Revista online | Cinema e democracia
Lilia Lustosa*, crítica de cinema, especial para a revista Política Democrática online (51ª edição: janeiro de 2023)
A onda de filmes sobre a 1ª e a 2ª Guerras Mundiais que assola os streamings ultimamente é um fator a ser considerado. O historiador francês Marc Ferro já dizia que o cinema, por ser um testemunho singular de seu tempo, traz à tona elementos que viabilizam uma análise da sociedade em que está inserido, independentemente da vontade do diretor, do roteirista ou do produtor. Para Ferro, o documento fílmico “traz sem querer uma informação que vai contra as intenções daquele que filma, ou da firma que mandou filmar”. Ou seja, mesmo que não seja a intenção, determinados aspectos da sociedade vão emergir, aparecendo na tela em forma de “lapsos”.
Como se observa diariamente nos jornais e nas redes sociais, o mundo anda bem complicado ultimamente, e a América Latina não é exceção, parecendo até ter sido selecionada como um dos cenários preferidos para extremistas e fanáticos que colocam cotidianamente a democracia em xeque.
No nosso Brasil, os acontecimentos de 8 de janeiro, em Brasília, são um exemplo triste de que a ameaça é bem mais real do que se imaginava. Vidraças quebradas, obras de arte perfuradas e parte do nosso patrimônio dilapidado por vândalos alucinados não são obra de nenhuma ficção concorrendo ao Oscar deste ano. Infelizmente. São, na verdade, o retrato da mais pura (e feia) realidade.
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Dentro desse contexto, há vários filmes que refletem as angústias dos nossos tempos e que podem ajudar a entender que o caminho que estamos percorrendo precisa ser combatido já.
Nada de Novo no Front (2022), longa alemão que concorre ao Oscar de Melhor filme internacional neste ano, é um bom exemplo. O filme, que é baseado no livro homônimo de Erich Maria Remarque, de 1929, além de contar a história pelo lado do perdedor – coisa rara nos livros de História – não se furta a fazer uma mea culpa sobre as ações da Alemanha na 1ª Guerra, deixando bem claro, porém, que em uma guerra ninguém sai vencedor.
Argentina, 1985 (2022), de Santiago Mitre, que concorre ao Oscar na mesma categoria, surge, por sua vez, como uma espécie de luz no fim do túnel. Um banho de esperança, disfarçado de filme. Aliás, uma senhora aula de cinema político, tocando em pontos cruciais e doloridos da História, sem ter nem que recorrer à troca de nomes reais por fictícios. Filme sem medo!
Estrelado por Ricardo Darín no papel do promotor Júlio César Strassera, chefe do Ministério Público argentino, o longa reproduz com maestria um momento bastante tenso na história do país, logo após o fim da ditadura militar. Período em que o então presidente Raúl Alfonsín assinara um decreto que previa o julgamento dos militares implicados em crimes durante a ditadura, baseado no informe Nunca Más, documento escrito pela Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), que registrou a existência de mais de 340 centros clandestinos e mais de 9 mil desaparecidos no país.
O foco é então o Julgamento das Juntas Militares, ineditamente composto por um júri de civis. Para auxiliar Strassera nessa missão quase impossível, estava o jovem Luis Moreno O’Campo (Peter Lanzani), de família tradicional argentina, um dos poucos a ter coragem de se juntar ao promotor para enfrentar o rojão que viria pela frente. Com eles, havia ainda um grupo de jovens neófitos destemidos, dispostos a trabalhar noite e dia para fazer justiça.
Confira, a seguir, galeria:
Como é praxe no cinema argentino, Argentina, 1985 propõe uma reflexão sobre a história do país, espécie de autoanálise que surpreende por não se contentar em ficar na categoria de filmes de tribunal, centrado em cenas de julgamento e em eloquentes discursos enfeitados. O que Mitre constrói aqui é algo bem mais complexo. Uma obra que mistura História, suspense e até humor, sem nunca se deixar cair na armadilha do dramalhão regado a lágrimas e sofrimentos. Por meio de uma reconstituição histórica de alto nível e de uma recriação sublime dos anos 1980 – com belo design de produção e de figurino –, o diretor apresenta o passo a passo do julgamento de 1985, sem desconsiderar aspectos individuais e sentimentos dos personagens envolvidos.
Argentina, 1985 já levou alguns prêmios nesta temporada, entre eles o disputado Globo de Ouro de Melhor filme estrangeiro, seguindo ainda no páreo para o Oscar em março próximo. Um sinal de que, apesar do temor de que algo parecido com uma 3ª Guerra Mundial aconteça, os “lapsos” dos nossos tempos ainda indicam que a democracia é o melhor caminho.
Sobre a autora
* Lilia Lustosa é crítica de cinema, formada em publicidade, especialista em marketing, mestre e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidade de Lausanne, França.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de janeiro/2023 (51ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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Nas entrelinhas: Reeleição de Lira muda o foco político de Lula
Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense
Os 513 deputados federais eleitos em outubro do ano passado tomarão posse no próximo dia 1º, em sessão marcada para as 10h, no Plenário Ulysses Guimarães. No mesmo dia, às 16h30, começa a sessão destinada à eleição do novo presidente e da Mesa Diretora para o biênio 2023/2024. Haverá troca de posições na composição (11 cargos), mas não na Presidência, pois é praticamente certa a recondução do deputado Arthur Lira (PP-AL) ao comando da Câmara.
Ele tem o apoio de 19 partidos, que somam 489 deputados. Em 2021, numa disputa com o presidente do MDB, deputado Baleia Rossi (SP), foi eleito com 302 votos contra 145. No comando da Casa, consolidou seu poder quando o presidente Jair Bolsonaro, temendo um impeachment, decidiu entregar o Orçamento da União e a Casa Civil da Presidência ao PP. A abertura do processo de impeachment é um ato monocrático do presidente da Câmara e, quando isso ocorreu, virou um trem descarrilado nos governos Collor de Mello e Dilma Rousseff, que foram depostos constitucionalmente.
À época do acordo com o Centrão, o filho do presidente da República, senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), estava acossado pelas investigações do escândalo das rachadinhas na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e pelo envolvimento de um capitão da PM-RJ que fora seu assessor parlamentar no assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSol). Um vizinho miliciano de Bolsonaro, na Barra da Tijuca, no Rio, foi apontado como um dos executores. O governo também já estava mal das pernas, com grande perda de popularidade. Ou seja, as coisas estavam do jeito que o Centrão gosta.
Apesar de aliado de Bolsonaro, cuja reeleição apoiou, Lira prontamente reconheceu a vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Na primeira reunião entre ambos, o petista sinalizou que não interferiria nas eleições para a presidência da Câmara e do Senado. Foi uma declaração sensata e já esperada, mas a rapidez com que a bancada do PT decidiu apoiar a reeleição de Lira surpreendeu o próprio presidente da República.
A explicação veio na hora de cobrir o rombo no Orçamento de 2022, que Bolsonaro estourou durante a campanha eleitoral. Lira demonstrou pronto apoio à chamada PEC da Transição, que autorizava o governo a gastar aproximadamente R$ 170 bilhões fora do teto de gastos.
Lula poderia ter resolvido o problema da falta de recursos para o Bolsa família por medida provisória, no primeiro dia de governo, mas foi pressionado pela bancada do PT e os próprios aliados a apoiar a PEC e embutir no projeto o jabuti do pagamento das emendas parlamentares do chamado orçamento secreto de 2022, que não haviam sido executadas.
Petistas e aliados avaliaram que esse seria o primeiro passo para uma relação amigável com Lira, fundamental para a sustentação política do novo governo no Congresso. O Centrão é o fiel da balança da governabilidade de Lula. A recondução do deputado muda completamente o eixo político do governo, hoje focado na desmilitarização do Palácio do Planalto e dos ministérios, e na despolitização das Forças Armadas. O foco agora é o Congresso.
Guerra surda
O líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), também articula a reeleição de Lira. O PT terá a segunda maior bancada da Câmara, com 68 deputados. Com os partidos que compõem a Federação (PCdoB e PV), chega-se a 80 parlamentares, ficando atrás do PL, com 99, o partido de Bolsonaro.
Lira começou a agregar apoios em novembro de 2022. Além do PP e do PL, reuniu ainda o União Brasil, que terá a terceira maior bancada, Republicanos, Podemos, PSC e Mais Brasil (fusão PTB e Patriota), que formam o Centrão. PSD, MDB, PDT, PSDB, Cidadania, Solidariedade, Pros também aderiram. O PSol, na federação com a Rede, que soma 14 deputados, lançará a candidatura do deputado Chico Alencar (RJ), que está de volta à Câmara.
Há uma disputa surda por lugares na Mesa e nas Comissões, que são distribuídos de acordo com o tamanho das bancadas, mas podem ser disputados de forma avulsa. Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), aliado de Bolsonaro e presidente da bancada evangélica, pleiteia a primeira vice-presidência da Câmara. O PT quer a deputada Maria do Rosário (RS) na cobiçada primeira-secretaria.
Outra disputa importante é pela vaga aberta pela aposentadoria da ministra Ana Arraes, no Tribunal de Contas da União (TCU), cargo indicado pela Câmara. A escolha será em 2 de fevereiro. Lira trabalha para garantir a eleição de Jhonatan de Jesus (Republicanos—RR), de 39 anos, que vem a ser o responsável pela indicação dos últimos três diretores do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (Dsei-Y) e há uma série de denúncias do senador Telmário Mota (Pros-RR) que o envolvem.
O órgão é investigado pela Polícia Federal por fraude na compra de remédios, deixando pelo menos 10 mil crianças indígenas sem medicamentos. Uma operação da PF, realizada em novembro, cumpriu 10 mandados de busca e apreensão no órgão ligado ao Ministério da Saúde. A crise dos ianomâmis virou uma dor de cabeça para Jhonatan, que sonha com os 36 anos que poderia passar no TCU.
Também disputam a vaga Soraya Santos (PL-RJ), Hugo Leal (PSD-RJ) e Fábio Ramalho (MDB-MG). A todos Lira já prometera apoio.
Revista online | A natureza pede democracia
Habib Jorge Fraxe Neto*, consultor do Senado, especial para a revista Política Democrática online (51ª edição/janeiro de 2023)
A proteção e a conservação do meio ambiente vicejam melhor onde correm as águas da democracia, e o recente discurso de posse da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, indicou o curso dessas águas. Passados quatro anos desde que se iniciou o desmonte sistemático da governança ambiental, em 2019, a natureza – nós nela incluídos – respirou aliviada, como as seculares árvores amazônicas respiraram aliviadas quando dos empates vitoriosos de Chico Mendes e outros seringueiros. Desde então, o mundo mudou muito. Se naquele tempo eles se perfilavam no interior do Acre em torno das árvores para impedir seu corte, hoje se colocam contra o desmatamento de nossas florestas atores do porte da comunidade europeia e das empresas globais de seguros. O governo anterior não entendeu essa mudança.
Nos últimos quatro anos, nosso Sistema Nacional do Meio Ambiente foi colocado à prova, e quem acompanhou a passagem da boiada sabe que a precarização da governança ambiental foi tramada entre quatro paredes e de modo a ruir suas bases, convertendo o país de líder em pária da questão ambiental. Nada mais contrário à democracia, que exige a participação da sociedade civil, da ciência e do máximo de atores dedicados à causa do meio ambiente, dada a complexidade das soluções necessárias.
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O novo governo entendeu a gravidade do que foi executado. Estávamos indo na contramão da racionalidade científica e socioeconômica, e nossas políticas ambientais haviam sido colocadas a serviço do crime organizado, sobretudo na Amazônia Legal. As medidas até aqui anunciadas alinham-se com as mais modernas práticas em políticas públicas. E os tempos são outros, passados 20 anos desde o início do primeiro governo Lula, também com Marina na pasta ambiental.
Hoje até os então mais céticos concordam que a mudança do clima precisa ser enfrentada. Os mercados pressionam cada vez mais nesse sentido, considerando os imensos custos arcados pelas seguradoras globais (grandes conglomerados financeiros) devido a acidentes naturais associados a eventos climáticos extremos. Em nosso caso, cerca de dois terços das emissões de gases de efeito estufa associam-se ao desmatamento da vegetação nativa e a atividades agropecuárias. Absolutamente irracional foi descartar, como fez o governo derrotado, planos efetivos de combate ao desmatamento.
Marina e sua equipe precisarão reconstruir as políticas de controle do desmate, a exemplo do que fizeram de 2004 a 2012, quando as taxas de corte raso da Floresta Amazônica diminuíram 83%. O novo governo precisa ainda viabilizar, em especial na Amazônia, modelos socioeconômicos para a geração de renda que não dependam de atividades ilegais. A operação do Fundo Amazônia (que foi retomada no primeiro dia do novo governo, após quatro longos anos de paralisação) poderá contribuir de forma significativa para isso via pagamentos, inclusive internacionais, por resultados de desmatamento evitado.
Técnicas de agricultura de baixo carbono constituem outro pilar das políticas ambientais e, nesse campo, há imenso potencial para diminuir a vulnerabilidade dos sistemas agrícolas e, ao mesmo tempo, aumentar a renda dos produtores rurais. A transversalidade ministerial anunciada na posse da ministra Marina será fundamental para conciliar a dicotomia, equivocada em nosso entender, que classifica o setor rural como inimigo do meio ambiente. Um dos grandes gargalos é a precariedade nos incentivos, na produção de tecnologias e na assistência técnica para que o setor agrícola adote técnicas menos emissoras em carbono, que têm vantagem econômica e ambiental quando comparadas às da agricultura convencional.
Confira, a seguir, galeria:
Os desafios são imensos, diante do papel brasileiro de ser e continuar sendo uma potência ambiental, pela sua imensa riqueza natural, pela matriz energética forte em renováveis e, em especial, pelo gradual fortalecimento das instituições e movimentos sociais dedicados à proteção da natureza que se observou até 2018. E, ainda que o governo anterior tenha se dedicado ao desmonte, a sociedade civil e os servidores públicos da área ambiental fortaleceram resistências que agora serão de grande valor.
A reconstrução da governança ambiental é um grande desafio e exige o apoio de toda a sociedade. Além dos temas aqui apontados, há muitos outros de relevância social e econômica, como políticas de saneamento básico. Diversas pesquisas recentes apontam que, mesmo em uma sociedade ideologicamente dividida como a nossa, cerca de 80% dos brasileiros consideram a proteção ambiental uma prioridade. Poder público e setores econômicos devem nortear suas ações nesse rumo para assim fortalecer nossa democracia. A natureza agradece.
Sobre o autor
* Habib Jorge Fraxe Neto é consultor legislativo do Senado Federal, na área de meio ambiente.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de janeiro/2023 (51ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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Revista online | Yanomami: Crise humanitária deve ser resolvida de forma definitiva
Luciano Rezende*, ex-prefeito de Vitória (ES), especial para a revista Política Democrática online (51ª edição: janeiro de 2023)
A mais recente crise humanitária envolve os Yanomami, que vivem no norte da Amazônia, na fronteira Brasil-Venezuela. Esse povo constitui um conjunto cultural e linguístico composto de, pelo menos, quatro subgrupos adjacentes que falam línguas da mesma família (Yanomae, Yanõmami, Sanima e Ninam). A população total dos Yanomami, no Brasil e na Venezuela, era estimada em cerca de 35.000 pessoas em 2011.
As atividades do garimpo provocam conflitos violentos entre garimpeiros e os povos indígenas locais, levando a agressões e mortes.
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Além disso, as atividades do garimpo são extremamente perigosas para o meio ambiente devido ao uso de metais pesados que contaminam o solo e os rios, levando riscos graves à saúde dos povos expostos ao envenenamento do solo, da água e dos animais não só no local do garimpo, mas também longe do local da extração. É o que parece ser o motivo principal da agudização da grave crise humanitária atual com os Yanomamis.
A atividade garimpeira utiliza o mercúrio para possibilitar a amálgama com o ouro, de forma a recuperá-lo nas calhas de lavação do minério. Tanto o mercúrio metálico perdido durante o processo de amalgamação como o mercúrio vaporizado durante a queima da amálgama para a separação do ouro são altamente prejudiciais à vida.
Alguns insetos metabolizam o mercúrio metálico em dimetilmercúrio, o qual é altamente tóxico para os seres vivos. Como esses insetos fazem parte da cadeia alimentar, o mercúrio orgânico acaba por ser ingerido pelo ser humano.
O mercúrio vaporizado ao ser inalado também é altamente tóxico. O mercúrio atinge todo o sistema nervoso, podendo levar à perda da coordenação motora, e, se ingerido ou inalado por grávidas, haverá a possibilidade de geração de fetos deformados, sem cérebro, etc.[1]
Confira, a seguir, galeria:
É necessária uma ação imediata e permanente para restabelecer o equilíbrio nessas regiões. Legislação adequada, fiscalização, punição de criminosos e gestão cuidadosa dessa gravíssima crise é urgente.
Resolver a crise causada pelo garimpo ilegal é, na verdade, ir muito além da preservação do solo, dos rios, dos animais e do ser humano. É, também, cuidar da nossa rica diversidade étnica, além de respeitar e ser justo com os nossos povos originários, uma extraordinária riqueza que forjou a nossa própria identidade como povo e nação.
Sobre o autor
* Luciano Rezende é professor, médico, ex-prefeito de Vitória (ES) por dois mandatos (2013-2020) e presidente Conselho Curador FAP/Cidadania.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de janeiro/2023 (51ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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Líderes aplaudem a volta do Brasil à Celac, na abertura da cúpula da América Latina e Caribe
Brasil de Fato*
A abertura da 7ª Cúpula da Comunidade dos Estados da América Latina e do Caribe (Celac), em Buenos Aires nesta terça-feira (24), contou com um discurso do mandatário argentino Alberto Fernández, atual presidente temporário do bloco.
Além de elogiar a volta do Brasil à comunidade - abandonada pelo governo Bolsonaro -, ele criticou o avanço da ultra-direita contra as instituições democráticas em toda a região, os bloqueios contra Cuba e Venezuela e os efeitos econômicos e sanitários do mundo globalizado sobre os países latino-americanos e caribenhos.
Fernández adiantou que a presidência da Argentina será concluída hoje. O novo país nomeado para o comando temporário da Celac será conhecido após a plenária, que acontece de forma privada entre os chefes e representantes de Estados e, portanto, não será transmitida.
Ao iniciar sua fala, Fernández pediu um aplauso pelo retorno do Brasil. "Uma Celac sem o Brasil é uma Celac muito mais vazia. Por isso, sua presença hoje nos completa", comemorou o presidente argentino, e logo destacou alguns dos problemas do ano que coincidiu com sua presidência do bloco. "Passamos pela pandemia, pela guerra e com nossas economias em crise."
No primeiro ponto de sua fala, o presidente argentino destacou os efeitos desiguais sobre os países caribenhos em tempos de emergência climática. "Vivemos no continente mais desigual do mundo e devemos, de uma vez por todas, encarar um processo que nos leve à igualdade e à justiça social", disse Fernández. Nesse sentido, mencionou o Fundo de Assistência para o Caribe destinado ao enfrentamento das consequências das mudanças climáticas, que afetam especialmente essa região.
Em seguida, destacou o bloqueio econômico contra Cuba e Venezuela empregado pelos Estados Unidos, um tema que levou como presidente da Celac à Cúpula das Américas, em Los Angeles, no ano passado. "Os bloqueios são métodos muito perversos de sanção não aos governos, mas aos povos. Não podemos continuar permitindo isto", disse.
Neste sentido, ressaltou a necessidade de trabalhar regionalmente para garantir a institucionalidade dos países. "A democracia está definitivamente em risco. Depois da pandemia, vimos como setores da ultra-direita se colocaram de pé e estão ameaçando cada um de nossos povos. Não podemos permitir que essa direita recalcitrante e fascista coloque a institucionalidade dos nossos povos em risco", enfatizou.
Como exemplo, Fernández mencionou ainda os ataques bolsonaristas em Brasília, no último dia 8, a tentativa de assassinato da vice-presidenta argentina Cristina Kirchner e o golpe na Bolívia em 2019. Comemorou a vitória do retorno da democracia ao país e se dirigiu ao atual presidente, Luis Arce – a quem se referiu carinhosamente como "Lucho" Arce –, um dos mais de 15 mandatários presentes em Buenos Aires.
Além de Arce, participam pessoalmente da cúpula o presidente colombiano Gustavo Petro; Gabriel Boric, presidente do Chile; Xiomara Castro, presidenta de Honduras; Mario Abdo Benítez, presidente do Paraguai; Mia Mottley, de Barbados, Miguel Díaz-Canel, presidente de Cuba; e Luis Lacalle Pou, presidente do Uruguai, próximo destino do presidente Lula, quem também está presente na Celac em Buenos Aires.
Alberto Fernández defendeu o trabalho em união entre os países, para fazer efetiva essa integração tão mencionada durante a cúpula. "Vejo que se abre uma nova oportunidade. A Celac voltou, agora completa com o Brasil, e com uma oportunidade na região. O mundo mudou, e a pandemia evidenciou as carências do sistema econômico. Dez pessoas no mundo tem o patrimônio de 40% da humanidade. Na pandemia, 90% das vacinas eram destinadas centralmente a 10 países, que representa 10% da humanidade. Temos a oportunidade de desenvolvermos unidos. O que temos que fazer é aprofundar nosso diálogo e respeitar nossas diferenças", disse o mandatário.
Mencionou os acordos assinados com Lula no dia anterior como um exemplo do que deve acontecer nos próximos anos na região. "Avançamos na nossa relação bilateral entre Argentina e Brasil, e devemos avançar deste modo em todo o continente", disse. "Temos que transformar todas essas palavras em fatos, e fazer com que a integração seja uma realidade."
Logo, concluiu sua fala com o que pode ser interpretado como um recado para Lacalle Pou, que tem interesse em fechar acordos diretamente com a China, por fora do bloco do Mercosul. "Sozinhos, valemos pouco. Unidos, podemos ser muito fortes. Chegou o momento que o Caribe e a América Latina sejam uma só região que defenda os mesmos interesses para o progresso dos nossos povos."
Posteriormente, o chanceler argentino Santiago Cafiero enumerou os cinco eixos temáticos de ação que foram desenvolvidos entre os países da região durante a presidência pro tempore da Argentina em 2022. Os eixos destacados foram: a recuperação social econômica e produtiva pós-pandemia, com a implementação de um plano de autossuficiência sanitária de países da região; a ciência e tecnologia e a inovação para o desenvolvimento e a inclusão; a cooperação ambiental e a gestão de risco e desastres em um contexto de mudança climática; a cultura e a educação para os povos; e o empoderamento das mulheres e as ações em questões de gênero.
Em termos de agenda extrarregional, o chanceler destacou o vínculo regional com a China, a relação da Celac com a União Africana, com a Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean), a retomada da relação da Celac com a Índia e a confirmação de uma cúpula do bloco com a União Europeia. "Após 4 anos de silêncio, pudemos ativar o mecanismo Celac-UE, com uma agenda de trabalho consensuada durante o ano passado e que se concretizará com um encontro em meados do ano."
Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.
Nas entrelinhas: Não dá para não falar da Americanas
Luiz Carlos azedo/Correio Braziliense*
O que não falta é assunto sobre a política, principalmente para a oposição ao governo Lula, da extrema direita à chamada terceira via. Na Argentina, no encontro com o presidente Alberto Fernandes, seu aliado das horas mais difíceis, Lula anunciou a criação de uma moeda virtual do Mercosul e que retomará os empréstimos do BNDES aos países vizinhos. Logo circulou uma fake news de que seria criada uma moeda única entre os dois países. Na verdade, o que se discute é uma “moeda de reserva”, virtual, que facilite as relações comerciais entre os países do Mercosul, sem a necessidade de dólares. Mais ou menos como está em discussão entre os países do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Ou seja, não é verdade que o real será extinto.
Mas Lula saiu da frigideira para mergulhar na panela fervente da oposição ao anunciar que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) retomará os financiamentos aos países vizinhos, um prato cheio, uma vez que boa parte dos financiamentos anteriores aos hermanos foi destinada à infraestrutura, em troca de contratos para empresas brasileiras de construção, principalmente a Odebrecht. Nas investigações da Lava-Jato, a delação premiada de Marcelo Odebrecht atingiu nove ex-presidentes, entre os quais, seis peruanos, cuja crise política perdura até hoje.
No Brasil, a CPI do BNDES da Câmara pediu o indiciamento de mais de 50 pessoas, entre elas, os ex-ministros Guido Mantega e Antônio Palocci, o ex-presidente do BNDES Luciano Coutinho, diversos ex-diretores da instituição e empresários beneficiados com recursos do banco estatal, porém, nada foi provado contra o presidente Lula e a ex-presidente Dilma Rousseff. A integração da infraestrutura da América do Sul é necessária: o eixo do comércio mundial se deslocou do Atlântico para o Pacífico. O comércio exterior do Brasil só tem a ganhar, principalmente a exportação de manufaturados, se houver uma infraestrutura logística continental, integrada e moderna.
Este foi o recado de Lula ao destacar a importância da relação bilateral Brasil-Argentina, o nosso maior parceiro comercial na América Latina e o terceiro no mundo. “Argentina é o terceiro parceiro comercial do Brasil, só perde para a China e para os Estados Unidos, isso tem que ser valorizado, isso só pode ser valorizado, não por conta dos presidentes, mas por conta dos empresários, são vocês que sabem fazer negócio, são vocês que sabem negociar”, disse.
Outro assunto importante foram as denúncias da Procuradoria-Geral da República contra os envolvidos nos atos de vandalismo de 8 de janeiro, com três novos inquéritos. A turma do deixa disso, com certa razão, está preocupada com o clima de ajuste de contas existente em Brasília, que mira os que invadiram o Palácio do Planalto, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, sobretudo os organizadores, os financiadores e as autoridades que se omitiram durante a crise, inclusive militares. O ex-ministro da Justiça Anderson Torres, que está preso, por hora afasta a possibilidade de uma delação premiada. Não tem a menor chance de se safar só no gogó. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes já avisou que não vai refrescar ninguém com culpa comprovada. Mais de mil pessoas continuam presas.
Risco financeiro
Tem ainda a questão militar. Lula afastou a ameaça de golpe e rechaçou a tutela fardada, ao demitir o comandante do Exército, no sábado. Indicou para o cargo o comandante militar do Sudeste, general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, defensor do respeito à democracia e ao resultado das eleições. O estresse militar agora se restringe à necessária punição dos oficiais que efetivamente se omitiram ou eventualmente colaboraram com a invasão e depredação do Palácio do Planalto, a começar pelo comandante da Guarda Presidencial.
O general Arruda ocupava o cargo interinamente desde 30 de dezembro do ano passado, após um acordo entre a equipe de transição e o antigo governo. Ele estava à frente do Exército durante os ataques às sedes dos três Poderes na capital federal e teria impedido, pessoalmente, a prisão dos extremistas que voltaram ao acampamento em frente ao QG do Exército após os ataques.
E a Americanas? É o assunto econômico deste começo de 2023 e não tem nada a ver com os planos do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para a economia. A dívida da Americanas chega a R$ 43 bilhões, bem maior que os R$ 20 bilhões anunciados inicialmente. A empresa deve a 16 mil credores, entre empresas, bancos e pessoas físicas. Três acionistas, com 30% das ações, estão em maus lençóis: Carlos Alberto Sicupira, Jorge Paulo Lemann e Marcel Telles, que estão entre os homens mais ricos do mundo, segundo a Forbes. Eram símbolos de modernidade e competência; agora, estão enrascados numa “contabilidade criativa”.
A empresa já está em processo de recuperação judicial, após a Justiça acatar o pedido, na última quinta-feira. As lojas continuam abertas. Os três empresários ofereceram R$ 6 bilhões para reforçar a empresa, mas os bancos queriam pelo menos R$ 10 bilhões para começar a conversar. No total, 140 mil investidores estão no sal. O Black Rock, o maior fundo de pensão do mundo, é o mais atingido. Puket, Natural da Terra e Hortifruti, além de metade das lojas de conveniência do BR Mania, pertencem à Americanas. O mercado resolve isso, mas logo logo vão querer uma mãozinha do governo.
PT aciona MPF contra Bolsonaro e Damares por suspeita de genocídio contra povo Yanomami
Brasil de Fato*
Neste domingo (22), deputados federais do PT protocolaram uma representação contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e a senadora eleita Damares Alves (Republicanos-DF), ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, na Procuradoria-Geral da República (PGR) por suspeita de crime de genocídio contra os povos Yanomami.
Para os parlamentares, houve "ação" ou "omissão dolosa" do ex-presidente, da ex-ministra e dos ex-presidentes da Fundação Nacional do Índio (Funai) – aos quais a representação também se estendeu – diante da destruição das áreas dos indígenas a partir de garimpo ilegal (leia aqui a íntegra do documento).
"Essa política de extermínio dos povos Yanomami e de outras comunidades indígenas, conduzida com galhardia e prazer pelo ex-presidente da República, já vinha sendo denunciada no país e no exterior, tendo sido inclusive, recentemente, objeto de documentário produzido por pesquisadores estrangeiros", diz um trecho da representação.
O Ministério da Saúde fala em aproximadamente 570 crianças mortas por contaminação de mercúrio, um dos rejeitos produzidos pelo garimpo, desnutrição e fome.
Na sexta-feira (20), o Ministério da Saúde decretou estado de emergência para "planejar, organizar, coordenar e controlar as medidas a serem empregadas" a fim de reverter o quadro de desassistência instalado na TI Yanomami.
Também foi instalado o Comitê de Coordenação Nacional para Enfrentamento à Desassistência Sanitária das Populações em Território Yanomami "para dar conta do problema de desnutrição, fome, saúde, muito grave nessa região", segundo o ministro Wellington Dias. O comitê terá duração de 90 dias e suporte das Forças Armadas e da Funai.
Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.
Morte de yanomami: garimpo é principal causa da crise e governo Bolsonaro foi omisso, diz ministra da Saúde
BBC News Brasil*
"Houve omissão em relação aos yanomami e outros povos", disse a ministra durante breve entrevista à BBC News Brasil, em Buenos Aires, capital da Argentina. Trindade acompanha a comitiva do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que está no país para uma visita ao presidente argentino, Alberto Fernández, e para participar de VII Cúpula dos Chefes de Estado da Comunidade Estados Latinoamericanos e Caribenhos (Celac).
Na entrevista, Trindade disse que os yanomamis estão em situação de desassistência e que o garimpo ilegal de ouro na região é a principal causa da crise de saúde que afeta a etnia que, no Brasil, vive entre os estados do Amazonas e de Roraima.
No sábado (21/1), Lula e sua equipe foram a Roraima após fotos de indígenas visivelmente subnutridos viralizarem na internet.
Assim como Lula, Nísia Trindade também classificou a situação dos yanomami como um tipo de genocídio. O termo foi usado por Lula ao se referir ao caso no final de semana.
"Eu vejo o abandono como uma forma de genocídio e essa população estava desassistida. O genocídio também pode ocorrer por omissão", afirmou.
Na entrevista, Nísia Trindade também afirmou que o debate para flexibilizar as regras para o aborto legalizado não será política do atual governo.
"Esse debate só pode acontecer no âmbito da sociedade. Não será uma política do Ministério da Saúde", disse a ministra.
Atualmente, o aborto só é permitido no Brasil em três circunstâncias: em caso de estupro; quando a gestação oferece risco à saúde da mulher; e nos casos de fetos anencefálicos.
Confira os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil - O governo decretou situação de emergência em saúde por conta da situação dos indígenas yanomami. Que medidas concretas serão tomadas a partir de agora?
Nísia Trindade - Essas medidas de emergência sanitária são adotadas em situação de calamidade por questões de saúde, seja uma epidemia ou por uma situação de um desastre natural . Neste caso, nós caracterizamos esse episódio como uma situação de desassistência. Isso significa que essa população está sem o devido cuidado por parte do Sistema Único de Saúde (SUS) e isso acontece por várias questões. Grande parte da razão por tudo isso está na desorganização social provocada pela atividade do garimpo ilegal. Essa atividade gera contaminação dos rios e cria escavações que geram depósitos de água em que há proliferação de mosquitos. Com isso, há um aumento muito grande nos casos de malária.
BBC News Brasil - A situação dos yanomami já vinha crítica. Como ela virou uma crise para o governo?
Trindade - Pelo menos desde a transição de governo, eu já vinha acompanhando esses sinais. Nós tivemos uma reunião com lideranças yanomami e com lideranças políticas. Nos foi colocada, também, uma questão sobre a possibilidade de desvio de medicamentos. Mas o grande detonador foi verificar a morte das crianças. Tive vários apelos, antes mesmo de assumir o ministério, para tentar ver a situação do transporte aéreo [para remover pacientes a áreas com melhor infraestrutura de saúde]. Havia crianças que estavam em condições de muita fragilidade e que não conseguiam atendimento apropriado.
BBC News Brasil - Para o governo é claro que a causa dessa crise é o garimpo?
Trindade - Eu posso afirmar que sim, como em todo processo de causalidade, este é um fenômeno multicausal. Então nós precisamos dar mais assistência. Assumi há 21 dias e encontrei o funcionamento da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) muito pouco voltada para essas ações. Um exemplo é a casa que dá acolhimento aos indígenas em Boa Vista. Ficou evidente que ela está em más condições. O garimpo causa essa desorganização social e gerou problemas de segurança, dificultando o acesso das nossas equipes de saúde às regiões em que há doentes.
BBC News Brasil - O ex-presidente Jair Bolsonaro rebateu as críticas que vinha recebendo sobre a saúde dos yanomami e classificou o caso como uma "farsa da esquerda". Como a senhora responde a essa alegação?
Trindade - A crise é evidente. É uma crise sobre a qual estamos fazendo um diagnóstico profundo, mas ela se revela em números, 500 crianças mortas. Por isso falamos de desassistência. Isso não é farsa. Isso são fatos.
BBC News Brasil - Na sua avaliação, houve omissão do governo passado em relação aos yanomami?
Trindade - Houve omissão em relação aos yanomami e a outros povos indígenas. Tanto é assim que, ainda como presidente da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), eu pude acompanhar uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) que apontou muitas falhas na proteção dos indígenas. Isso aconteceu não só com os yanomami, mas em outros povos e em relação à covid-19.
BBC News Brasil - O presidente Lula descreveu a situação de saúde dos yanomami como um "genocídio". A senhora acha que é caso de um genocídio?
Trindade - Eu vejo o abandono como uma forma de genocídio e essa população estava desassistida. O genocídio também pode ocorrer por omissão.
BBC News Brasil - Mudando de assunto, a senhora revogou uma portaria que alterou regra sobre os procedimentos para obtenção da interrupção de gravidez. Esse é um ponto muito sensível para a bancada evangélica. O governo teme retaliação por conta desse tipo de medida?
Trindade - Não há motivo para termos retaliação. Acho que uma retaliação em relação ao que eu fiz no Ministério da Saúde e ao que o governo do presidente Lula fez só ocorreria por uma falta de compreensão ou por uma visão distorcida dos fatos. O que nós fizemos foi respeitar o que a lei brasileira já define. Não há nenhuma flexibilização da legislação sobre o aborto. O que nós fizemos? Nós só alteramos a portaria que estava em vigor e que determinava que o médico teria que comunicar à autoridade policial a existência de uma busca pelo aborto por parte de uma mulher vítima de violência no Brasil.
BBC News Brasil - Parte do segmento evangélico afirma que, de alguma forma, a retirada dessa obrigação facilitaria o acesso ao aborto.
Trindade - Esse argumento é uma forma de não ver uma questão que é essencial: muitas vezes, as mulheres não fazem a denúncia porque é uma questão muito complexa para todas as pessoas, independentemente da religião. Muitas vezes, essa violência (sexual) é cometida no núcleo familiar. Isso cria uma dificuldade maior para essa mulher ou para essa menina e seus familiares. O que nós estamos fazendo é proteger a mulher, a menina e o próprio profissional de saúde.
BBC News Brasil - O atual governo foi e é apoiado por diversos movimentos que defendem uma ampliação das regras para o aborto. Nesta gestão, o Brasil vai caminhar para a flexibilização das condições em que o aborto é permitido?
Trindade - Esse debate só pode acontecer no âmbito da sociedade. Ele não será uma política do Ministério da Saúde. É um debate da sociedade, o Poder Legislativo. Não está definido no programa de governo do presidente Lula e os ministérios seguem esse programa.
BBC News Brasil - A senhora acha que a sociedade tem que debater este assunto?
Trindade - Eu acho que é um assunto que já está em debate. O que precisamos: dar espaço para as vozes em relação a esse tema; esclarecer; olhar pelo ângulo da saúde pública e; a sociedade tem que tomar suas definições. Sempre temos dito que a questão dos direitos reprodutivos e sexuais vai muito além da questão do aborto. Significa olhar para a saúde integral da mulher, protegê-la contra as violências, favorecê-la com projetos educacionais, etc.
Texto publicado originalmente na BBC News Brasil.
Revista online | No ataque à democracia, cultura também é alvo da fúria bolsonarista
Henrique Brandão*, jornalista, especial para a revista Política Democrática online (51ª edição: janeiro/2023)
O dia 8 de janeiro se prenunciava um domingo tranquilo, o primeiro depois da emocionante, e carregada de simbolismo, posse de Lula. No entanto, pouco antes das 15 horas, uma horda de militantes de extrema direita, que havia saído do acampamento em frente ao Quartel General (QG) do Exército em Brasília, invadiu a Praça do Três Poderes e promoveu a mais perigosa e explícita tentativa de tomada do poder fora do marco constitucional estabelecido pela Constituição de 1988.
As palavras de ordens proferidas, a não aceitação do resultado da eleição, o pedido de estabelecimento de um governo militar-fascista, deixavam claras as intenções dos mais de 4.000 golpistas que se dirigiam ao coração da República, dispostos a vandalizar e quebrar tudo ao seu alcance.
Estava óbvio, conforme as imagens de TV eram transmitidas para o mundo inteiro, que o objetivo era criar o caos e gerar o terror. Não era, nunca foi, uma manifestação com intenções políticas pacíficas, como algumas lideranças da direita tentaram caracterizar o quebra-quebra instaurado nos prédios – e em seu entorno – que foram alvos dos ataques que os vandalizaram.
As invasões e depredações tinham alvos muito bem definidos. Não à toa, os prédios visados abrigam as sedes dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Essa separação entre os poderes, cada qual com suas atribuições, é a base da doutrina constitucional liberal na qual se assentam, hoje em dia, as nações do mundo Ocidental, inspirada na obra o Espírito das Leis (1748), de Montesquieu (1689-1755) e adotada pela primeira vez na Revolução Francesa (1789-99), que marcou o fim do Absolutismo na França.
As cenas registradas pelas emissoras de TV, pelas câmeras dos profissionais de imprensa (muitos foram agredidos e tiveram os equipamentos roubados), nos circuitos internos de segurança dos prédios invadidos e até pelos próprios manifestantes são lamentáveis.
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Chamou a atenção, no rescaldo dos escombros, a depredação de obras de arte expostas nesses palácios. Quase nenhuma passou incólume pela cólera dos invasores. A cena de um bárbaro jogando ao chão um relógio de Balthazar Martino, do Século XVII, trazido ao Brasil em 1808 por Dom João VI, é estarrecedora.
Outro invasor, em fúria, fez sete rasgos na tela As Mulatas (1962), de Di Cavalcanti (1897-1976), principal peça do Salão Nobre do Palácio do Planalto. A tela retrata bem a produção de Di Cavalcanti e traz em sua composição tema recorrente do grande pintor e desenhista, que tem a obra marcada por retratar personagens e figuras icônicas do povo brasileiro.
A escultura de Frans Krajcberg (1921-2017) Galhos e sombras também foi quebrada em diversos pontos. A obra se utiliza de galhos de madeira oriundos de queimadas, colhidos na Mata Atlântica, no Sul da Bahia. Outra escultura, O Flautista, de Bruno Giorgi (1905-1993), foi destruída.
Na Câmara dos Deputados, o alvo foi a linda estátua de Victor Brecheret (1894-1955), A Bailarina, produzida nos anos de 1920, que foi arrancada de seu pedestal.
No STF, vandalizaram o famoso monumento de Alfredo Ceschiatti (1918-1989), localizado em frente ao prédio do Poder Judiciário e que, ao longo do tempo, se transformou em um dos emblemas mais conhecidos de Brasília, por representar a imparcialidade da Justiça.
Não chega a ser surpresa a destruição de símbolos da cultura brasileira pela manada bolsonarista. Durante os quatro anos de seu nefasto reinado, o que imperou na área da cultura foi a tentativa de aniquilamento total do setor. A começar pelo chefe supremo da tropa, que acabou com o Ministério da Cultura (MinC), transformando-o em um apêndice inútil do Ministério do Turismo.
O secretário de Cultura de Bolsonaro no início de 2020, Roberto Alvim, personificou o modo de agir da extrema direita. Em vídeo nas redes sociais, imitou Goebbles, o ministro da Propaganda de Hitler, a quem é atribuída a célebre frase: “Quando ouço falar em cultura, saco o meu revólver”. Acabou demitido, por pressão da opinião pública.
Confira, a seguir, galeria:
Modernismo e nazismo jamais se bicaram. Basta se lembrar da exposição Arte Degenerada (Entartete Kunst), promovida pelo regime nazista, em 1937. A exposição reuniu obras modernistas dos acervos de museus alemães e marcou o ápice da campanha do regime nazista contra a arte moderna, considerada artisticamente indesejável e moralmente prejudicial.
Não é mera coincidência, portanto, que a maioria das obras avariadas no putsch da extrema direita seja de artistas que participaram do modernismo brasileiro, em todas as suas formas de expressão, presentes nos prédios dos Três Poderes, a começar pela arquitetura, imortalizada no traço de Oscar Niemeyer, que sempre chamou artistas contemporâneos para compartilhar os espaços públicos com obras de suas lavras. Athos Bulcão, parceiro constante de Niemeyer, foi outro que teve obras vandalizadas. Esse atentado é também uma agressão à cultura brasileira. Tudo presente naqueles prédios públicos pertence ao povo brasileiro.
Que todos os envolvidos, no rigor da lei, sejam punidos, sem exceções. Os bagrinhos, os financiadores, os incentivadores e ideólogos da invasão. Civis, ricos ou pobres. Militares, de alta ou baixa patente.
A democracia sairá fortalecida. É o que espera o povo brasileiro.
Sobre o autor
*Henrique Brandão é jornalista.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de janeiro/2023 (51ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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Para erradicar pobreza é preciso trocar caridade por direitos, diz relator especial
ONU News*
O relator especial sobre pobreza extrema e direitos humanos* das Nações Unidas, Olivier de Schutter, acredita que viver na pobreza inclui várias dimensões muitas vezes ignoradas em debates mais amplos.
Numa entrevista à ONU News Francês, ele abordou o significado de ser pobre e algumas formas de erradicação da pobreza.
Cuidados de saúde e educação
Para de Schutter, ser pobre não é apenas ter pouca renda e falta de acesso a um trabalho digno, mas também sobre sofrer humilhação, maus tratos sociais e institucionais por parte dos serviços do Estado e de administrações públicas.
Segundo o relator, as pessoas em situação de pobreza destacam suas experiências com estigma, discriminação no acesso ao emprego, habitação, cuidados de saúde e educação.
Ele acredita que para erradicar a pobreza é preciso “uma sociedade mais inclusiva, que troque caridade por direitos.”
Olivier de Schutter conta que, em muitos países, o apoio aos pobres assume a forma de sistemas de transferência de dinheiro, proporcionando às pessoas algum nível de suporte para evitar que caiam na pobreza extrema.
Orçamentos insuficientes
Mas são soluções temporárias, que não fornecem às pessoas direitos que possam reivindicar perante instituições independentes e são mal financiados. Segundo ele, normalmente os orçamentos disponíveis não cobrem as necessidades de toda a população.
Olivier de Schutter acrescenta que muitas pessoas que vivem em situação de extrema pobreza, de fato, não têm acesso à proteção social porque enfrentam uma série de obstáculos, como não estarem cadastradas, não serem informadas sobre seus direitos ou não conseguirem preencher formulários online.
Para ele, o resultado é que essas medidas não beneficiam aos que deveriam ser amparados pela proteção social.
Estereótipos negativos
O especialista ressalta ainda que a pobreza deve ser vista como uma violação dos direitos humanos, e os pobres devem ter acesso a mecanismos de recursos se forem excluídos da moradia, da educação, do acesso a empregos ou mesmo da proteção social.
Em seu mais recente relatório, apresentado à Assembleia Geral da ONU em 28 de outubro, ele destaca formas de como proteger as pessoas em situação de pobreza desses estereótipos negativos.
De Schutter disse que, juntamente com a Organização Internacional do Trabalho, OIT, foi proposto um novo mecanismo de financiamento internacional, o Fundo Global de Proteção Social e a Conferência Internacional do Trabalho.
Mobilização de recursos
A ideia é que os países se comprometam a estabelecer pisos de proteção social, protegendo as suas populações dos riscos da existência, desde o nascimento até à morte, desde os abonos de família e maternidade até à aposentadoria, por idade, e incluindo subsídios de desemprego, de doença e assim por diante.
Para ele, com apoio internacional e a mobilização de recursos domésticos esses países devem conseguir implementar o desenvolvimento sustentável.
Objetivo de Desenvolvimento Sustentável número 1
Perguntado sobre se é possível erradicar a pobreza até 2030, o relator disse acreditar que, se a meta não for alcançada, será possível sim reduzir significativamente a pobreza chegando próximo a esse objetivo.
De Schutter acredita que a falta de otimismo se deve à crise alimentar e energética e a alta do custo de vida que afetam todos os países.
Ele acrescenta que como consequência da pandemia de Covid-19, a última estimativa é que o número de pessoas em extrema pobreza aumentará, talvez, 95 milhões em comparação com as previsões de 2019.
Mas a crise alimentar e energética levou governos a amparar suas populações através da proteção social.
Olivier de Schutter conclui que esta é uma oportunidade que pode ser aproveitada, se houver o financiamento certo e uma abordagem baseada em direitos para a proteção social.
*Os relatores de direitos humanos são independentes das Nações Unidas e não recebem salário pelo seu trabalho.
Texto publicado originalmente no portal ONU News.
Nas entrelinhas: A invenção do malandro e as milícias
Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense
Entre os anos de 1852 e 1853, Manoel Antônio de Almeida publicou folhetins que se tornariam, mais tarde, a obra Memórias de um sargento de milícias, um clássico do nosso romantismo. Órfão de pai aos 11 anos, era filho de portugueses: o tenente Antônio de Almeida e Josefina Maria de Almeida. Sua infância muito carente o fez cronista da baixa classe média carioca. Jornalista e escritor, com muitas dificuldades financeiras formou-se em medicina, em 1855, mas nunca exerceu a profissão. Morreu aos 31 anos, no naufrágio do navio Hermes, em 1861. Escreveu apenas mais um livro, Dois amores, além de ensaios, contos e poesias.
Ao ignorar a classe média alta e o maniqueísmo elitista com que era retratada à época, Manoel Antônio de Almeida descreveu a vida real do povo e a figura do malandro — pobre, sem ideal, vivendo da sorte e de oportunidades que surgiam. O cenário do romance é o Rio de Janeiro da corte de Dom João VI, que permaneceu no Brasil de 1808 a 1821. O grande protagonista da história é um anti-herói, Leonardo, filho de imigrantes portugueses — Leonardo Pataca e Maria da Hortaliça —, que se conheceram no navio que os trouxe ao Brasil “após uma pisadela e um beliscão”.
Flagrada pelo marido em traição, Maria das Hortaliças foge de casa; Leonardo Pataca abandona o pequeno Leonardo, que é criado pelo padrinho, um barbeiro, e sua madrinha, uma parteira que adorava missas. Transgressor, Leonardo é protegido por D. Maria, uma velha rica, tia de Luisinha, que deixa de ser sua paixão quando surge a bela mulata Vidinha, cujos primos arranjam uma forma de Leonardo ser preso pelo major Vidigal, mas ele consegue escapar.
O major jura prender Leonardo por malandragem, mas a madrinha consegue um emprego para Leonardo na ucharia-real, emprego que ele logo perderia por ter tido um flerte com uma das criadas do rei. Leonardo acaba preso por Vidigal, que fará dele, porém, um granadeiro de sua patrulha. Mesmo como soldado, Leonardo não deixa suas malandragens e acaba pregando uma peça em seu superior, o que lhe levará à nova prisão, de onde só sairá com nova intervenção de sua madrinha, Dona Maria, e de Maria Regalada, que era um antigo amor de Vidigal. Livre, por influência de ambas, Leonardo torna-se sargento da companhia de granadeiros. Como sargentos da ativa não podiam se casar, Leonardo recebe o título de sargento de milícias e casa-se com Luisinha, a sobrinha de D. Maria, que havia ficado viúva.
Manoel Antônio de Almeida descreve a invenção da malandragem. Na visão do antropólogo Roberto Da Matta, o Brasil urbano é carnavalesco (“não tem conserto”; “ninguém quer trabalhar”, “deixa tudo para amanhã”); autoritário, da regulamentação, do cartório e do arbítrio; e místico, do “outro mundo”, do “carma”, da “reencarnação”, do sobrenatural. De um lado, o Estado-nação, com território, bandeira, moeda, Constituição; de outro, a sociedade sem valores, com seus mitos e rituais.
Desarmamento
Muito do que estamos vivendo na atual conjuntura política tem raízes antropológicas. É o caso das milícias, que nunca tiveram uma relação tão promíscua com os órgãos de coerção do Estado como no governo de Jair Bolsonaro. Esse é um problema muito sério, inclusive em decorrência da politização das Forças Armadas e de uma militância política bolsonarista armada até os dentes, que já começa a se arreganhar contra o governo Lula, com caraterísticas de uma milícia fascista. Segundo os repórteres Bruna Yamaguti e Leonardo Cavalcanti, do SBTNews, o governo Bolsonaro, somente no período de janeiro de 2019 a dezembro de 2022, liberou 1.100 armas por dia para o cidadão comum.
No total, 1,6 milhão de armas foram autorizadas pelo Exército e pela Polícia Federal. O aumento, se comparado aos quatro anos anteriores — das gestões de Dilma Rousseff e Michel Temer — foi de 88% (847 mil). O Exército, por meio do Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), liberou 904.854 armas em quatro anos. Já a Polícia Federal permitiu o registro e o porte de mais de 700 mil na gestão Bolsonaro, que operou uma estratégia para armar a população.
No governo Bolsonaro, mais de 40 decretos, portarias, instruções normativas e resoluções da Câmara de Comércio Exterior flexibilizaram o Estatuto do Desarmamento, de 2003. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um decreto que reduz o acesso a armas e munições e suspende o registro de novas armas de uso restrito de caçadores, atiradores e colecionadores (CACs). Também suspendeu as autorizações de novos clubes de tiro até a divulgação de uma nova regulamentação. Entretanto, a pasta está fora do tubo.
Entre as restrições estabelecidas estão a proibição do transporte de arma municiada, a prática de tiro desportivo por menores de 18 anos e a redução de seis para três a quantidade de armas a que cada cidadão comum tem direito. O novo governo também condiciona a autorização de porte de arma à comprovação da necessidade. Além disso, todas as armas compradas desde maio de 2019 devem ser recadastradas pelos proprietários em até 60 dias. Para reverter esse quadro, será preciso mexer no Estatuto do Desarmamento e reafirmar o monopólio do Estado sobre o uso da força, o que pressupõe apartar as Forças Armadas da política e restabelecer a plenitude da hierarquia e da disciplina.
WikiFavelas: um caminho para reconstruir o Brasil
Outras Palavras*
Encerramos a coluna do Dicionário de Favelas Marielle Franco no Outras Palavras em 2022 com esperança. O nosso texto falava sobre as dificuldades de aquilombar a política no Brasil, num cenário de sub-representação de pessoas negras, pobres e faveladas nos espaços da política institucional. Mas, apesar de enormes dificuldades, o primeiro domingo do ano nos abriu oportunidades: o povo brasileiro subiu a rampa do Palácio do Planalto em toda a sua diversidade. Teremos indígenas, mulheres negras, faveladas, pessoas com deficiência, trabalhadores e trabalhadoras, sem-teto, sem-terra e tantos outros setores estratégicos na refundação do Brasil.
Os ares que sopram nos abrem caminhos para uma discussão profunda, aliada aos importantes movimentos sociais insurgentes, sobre democracia e direitos humanos no Brasil. Silvio Almeida, nomeado ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, ao tomar posse reforça o reconhecimento e a dignidade que deverá ser a principal ação do atual governo para a garantia de direitos de tantos corpos marcados pela discriminação e pela exclusão na sociedade brasileira. Por mais que muitos e muitas tentem vilipendiar o sentido dos direitos humanos e limitar o acesso à dignidade, a cada dia fica comprovado que sem um sistema de garantia de direitos fundamentais para todas as pessoas, não conseguiremos avançar como sociedade. Num período histórico de intensa polarização, que, como vimos, não se esgotou com o fim das eleições presidenciais de 2022, tem-se disputado também o sentido dos direitos humanos. E precisamos utilizar desse espaço para posicionar os setores progressistas e de esquerda na consolidação dos direitos. Sem anistia! – é o clamor da sociedade!
O segundo domingo do ano nos deu muitos recados. Diante de ameaças (falidas) de golpe de Estado, uma malta fascista tomou a Praça dos Três Poderes, em Brasília, para destruí-la. Flávio Dino, Ministro de Justiça e Segurança Pública, buscou nas forças de segurança formas de conter os terroristas, porém as polícias, sob o comando do governador do Distrito Federal, cooperaram na invasão e se mantiveram dispostas a servir de base para o que há de pior no Brasil: o racismo e as violações de direitos humanos. Em seu histórico de violências em todo território nacional, percebemos que o Estado é forte quando impõe seu braço armado contra populações pobres e negras, por exemplo, na promoção constante e institucionalizada de chacinas policiais em favelas e periferias do Rio de Janeiro. A identificação de “bandido”, portanto, não reconhece homens brancos de meia idade vestidos com o uniforme da CBF quebrando vidraças e destruindo obras de arte. Caso o comando seja identificar criminosos que atentem contra a democracia, os policiais não sabem para quem olhar, já que terão que olhar também para si mesmos.
Como discute Luiz Eduardo Soares em artigo recente neste mesmo site, a infiltração contagiosa do fascismo nas polícias não é novidade, tem história e sua erradicação passará por mudanças institucionais e culturais, eliminando focos e estruturas que permitem a reprodução das práticas que perpetuam a repressão seletiva como forma de dominação. Por outro lado, é urgente que se aprimore em toda a sociedade a crítica como uma oportunidade de inflexão política. Pesquisadores(as), lideranças e moradores(as) de favelas e periferias já vêm denunciando as estratégias do militarismo e os riscos para a democracia brasileira. A discussão sobre a desmilitarização das polícias, no entanto, encontra o crescimento exponencial das milícias, como no caso do Rio de Janeiro, e aprofunda problemas estruturais. Desde a redemocratização, o papel constitucional das polícias não problematiza as forças de segurança como forças que reproduzem contra suas próprias populações uma “guerra” de inimigos internos. A “guerra” como metáfora se ancora, justamente, na excepcionalidade de uma situação de risco que exige medidas também excepcionais e estranhas à normalidade institucional e democrática para atender aos anseios da ordem e da sociabilidade, daqueles que são tidos como cidadãos de direito. Tentativas de repressão e controle a título de “pacificação” já demonstraram que a democracia no asfalto não pode coexistir com o estado de exceção nas periferias e favelas. Um dia o aparato repressivo fora do controle da sociedade, em promiscuidade com as milícias e a militarização das políticas públicas se tornaram o modo dominante de exercício do poder.
Após a prisão de centenas de pessoas em Brasília em função dos atos terroristas na sede dos três poderes, o general Hamilton Mourão, ex-vice-presidente da República, foi às redes pedir que os direitos humanos das pessoas custodiadas fossem respeitados. O peso simbólico deste ato, onde um dos expoentes da ultradireita no país – que esteve à frente de um dos governos que mais atacou as políticas de direitos humanos (especialmente de pessoas pobres, negras, LGBTIA+, mulheres, povos originários…) – pede clemência para que seus eleitores, acusados de uma série de crimes envolvendo depredação de patrimônio público, terrorismo, golpe de Estado e afins, usufruam do conjunto de direitos contra os quais ele mesmo se encarregou de lutar, é também parte do que precisamos colocar sobre a mesa.
O mesmo pedido de clemência se estende aos pobres e desassistidos que sofrem com a ausência de políticas públicas na saúde, na educação, no trabalho e na moradia? Ou apenas aos empresários que estão destruindo a Amazônia com desmatamento ilegal? Ou isenta o governador do Rio de Janeiro, atual recordista em operações policiais letais em favelas e periferias? Ou inclui os milhares de jovens negros encarcerados por uma (também falida) guerra às drogas?
Silvio Almeida convoca a ação em seu discurso de posse quando pede que “nós não nos rendemos. Pois nós somos o povo que, mais de um século antes do pastor Martin Luther King, dizíamos, com Luiz Gama, ter um sonho: ver ‘o Brasil americano e as terras do Cruzeiro, sem reis e sem escravos!’”.
Logo após os atos terroristas reprimidos por meio de uma intervenção federal na segurança pública do Distrito Federal, em um palácio destroçado, esperançamos mais uma vez ao acompanhar a posse de Sonia Guajajara, ministra dos Povos Indígenas, e Anielle Franco, ministra da Igualdade Racial, potências que inscrevem em seus corpos e, agora, oficialmente, no governo federal: a luta das mulheres indígenas, negras, quilombolas e tantas outras Marias, Mahins, Marielles e malês. É tempo, portanto, de reparação, verdade e justiça! E de tomar a pauta dos direitos humanos por seus próprios defensores e defensoras.
Deve ser o primeiro ponto de pauta a discussão sobre direitos humanos em favelas e periferias, pois é um movimento essencial se quisermos retomar os rumos democráticos do Brasil. Não há como discutir democracia sem pensar nas milhares de execuções de negros e negras que acontecem diariamente em favelas, periferias e na manutenção de presos sem julgamento, humilhados e mortos nas prisões, assim como não há como pensar em democracia sem acesso a saneamento, habitação, saúde, educação e alimentação. Democracia não é uma abstração ou algo utópico, tampouco uma ação isolada. Democracia é um processo, é uma caminhada, é um conjunto de posicionamentos e práticas fundamentais para a vida digna da população. No verbete “Segurança Pública e Direitos Humanos: algumas considerações para seguirmos em luta”, os psicólogos e pesquisadores Caíque Azael, Rosa Pedro e Pedro Paulo Bicalho discutem sobre a necessidade de seguir em luta “para a construção de futuros possíveis, onde práticas que perpetuam violências, desigualdades e aniquilamentos não sejam mais uma realidade, muito menos operadas pelo Estado brasileiro”. Confira o texto na íntegra no Dicionário de Favelas Marielle Franco.
Texto publicado originalmente no portal Outras Palavras.