticos é a via mais rápida de acesso ao poder. A ligação entre liberalismo econômico e democracia liberal nunca foi automática. Muito menos a globalização é sinônimo de avanço da democracia. A ideia de que a democracia é um credo universal associado ao capitalismo também é falsa. Há uma corrida mundial entre o Ocidente e o Oriente para reinventar o Estado, cujo objetivo é modernizar a economia e não, necessariamente, aperfeiçoar a democracia. Não se pode dizer, por exemplo, que os Estados Unidos (uma democracia liberal) estão se saindo melhor nessa corrida do que a China (uma ditadura comunista). Nesse mundo onde ambos disputam o controle do comércio mundial, cujo eixo se deslocou do Atlântico para o Pacífico, qual será o lugar do Brasil?
Governança
A gestão da nossa riqueza pública estará no centro do debate eleitoral de 2018, cujos principais protagonistas, até agora, têm propostas retrógradas. A esquerda demoniza o uso de mecanismos de mercado para melhorar a situação do Estado. A direita demoniza o uso do Estado para lidar com as falhas do mercado. Enquanto isso, as empresas de tecnologia estão reinventando o mundo. A tese dos suecos é retirar a governança dos ativos públicos das mãos dos políticos e passá-los à gestão de profissionais gabaritados. Eles citam os exemplos da China, da Rússia e do Brasil, onde os políticos e uma burocracia ineficiente não conseguem tirar proveito dos próprios recursos disponíveis, que acabam por desaparecer. Esses ativos estão sendo dilapidados pelo patrimonialismo, o clientelismo e o fisiologismo.
A criação de holdings para administrar os ativos públicos já é uma experiência bem-sucedida em vários países que enfrentaram o problema, como Finlândia, Áustria, Reino Unido e Suécia. Há dois exemplos: a Suécia adotou um modelo fragmentado, no qual os donos originais mantiveram seus ativos em várias holdings; a Finlândia optou por centralizar os ativos numa só holding. Em ambos os casos, a gestão foi confiada a profissionais de mercado, sem interferência política, com um modelo de gestão semelhante aos dos bancos centrais e dos fundos de pensão. O caso do Deutsche Bundespost da Alemanha é dos mais emblemáticos. Em 1995, a empresa foi transformada em três sociedades anônimas. Hoje, o Deutsche Post atua em 220 países, emprega 480 mil pessoas e movimenta 55 bilhões de euros.
A nossa riqueza pública é muito maior do que a dívida pública; administrá-la melhor poderia ajudar a resolver o problema do endividamento, ao mesmo tempo em que financiaria o crescimento econômico. O mais importante não é a propriedade, é o rendimento dos ativos públicos. Melhorar a gestão desses recursos é fundamental para o equilíbrio fiscal. Mais ainda para combater a corrupção e fortalecer a democracia.
Luiz Carlos Azedo: Reserva do barulho
A venda bilionária de uma fatia da Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM), maior produtora mundial de nióbio, para companhias asiáticas, estaria por trás da extinção da reserva
O líder do PSDB na Câmara, deputado Ricardo Trípoli (SP), anunciou que apresentará à Casa Civil da Presidência da República uma solicitação para que sejam sustados os efeitos do Decreto nº 9.142, divulgado ontem, que extinguiu a Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca), liberando para exploração mineral área localizada entre o Pará e o Amapá. Para Trípoli, além do evidente risco ambiental, a medida foi tomada sem uma discussão adequada, não tendo recebido o aval de importantes setores relacionados ao tema. Por trás do pedido, também há uma reação dos militares contra a medida, adotada sem muita discussão dentro do governo.
Trípoli quer debater os riscos da medida com todos os atores envolvidos, inclusive os ministérios do Meio Ambiente, Minas e Energia e da Justiça. Há áreas indígenas demarcadas na região que podem sofrer com a extinção da Renca. “Ao desbloquear essa área, de 47 mil km², abre-se precedente para que outros locais sejam explorados de maneira predatória e inconsequente”, argumenta o tucano. A área estava protegida desde o governo do presidente João Figueiredo. Depois do Relatório Brundtland “Nosso Futuro Comum” e da Cúpula da Terra no Rio, que inaugurou as negociações globais para o Acordo do Clima, analistas veem a decisão como um retrocesso inexplicável, um surto a la Trump, que não tem nada a ver a como a política ambiental e os acordos internacionais assinados pelo Brasil.
A medida faz parte de um programa de privatizações lançado pelo governo sem muito planejamento nem regras claras, com propósito de sinalizar para o mercado o avanço de uma reforma liberal da economia, que ainda requer modelagem consistente para não cair no vazio e encalhar em intermináveis batalhas judiciais, além de dar munição para a oposição petista. A extinção da Reserva Nacional do Cobre (Renca) vem sendo planejada desde março, quando o ministro de Minas e Energia, Fernando Coelho Filho, indeferiu os títulos protocolizados desde 1984 pleiteando ocupação de áreas dentro da reserva, mas manteve os requerimentos minerários (autorizações de pesquisa, concessões de lavra, permissões de lavra garimpeira e registros de licença) anteriores à criação da reserva.
Com isso, o governo pretende intensificar a exploração mineral numa área de pré-cambriano da Amazônia, considerada de grande potencial, utilizando técnicas modernas de pesquisa geológica. Esse período se estende da formação da Terra, há cerca de 4,6 bilhões de anos, até ao início do Período Cambriano, cerca de 440 milhões de anos atrás, quando os animais de carapaça dura apareceram pela primeira vez em abundância. Representam 88% do tempo geológico, nos quais apareceram os fósseis, os oceanos, a Lua, muitos minerais, a oxigenação, a formação de algumas vidas multicelulares e as placas tectônicas.
Cobiça
O maior defensor da reserva foi o almirante Gama e Silva, que liderou os estudos na área. Em 1969, após a descoberta de Carajás, o geólogo Décio Meyer descobriu o complexo alcalino-ultramáfico do Maraconaí, o que deu início a outras expedições de pesquisa entre os rios Jarí e Paru. Em 1981, a British Petroleum (BP) requereu direitos de exploração de cobre na região. Chefe do Grupo Executivo do Baixo Amazonas, Gama e Silva temia que Daniel Ludwig, do Projeto Jarí, dono de ações da BP, pretendesse dominar e internacionalizar a região. Conseguiu, porém, que o Conselho de Segurança Nacional vetasse a concessão dos alvarás da BP.
Hoje, as unidades de conservação e terras indígenas ocupam 80% da área, o que libera apenas 20% para exploração mineral. Há unidades federais (três) e estaduais (quatro) na Renca, mas o que impediu a pesquisa geológica na região foi a inércia do governo federal, que praticamente abandonou os estudos. Sabe-se, porém, que há na área enormes reservas de ferro, manganês, nióbio, níquel, cobre, ouro e petróleo. O assunto mais polêmico é o nióbio, que já chegou a ser relacionado até com o mensalão, após o empresário Marcos Valério afirmar na CPI dos Correios, em 2005, que o Banco Rural havia conversado com o ex-ministro José Dirceu sobre a exploração de uma mina na Amazônia.
Em 2010, um documento secreto do Departamento de Estado americano, vazado pelo site WikiLeaks, incluiu as minas brasileiras de nióbio na lista de locais cujos recursos e infraestrutura são considerados estratégicos e imprescindíveis aos EUA. A venda bilionária de uma fatia da Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração (CBMM), maior produtora mundial de nióbio, para companhias asiáticas, supostamente estaria por trás da extinção da reserva.
Em 2011, um grupo de empresas chinesas, japonesas e sul-coreanas fechou a compra de 30% do capital da mineradora com sede em Araxá (MG) por US$ 4 bilhões. O fato é que 98% das reservas conhecidas no mundo estão no Brasil, que responde atualmente por mais de 90% do volume do metal comercializado no planeta, seguido pelo Canadá e Austrália. Nossas reservas são da ordem de 842 milhões de toneladas e as maiores jazidas conhecidas se encontram nos estados de Minas Gerais (75% do total), Amazonas (21%) e em Goiás (3%).
Luiz Carlos Azedo: Será o fim do patrimonialismo?
Não houve ainda o grande debate sobre a gestão dos ativos públicos para reduzir a dívida e os impostos, custear investimentos em infraestrutura, fortalecer a democracia e combater a corrupção
A emblemática privatização da Casa da Moeda, anunciada ontem pelo governo, vai muito além da desmobilização de seu patrimônio e concessão de serviços. É a joia mais antiga da coroa do nosso velho patrimonialismo. Fundada em 1694, em Salvador, por Dom Pedro II de Portugal, foi criada para cunhar moedas de ouro de circulação exclusiva no Brasil. Desde então, é responsável pela produção do meio circulante brasileiro e de outros produtos de segurança, como passaportes com chips e selos fiscais. O complexo industrial, localizado em Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio, por exemplo, é um dos maiores do gênero no mundo, com três fábricas da empresa (de cédulas, de moedas e gráfica); na antiga sede no Campo de Santana, no Rio de Janeiro, inaugurada em 1868, hoje funciona o Arquivo Nacional.
Dois dias depois de anunciar a privatização da Eletrobras, uma gigante estatal com receita de R$ 60,7 bilhões e 24 mil empregados — com 13 subsidiárias, 178 empresas e 223 usinas hidrelétricas —, o governo anunciou um Programa de Parcerias de Investimento (PPI) no qual 57 novos ativos foram disponibilizados, entre aeroportos, ferrovias, portos e rodovias. Segundo o ministro da secretaria-geral da Presidência, Moreira Franco, o objetivo é “enfrentar a questão do emprego e da renda”. O governo não sabe ainda quanto pretende arrecadar com os novos leilões, mas estima que representarão R$ 44 bilhões em investimentos. O objetivo é elevar as receitas num momento de arrecadação fraca e deficit fiscal de R$ 159 bilhões.
Na prática, foi anunciada ontem a decisão política de se desfazer do patrimônio, sem que tenham ficado muito claras as regras do jogo. Não houve uma prévia discussão no interior da equipe econômica da modelagem das privatizações. O modelo será selvagem, como aconteceu com o programa do primeiro-ministro russo Boris Yeltsin, ou cercado de garantias institucionais, como nas privatizações do governo de Fernando Henrique Cardoso? As duas experiências ocorreram na década de 1990 e servem de paradigma para investidores do mundo inteiro quando se trata de lidar com os chamados países emergentes.
O programa reabre a discussão sobre o patrimonialismo no Brasil. O conceito foi criado por Max Weber, filósofo e sociólogo alemão, e adotado por alguns dos chamados intérpretes do Brasil, como Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil, 1936) e Victor Nunes Leal (Coronelismo: enxada e voto, 1948). Em 1978, o tema foi retomado com a reedição da obra de Raymundo Faoro Os donos do poder, a formação do patronato brasileiro (1958), que mostra as dificuldades em separar o patrimônio público dos bens privados para a construção de um Estado moderno, baseado no respeito aos preceitos legais.
Privatizações
A crise do Estado de bem-estar social na Europa e o chamado “Thatcherismo” coincidiram, no Brasil, com a crise do modelo nacional desenvolvimentista, que proporcionara o chamado “milagre brasileiro” no auge do regime militar. Após a vitória conservadora no Reino Unido, em 1979, a primeira-ministra Margaret Thatcher privatizou a maior parte do setor público, contra a opinião dos trabalhistas e a mobilização dos sindicatos, que acabaram derrotados depois de uma greve de mineiros que durou mais de um ano. Nos meios intelectuais, o debate sobre as privatizações emergiu como uma espécie de saída para a crise de financiamento do setor público e superação do patrimonialismo em meio à luta pela democratização do país. Mas morte de Tancredo Neves, em 1985, de certa forma, frustrou uma reforma liberal.
Agora, a Operação Lava-Jato repôs esse debate na ordem dia. A passagem do PT pelo poder, economicamente intervencionista e estatizante, exacerbou o fisiologismo, o clientelismo e o patrimonialismo. A presidente Dilma Rousseff foi afastada do poder, mas seus aliados permaneceram no controle das estruturas de governo, a começar pelo PMDB, cujas práticas patrimonialistas dispensam apresentação. Doutrinariamente, caberia ao PSDB liderar a retomada do debate sobre as privatizações, mas o que está acontecendo é outra coisa. Foi o núcleo peemedebista ligado ao presidente Michel Temer que resolveu desatar o nó das privatizações.
Como se dará esse processo? Essa é a grande indagação no mercado, porque as regras não estão claras. Na Rússia, as privatizações selvagens de Yegor Gayder, ministro de Boris Yeltsin, transformaram burocratas comunistas em magnatas capitalistas da noite para o dia. Putin virou um novo czar da Rússia ao pôr ordem no processo, com apoio da classe média generalizada que surgiu da restauração capitalista. No Brasil, a recessão impediu a consolidação da chamada nova classe média, lançada ao desemprego e à falência, mas a retomada do crescimento pode viabilizar isso. É uma aposta para 2018 se a reforma do Estado avançar na administração direta e na Previdência e os investimentos vierem. Muitos desses investidores são africanos, árabes, russos e chineses, que gostam de jogo bruto. Não houve ainda o grande debate sobre a gestão dos ativos públicos para reduzir a dívida e os impostos, custear investimentos em infraestrutura, fortalecer a democracia e combater a corrupção e o mau uso do patrimônio do Estado. Ele pode ser abortado por privatizações a toque de caixa.
Luiz Carlos Azedo: Notícia boa, notícia ruim
A notícia boa foi a reação do mercado financeiro à decisão de que o governo pretende privatizar a Eletrobras. O Ibovespa, principal índice de ações brasileiras, fechou em alta de mais de 2%, atingindo, pela primeira vez em mais de seis anos, o patamar de 70 mil pontos. Com valorização de quase 50% nos papéis ordinários da Eletrobras, a empresa ganhou R$ 9,13 bilhões num único dia, muito mais do que renderia qualquer plano de reestruturação que fosse anunciado para melhorar seu desempenho.
Falou em vendê-la e a Eletrobras mudou significativamente de valor. As ações ordinárias, que dão direito aos acionistas de voto nas assembleias, subiram 49,3%, para R$ 21,20. Já as ações preferenciais, que permitem aos acionistas prioridade no recebimento dos lucros da empresa, avançaram para R$ 23,55 (32,08%). Os analistas de mercado exultaram com a decisão, que deixará de fora do pacote a Itaipu binacional, de propriedade do Brasil e do Paraguai, e a Eletronuclear, responsável pela produção e programas de energia nuclear.
A notícia ruim, porém, foi a assinatura do acordo de delação premiada do doleiro Lúcio Funaro, anunciada pela Procuradoria-Geral da República. Trata-se do principal operador do caixa dois do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e de outros caciques do PMDB. Funaro promete revelar novos detalhes de esquemas de corrupção envolvendo o presidente Michel Temer e alguns de seus ministros. A prisão de Roberta Funaro, irmã do doleiro, a partir da delação premiada dos executivos da JBS, levou-o a fazer o acordo.
Com isso, o fantasma de uma nova denúncia do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, contra o presidente Michel Temer voltou a rondar o Palácio do Planalto. Cumpriria a promessa que fez ao anunciar que a faria até a entrega do cargo para Raquel Dodge, sua sucessora no cargo. Essa expectativa nos meios políticos acaba repercutindo no mercado e deixa inseguros os agentes econômicos. De certa forma, a antecipação do anúncio da privatização da Eletrobras pode ter sido provocada pela informação de que Funaro havia assinado a delação. Ao fazê-lo, Temer passou à ofensiva novamente junto aos meios empresariais, neutralizando o desgaste da notícia.
A narrativa do Palácio do Planalto de que a Operação Lava-Jato é autoritária e atrapalha a recuperação da economia já salvou o presidente da República de afastamento pela Câmara, com a rejeição da denúncia de Janot baseada nas gravações da conversa de Temer com o empresário Joesley Batista, da JBS. A privatização da Eletrobras é um sinal muito forte de que o governo o avança nas reformas econômicas, ainda que não consiga enxugar os gastos na Esplanada dos Ministérios e desencalhar a reforma da Previdência no Congresso. E que a Lava-Jato se tornou o maior problema para o país reencontrar seu rumo. Isso não resolve o problema de popularidade de Temer, mas ajuda a blindá-lo contra uma nova denúncia.
Reforma política
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), adiou pela segunda vez a votação da reforma política. Os deputados não conseguem se entender em relação às propostas em discussão. Afora as questões de mérito, a confusão quanto ao processo de votação é grande. Parte dos deputados queria analisar a PEC ponto a ponto, não o relatório completo. Mas, pelo regimento, o requerimento para fatiar a votação deve ser apresentado pelo relator ou ter o consentimento dele. Vicente Cândido (PT-SP), relator do projeto, havia concordado com o fatiamento, mas acabou pressionado e voltou atrás.
Pra aumentar a confusão, a relatora de outra comissão, a deputada Shéridan (PSDB-RR), anunciou mudanças na proposta de regras da cláusula de desempenho eleitoral para beneficiar partidos menores. Flexibilizou as exigências para ter direito ao tempo gratuito de rádio e televisão e acesso ao Fundo Partidário, da ordem de R$ 819 milhões em 2017.
Também propôs a formação de federações regionais, que teriam que se manter durante toda a legislatura. A exigência para ter direito ao dinheiro do fundo era o partido eleger pelo menos 18 deputados distribuídos em pelo menos nove estados; o número foi reduzido para 15 deputados.
Na fase de transição, até a implementação efetiva das medidas, de 2018 a 2030, o número de deputados eleitos pelo partido para ter acesso ao fundo também diminuiu. Manteve-se a regra alternativa, que determina que terão acesso ao fundo os partidos que alcançarem pelo menos 3% dos votos válidos nas eleições para a Câmara, distribuídos em pelo menos nove estados, com um mínimo de 2% dos votos em cada um. A federação é uma saída para os partidos que não atingirem as exigências mínimas de acesso ao fundo. Esta proposta abre espaço para manutenção do atual sistema de votação proporcional.
Luiz Carlos Azedo: Um partido pra chamar de meu
O PMDB abduziu o PT e transformou a legenda em bagaço de laranja. Agora, a mesma coisa pode acontecer com o PSDB, que está à beira da implosão
A dialética do processo político brasileiro, digamos assim, será ditada por duas tendências que se fortalecem na medida em nos aproximarmos da eleição: o enfraquecimento do governo Temer, de um lado, e o surgimento de candidaturas mais ou menos competitivas de outro. Duas já estão postas: a do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a de Jair Bolsonaro (PSC). A única alternativa possível para o presidente Temer reverter essa tendência e não ficar isolado e moribundo no fim de seu mandato é apoiar uma candidatura forte o suficiente para reagrupar sua base e gerar uma nova expectativa de poder.
Essa é a operação em curso no Palácio do Planalto, mas passa por uma definição do PSDB em relação ao candidato da legenda, que hoje se digladia em torno de dois nomes: o governador Geraldo Alckmin, que seria o candidato natural, e o prefeito de São Paulo, João Doria, que entrou em campanha aberta, atropelando o seu criador político. Como o PSDB é uma variável sobre a qual Temer não tem controle, o presidente e os aliados começaram a meter a colher na luta interna dos tucanos, o que pode não ser uma boa ideia, mas nada impede que dê certo. Essa é a magia da política.
Em razão do poderio político e econômico do governo de São Paulo, o governador paulista ocupa o vértice de um sistema de poder controlado pelos tucanos, que passa pela estrutura partidária, mas é ancorado nos governadores, senadores, deputados federais e prefeitos da legenda. Por essa razão, como nas eleições de 2006, quando o senador José Serra (PSDB-SP) foi preterido, será muito difícil deslocar a candidatura de Geraldo Alckmin, ainda mais porque as alternativas que lhe restariam seria disputar uma vaga ao Senado ou ficar no cargo até o fim do mandato. Ocorre que a candidatura que empolga os aliados do PSDB no governo Temer é a de Doria.
Essa é a questão por trás da polêmica sobre o recente programa do partido, que ensaiou uma autocrítica em relação à Operação Lava-Jato e certa posição de apoio crítico ao governo Temer, cuja frase síntese é “O PSDB errou”. O eixo político do programa foi a crítica ao “Presidencialismo de cooptação”. O resto é detalhe.
No período imediatamente anterior à elaboração do programa, houve a votação do pedido de afastamento de Temer para a investigação da denúncia contra o presidente da República, que rachou a bancada do PSDB. Logo após, um caloroso encontro do presidente Temer com Doria, em São Paulo, sem a presença de Alckmin. Depois, uma afetuosa conversa de Doria com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) e a acalorada visita a Salvador, a convite do prefeito ACM Neto (DEM), na qual o prefeito paulista transformou a ovada que levou de um manifestante numa fortificante gemada política.
Novo bloco
A movimentação do prefeito Doria sinalizou para Temer e seus aliados do DEM a possibilidade de se antecipar à convenção do PSDB e iniciar as articulações para fazer de Doria o grande candidato de centro democrático, num movimento no qual a ala tucana que apoia o governo ameaça deixar o partido, da mesma forma como estão trocando o PSB pelo DEM os políticos dessa legenda que apoiam o governo.
Há duas alternativas: a primeira é a incorporação de Doria e todos os dissidentes pelo DEM; a segunda, o surgimento de um novo partido, que teria Doria como candidato, aproveitando a estrutura de um dos partidos aliados. Há vários, de médios a pequenos, à esquerda e à direita do PSDB, à disposição das manobras de Temer. Para Doria, poderia ser a melhor alternativa para não desconstruir a imagem de representante do novo na política, com o puro e simples ingresso no PMDB. Além disso, pode funcionar como um xeque-mate no alto tucanato.
Tudo isso ocorre em meio a uma reforma política feita sobre medida para mudar deixando tudo como está. Trata-se de mais uma faceta do nosso “transformismo” político, no qual recentemente o PMDB abduziu o PT e transformou a legenda em bagaço de laranja. Agora, a mesma coisa parece que pode acontecer com o PSDB, que está à beira da implosão.
O fenômeno é característico de processos políticos nos quais os partidos se descolam das bases eleitorais e buscam se reposicionar com objetivo de manter ou voltar ao poder. Com o colapso de certas utopias e a formação de uma classe dirigente que detém o domínio político do Estado, não importam suas mazelas, as lideranças moderadas e conservadoras buscam absorver os quadros mais ativos de grupos aliados e, eventualmente, até antigos adversários.
Luiz Carlos Azedo: A memética da Lava-Jato
Os fatos revelados pela Operação Lava-Jato são tão surpreendentes que parecem fugir à lógica do instinto de sobrevivência dos políticos. É como se uma epidemia tivesse tomado conta dos partidos
Para quem gosta de analogias para explicar o que está acontecendo no mundo da política, o livro Sapiens, uma breve história da humanidade, do israelense Yuval Noah Harari (L&PM), é um prato cheio. Uma das pérolas do livro é a referência à tese neodarwiniana de que, além dos genes replicadores das espécies responsáveis pela evolução orgânica da Terra, existiria um replicador responsável pela transmissão de informações culturais de uma geração para a outra: os “memes”.
Com base nela, alguns estudiosos já tratam a cultura como uma espécie de epidemia infecciosa, provocada por um parasita mental, sendo os homens seus hospedeiros voluntários. Harari entra nessa seara para explicar o que poderíamos classificar de “pós-fim da história”. Explico: quando acabou a União Soviética e o Leste europeu derivou de volta ao capitalismo, graças a um artigo de Francis Fukuyama (célebre economista e filósofo americano de origem japonesa, que foi um dos ideólogos de Ronald Reagan), que depois virou livro, a velha tese do “fim da História” de Hegel ressurgiu das cinzas. Harari vai além: defende que a História não é feita pelos e para os humanos.
Segundo ele, não há provas disso. O fio condutor do seu livro é a saga de uma das seis espécies de humanos que habitavam a Terra há 100 mil anos, os sapiens, que exterminaram os neandertais. Mas, entretanto, a História não atuaria em prol dos humanos. Ela não seria fruto de decisões de seus governantes e líderes, mas dos tais “memes”: “Os parasitas orgânicos, como os vírus, vivem dentro do corpo de seus hospedeiros. Eles se multiplicam e se espalham de um hospedeiro a outro, alimentando-se deles, enfraquecendo-os e, às vezes, até os matando. Contanto que os hospedeiros vivam o bastante para transmitir o parasita, este pouco se importa com a condição em que o seu hospedeiro se encontra”. Da mesma forma, as ideias culturais viveriam dentro da mente dos humanos. “Elas se multiplicam e se disseminam de um hospedeiro a outro, às vezes enfraquecendo os hospedeiros e até mesmo os matando.”
A tese exposta por Harari é perturbadora e nos remete aos conflitos religiosos e raciais e à crise humanitária do Mediterrâneo, berço da nossa civilização. Desde o fatídico 11 de setembro de 2001, dia do atentado às Torres Gêmeas de Nova York, as cidades mais cosmopolitas do mundo deixaram de ser lugares seguros para morar, trabalhar e visitar. “Uma ideia cultural — tal como a crença no paraíso cristão nos céus ou no paraíso comunista aqui na Terra — pode forçar um ser humano a dedicar sua vida a espalhá-la, às vezes tendo a morte como preço. O humano morre, mas a ideia se espalha.”
Narrativas
A memética é uma polêmica abordagem antropológica: “Culturas bem-sucedidas são aquelas que se sobressaem ao reproduzir seus memes, independentemente dos custos e benefícios aos hospedeiros humanos. Essa forma de abordagem é tratada como um amadorismo pela academia, que considera essa analogia muito tacanha. Mas, com a mais fina ironia, Harari situa o pós-modernismo acadêmico como uma espécie de irmão gêmeo da memética, pois seus defensores falam que os discursos, como os blocos construtores de cultura, também se propagam sozinhos. O nacionalismo e a guerra seriam frutos desse fenômeno. A pós-verdade estaria ainda mais associada aos “memes” com suas “narrativas”.
Mas o que isso tem a ver com a crise ética, política e econômica que estamos vivendo? Ora, muita coisa. Os fatos revelados pela Operação Lava-Jato são tão surpreendentes que parecem fugir à lógica do instinto de sobrevivência dos políticos. É como se uma epidemia tivesse tomado conta dos partidos. Além da reprodução biológica facilmente constatável pelos velhos sobrenomes de batismo das oligarquias — a genealogia começa no Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre —, a cultura do desvio de dinheiro público e do caixa dois tornou-se tão dominante na política que os investigados na Operação Lava-Jato, mesmo sabendo das quebras de sigilo bancário, das escutas telefônicas, das buscas e apreensões e prisões, não conseguem viver sem maços de dinheiro vivo guardados nos armários, caixas de joias, viagens de jatinho e contas bancárias milionárias.
A Operação Lava-Jato desencadeou uma espécie de guerra de “memes” entre políticos, magistrados, promotores, delegados, auditores e advogados, no qual duas grandes correntes se digladiam, uma quer nos livrar dos “memes” da corrupção, outra tenta nos salvar dos “memes” do autoritarismo. E bilhões de reais deixam de ser gastos em saúde e educação. Outra vez, a tese do Harari: a História não leva em conta a vida dos indivíduos. Bom domingo!
Luiz Carlos Azedo: As velhas raposas
O velho Piantella não perde a majestade. Na noite de quarta-feira, ao contrário da maioria dos deputados que gostam de futebol e foram assistir ao clássico Flamengo e Botafogo pela televisão (um zero a zero dos mais sem graça, no campo do Engenhão, no subúrbio carioca do Engenho de Dentro), um grupo de velhas raposas do Congresso se reunia nos fundos do velho reduto dos deputados Ulysses Guimarães (PMDB-SP) e Luiz Eduardo Magalhães (PFL-BA). Ambos pontificaram na política nacional tecendo grandes acordos políticos que garantiram a transição à democracia, o primeiro, e o sucesso do Plano Real, o segundo. Ambos deixaram discípulos na arte da política.
Estavam lá o atual decano da Casa, Miro Teixeira (Rede), eleito pela primeira vez nas eleições de 1974 com um caminhão de votos, Heráclito Fortes (PSB-PI), Benito Gama (PTB-BA), José Carlos Aleluia (DEM-BA), Rubens Bueno (PPS-PR) e Tadeu Alencar (PSB-PE), que é novo no grupo, mas respeitado porque é muito sensato e bom advogado, o que é muito importante nessas horas nas quais a criatividade pode selar o destino do país com uma boa saída jurídica. O assunto da conversa entre essas velhas raposas da política não poderia ser outro: desatar o nó da reforma política, em discussão na Câmara, que havia acabado de encerrar a sessão sem conseguir votar nenhuma proposta. Motivo: absoluta falta de clareza da maioria sobre o que fazer com o sistema eleitoral e o financiamento das campanhas.
Nessa roda de conversa, todos são contrários ao “fundão” de R$ 3,6 bilhões e a favor de uma forma de financiamento privado, com limite de arrecadação e previamente controlado pela Receita Federal. Se a fórmula que discutem será emplacada, não será a primeira vez que isso acontece. O grupo costuma jogar conversa fora em público e garante grandes acordos nos bastidores do plenário da Câmara. A maioria articulou os dois impeachments aprovados na Casa, do Collor de Melo e de Dilma Rousseff. Algumas conversas decisivas foram em almoços e jantares fechados na casa de Heráclito, no Lago Sul, sem a presença de jornalistas, lobistas e boquirrotos. Quem vaza conversas nesses encontros está fora do jogo. O convidado mais recente do grupo foi o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, que resolveu sair da toca por causa do prefeito paulistano, João Doria.
Não há acordo no grupo sobre a outra proposta polêmica, o “distritão”, projeto que tem como um dos seus patronos o deputado Miro Teixeira. Seu amigo Rubens Bueno é radicalmente contra a proposta. Para Miro, o “distritão” não é problema, é solução. Elege-se com facilidade e se livra das amarras da Rede, embora não diga isso em nenhum momento. Para Rubens, é o fim dos partidos, principalmente os pequenos, com menos tempo de televisão e recursos, porque o leilão do troca-troca partidário já é uma realidade na Câmara. Benito Gama se diverte com a polêmica. Como bom baiano, ironiza a situação. E comemora o fato de o Congresso reagir às pressões da opinião pública. “Quem vai dar uma solução para crise política somos nós, os políticos, não são os juízes, promotores e militares. Democracia é assim!”
Essa é a questão de fundo da crise ética. Não há a menor possibilidade de uma solução a la Emmanuel Macron, o novo presidente francês, que deixou o governo do socialista de François Hollande, criou um movimento que, em um ano, filiou 200 mil militantes e derrotou gaulistas e socialistas, os tradicionais partidos franceses, levando de roldão a direita chauvinista de Marine Le Pen. A solução da crise terá que sair das eleições de 2018, é a regra do jogo democrático, cuja primeira condição é a manutenção do calendário eleitoral; a segunda, a possibilidade de alternância de poder.
Mas as regras da eleição estão sendo decididas por muitos líderes políticos acuados pela Lava-Jato e um baixo clero à beira de um ataque de nervos por causa do desgaste do Congresso. É nesse universo que essas raposas jogam no meio de campo e armam suas jogadas. A sociedade já detonou o “distritão” e o “fundão”. Até ministros do Supremo que votaram a favor do financiamento público já estão revendo suas posições contrárias ao financiamento privado. Miro Teixeira já queima as pestanas pra encontrar uma fórmula que salve o “distritão” do naufrágio. No momento, a ideia é “distritão” com voto em legenda. É uma tremenda jabuticaba, não existe em lugar algum. Mas ainda não colou!
Las Ramblas
Em 23 de junho, em férias, estava flanando por Las Ramblas, cujo nome é uma corruptela do árabe “ramla”, tão comum na Península Ibérica, que nesse caso significa leito de rio seco. A longa avenida de 1,2 km tem um grande calçadão que desce da Praça da Catalunha ao Porto Velho, no coração de Barcelona, pelo qual transitam diariamente de 230 mil a 310 mil pessoas. O atentado de ontem deixou ao menos 13 mortos e uma centena de feridos, de pelo menos 18 nacionalidades. Nenhum brasileiro, embora seja impossível fazer aquele trajeto sem ouvir os sotaques de diversas regiões do nosso país. O mundo está cada vez mais perigoso, não é só o Rio de Janeiro que tem motivos de sobra para se vestir de branco pela paz universal. (Correio Braziliense – 18/08/2018)
Luiz Carlos Azedo: Descida da ladeira
Enquanto a narrativa da responsabilidade fiscal vira uma sombra do passado, a sucessão de 2018 vai para a rua.
É bom o Palácio do Planalto verificar os freios, porque começou a descida de uma sinuosa ladeira, que pode ser suave se o trem não descarrilar numa das curvas que nos levam às eleições de 2018. Ontem, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), afirmou que o governo não tem os votos mínimos para aprovar a reforma da Previdência no plenário. Defende a reforma, mas a prioridade dos integrantes da base do governo, depois de salvarem o presidente Michel Temer do afastamento, é cuidar da própria eleição. “Hoje, nós não temos voto para aprová-la, e eu estou deixando bem claro isso entre os líderes”, disse.
A reforma precisa de 308 votos dos 513 deputados para ser aprovada no plenário da Câmara. O relatório do deputado Arthur Maia (PPS-BA), apesar de amplamente negociado e com consistência técnica, nunca teve apoio suficiente para ser aprovado. Estava chegando perto disso quando foi anunciada a delação premiada do empresário Joesley Batista, que gravou Temer numa conversa no Palácio do Jaburu e descarrilou, para usar a linguagem ferroviária. A prioridade do governo mudou, passou a ser salvar o presidente da República à custa da negociação de cargos no governo e distribuição de verbas para a banda mais fisiológica do Congresso.
Passado o sufoco, o Palácio do Planalto deparou-se com uma nova realidade. A eleição de 2018 está logo ali para os deputados. Eles voltaram do recesso assustados com o desgaste político causado pela votação que rejeitou a denúncia do Ministério Público contra Michel Temer e mudaram de prioridade: em vez de reformas necessárias, que consideram impopulares, mudanças nas regras do jogo das eleições para garantir seus mandatos. Como? Com o “distritão”, que dispensa o voto de legenda e maiores composições partidárias, e o “fundão” de R$ 3,6 bilhões, com o qual poderão formar seus exércitos eleitorais, já que os partidos estão cada vez mais desgastados e com lideranças queimadas. Não é à toa que muitos senadores acompanham com lupa a reforma, pois concorrerão à Câmara e não ao Senado, por falta de apoio para disputar eleições majoritárias.
Maia registrou a insatisfação da base do governo após uma reunião com os ministros da Fazenda, Henrique Meirelles, e do Planejamento, Dyogo Oliveira, além de deputados líderes de bancada na Câmara. A pauta foi o desajuste fiscal do governo, que havia hasteado a bandeira da austeridade e aprovado a Lei de Teto de Gastos, sobre a qual ainda repousa a credibilidade da equipe econômica. Politicamente correto, o presidente da Câmara destacou a importância da reforma: “A mais estruturante, a mais definitiva, aliás, a única definitiva”.
Não será fácil garantir os votos porque a maioria dos deputados está de olho mesmo na reforma política, com seu “fundão” de R$ 3,6 bilhões para gastar nas eleições. A comissão especial da Câmara que analisou a reforma política concluiu ontem a votação do relatório, que agora seguirá para análise do plenário. Emenda à Constituição, a proposta também deve passar por dois turnos e obter em cada um o apoio mínimo de 308 dos 513 deputados. Se for aprovada, seguirá para o Senado. Essa é a prioridade, que promete ainda algum barulho, porque a repulsa da sociedade aos políticos só aumentou. É que as mudanças para valerem nas eleições de 2018 precisam ser aprovadas na Câmara e no Senado até 7 de outubro. E esse trem tem preferência de tráfego.
Sucessão
Enquanto a narrativa da responsabilidade fiscal vira uma sombra do passado (Meirelles anunciou ontem a necessidade de o Congresso aumentar a meta de deficit para R$ 159 bilhões neste ano e no próximo), a sucessão de 2018 vai para a rua. Tucanos se bicam no ninho com dois candidatos paulistas, o governador Geraldo Alckmin e o prefeito João Doria. Ambos estão em campanha aberta para atrair o PMDB e o DEM como aliados. As chances de alguém voar do ninho para outra legenda não é pequena.
Lula já pôs a caravana na rua faz tempo, mas sua campanha é híbrida: trata-se de uma blindagem contra a Operação Lava-Jato e, ao mesmo tempo, uma alternativa de poder. À sombra de Lula, o ex-prefeito Fernando Haddad se movimenta para ser o “regra três” ou virar vice de Ciro Gomes (PDT), o que parece ser o plano B do ex-presidente da República se for impedido de disputar as eleições pelo juiz federal Sérgio Moro, de Curitiba. Hoje, quem polariza com Lula é Jair Bolsonaro (PSC-RJ), que ocupa o espaço do chamado “partido da ordem” com um discurso de extrema-direita. À esquerda, Marina Silva tenta domar a Rede e recuperar o espaço que ocupava há duas eleições. Álvaro Dias, do Podemos, já está em campanha, e outra estrela do Senado, o senador Cristovam Buarque (DF), colocou o seu nome à disposição do PPS para disputar a Presidência.
Luiz Carlos Azedo: A volta do parlamentarismo
A principal experiência parlamentarista na nossa história é a do Império, na qual saquaremas (conservadores) e luzias (liberais) se revezaram no poder e produziram uma das mais perenes de nossas tradições políticas: a conciliação. Seu maior legado foi a nossa integridade territorial, pois assim se resolveu pela política o ciclo de rebeliões do período regencial que ameaçou dividir o país, desde a Revolução Pernambucana, que completou 200 anos. O pior legado são as sequelas da escravidão, que, graças à política de conciliação, foi mantida até 1888.
Na Corte de D. Pedro II, o parlamentarismo funcionou muito bem como um pacto de elites; o povo, a rigor, não contava. A proclamação da República, espelhada nos Estados Unidos e não na França, embalada pelas ideias positivistas de Benjamin Constant e a forte personalidade do presidente Floriano Peixoto, nosso primeiro grande caudilho, sepultou o parlamentarismo, mas não a conciliação, que ressurgiu das cinzas com a política café com leite.
Foi como subproduto da conciliação que o parlamentarismo voltou a ser adotado, em 1961, para garantir a posse do ex-presidente João Goulart, após a renúncia de Jânio Quadros. Evitou-se com ele o golpe de Estado que viria a ocorrer alguns anos depois, embalado pelas mesmas forças que haviam forçado o suicídio de Vargas e tentaram impedir a posse de Juscelino. A vitória do presidencialismo no plebiscito convocado por Jango impôs a radicalização política como destino, num momento em que a guerra fria por muito pouco não se tornou guerra quente.
Jânio renunciaria sete meses depois de tomar posse, num gesto que nunca foi muito bem explicado, mas resultou de uma contradição de seu governo: a adoção de uma política externa independente, que não se coadunava com o sistema de forças que havia garantido sua eleição. Com a renúncia do presidente Jânio Quadros, em agosto de 1961, João Goulart deveria assumir o governo. Naquela época, o vice eleito era o mais votado, independentemente da chapa. Uma manobra de trabalhistas e comunistas paulistas viabilizou a eleição do vice com a chapa Jan-Jan. O general Henrique Lott, candidato oficial do PTB, foi cristianizado.
Golpe
Mas a UDN (União Democrática Nacional) e os militares tentaram impedir a sua posse. Jango, que era aliado do PCB, estava em visita oficial à China comunista. O golpe fracassou porque o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, cunhado de Jango, encabeçou a chamada Campanha da Legalidade, a fim de garantir o direito previsto na Constituição de 1946 de que, na falta do presidente, assume o candidato eleito a vice.
Com o apoio do Comando Militar do Rio Grande do Sul e de líderes sindicais, de movimentos estudantis e de intelectuais, o golpe foi frustrado, mas para isso foi feito um acordo político no Congresso, com a adoção do sistema parlamentarista e consequente limitação dos poderes do presidente. Ele indicava os ministros, mas interferia muito pouco na vida dos ministérios. O primeiro-ministro indicado foi Tancredo Neves, do PSD (Partido Social Democrata) mineiro, que ocupou o cargo de setembro de 1961 até junho de 1962.
Plebiscitos
A eleição de Tancredo foi esmagadora: 259 votos a favor, 22 votos contra e sete abstenções. Mas Jango não aceitava o parlamentarismo e resolveu antecipar o plebiscito que referendaria o sistema de governo, marcado para 1965. Foi substituído por Brochado da Rocha, um político trabalhista, e Hermes Lima, que exerceu um mandato-tampão. Em janeiro de 1963, houve um plebiscito (consulta popular), para decidir sim ou não à continuidade do parlamentarismo. Com 82% dos votos, o povo optou pela volta do presidencialismo.
Restavam ainda três anos de mandato para João Goulart. Elaborado pelo economista Celso Furtado, acabou lançado o Plano Trienal, que previa geração de emprego, diminuição da inflação, entre outras medidas para pôr fim à crise econômica. Porém, o plano não atingiu os resultados esperados. A crise política se reinstalou e o golpe militar retomou sua marcha, consumando-se em março de 1964.
A adoção do parlamentarismo voltou a ser cogitada na Constituinte de 1987, mas fracassou por causa das idiossincrasias de políticos que se diziam parlamentaristas, mas abriram mão do regime de governo de olho na Presidência. O então presidente, José Sarney, chegou a admitir a aprovação do plebiscito, em troca de seis anos de mandato. Relator da Constituinte, Mario Covas rejeitou o acordo, com apoio de Ulysses Guimarães, que sempre foi presidencialista. Hoje, temos o “presidencialismo de coalizão” porque a Constituição de 1988 tem viés parlamentarista. Tanto que a legislação sobre o impeachment, enxertada no texto constitucional, se baseia numa lei da década de 1950.
O plebiscito convocado pela Constituinte para decidir entre os regimes republicano ou monarquista e os sistemas presidencialista e parlamentarista, em 1993, deu o resultado que já se esperava. Vitória da república presidencialista. Agora, o tema do parlamentarismo volta à pauta, defendido por partidos tradicionalmente parlamentaristas, mas com o apoio velado do presidente Michel Temer. A crise ética e a reforma política de fato criam condições para a aprovação de uma emenda constitucional estabelecendo o parlamentarismo mitigado, que poria fim a crises políticas de longa duração (em tese, essa é a vantagem). Mas também pode dar margem à existência de um projeto continuísta a la Putín, que bloqueie ainda mais a nossa democracia.