Luiz Carlos Azedo: A âncora da estabilidade
”Embora desanuviada, a crise permanece, porque o cobertor está curto para fazer o que Bolsonaro deseja: aumentar os investimentos com recursos do Tesouro, sem reformas”
Foi um dia de muito nervosismo no mercado e no Palácio do Planalto, a ponto de o presidente Jair Bolsonaro ter de chamar uma reunião de ministros e parlamentares de sua base, com o ministro da Economia, Paulo Guedes, em razão da péssima repercussão da saída de dois integrantes da equipe econômica, que jogaram a toalha devido à falta de compromisso do governo com a reforma administrativa e as privatizações. Os secretários especiais de Desestatização e Privatização, Salim Mattar, e de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, Paulo Uebel, pediram demissão na terça-feira, o que pegou Guedes de surpresa. O ministro abriu o jogo para opinião pública: há uma “debandada” na equipe, por causa dos rumos do governo.
Guedes não escondeu seu desconforto e revelou a crise interna do governo na terça-feira, após uma reunião com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), hoje o seu principal aliado na defesa do chamado “teto de gastos”, que vincula as despesas do Orçamento da União à inflação passada, como uma maneira de conter e reduzir, ao longo do tempo, o deficit fiscal. O que era um deficit previsto de R$ 134 bilhões neste ano, com os gastos decorrentes das medidas emergenciais para enfrentar a pandemia, deve chegar à casa dos R$ 800 bilhões, fazendo a dívida pública se aproximar dos 100% do PIB no fim do ano. Esse é o tamanho do problema. O mercado vê com desconfiança a capacidade de Guedes administrar essa dívida.
Colabora para isso o fato de que outros cinco integrantes da equipe econômica já haviam deixado o governo desde o ano passado: Marcos Cintra (ex-secretário da Receita Federal), Caio Megale (ex-diretor de programas da Secretaria Especial de Fazenda), Mansueto Almeida (ex-secretário do Tesouro Nacional), Rubem Novaes (ex-presidente do Banco do Brasil) e Joaquim Levy (ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, BNDES). Mas nenhum deles tinha a mesma proximidade de Mattar e Uebel com Guedes, com o agravante de que o primeiro é um líder empresarial carismático, cuja saída teve muito mais repercussão no mercado.
Nos bastidores do Ministério da Economia, a avaliação é de que o grupo de executivos e empresários liberais que cercava Guedes não aguentou o giro da moenda da administração pública federal e o jogo bruto de poder na Esplanada dos Ministérios, principalmente com os militares. A saída dos dois auxiliares e amigos deixou Guedes muito abalado, mas o ministro amanheceu, ontem, disposto a partir para a briga pela manutenção do teto de gastos contra seus colegas de Esplanada, aparentemente com a solidariedade do presidente Jair Bolsonaro. A reunião de ontem à tarde, no Palácio do Planalto, com Guedes e seus desafetos na Esplanada, os ministros Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, que foi seu secretário de Previdência, e o ministro Tarcísio Freitas, da Infraestrutura, foi para Bolsonaro pôr ordem na tropa e começar a negociação da manutenção do teto com o Congresso.
Novo líder
Também participaram do encontro os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP); e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ); os deputados Arthur Lira (PP-AL) e Ricardo Barros (PP-PR), e os senadores Eduardo Gomes (MDB-TO) e Fernando Bezerra (MDB-CE). A novidade foi a presença de Barros, ministro da Saúde no governo Michel Temer, que será o novo líder do governo na Câmara. Bolsonaro trocou o deputado Major Vítor Hugo (PSL-GO), seu fiel escudeiro, por um dos quadros mais importantes do Centrão na Câmara, unificando o grupo, cuja liderança Barros divide com Arthur Lira, o líder da bancada do PP.
Embora a crise tenha sido desanuviada, permanece, porque o cobertor está curto para fazer o que Bolsonaro deseja: aumentar os investimentos com recursos do Tesouro. Na equipe econômica, a avaliação é de que a antecipação da estratégia de reeleição de Bolsonaro está sendo um fator perturbador da política econômica. De certa forma, Guedes também tem culpa nesse cartório: na polêmica reunião ministerial de 22 de abril, foi um que pôs pilha em Bolsonaro, ao vincular o abono emergencial ao projeto eleitoral de 2022. Todo o problema, agora, é o fato de que Bolsonaro já está em campanha.
Há uma conta que não fecha. Guedes não consegue fazer as privatizações, seja porque os militares que comandam as estatais fazem obstrução, seja por falta de investidores, ou as duas coisas. Não faz a reforma administrativa porque Bolsonaro não quer confusão com os servidores públicos. Não consegue aprovar a nova CPMF porque essa sigla é palavrão para a opinião pública e para a maioria do Congresso. Sem reforma administrativa nem aumento de impostos, não tem teto de gastos que resista.
Luiz Carlos Azedo: A tentação populista
“A tendência do presidente Bolsonaro é forçar a barra para Guedes “furar o teto de gastos”, estabelecendo exceções, como os gastos com o reaparelhamento das Forças Armadas”
O populismo no Brasil, como de resto em toda a América Latina, pode ser caracterizado por um arremedo de Estado de bem-estar social, com uma agenda nacionalista e estatizante, além de uma legislação trabalhista que concedeu representação e muitos direitos aos trabalhadores, mas também exacerbou seu corporativismo e lhes tomou a autonomia. No nosso caso, deixou raízes tão fortes que sobreviveu ao golpe de 1964, serviram de alicerce social para o regime militar por bom período, bem como renasceram das cinzas durante os governos petistas. Agora, em mais uma das reviravoltas que nos promove, ressurge como uma tentação para o presidente Jair Bolsonaro alavancar seu projeto de reeleição em meio à crise causada pela pandemia da covid-19.
Nosso país vem ficando para trás na corrida mundial para reinventar o Estado e modernizar a economia, que sofre o choque de uma crise sanitária sem precedentes e uma brutal recessão econômica. Sob o impacto de aceleradas inovações tecnológicas, que alteram a divisão internacional do trabalho, as relações entre capital e trabalho e também a própria organização do trabalho, a sociedade brasileira se depara com a necessidade de uma agenda econômica e social robusta, inovadora, que enfrente o problema do desenvolvimento econômico com menos desigualdades sociais. Entretanto, nem o governo Bolsonaro nem a oposição são capazes de formular essa agenda, bloqueada por narrativas ideológicas de caráter liberal-conservador ou nacionalista-reacionária, no campo oficial, e social-democrata ou nacional-desenvolvimentista, entre as forças de oposição.
São embarcações à deriva num mar revolto, sem chance de corrigir o rumo. É aí que o pulo do gato de um populismo de direita, que misture corporativismo, paternalismo social, conservadorismo nos costumes e uma recidiva nacional-desenvolvimentista começa a ganhar força no governo Bolsonaro, com apoio dos militares que compõem o eixo principal de sua equipe de governo, o que tem tudo a ver com suas concepções históricas sobre o papel do Estado brasileiro, impregnadas de positivismo e nacionalismo. O sonho do Brasil potência dormia em berço esplêndido; após a posse de Bolsonaro, busca um caminho de volta à cena política.
O ciclo de modernização em curso no Brasil é desigual e socialmente injusto, não se apoia na capacidade própria da nossa economia, mas em fluxos do comércio mundial nos quais nossa vocação natural é produzir commodities de minérios e alimentos, o que tem resultado na progressiva redução de nossa complexidade industrial. Além disso, a nossa baixa inovação tecnológica também resulta dessas demandas, bem como toda a ideologia que fomenta essas inovações. Assim, o moderno e o modernoso se confundem no mundo das narrativas, enquanto a realidade social e econômica continua amarrada por toda uma estrutura de relações institucionais, econômicas e sociais com um pé na economia arcaica e outro no atraso cultural. Esse quadro estressa nosso Estado de direito democrático.
Popularidade
Essa tensão estrutural hoje permeia a vida nacional e tem como epicentro a relação entre a política institucional, cujo desenvolvimento ocorre por meio das instituições da democracia representativa, e as redes sociais, nas quais os diferentes atores se digladiam ao defender suas visões de mundo. Interpretam a realidade de forma distorcida pela perspectiva ideológica, muitas vezes de caráter religioso. Nesse cenário, o projeto ultraliberal de modernização do ministro da Economia, Paulo Guedes, que já tinha contradições com a agenda reacionária de costumes do presidente Bolsonaro, naufragou na pandemia e não tem chance de se restabelecer. Ao mesmo tempo, as medidas de emergência adotadas pelo Congresso para compensar os efeitos sociais e econômicos da pandemia estão chegando ao seu limite.
Por ironia, essas medidas econômicas de caráter heterodoxo tiveram impacto favorável à popularidade do presidente da República, que estava em queda aberta, principalmente no Norte e Nordeste, entre os mais pobres e os mais jovens. Pode-se dizer que o abono emergencial caiu no colo de Bolsonaro e passou a ser um vetor de seu projeto de reeleição, do qual não pretende mais abrir mão. Vem daí sua tentação populista. A oposição, que não pode apostar no “quanto pior, melhor” nem “pôr mais azeitona na empada” de Bolsonaro, está perplexa e paralisada diante da situação, como aquela presa enfeitiçada pela cobra que prepara o bote iminente.
Entretanto, o governo Bolsonaro está diante de escolhas duras, do tipo, aumentar impostos ou reduzir as despesas. No primeiro caso, não conta com o apoio da maioria dos políticos, mas encontra ressonância nos meios empresariais. No segundo, tem apoio da opinião pública, mas enfrenta resistência feroz das corporações. A tendência de Bolsonaro é forçar a barra para Guedes “furar o teto de gastos”, estabelecendo exceções, como os gastos com o reaparelhamento das Forças Armadas. Quando fala em “desengessar” o Orçamento da União, destinando verbas de despesas obrigatórias — que normalmente não são executadas para reduzir o deficit fiscal — em investimentos em obras públicas, faz concessões incompatíveis com seu próprio projeto. Num momento de grandes mudanças globais, nas quais vamos ficando para trás, estamos enxugando gelo. O Brasil não tem uma agenda moderna, democrática, socialmente mais justa e mobilizadora da sociedade.
Luiz Carlos Azedo: Ninguém pode tudo
A decisão de Fachin acirra contradições na Procuradoria-Geral da República, onde há uma rebelião dos subprocuradores contra o procurador-geral, Augusto Aras, por causa da Lava-Jato.
A queda de braço entre o procurador-geral da República, Augusto Aras, e os procuradores das forças-tarefas da Lava-Jato ganhou mais um capítulo ontem. Relator da Lava-Jato, o ministro Luiz Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), revogou a decisão liminar (provisória) do presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, que determinou o compartilhamento de dados da Operação Lava-Jato no Paraná, no Rio de Janeiro e em São Paulo com a Procuradoria-Geral da República (PGR).
Toffoli havia atendido a um pedido da PGR, que relatou ter enfrentado “resistência ao compartilhamento” e à “supervisão de informações” por parte dos procuradores da República. A decisão retirava praticamente toda a autonomia das forças-tarefas para gerenciamento dos dados e corroborava a intenção de centralizar as investigações na cúpula da Procuradoria-Geral, extinguindo as forças-tarefas. Pela decisão do presidente do STF, as forças-tarefas deveriam repassar todos os dados à Secretaria de Perícia, Pesquisa e Análise do gabinete do procurador-geral da República.
Fachin desfez tudo, em caráter retroativo. Com isso, os dados compartilhados não poderão ser mais acessados pela PGR. Aras já anunciou que recorrerá da decisão, o que deve levar a polêmica para o pleno do Supremo. Fachin questionou a justificativa adotada pela PGR ao pleitear a decisão de Toffoli: “Decisão sobre remoção de membros do Ministério Público não serve, com o devido respeito, como paradigma para chancelar, em sede de reclamação, obrigação de intercâmbio de provas intrainstitucional. Entendo não preenchidos os requisitos próprios e específicos da via eleita pela parte reclamante”, escreveu. Fachin também quebrou o sigilo da ação.
A decisão acirra as contradições dentro da Procuradoria-Geral da República, onde há uma rebelião dos subprocuradores gerais, por causa da forma como Aras pretende conduzir sua gestão, e aprofunda divergências no Supremo Tribunal Federal (STF), onde os métodos da Lava-Jato enfrentam forte oposição. Mas também mostra que ninguém pode tudo nessa questão, ou seja, é preciso chegar a um denominador comum. Uma das acusações contra a Lava-Jato é investigar autoridades da República, como os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), sem a devida autorização do STF. Segundo Aras, 38 mil pessoas teriam sido investigadas pela força-tarefa de Curitiba.
Arapongas
A propósito de investigações ilegais, o ministro da Justiça e Segurança Pública, André Mendonça, cancelou sua ida ao Senado, hoje, para explicar o trabalho da Secretaria de Operações Integradas (Seopi) da pasta. A audiência chegou a ser programada para que o ministro pudesse falar sobre o monitoramento de opositores ao governo de Jair Bolsonaro. Mendonça alegou que o assunto é sigiloso e não poderia ser tratado em um encontro virtual aberto ao público, como previsto. O ministro é acusado de investigar indevidamente professores e policiais que participam de movimentos antifascistas.
Mendonça revelou certa surpresa com a denúncia e passou a impressão de que havia perdido o controle sobre o grupo de arapongas que atuam na pasta. Ontem, anunciou uma sindicância e suspendeu sua participação na audiência, que havia sido combinada com o presidente da Comissão de Controle dos Serviços de Inteligência do Congresso, presidida pelo deputado Nelsinho Trad (PSD-MS). A comissão mista tem 12 membros, com uma composição bastante heterogênea: os senadores Eduardo Braga (MDB-MA), Randolfe Rodrigues (Rede-AP), Daniella Ribeiro (PP-PB), Jaques Wagner (PT-BA), Marcos do Val (Podemos-ES); e os deputados Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), José Guimarães (PT-CE), Claudio Cajado (PP-BA); Carlos Zarattini (PT-SP); e Edio Lopes (PL-RR). É a primeira vez que seus integrantes se veem diante de um problema dessa ordem, pois o trabalho de inteligência no governo é regulamentado e está a cargo da Abin e do GSI.
Como se sabe, no episódio da demissão do ex-ministro da Justiça Sergio Moro, o presidente Jair Bolsonaro revelou que mantinha seu próprio serviço de inteligência, sem explicar o que era nem como funcionava. A existência de uma equipe de arapongas para fazer espionagem política no Ministério da Justiça é uma aberração administrativa e jurídica, porque configura uma polícia política.
Luiz Carlos Azedo: As pedras no caminho
“Bolsonaro terá de suar muito a camisa, abraçar criancinha, andar de jegue, fazer acordos que até ontem dizia que não faria, posar para fotos com políticos enrolados na Lava-Jato”
O presidente Jair Bolsonaro entrou em modo reeleição. Há uma bipolaridade nessa atitude: o lado negativo é perder o foco na gestão para priorizar a disputa política, dois anos e meio antes do pleito de 2022; o positivo, a aposta na eleição, ou seja, na política, o que significa uma mudança de rumo, se considerarmos a escalada de confrontos com o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso em que vinha, uma ameaça real à democracia. Não há novidade nenhuma nessa antecipação, o mesmo foi feito pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando se sentiu ameaçado pelo mensalão; e pela presidente Dilma Rousseff, depois dos protestos de maio de 2013. É óbvio que a campanha antecipada merece críticas, mas daí negar a aposta nas eleições como uma mudança em relação à postura golpista em que vinha é um grave equívoco.
Desde a aprovação do instituto da reeleição, no primeiro mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), todo governante é favorito nas disputas eleitorais. Mesmo em situações dificílimas, como aconteceu com Lula, no pleito de 2006, e Dilma Rousseff, em 2014. A força de inércia do Estado brasileiro é formidável, seja por causa da centralização crescente da arrecadação tributária nas mãos da União, e que o ministro da Economia, Paulo Guedes, quer centralizar ainda mais, seja pelo fato de termos um Estado ampliado, que mexe com a vida dos cidadãos em todo o território nacional. A rigor, somente o estado de São Paulo, que também tem muitos tentáculos, se basta em relação ao governo federal do ponto de vista dos serviços que oferece aos seus cidadãos. Não à toa é o único em condições de sustentar frontal e permanentemente oposição ao governo federal, sem colocar em risco a própria governabilidade.
Para ir direto ao assunto, quem quiser que se iluda, o presidente Jair Bolsonaro é o favorito nas eleições de 2022. Quando nada porque o governo federal é a forma mais concentrada de poder, e isso pesa na balança quando o governante concorre à reeleição. Significa que Bolsonaro seja imbatível? Não. Mas é preciso levar em conta que, historicamente, desde a adoção da reeleição, nenhum presidente deixou de renovar seu mandato. O sujeito precisa fazer muita trapalhada para perder a reeleição, ou ser apeado do cargo, como aconteceu com Fernando Collor de Mello, quando não havia ainda reeleição, e Dilma Rousseff, que estava no segundo mandato. Isso explica, de certa maneira, a deriva dos partidos do Centrão em direção ao governo, numa articulação dos militares do Palácio do Planalto com os caciques Ciro Nogueira (Progressistas), Roberto Jefferson (PTB), Valdemar Costa Neto (Republicano) e Gilberto Kassab (PSD).
A reeleição de Jair Bolsonaro será favas contadas? É claro que não, ninguém ganha eleição de véspera. Bolsonaro terá de suar muito a camisa, abraçar criancinha, andar de jegue, fazer acordos que até ontem dizia que não faria, posar para fotos com políticos enrolados na Lava-Jato etc. Aliás, sua estreia nesse quesito foi durante a semana que passou, no Piauí, onde posou ao lado do senador Ciro Nogueira no santuário arqueológico da Serra da Capivara, bem ao lado do emblemático desenho rupestre conhecido como “Cena do beijo”. Mais do que isso, porém, precisará acertar o rumo de seu governo, que se encontra à beira da insolvência em razão da dívida pública astronômica e do deficit fiscal crescente.
Obstáculos
Há variáveis no meio do caminho da reeleição que Bolsonaro não controla, precisa adaptar-se a elas. A primeira é a recessão mundial, que parece mais profunda e duradoura do que se imaginava, se considerarmos os resultados econômicos do primeiro semestre deste ano, principalmente nos Estados Unidos e na Alemanha, que tinham uma expectativa de recuperação em V. A outra variável nesse terreno é a China, nosso maior parceiro comercial, com a qual o governo tem uma relação esquizofrênica, com alguns ministros trabalhando para aumentar as vendas do agronegócio e atrair investidores em infraestrutura, e outros só atrapalhando. A terceira é a eleição dos Estados Unidos, na qual o presidente Donald Trump corre o risco de não se reeleger, pois o democrata Joe Biden continua na liderança. De tão desesperado, Trump já pensa em adiar as eleições. Se o democrata vencer, o Brasil terá de ajustar sua política externa.
Entre as variáveis controláveis por Bolsonaro, a mais importante é a política econômica. Todos os economistas fazem um diagnóstico sombrio sobre a capacidade de recuperação da economia brasileira nos próximos dois anos. A narrativa de que teremos uma recuperação econômica espetacular, do ministro da Economia, Paulo Guedes, não se sustenta nos fatos. O xis da questão é a dívida pública, que pode chegar a 100% do PIB, o que a torna um fator inflacionário inequívoco. A alta do dólar está aí para mostrar que o dragão está acordado e ruge, somente não dando as caras porque a atividade econômica é muito baixa. As saídas são uma reforma tributária competente e a reforma administrativa, mas isso não costuma dar votos para os governantes a curto prazo. Pelo contrário, tiram.
Luiz Carlos Azedo: Palanque para Moro
“Aras foi escolhido procurador-geral pelo presidenteBolsonaro fora da lista tríplice dos procuradores, exatamente para centralizar as decisões sobre as investigações da Lava-Jato”
O procurador-geral da República, Augusto Aras, declarou guerra à Operação Lava-Jato. Em live para o grupo de advogados “Prerrogativas”, sem papas na língua, não poupou críticas aos procuradores que integram a força-tarefa e reiterou a intenção de centralizar e controlar as investigações em curso. Nunca a operação foi tão atacada “de cima” e “de dentro” do Ministério Público. Aras reiterou a acusação de que a força-tarefa de Curitiba opera de forma heterodoxa e levantou a suspeita de que 38 mil pessoas foram investigadas por seus integrantes. “Ninguém sabe como (esses nomes) foram escolhidos, quais foram os critérios”, disse Aras.
As declarações agradaram aos advogados e foram bem recebidas pela maioria dos políticos, mas provocaram a reação dos procuradores e juízes de primeira instância, que têm seus aliados no Congresso. Em resposta, os procuradores de Curitiba classificaram a declaração de Aras como “falsa suposição”, considerando que esse é o número de pessoas físicas e jurídicas mencionadas em relatórios encaminhados pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) ao MPF, em suspeita de crimes de lavagem de dinheiro.
“Ao longo de mais de 70 fases ostensivas e seis anos de investigação foi colhida grande quantidade de mídias de dados — como discos rígidos, smartphones e pendrives — sempre em estrita observância às formalidades legais, vinculada a procedimentos específicos devidamente instaurados”, ressaltou a força-tarefa de Curitiba, em nota oficial. O procurador Roberson Pozzobon, integrante da operação, atacou Aras numa rede social: “A transparência faltou mesmo no processo de escolha do PGR pelo presidente Bolsonaro. O transparente processo de escolha a partir de lista tríplice, votada, precedida de apresentação de propostas e debates dos candidatos, que ficou de lado, fez e faz falta”, publicou no Twitter.
Desde 2014, as forças-tarefas foram responsáveis por 319 ações criminais propostas, 90 ações civis promovidas, 330 acordos de colaboração premiada, 26 acordos de leniência, com estimativa de reversão de recursos ao poder público de, aproximadamente, R$ 30 bilhões, em consequência das operações. Entretanto, Aras pretende centralizar o poder das investigações na Procuradoria-Geral e controlar a “caixa-preta” da Lava-Jato, em poder dos procuradores de Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, centralizando as investigações numa coordenação sob seu comando. Segundo o procurador-geral, existe um “MPF do B”, que operaria nas sombras.
Anarco-sindicalismo
As declarações de Aras ocorrem num momento em que a Lava-Jato dá sinais de retomar a iniciativa, com operações contra políticos importantes, como o senador José Serra (PSDB-SP), que, ontem, virou réu, e o deputado Paulinho da Força (SP), presidente do Solidariedade e líder da Força Sindical. O procurador-geral advertiu aos integrantes da Lava-Jato que cada membro do Ministério Público “pode agir como sua consciência”, mas “não é senhor da instituição”. É uma afirmação polêmica, porque a independência funcional é que assegura a atuação dos procuradores em casos que contrariam o poder econômico e o poder político. Aras disse que o “anarco-sindicalismo” tomou conta da instituição.
Aras foi escolhido para o cargo pelo presidente Jair Bolsonaro fora da lista tríplice eleita pelos procuradores, exatamente para centralizar as decisões sobre as investigações. Essa mudança vai além das apurações sobre crimes de “colarinho-branco”. Indígenas, grupos de extermínio, escravidão contemporânea, racismo, milícia, violência policial, fraude em licitação, violência doméstica, grilagem de terras e desmatamento, todas as agendas que importam para Bolsonaro, ficarão sob controle do procurador-geral.
Tudo indica, também, que já haja uma investigação em curso sobre a atuação da força-tarefa de Curitiba, que reagiu às declarações e negou a existência de uma “caixa-preta” da Lava-Jato. A acusação de Aras já foi objeto de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou que a força-tarefa de Curitiba compartilhe os dados em seu poder com a Procuradoria-Geral. A crise entre Aras e os procuradores da Lava-Jato está apenas começando, mas já é um palanque para o ex-ministro da Justiça Sergio Moro, grande artífice da operação, que criticou as declarações de Aras.
Moro ainda não assumiu a candidatura a presidente da República, mas aparece em todas as pesquisas como um adversário competitivo do presidente Jair Bolsonaro em 2022. A bandeira da ética foi um grande divisor de águas nas eleições passadas, servindo como estandarte de campanha de Bolsonaro. Essa bandeira, agora, está sendo disputada por Moro, que saiu do governo atirando. O ataque à Lava-Jato resgata o protagonismo de Moro como defensor da ética na política.
Luiz Carlos Azedo: A volta do “mais do mesmo”
“O governo está quebrado e não tem recursos para implantar o programa Renda Brasil, que substituirá o Bolsa Família, menina dos olhos de Bolsonaro para sua reeleição”
O governo Bolsonaro perdeu o ímpeto das reformas. É normal, mas após o segundo ano de governo. Entretanto, a pandemia antecipou a inércia. E, se levarmos em conta o papel coadjuvante que representou na reforma da Previdência, o presidente Jair Bolsonaro nunca teve muita motivação para protagonizar as reformas econômicas. Sua agenda prioritária sempre foi outra, o conservadorismo nos costumes, que também anda encalhado no Congresso, e o fortalecimento do Executivo em relação aos demais Poderes, como fato consumado na política. Se ainda houver alguma reforma este ano, será a tributária, na qual as propostas em discussão na Câmara e no Senado são mais ambiciosas do que o projeto apresentado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, para embrulhar a recriação do imposto sobre operações financeiras. Uma solução simples para um problema muito mais complexo, que seria modernizar o nosso sistema tributário para torná-lo mais eficiente, equilibrado para os entes federados e mais justo, socialmente.
Entre os economistas, há uma compreensão quase unânime de que a dívida pública, se nada for feito, trará de volta a inflação no próximo ano (o termômetro é o câmbio), que somente não está acontecendo por causa da recessão e do desemprego. Mesmo economistas como Samuel Pessoa e Armínio Fraga, que defendem políticas de austeridade fiscal, já admitem a criação de um novo imposto para evitar o colapso do governo federal no próximo ano. A alternativa que está se discutindo, a partir da proposta de Guedes, é a volta da CPMF. A tese é ampliar a base de arrecadação para ter a menor alíquota do imposto. Com isso, o governo espera resolver seu problema de caixa e evitar a insolvência.
Como aconteceu na reforma da Previdência, uma reforma tributária depende muito mais da Câmara e do Senado do que do empenho do Palácio do Planalto. O projeto encaminhado por Paulo Guedes não tem nada a ver como isso: seu foco é a falta de caixa. Por causa da pandemia, o governo está quebrado e não tem recursos para implantar o programa Renda Brasil, que substituirá o Bolsa Família, menina dos olhos de Bolsonaro para sua reeleição. Na pauta da Câmara e do Senado, respectivamente, as PECs 44 e 110 são outra coisa: uma reforma tributária de verdade.
Diferenças
A PEC 45/2019, elaborada por Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal, tem como relator o deputado Baleia Rossi (SP), presidente do MDB. É defendida também pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que pretende aprovar a reforma tributária antes de deixar o comando da Casa. O ponto central do projeto é a substituição de cinco tributos por um único imposto, que seria chamado de imposto sobre bens e serviços (IBS). O modelo é inspirado em sistemas utilizados em outros países, que reúnem em um único imposto sobre valor adicionado (IVA) toda a tributação sobre o consumo, com uma alíquota uniforme. Economistas como Samuel Pessoa defendem a proposta.
A PEC 110/2019, de autoria do ex-deputado Luiz Carlos Hauly, em discussão no Senado, porém, tem a preferência dos tributaristas, porque promove uma simplificação tributária mais ampla, unificando nove impostos. A PEC, porém, facilita a concessão de incentivos fiscais a alguns setores produtivos e atividades econômicas específicas — como de alimentação básica, saneamento básico, educação infantil, o que não é bem-visto pelos fiscalistas, porque gera subsídios cruzados e guerra fiscal.
Voltando ao ponto de partida. O governo não aposta em nenhuma dos dois projetos já em tramitação. Fatiou a sua proposta de reforma tributária, porque o interesse maior de Guedes é sair do sufoco orçamentário. O problema é que essa estratégia mexe com os nervos da equipe econômica, recrutada entre economistas liberais, cuja motivação para participar do governo está longe de ser apenas financeira, é ideológica. Se Guedes jogar a toalha e aderir ao “mais do mesmo”, a equipe implode.
Luiz Carlos Azedo: San Tiago e Maia
”O presidente da Câmara encabeça o que podemos chamar de “oposição positiva”, que vem sendo muito mais responsável do que o Palácio do Planalto no enfrentamento das crises”
Uma das figuras mais interessantes da política brasileira foi Francisco Clementino de San Tiago Dantas. Carioca da gema, começou a carreira pela porta da extrema-direita — após concluir o curso na Faculdade Nacional de Direito —, em 1932, na Ação Integralista Brasileira (AIB), da qual se afastou na tentativa de deposição de Getúlio Vargas, em 1938, para se dedicar à advocacia e à carreira acadêmica. Depois, trabalhou na organização do Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, órgão ligado ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Foi vice-presidente da refinaria de petróleo de Manguinhos por nove anos. Voltou à política para assessorar Vargas no governo, de 1951 a 1954, participando da criação da Petrobras e da Rede Ferroviária Federal.
Filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), elegeu-se deputado federal por Minas Gerais, em 1958, tendo sido nomeado embaixador do Brasil na ONU, em agosto de 1961. Mas sequer assumiu, por causa da renúncia de Jânio Quadros, três dias depois. Os ministros militares tentaram impedir a posse do vice-presidente João Goulart na Presidência, mas enfrentaram forte resistência popular, liderada pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, que montou uma rede nacional de emissoras da rádio. A saída para o impasse foi uma emenda constitucional instituindo o regime parlamentarista, da qual San Tiago foi um dos articuladores.
Goulart assumiu a presidência em 7 de setembro de 1961, indicando Tancredo Neves, do Partido Social Democrático (PSD), como primeiro-ministro. San Tiago foi escolhido para a pasta das Relações Exteriores, dando sequência à “politica externa independente” de Jânio. Deixou o ministério para disputar um novo mandato na Câmara. Em janeiro de 1963, um plebiscito determinou, por larga margem de votos, o retorno ao presidencialismo. San Tiago assumiu o Ministério da Fazenda, com um programa de austeridade econômica baseado no Plano Trienal, de Celso Furtado, ministro extraordinário para o Planejamento. O plano previa a retomada de um índice de crescimento econômico em torno de 7% ao ano, e a redução da taxa de inflação, que em 1962 chegara a 52%, para 10% em 1965.
A crise que levaria ao golpe de 1964, porém, já estava em curso. Diante da polarização entre conservadores e reformistas, San Tiago fez um pronunciamento dramático pela televisão, em que apontava a existência de “duas esquerdas”: a “positiva”, onde ele mesmo se inseria; e a “negativa”, a ala esquerda do PTB, encabeçada por Brizola, que se opunha ao Plano Trienal e à “política de conciliação”. Furtado e Dantas deixaram o governo. Militares, políticos e empresários organizavam a deposição de Goulart, que pediu ajuda a San Tiago para formar um governo de frente única. Em janeiro de 1964, porém, o PSD, de Juscelino Kubitschek, e a Frente de Mobilização Popular (FMP), liderada por Brizola, manifestaram-se contra a proposta. Em 31 de março de 1964, o general Humberto Castello Branco assumiu o poder. San Tiago faleceu no Rio de Janeiro em 6 de setembro daquele ano.
Sucessão
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), lembra San Tiago Dantas. Nunca apoiou o governo Bolsonaro, entretanto, como presidente da Câmara, encabeça o que podemos chamar de “oposição positiva”, graças a qual o Poder Legislativo vem sendo muito mais responsável do que o Palácio do Planalto no enfrentamento das crises. Maia foi o grande artífice da aprovação da reforma da Previdência, muito mais do que Paulo Guedes, o ministro da Economia. O presidente Bolsonaro atrapalhou muito mais do que ajudou. O mesmo se pode dizer de outras medidas aprovadas pelo Congresso, como a flexibilização da legislação trabalhista, as medidas de combate à pandemia do coronavírus, o novo marco do saneamento e, nesta semana, a aprovação do Fundeb.
Essa postura de Maia vem desde o governo de Michel Temer, cujo afastamento somente não foi aprovado porque o presidente da Câmara, que seria seu sucessor natural, se opôs às articulações com esse objetivo. Deve-se a Maia, em boa medida, o encalhe dos projetos mais retrógrados do governo Bolsonaro nas comissões da Câmara. Em fim de mandato, Maia enfrenta uma nova queda de braço com o Palácio do Planalto: a sua sucessão. Bolsonaro quer assumir o controle da Câmara, via Centrão, elegendo um aliado de confiança. O grande obstáculo é Rodrigo Maia, que provou, na votação do Fundeb, não ser um pato manco.
Luiz Carlos Azedo: Viver é muito perigoso
“Com 82,7 mil mortes no Brasil, as cidades reabrem o comércio, as pessoas circulam em transportes lotados e calçadas apinhadas — o risco de contaminação aumentou”
A frase antológica que intitula a coluna, do jagunço Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, nunca foi tão universal. No romance, repete-se muitas vezes, como as referências aos redemoinhos e ao diabo. “Hoje, sei. E sei que em cada virada de campo, e debaixo de sombra de cada árvore, está dia e noite um diabo, que não dá movimento, tomando conta. Um que é o romãozinho, é um diabo menino, que corre adiante da gente, alumiando com lanterninha, em o meio certo do sono. Dormi, nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo que é bonito é absurdo — Deus estável.”
A situação que os brasileiros estão passando em meio à pandemia do coronavírus é como ter um pesadelo acordado. Estamos numa travessia marcada pela incerteza, na qual um vírus terrível vive à espreita. Sair às ruas é um risco, ao qual cada vez mais pessoas estão submetidas, seja pelo número de infectados assintomáticos que circulam, seja pela necessidade de voltar ao trabalho para sobreviver. Ontem, batemos recorde de casos da covid-19 registrados em 24 horas. Segundo o Ministério da Saúde, foram nada menos que 67,8 mil diagnósticos positivos, somando 2,227 milhões de casos confirmados. O recorde anterior, em 19 de junho, era de 54 mil casos. As mortes por covid-19 registradas nas últimas 24 horas foram 1.284. Subiu para 82.771 o número de óbitos pela doença no país.
A pandemia continua assombrosa em São Paulo, onde avançou pelo interior, e pressiona os estados do Sul e do Centro-Oeste. No Norte e Nordeste do país, parece que o pior já passou. Impossível dissociar a sofisticada filosofia do jagunço Riobaldo do diplomata Guimarães Rosa, o escritor: “No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso…”. Riobaldo flertava com correntezas e redemoinhos: “Viver — não é? — é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender a viver é que é o viver mesmo”.
Sem controle
O Brasil está relaxando as quarentenas, a política de isolamento social. Mesmo com 82,7 mil mortes, as cidades estão reabrindo o comércio, as pessoas voltam a circular, nos transportes lotados e calçadas apinhadas, o risco não diminuiu, aumentou. Doze estados ainda registram expansão da doença: Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Amapá, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e Paraíba. Ao mesmo tempo, a omissão do governo federal começa a produzir indicadores objetivos que responsabilizam o presidente Jair Bolsonaro e o ministro interino da Saúde, o general Eduardo Pazuello, pelo fato de a pandemia permanecer sem controle. Tudo tem seu preço.
A deliberada “descoordenação” do Ministério da Saúde no combate à pandemia se traduz na execução orçamentária da pasta, questionada, ontem, no Tribunal de Contas da União (TCU). O ministro Benjamin Zymler afirmou que é muito “baixa” a execução dos recursos destinados ao combate à pandemia. Segundo seu relatório, o Ministério da Saúde gastou 29% do dinheiro que recebeu. Dos R$ 39 bilhões disponíveis, R$ 11,5 bilhões foram efetivamente pagos. Interino na pasta, o general Eduardo Pazuello está arrumando sarna para se coçar, pois pode ser responsabilizado judicialmente pelo fracasso no combate à pandemia, bem como seus principais assessores, por não empregarem os meios disponíveis para contê-la.
O primeiro sinal de que esse risco é real foi dado, ontem, pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o monitoramento das reuniões entre o governo e lideranças indígenas. A conselheira Maria Thereza Uille Gomes passará a acompanhar a “sala de situação”, que monitora a epidemia nas aldeias. A decisão foi tomada porque integrantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) se queixaram ao STF de que foram ameaçados e humilhados por integrantes do governo numa reunião. Há 10,2 mil índios contaminados nas aldeias, que registram 408 mortes. O cacique Aritana, do Alto Xingu, contraiu coronavírus e está em estado grave, hospitalizado em Goiânia. A morte dos idosos nas aldeias indígenas representa perda da identidade étnica desses povos, que é preservada por transmissão oral de suas culturas.
Luiz Carlos Azedo: Política do novo normal
"Guedes propôs a unificação de PIS e Cofins, na Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), com alíquota de 12%, para aumentar a base de arrecadação do governo em mais de 40%"
Quem acompanha os Três Poderes tem a impressão de que a política está voltando ao normal em plena pandemia. A Operação Lava-Jato aperta o cerco contra o senador José Serra (PSDB-SP), acusado de caixa 2 eleitoral, desmentindo as próprias previsões de que o envio de investigações para a primeira instância e a Justiça eleitoral sepultaria os inquéritos abertos pelas delações premiadas. A Câmara volta a negociar com o governo a aprovação de projetos, ambos foram obrigados a ceder no caso do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). Depois de muitas idas e vindas, finalmente, o ministro da Economia, Paulo Guedes, apresentou a primeira de suas quatro propostas de reforma tributária. O presidente Jair Bolsonaro aposta no “milagre da cloroquina” e pretende viajar, ainda nesta semana, para o Piauí, de olho nos eleitores do Nordeste.
No seu melhor estilo, a Lava-Jato fez, ontem, mais uma operação de busca e apreensão contra o tucano José Serra. O ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), concedeu liminar para suspender as buscas e apreensões determinadas pela primeira instância no gabinete do senador, em Brasília. A operação Paralelo 23, da Polícia Federal, investiga suposto caixa 2 na campanha de José Serra ao Senado em 2014. É uma nova fase da Lava-Jato, que apura crimes eleitorais. Nas residências do parlamentar, a operação foi feita. “Defiro a liminar para suspender a ordem judicial de busca e apreensão proferida em 21 de julho de 2020 pelo Juiz Marcelo Antonio Martin Vargas, da 1ª Zona Eleitoral de São Paulo, nas dependências do Senado Federal, mais especificamente no gabinete do Senador José Serra”, decidiu o presidente do STF. Como o ex-governador Geraldo Alckmin é outro envolvido na Lava-Jato, o desgaste do PSDB em São Paulo é enorme, embora ambos aleguem inocência. Dor de cabeça para o prefeito de São Paulo, o tucano Bruno Covas, que luta contra um câncer e pela reeleição
Fundeb e impostos
Na Câmara, finalmente, saiu um acordo majoritário para aprovar renovação do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica. O governo tentou tirar uma fatia dos recursos do fundo e adiar sua implantação para 2022, mas não conseguiu o apoio do Centrão, que agora é o eixo de sua base parlamentar. Teve que negociar. A deputada Dorinha Seabra (DEM-TO), relatora da emenda constitucional, apresentou um novo parecer no qual a participação da União passará de 10% para 23%, em 2026, destinando 5% à educação infantil. O aumento da participação será escalonado: 12% em 2021; 15% em 2022; 17% em 2023; 19% em 2024; 21% em 2025; e 23% em 2026. Propõe, ainda, piso de 70% para o pagamento de salário de profissionais da educação. O governo defendia que esse percentual fosse o limite máximo para pagar a folha de pessoal, mas desistiu. O novo relatório é um “meio-termo”: limite de 85%, garantindo 15% para investimento.
Na reforma tributária, não há consenso. O ministro Guedes propôs a unificação de PIS e Cofins, os dois tributos federais sobre o consumo, para criar uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), com alíquota de 12%, o que corresponde a aproximadamente 29% da base de consumo. Os críticos dizem que isso aumentará a base de arrecadação em mais de 40%. Ou seja, a reforma quer matar a fome do leão e, não, adotar um sistema tributário mais equilibrado e justo. A CBS incidirá sobre a receita de venda de bens e serviço; igrejas, partidos políticos, sindicatos, fundações, entidades representativas de classe, serviços sociais autônomos, instituições de assistência social ficarão isentas. Em 2016, no Brasil, 48% da arrecadação incidiu sobre o consumo, contra 33% na média da OCDE, grupo que reúne as nações mais desenvolvidas do planeta, e 18% nos Estados Unidos. Em 2018, o PIS-Pasep e a Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins) arrecadaram R$ 310 bilhões, de um total de R$ 1,54 trilhão de provenientes de tributos federais.
Luiz Carlos Azedo: Estado de choque
“Guedes propõe solução simples para um problema complexo: mais um imposto. Como sabe que é isso, pode ser para criar um cavalo de batalha, justificar seu fracasso e deixar o cargo”
A ideologia de livre mercado do vienense Friedrich August Von Hayek, paradigma da política liberal conservadora do pós-guerra, foi historicamente associada às doutrinas de choque. Embora originárias das décadas de 1920/1930, suas ideias somente ganhariam força após a II Guerra Mundial. Esse caráter de “choque” foi resultado do envolvimento de Hayke com regime ditatoriais da América Latina, entre os quais a ditadura sanguinária do general Augusto Pinochet, no Chile. A doutrina de choque funciona como uma chantagem, porque as pessoas são persuadidas de que a única opção é aceitar o “mal menor” diante das crises, o que se traduz em soluções selvagens para a desregulamentação da economia e alienação patrimonial, assim como a naturalização do desemprego em massa e da chamada “destruição criativa”.
Obviamente, Hayke foi um crítico das teorias de John Maynard Keynes, o que dificultou muito sua vida no imediato pós-guerra, por causa do sucesso das políticas keynesianas nos Estados Unidos, depois da Grande Depressão de 1929, e na reconstrução da Europa Ocidental, com o Plano Marshall, no imediato pós-guerra. Entretanto, Hayke ganhou o prêmio Nobel de 1970 e conquistou corações e mentes dos dois principais líderes ocidentais da década seguinte, Ronald Reagan, presidente republicano dos Estados Unidos, e Margareth Thatcher, primeira-ministra conservadora do Reino Unido. Com isso, sua figura controversa deixou de ser associada aos ditadores latino-americanos e passou ser identificada com a bem-sucedida política “neoliberal” desses dois líderes.
Com o colapso da antiga União Soviética e do comunismo no Leste Europeu, o mundo ingressou num período de aparente unipolaridade, até a Rússia de Putin se reerguer como potência energética, a aliança franco-alemã se consolidar na Europa e a China, emergir como novo player da economia mundial, cujo eixo comercial se deslocou do Atlântico para o Pacífico. Simultaneamente, um filósofo norte-americano, John Rawls, que cresceu em Baltimore e havia servido no Pacífico — Nova Guiné, Filipinas e Japão —, durante a II Guerra Mundial, começou a ser muito discutido nos Estados Unidos, por causa de suas teses sobre a justiça, o direito dos povos e a equidade. Formado em Princeton, no começo dos anos 1950, estudou na Universidade de Oxford, no Reino Unido, onde conviveu com outro gigante do liberalismo, Isaiah Berlin.
Equidade
Justiça, equidade e desigualdades eram as principais preocupações de Rawls, que questionava a forma como os princípios de justiça se baseavam. Ele estava preocupado com a relação entre a política e as desigualdades, que ultrapassa os julgamentos morais individuais. Por essa razão, estabeleceu uma correlação entre os princípios da justiça e a forma como os sistemas educacional, sanitário, tributário e eleitoral funcionam. Crítico da guerra do Vietnã e simpático aos movimentos de direitos civis das minorias, concluiu que todos têm as mesmas demandas para as liberdades básicas e que as desigualdades sociais e econômicas deveriam ter um limite razoável, que fossem associados a cargos e posições acessíveis a qualquer um, de forma a que todos pudessem sobreviver com dignidade. Nesse aspecto, o Estado deveria ser garantidor da justiça com equidade. Suas palestras sobre o tema foram reunidas num livro por ele revisado em 2001: Justiça como equidade: uma reformulação (Martins Fontes), muito adotado nas escolas de direito no Brasil. Sua Teoria da Justiça era o livro de cabeceira do presidente Bill Clinton, do Partido Democrata.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, é um discípulo da Escola de Chicago, liderada por Milton Friedman, outro prêmio Nobel de Economia, de quem foi aluno e apadrinhado na ida para a equipe econômica do general Pinochet. A essência do seu pensamento se baseia na formação de preços, livre mercado e expectativas racionais dos agentes econômicos. Há um ano, o ministro anuncia uma reforma tributária, sem apresentá-la, enquanto o Congresso discute dois projetos, um no Senado, de autoria do ex-deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), e outro na Câmara, do deputado Baleia Rossi (MDB-SP), com base em estudos do economista Bernard Appy.
Como já vimos, é preciso compatibilizar nosso liberalismo com a justiça social. O que a pandemia escancarou foi o sucateamento da saúde e da educação e a brutal violência e iniquidade social nas favelas, periferias e grotões do país. Entretanto, agora, Guedes anuncia uma proposta de reforma tributária cujo eixo é a criação de imposto com tributação automática de operações digitais, para arrecadar mais de R$ 100 bilhões. Na prática, é uma exumação da antiga CPMF, que foi criada originalmente para viabilizar recursos para a Saúde.
O problema de Guedes é o crescimento da dívida pública por causa da pandemia, que deve elevar o deficit fiscal de R$ 134 bilhões para, aproximadamente, R$ 700 bilhões, o que inviabiliza as políticas de transferência de renda e pode provocar o colapso financeiro do governo federal, se não houver uma reforma administrativa e nova reforma previdenciária no próximo ano. Guedes propõe uma solução simples para um problema complexo: mais um imposto. Política de choque. Como sabe que é isso mesmo, pode ser, também, para criar um cavalo de batalha, justificar seu fracasso e deixar o cargo.
Luiz Carlos Azedo: Cai fora, cai fora!
“Passou da hora de o general Pazuello, interino na Saúde, voltar para o seu comando na 12ª Região Militar, que cuida dos suprimentos, embarcações e hospitais do Exército na Amazônia”
O pior acidente aéreo de todos os tempos aconteceu em 1977, na Ilha de Tenerife, na Espanha. No dia 27 de março daquele ano, uma bomba explodiu no aeroporto de Gran Canaria, umas das Ilhas Canárias, e todos os voos foram desviados para o aeroporto de Los Rodeos, na ilha de Tenerife. Por conta da confusão no controle de pousos e decolagens, dois Boeing 747, um da KLM Royal Dutch Airlines, holandesa, e outro da Pan América Word Airways, norte-americana, se chocaram próximo ao solo do aeroporto. Morreram 583 pessoas, 248 passageiros da KLM e 335 dos 396 passageiros da Pam Am, cujo copiloto sobreviveu. Da cabine de seu avião, enquanto taxiava para decolar, o comandante americano Victor Grubbs viu outra aeronave vindo em sua direção, acelerando para levantar voo, em meio às névoas que cobriam a pista. “Esse filho da mãe está vindo para cima da gente!”, disse. “Cai fora, cai foral!”, gritou Robert Bragg, o copiloto que escapou da tragédia, com mais 60 pessoas.
O Brasil registrou 1.261 mortes pela covid-19 nas últimas 24 horas, isso é mais do que dois acidentes de Tenerife juntos. Se formos considerar os acidentes ocorridos no Brasil, o número de mortos é seis vezes maior do que o da queda do Airbus A-320 da TAM em Congonhas, na noite chuvosa de 17 de julho de 2007. Vinda de Porto Alegre, a aeronave ultrapassou a pista principal do aeroporto durante o pouso, passou sobre a Avenida Washington Luís, colidiu com o prédio da TAM Express e explodiu, matando todos os 187 passageiros e tripulantes a bordo e mais 12 pessoas em solo. O total de 75.523 óbitos por coronavírus registrado na pandemia equivale a 403 acidentes de Congonhas, ou um avião caindo no Brasil a cada três dias, se considerarmos que a primeira morte ocorreu em 17 de março.
Esse tipo de comparação é um recurso jornalístico para evitar que as estatísticas sejam banalizadas em razão da frequência com que os fatos ocorrem. É o que está acontecendo com a pandemia de coronavírus, cujas mortes estão sendo naturalizadas pelo governo federal desde que o presidente Bolsonaro disse que “todos nós vamos morrer um dia”. Na ocasião, 25 de março, eram 139 mortes. Quando o Brasil passou a China, com 5 mil mortos, em 28 de abril, Bolsonaro disparou: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”. Agora, a média móvel de novas mortes no Brasil na última semana foi de 1.067 por dia, uma variação de 8% em relação aos óbitos registrados em 14 dias. Os últimos sete dias foram os mais letais no país. Com 39.705 casos registrados nas últimas 24 horas, chegamos a 1.970.909 de brasileiros infectados pelo novo coronavírus.
Desembarque
No Distrito Federal, no Paraná, em Santa Catarina, em Minas Gerais, em São Paulo, em Mato Grosso do Sul, em Mato Grosso, no Acre, em Rondônia, em Tocantins e no Piauí a pandemia continua seu avanço; o relaxamento do distanciamento social nesses estados está sendo desastroso, apesar de ter havido mais tempo para o sistema de saúde se preparar, o pessoal técnico ter mais conhecimento e experiência e os cuidados paliativos para reduzir o número de mortes também terem evoluído. O problema maior no combate à epidemia, porém, é que o Ministério da Saúde virou cabeça de camarão: não tem ministro, apesar dos elogios que o presidente Jair Bolsonaro faz ao general Eduardo Pazuello, que há 60 dias ocupa interinamente o cargo. “Predestinado” era o copiloto da Pam Am, que pulou da cabine do avião acidentado a quatro metros do solo, antes que ele explodisse, não Pazuello, como disse Bolsonaro.
Passou da hora de o general Pazuello voltar para o seu comando na 12ª Região Militar, na Amazônia, que cuida dos suprimentos, embarcações e hospitais do Exército no Pará, no Amazonas, no Acre, no Amapá, em Roraima e em Rondônia. Sua presença no ministério virou sinônimo de fracasso, porque o Sistema Único de Saúde (SUS) precisa de um líder, que coordene e oriente todos o pessoal da saúde pública no Brasil, como fazia o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, demitido por Bolsonaro no auge de seu prestígio. E também porque os dois meses de interinidade criam um problema para o próprio Exército, que mantém, interinamente, no comando da 12ª Região Militar, o coronel Luís Moisés de Oliveira Braga Otero.
Pazuello teve uma conversa amigável, por telefone, com o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), a propósito do contencioso provocado pelas declarações do magistrado sobre a presença do Exército no Ministério da Saúde. O imbróglio mostra que está tudo errado. O coronel Antônio Élcio Franco Filho, que anda com uma faca ensanguentada na lapela, é o secretário executivo do Ministério da Saúde. O secretário de Atenção Especializada à Saúde é Luiz Otávio Franco Duarte, outro coronel. O major Angelo Martins Denicoli ocupa o cargo diretor de monitoramento e avaliação do SUS, enquanto o tenente-coronel Reginaldo Machado Ramos comanda a Gestão Interfederativa e Participativa. Nenhum deles entende de saúde pública.
Luiz Carlos Azedo: Ora, o impeachment…
“O desgaste de Bolsonaro é mitigado pela estratégia de pôr os militares à frente da Saúde, e responsabilizar o Supremo, os governadores e os prefeitos pelo fracasso na pandemia”
Um expressivo grupo de artistas e intelectuais subscreve o pedido de impeachment do presidente Jair Bolsonaro encaminhado, ontem, ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), entre os quais o cantor e compositor Chico Buarque, o escritor Fernando Morais, as atrizes Lucélia Santos e Dira Paes, o ator Gregório Duvivier, o ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira e os comentaristas esportivos Juca Kfouri e Walter Casagrande, todos personalidades relevantes da esquerda brasileira. Com 133 páginas, os autores citam ataques contra a imprensa, direcionamento ideológico de recursos no audiovisual, más condutas na área ambiental e atuação falha do governo durante a epidemia da covid-19 como motivos suficientes para caracterizar crime de responsabilidade.
Não é o primeiro nem será o último pedido de impeachment, porque não há a menor possibilidade de Maia acolher a proposta e abrir o processo agora. Houve até um momento em que um amplo conjunto de forças cogitou afastar Bolsonaro da Presidência, diante da agressividade com que atacava os demais poderes e mobilizava seus partidários contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Mas não o suficiente para transformar essa ideia num fato político concreto, não havia nenhuma garantia de que a iniciativa seria uma solução para a crise institucional iminente; pelo contrário, a possibilidade maior era que legitimasse a retórica autoritária e golpista de Bolsonaro e seus partidários.
Em política, entretanto, tudo tem suas consequências. Descolada de uma conjuntura favorável, sem povo na rua, a proposta submete o presidente da Câmara a um desgaste desnecessário, ao engavetar ou arquivar o pedido, e expõe a fraqueza da oposição na Câmara. Além disso, partindo de setores que classificaram o impeachment de Dilma Rousseff como um “golpe de Estado”, deslegitima essa narrativa, porque o reconhece esse instituto como um mecanismo constitucional legítimo para afastar um presidente da República incapaz. Não existe impeachment legítimo de direita ou de esquerda, o crime de responsabilidade tem amplo espectro, e o impeachment é um julgamento político previsto na Constituição.
Para usar uma linguagem futebolística, a oposição perdeu o tempo da bola. Bolsonaro safou-se desse risco quando recuou da escalada contra o Supremo Tribunal Federal (STF). As investigações em curso na Corte sobre as ameaças aos seus ministros e ao próprio tribunal e sobre as fake news chegaram muito perto do gabinete do presidente da República, envolvendo seus familiares, assessores e aliados próximos. A prisão do seu amigo Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) na Assembleia Legislativa fluminense, teve um efeito catalisador no processo político: Bolsonaro foi obrigado a recuar; ao mesmo tempo, isso desanuviou o cenário adverso nos demais poderes.
Pandemia
Nesse processo, os militares do Palácio do Planalto conseguiram operar uma aliança com os partidos do Centrão, na base do velho toma lá, dá cá, que garantiu a Bolsonaro uma base parlamentar em condições de barrar qualquer proposta de impeachment. Os grandes partidos tradicionais — MDB, DEM e PSDB —, que não haviam aderido ao impeachment, se encarregaram de moderar o debate na Câmara e sepultaram de vez essa possibilidade a curto prazo. A estratégia desses partidos é manter a autonomia do Congresso e conviver com Bolsonaro, aos trancos e barrancos, até as eleições de 2022.
Só há uma variável que pode reacender a chama do impeachment antes disso: a pandemia da covid-19 sair completamente do controle, e o país o país entrar em colapso econômico. O Brasil, logo logo, ultrapassará 2 milhões de casos confirmados e 100 mil mortos. A média móvel de mortes continua num patamar acima de mil, e mais de 29 mil infectados por dia. É muita coisa. O relaxamento desordenado e descoordenado da política de distanciamento social ainda pode ser desastroso para os estados onde a epidemia estava entrando em descenso. O Distrito Federal e nove estados apresentaram alta de mortes: PR, RS, SC, MG, GO, MS, RO, TO e CE.
O desgaste de Bolsonaro, porém, está sendo mitigado pela estratégia de pôr os militares à frente do Ministério da Saúde, responsabilizar o Supremo, os governadores e os prefeitos pelo fracasso no combate à pandemia e naturalizar o número de mortes, banalizando o conceito de grupo de risco, idosos e portadores de comorbidades. De certa forma, a polêmica entre o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes e os militares da ativa, liderados pelo ministro da Defesa, general Fernando de Azevedo e Silva, traz no seu bojo essa questão.
O ministro põe o dedo na ferida ao afirmar que a presença de quase três dezenas de oficiais e um general da ativa no comando interino do Ministério da Saúde é uma extravagância administrativa. O uso do termo genocídio pelo ministro, porém, foi um exagero. A dura cobrança de retratação do vice-presidente Hamilton Mourão, ontem, refletiu o estado de ânimo da corporação, mas é chumbo trocado na política. Quem está nela não pode ter canela de vidro.