Nas entrelinhas | Luiz Carlos Azedo

Nas entrelinhas: Não existe zona de conforto para ninguém

Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense

Todas as pesquisas mostram uma boa vantagem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que lidera a disputa presidencial; dependendo do instituto, a diferença é vai de cinco a 12 pontos, em relação ao presidente Jair Bolsonaro (PL). Isso é como vencer o jogo por dois a zero no primeiro tempo; no segundo, porém, se o time adversário fizer um gol, empurrado pela torcida, tudo pode complicar. Uma virada no placar passa a ser uma ameaça real.

As pesquisas estão mostrando que Lula não vencerá no primeiro turno, com a recuperação de Ciro Gomes (PDT), o crescimento de Simone Tebet (MDB) e a casquinha que Felipe D´Ávila (Novo) e Soraya Thronicke (União Brasil) estão tirando com a campanha de rádio e tevê, as entrevistas e os debates. Não existe zona de conforto para ninguém. Lula está perdendo a eleição entre os homens por pequena margem e vencendo por larga diferença entre as mulheres, um campo minado para Bolsonaro.

Lula vence entre os mais pobres, porém, perde entre os que ganham de dois a cinco salários e empata nos que percebem acima disso. Lidera com folga entre os que somente têm o ensino fundamental e, por pouco, entre os que completaram o ensino médio, e perde entre aqueles com curso superior. Está em amplíssima vantagem no Nordeste; vence de pouco no Norte/Centro-Oeste e no Sudeste; e perde no Sul.

Esse cenário, com quatro semanas de campanha, ainda pode se alterar. A campanha eleitoral foi encurtada deliberadamente pelo Centrão, com objetivo de facilitar a reeleição de quem tem mandato, principalmente na Câmara Federal. Não existe mais financiamento de empresas privadas para as campanhas e a liberação dos recursos do fundo eleitoral somente ocorreu após a propaganda eleitoral começar. Há disparidade de meios entre quem tem mandato, com todas as suas vantagens e mordomias, e os que postulam uma vaga para entrar nas casas legislativas.

Como a esperteza engole o dono, deu ruim para o presidente Jair Bolsonaro, que largou muito atrás nas pesquisas de opinião, por causa, principalmente, da situação da economia. Pode ser salvo pela PEC Emergencial e seu pacote de bondades, que parece não ter fim, haja vista a última redução do preço dos combustíveis. O ministro da Economia, Paulo Guedes, inclusive, já anunciou a intenção de prorrogar o “estado de calamidade” para poder gastar mais.

A reeleição de Bolsonaro está se inviabilizando por outros motivos, principalmente entre as mulheres: a sua misoginia, a falta de empatia com as vítimas da pandemia, o deboche quando é criticado por qualquer cidadão, o palavreado chulo. Tudo isso está cobrando um preço alto de Bolsonaro, mas o determinante mesmo é a situação da economia e dos mais pobres.

Cenários

A estratégia de Lula contra Bolsonaro é muito simples. Compara seu governo com o atual, em todas as áreas relevantes: política externa, cultura, políticas de saúde e educação, a questão ambiental, o salário-mínimo, o combate à violência. Lula apostou, principalmente, na recessão, no desemprego e na inflação como contingências que derrotariam Bolsonaro, mas, acontece que o poder de intervenção do governo na economia é muito grande e a situação está mudando.

Não importa que seja um voo de galinha. A economia voltou a crescer, novos empregos são criados, o dinheiro do Auxílio Brasil (três parcelas de R$ 600, se não antecipar a quarta) está chegando na ponta na boca da eleição. Pode não ter a mesma repercussão para quem ganha até um salário mínimo, por causa do peso da inflação de alimentos, mas, acima disso, já surte efeito, inclusive porque movimenta as economias locais, favorecendo a classe média.

Geralmente, os analistas de pesquisas calculam a progressão do crescimento ou da queda dos candidatos para concluir se e quando o líder se manterá à frente ou não. A boca de jacaré, como se diz no jargão dos marqueteiros, é um recurso válido para o direcionamento da campanha. Entretanto, não pode ser absolutizado por duas razões: em primeiro lugar, o tempo na política não é linear, pode se acelerado na campanha; em segundo, as pesquisas usam dados defasados do IBGE, pois são os do último Censo. É daí que vêm os eventuais erros nas pesquisas. Ignoremos as teorias conspiratórias.

A campanha mais curta tende a acelerar a movimentação dos candidatos majoritários. É o que aconteceu com a recuperação de Ciro e o crescimento de Simone, frustrando os que apostavam no “voto útil”. Nesse cenário, teremos segundo turno, embora a polarização Lula versus Bolsonaro se mantenha. O que poderia alterar esse quadro seria Bolsonaro perder expectativa de poder — o que não vai acontecer, por causa do peso do governo como forma mais concentrada de poder — e a melhoria do ambiente econômico. Outra hipótese, menos provável, seria Lula ser ultrapassado pelo presidente da República, como apregoam os caciques do Centrão. Nesse caso, haveria uma reação a favor do “voto útil”; uma eventual desistência de Lula, em favor de Ciro ou Simone, não está no script de ninguém, muito menos dos petistas.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-nao-existe-zona-de-conforto-para-ninguem/

Nas entrelinhas: Mudança no cenário econômico favorece Bolsonaro

Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense

Recentemente, o jornalista Paulo Markun e a socióloga Ângela Alonso lançaram o documentário Ecos de Junho, em exibição na Netflix, no qual tecem uma linha de continuidade entre as manifestações espontâneas dos jovens brasileiros de 2013 e o desfecho daquele processo antissistema, que levou à eleição de Jair Bolsonaro (PL), cinco anos depois. Havia uma disputa política cujo desfecho foi uma guinada à direita, em 2018, mas que ainda não terminou e, de certa forma, está presente nas eleições deste ano, como uma espécie de ajuste de contas.

Grosso modo, essa disputa ocorreu nos quadrantes da ética, da política propriamente dita, da economia e da ideologia, simultaneamente, mas o peso relativo de cada uma dessas variáveis foi se alterando ao longo do processo. No plano da ética, a Operação Lava-Jato foi um fator determinante; na economia, o fracasso da nova matriz econômica; na política, a sua judicialização; e na ideologia, a reação religiosa à revolução de gênero.

Bolsonaro se elegeu em 2018 porque conseguiu levar a melhor nessas quatro frentes, ainda que tenha sido favorecido pelo impacto do atentado que sofreu em Juiz de Fora, onde levou uma facada que o deixou entre a vida e a morte. Nas eleições deste ano, a conjuntura é outra, o peso relativo de cada um dos quadrantes se alterou, mas eles continuam sendo variáveis que precisam ser examinadas separadamente e, também, em interação.

A Operação Lava-Jato acabou, seus protagonistas estão desgastados e sendo responsabilizados por eventuais abusos de autoridade, a ponto de o ex-juiz Sergio Moro, candidato ao Senado no Paraná, estar em risco de não se eleger. Entretanto, a questão da ética na política não morreu, continua sendo uma variável importante da eleição, que somente não está sendo mais explorada porque não se fala de corda em casa de enforcado.

Líder inconteste nas pesquisas, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem muita dificuldade de abordar esse tema, que evoca o mensalão, o escândalo da Petrobras, o tríplex de Guarujá e o sítio de Atibaia; Bolsonaro, por causa das “rachadinhas” na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, dos escândalos da Educação e, mais recentemente, do estranho costume familiar de comprar imóveis com dinheiro vivo, também não fica à vontade para falar de corrupção. A tendência é os demais candidatos se beneficiarem do desgaste de petistas e bolsonaristas, que se digladiam nas redes sociais, e que deve ganhar mais peso no debate eleitoral, principalmente Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB).

A judicialização da política continua sendo um vetor do processo eleitoral, mas numa chave diferente de 2018. Àquela ocasião, o Supremo impediu a candidatura de Lula, que estava com a ficha-suja, por ter sido condenado em segunda instância, o que facilitou a eleição de Bolsonaro; agora, o jogo se inverteu, a condenação de Lula foi anulada e sua candidatura é favorita na disputa, enquanto se arma contra o Supremo uma coalização política interessada em reduzir seus poderes, da qual fazem parte o Executivo, o Legislativo, o Ministério Público Federal e as Forças Armadas. Bolsonaro protagoniza esse processo, mas o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva também pode ser um interessado nesse projeto.

Para quem? 

Até a semana passada, dizia-se que a economia derrotaria o projeto de reeleição de Bolsonaro, em razão da recessão, da inflação e do desemprego. O eixo da estratégia de Lula é a comparação do seu governo — que alcançou altas taxas de crescimento quando concluiu o segundo mandato, aumentou o salário real dos trabalhadores e transferiu renda às parcelas mais pobres da população — com o fracasso econômico do governo Bolsonaro.

Os dados do IBGE desta semana, porém, mostram uma mudança significativa de cenário, com retomada da atividade econômica em torno de 1,2%, queda da inflação e redução da taxa de desemprego a 9%, o que pode dar ao projeto de reeleição de Bolsonaro um gás que até agora não tinha. A disputa de narrativas sobre a economia, obviamente, terá de ser politizada, na base do “melhorou pra quem, cara-pálida?”.

Finalmente, a dimensão ideológica. Nas eleições deste, esse quadrante está sendo polarizado pela reafirmação da questão democrática pela sociedade civil, que se contrapôs ao projeto iliberal de Bolsonaro. Entretanto, no debate eleitoral, a questão dos costumes ainda tem muito protagonismo, principalmente em decorrência do alinhamento da maioria dos líderes evangélicos com Bolsonaro. O presidente da República capturou o sentimento de defesa da integridade da família unicelular patriarcal, desde 2018.

Em contrapartida, Lula, que se identifica com o lugar de fala dos movimentos de gênero, indígena e negro, não pode assumir as pautas identitárias como principais bandeiras de campanha eleitoral, porque isso poderia lhe custar a eleição. As maiores vantagens estratégicas do ex-presidente são os votos do Nordeste e das mulheres. Bolsonaro trabalha para neutralizá-las.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-mudanca-no-cenario-economico-favorece-bolsonaro/

Pesquisa eleitoral | Foto: Divulgação

Datafolha: Simone Tebet cresce acima da margem de erro e empata tecnicamente com Ciro

Cidadania23*

A candidata a presidente da República da coligação Brasil para Todos (MDB, Cidadania, PSDB e Podemos), Simone Tebet (MDB), oscilou de 2% para 5% na pesquisa de intenção de voto do instituto Datafolha divulgada nesta quinta-feira (01).

Simone teve crescimento acima da margem de erro e alcançou Ciro Gomes (PDT), que tem 9% (veja abaixo o desempenho dos demais candidatos). Segundo o levantamento, eles estão empatados tecnicamente dentro do limite da margem de erro, que é de dois pontos percentuais.

Foi a primeira pesquisa divulgada pelo Datafolha após o debate presidencial do último domingo (28) na Band. Simone teve a melhor avaliação no debate entre os indecisos, segundo a pesquisa qualitativa realizada pelo instituto em tempo real, desempenho que pode justificar o crescimento da candidata no levantamento.

A pesquisa mostra ainda que em São Paulo, o maior colégio eleitoral do País, Simone foi de 3% para 7% nas intenções de voto.

O Datafolha ouviu 5.734 pessoas em 285 municípios entre os dias 30 de agosto e 1º de setembro. A margem de erro é de 2% para mais ou para menos. O levantamento foi registrado no TSE sob o número BR-00433/2022.

Intenção de voto estimulada

Lula (PT): 45% (47% no Datafolha anterior, de 18 de agosto)
Jair Bolsonaro (PL): 32% (32% na pesquisa anterior)
Ciro Gomes (PDT): 9% (7% na pesquisa anterior)
Simone Tebet (MDB): 5% (2% na pesquisa anterior)
Soraya Thronicke (União Brasil): 1% (0% na pesquisa anterior)
Pablo Marçal (PROS): 1% (0% na pesquisa anterior)
Felipe d’Avila (NOVO): 1% (1% na pesquisa anterior)
Vera (PSTU): 0% (0% na pesquisa anterior)
Sofia Manzano (PCB): 0% (0% na pesquisa anterior)
Constituinte Eymael (DC): 0% (0% na pesquisa anterior)
Léo Péricles (UP): 0% (0% na pesquisa anterior)
Roberto Jefferson (PTB): 0% (0% na pesquisa anterior)
Em branco/nulo/nenhum: 4% (6% na pesquisa anterior)
Não sabe: 2% (2% na pesquisa anterior)

*Texto publicado originalmente no portal do Cidadania23.


Vice-presidente da Argentina vice-presidente Cristina Kirchner | Foto: ymphotos/ Shutterstoock

O que se sabe sobre o ataque armado contra Cristina Kirchner

Marcia Carmo*, BBC News Brasil

Imagens veiculadas por canais de televisão do país mostram o momento em que uma pistola é apontada para o rosto de Kirchner e, apesar de o gatilho ser puxado, o disparo falha. Segundo a polícia, a arma teria ficado a centímetros de distância da ex-presidente da Argentina.

Montiel, de 35 anos, portava uma pistola Bersa 380, calibre 32 — de fabricação argentina — carregada com cinco balas, segundo informações da Polícia Federal à imprensa.

A ação do homem, que usava uma touca preta e uma máscara facial, chamou a atenção dos apoiadores da ex-presidente que o agarraram, no meio da multidão, conforme mostram as imagens das emissoras locais.

Na hora de apertar o gatilho contra Cristina, ele tira a máscara, deixando o rosto visível, como mostram imagens da televisão.

No momento em que foi flagrado, ele tentou fugir, mas foi agarrado pela camiseta, no meio da multidão reunida próximo ao prédio onde a ex-presidente mora no bairro da Recoleta.

O homem foi preso e levado para uma delegacia na cidade de Buenos Aires, onde no fim da noite de quinta-feira continuava detido. A expectativa é que ele preste declaração nesta sexta-feira.

De acordo com fontes policiais, ele já teria sido preso pela Polícia da Cidade em março de 2021 quando portava uma faca.

Montiel teria chegado à Argentina ainda criança, em 1996. De acordo com informações da polícia, a partir das redes sociais de Montiel, ele possui tatuagens com símbolos nazistas. Nas suas redes sociais, ele se identificava como Fernando 'Salim' Montiel e era seguidor de grupos como 'comunismo satânico', entre outros 'ligados ao radicalismo e ao ódio', como definiu o portal do jornal La Nación, de Buenos Aires.

As fotos de Montiel estão em destaque nos portais de notícias e nas emissoras de televisão da Argentina, que recordam ainda uma aparição recente feita por ele em uma reportagem realizada pela Crónica TV nas ruas de Buenos Aires. Ele aparece opinando que os planos sociais não ajudam.

"O que ajuda é sair para trabalhar", diz diante da câmera.

Presidente do Senado, Cristina Kirchner tinha saído do Congresso para casa, quando o fato ocorreu pouco depois das nove da noite.

Após o atentado, como vem sendo definido por políticos e analistas argentinos, especialistas questionaram o esquema de segurança da vice-presidente. Eles apontaram para a "vulnerabilidade" que teria permitido que o brasileiro chegasse perto do seu rosto.

Cristina Kirchner costuma se pronunciar através de suas redes sociais e de discursos públicos. Até a manhã desta sexta-feira (2/9), ela ainda não tinha se manifestado publicamente sobre o atentado que sofreu.

Após o caso, o policiamento foi reforçado nos arredores de onde Cristina mora.

'Imensa' gravidade

O presidente Alberto Fernández realizou um pronunciamento em rede nacional pouco tempo após o ataque. Para ele, é o fato "mais grave" desde o retorno da democracia no país, em 1983.

Na suas declarações, Fernández disse que a vice-presidente "está com vida porque, por alguma razão, a arma não disparou".

O presidente definiu o caso como de "imensa gravidade".

"Esse fato é de imensa gravidade. A arma tinha cinco balas, mas não disparou. Esse atentado merece o total repúdio de todos. A violência não pode ameaçar a democracia", afirmou.

"Podemos discordar, podemos ter profundas divergências, mas em uma sociedade democrática os discursos que incitam o ódio não têm lugar porque causam violência, e a violência não pode conviver com a democracia."

O presidente também anunciou que decidiu "declarar feriado nacional nesta de sexta-feira para que, em paz e harmonia, o povo argentino possa se manifestar em defesa da vida, da democracia e em solidariedade à nossa vice-presidente".

O ex-presidente da Argentina Mauricio Macri, opositor de Kirchner, escreveu no Twitter:

"Meu repúdio absoluto ao ataque sofrido por Cristina Kirchner, que felizmente não teve consequências para a vice-presidente. Este gravíssimo fato exige um imediato e profundo esclarecimento por parte da Justiça e das forças de segurança."

Deputados e senadores da base governista, reunidos na coalizão Frente para a Vitória (FPV), se manifestaram no Congresso Nacional contra o ataque.

"Não a mataram porque Deus é grande", disse o senador governista José Mayans.

"Pedimos investigação, esclarecimento", disse o deputado governista Sergio Palacio.

Políticos da oposição também declararam respaldo à vice-presidente. Mas o decreto de Fernández instituindo feriado nacional, nesta sexta-feira, gerou críticas de setores opositores. O peronista Miguel Ángel Pichetto, atualmente ligado ao ex-presidente Macri, esteve entre os que criticaram o discurso do presidente em cadeia nacional e a decretação de feriado.

"O presidente não entendeu nada. A oposição deu sua solidariedade à vice-presidente. Mas ele culpou a oposição, a Justiça e os veículos de comunicação. E feriado nacional, para que?", escreveu Pichetto em suas redes sociais.

A BBC News Brasil pediu ao Itamaraty um posicionamento do governo brasileiro sobre o episódio na Argentina, mas ainda não recebeu resposta.

Nos últimos dias, o prédio onde a ex-presidente mora tem sido ponto de encontro de seus apoiadores que contestam o pedido do Ministério Público para que ela seja condenada a 12 anos de prisão por supostos casos de corrupção durante seu mandato.

*Texto publicado originalmente em BBC News Brasil.


De acordo com levantamento, a ameaça foi o tipo mais comum de violência política no país entre janeiro e março de 2022 - Fernando Frazão/Agência Brasil

Democracia: a luta contra o medo e a violência

Euzamara de Carvalho*, Brasil de Fato

Porque a noite não anoitece sozinha.  

Há mãos armadas de açoite  

retalhando em pedaços  

o fogo do sol  

e o corpo dos lutadores.

– Pedro Tierra   

O recrudescimento da violência no Brasil tem causado preocupações por parte de alguns setores do Estado, da sociedade civil popular organizada e da comunidade internacional. As diferentes formas de violências que perpassam a vida cotidiana no campo e na cidade se apresentam marcantes na história das populações pobres – classe trabalhadora. Para essa classe, a violência efetua-se como "resposta" às suas diferentes lutas, motivada pela negação das dimensões econômicas, territoriais, culturais, raciais, geracionais, políticas e de gênero e pela falta de reconhecimento do direito à organização social para reivindicar a efetivação de direitos.

No que se refere ao papel do Estado brasileiro frente a situações de violências agravadas, os fatos recentes apontam que sua atuação vai na direção oposta ao respeito e promoção da dignidade humana, de modo a operar contra os direitos coletivos, agravando situações de violência e confirmando sua dimensão estrutural. Nesse sentido, Minayo e Souza (1998, p. 520) esclarecem que: 

“Os adeptos da força repressiva do Estado, tergiversando sobre as complexas causas da violência, reduzem sua concepção desse fenômeno à delinquência e tendem a interpretá-la como fruto da conduta patológica dos indivíduos. Ao mesmo tempo, absolutizam o papel autoritário do Estado no desenvolvimento socioeconômico das sociedades. As ideias desses intelectuais combinam com o senso comum, que advoga a força repressiva como condição de "ordem e progresso". 

Situações atuais impulsionadas pela cúpula do atual governo brasileiro que incita a violência ancorada no falso discurso de ordem e progresso é exemplo nítido e atenta contra o Estado Democrático de Direito. Nesse sentido cabe pontuar a função da violência como emblemático instrumento de domínio econômico e político sobre os grupos sociais nas suas diferentes constituições de classe trabalhadora. E que se enraíza em diferentes setores da sociedade que perpetuam essas violências nas suas distintas realidades.  

Violências estas que se alargam no processo eleitoral que atravessa o Brasil, como as perpetradas contra cidadãos/as brasileiros/as no seu exercício de livre escolha de representação política democrática, a exemplo do caso do assassinato de Marcelo Arruda, e consequentemente contra candidatos ou pré-candidatos e representantes de cargos eletivos - destaco aqui a memória do assassinato de Marielle Franco.  

Respectivas situações têm como pano de fundo impossibilitar o fortalecimento de um projeto democrático no país conquistado por meio de árduas lutas coletivas organizadas. O caminho sinalizado, conforme manifestações públicas, é o de inviabilizar liberdades asseguradas pelos pilares da democracia e que podem resultar em mais mortes, perseguição, ameaça e intimidação. Concomitante desestabilizar e desacreditar a justiça eleitoral na sua responsabilidade de realização e monitoramento do processo eleitoral que enfrenta o país. 

O quadro de grave ameaça aos valores democráticos para a integridade e a paz dos cidadãos brasileiros é preocupante e se mostra inaceitável às instituições políticas e às liberdades públicas. De acordo com o relatório do Coletivo RPU Brasil - 2022, o Brasil continua sendo um dos países mais perigosos para defensoras e defensores de direitos humanos, em especial para ativistas ambientais e pessoas trans, em todo o mundo. 

Ao longo dos anos, o demonstrativo da violência vem sendo denunciado por diversos setores da sociedade, a exemplo da gravidade das violências praticadas contra o povo negro, aumento da violência contra a população LGBTQI+, recorrente violência de gênero, homicídios de pessoas indígenas, conflitos e assassinatos no campo. 

O alerta que nos move para o enfrentamento à violência nesse contexto eleitoral, nos provoca situar que a recorrencial violência no Brasil é fruto das relações desiguais constitutivas da sociedade brasileira fomentada por uma política de autoritarismo, exclusão e abandono que perpassa a dimensão de raça, classe e gênero. Violência utilizada contra a luta dos povos e seu direito de se constituírem defensores e defensoras de direitos humanos, interlocutores no processo de positivação e de reconhecimento institucional de suas expectativas para efetivação de direitos numa sociedade democrática.   

Essa reflexão nos mobiliza para o efeito pedagógico de considerar os pontos sinérgicos da causa e da reprodução da violência oponente à histórica luta dos povos numa ação de curto, médio e longo prazo que perpassa a defesa intransigente da democracia. Para Marilena Chaui (2017) “A democracia propicia uma cultura da cidadania e a luta contra o medo e a violência”. Assim, nos emanamos no enfrentamento ao contexto de ódio e de violência que nos acomete no Brasil, afirmando os valores democráticos que devem permear nossa vida em sociedade. Portanto, nos situamos nas lutas constitutivas de direitos, em uma dimensão regional e sua inter-relação com as resistências para a construção da paz no ambiente latino-americano. 

*Texto publicado originalmente em Brasil de Fato.


Foto: Andrii Kobryn/Shutterstock

Revista online | Pobreza sem fronteiras

Marcelo S. Tognozzi*, especial para a revista Política Democrática online (46ª edição: agosto/2022)

A geração destes anos 20 do século 21 é uma geração de sobreviventes. Como há 100 anos, também encarara uma pandemia e uma guerra com potencial de se tornar conflito generalizado, não apenas do ponto de vista político e econômico, como já acontece, mas das armas. As crianças são cotidianamente expostas a todo o tipo de sofrimento num mundo cada vez mais conectado. Infâncias dilapidadas são compartilhadas pelas redes sociais pelos meninos e pelas meninas que um dia, daqui a 20, 30 anos, serão nossos políticos e governantes.

A guerra na Ucrânia mata ao menos duas crianças por dia, dizem os números oficiais da ONU. Aqueles meninos e meninas sobreviventes são expostos a todo tipo de risco, desde tráfico de pessoas a novas e antigas formas de exploração, violação e humilhação. Aqui no Brasil, a pandemia tirou de milhões de pequenos cidadãos pobres o direito ao ensino e à merenda escolar. Os meninos e meninas das famílias da classe média também ficaram sem aulas presenciais, mas puderam aprender pela internet e ir em frente.

A guerra no Leste Europeu cobra sua cota diária de vidas de crianças com bombas e tiros, mas também dizima pela fome outras dezenas, centenas, milhares na África, na América do Sul, no Caribe e na Ásia. O conflito fez subir os preços da comida, do gás de cozinha, dos combustíveis, e o empobrecimento é generalizado. Qualquer um que ande pelas ruas do Rio e de São Paulo, de Porto Alegre ou Belo Horizonte, Recife ou Salvador irá cruzar com famílias inteiras vivendo amontoadas, transformando caixotes de papelão em lares.

Confira, abaixo, galeria de imagens:

Perdi meu emprego | Foto: editada/Shutterstock
Inflação no preço dos alimentos | Foto: PERO studio/Shutterstock
Distanciamento de pobres e ricos | Foto: MichaelJayBerlin/Shutterstock
Globalização | Imagem: Dilok Klaisataporn/Shutterstock
Investimento | Imagem: LookerStudio/Shutterstock
Pobreza | Foto: yamasan0708/Shutterstock
Refugiados da Guerra da Ucrânia | Foto: Shutterstock
Serviço de uber eats | Foto: nrqemi/Shutterstock
Consequências da Guerra na Ucrânia | Imagem: Miha Creative/Shutterstock
Perdi meu emprego
Inflação no preço dos alimentos
Distanciamento de pobres e ricos
Globalização
Investimento | Imagem: LookerStudio/Shutterstock
Pobreza
Refugiados da Guerra da Ucrânia
Serviço de uber eats
Consequências da Guerra na Ucrânia
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Perdi meu emprego
Inflação no preço dos alimentos
Distanciamento de pobres e ricos
Globalização
Investimento | Imagem: LookerStudio/Shutterstock
Pobreza
Refugiados da Guerra da Ucrânia
Serviço de uber eats
Consequências da Guerra na Ucrânia
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No México, 54,3% das crianças estão em situação de pobreza extrema, sem as condições mínimas de sobrevivência. Na Argentina, a situação não é diferente: 60% das crianças. A África dispensa apresentações, a exemplo da Índia, Síria e Afeganistão.

Infância pobre é o padrão. Olho para as crianças da minha família e agradeço a Deus e ao Universo pela sorte que elas têm de poder comer todos os dias, frequentar escola, usar roupas limpas, sapatos, gozar de lazer, viver num lar onde há respeito e amor.

As crianças vivem na pobreza globalizada, mas acessam a internet, ainda que de vez em quando, e, com o que ainda resta de inocência e sonho, mergulham no mundo das redes sociais, das pessoas bonitas, do consumo e da fartura. A riqueza mora ao lado ou no celular, dependendo da cidade, do bairro ou da rua. Como será a sociedade que estas crianças construirão depois de adultas? A globalização, tida e havida como geradora de riqueza e bem-estar, acabou trazendo mais pobreza e mais sofrimento.

Entre os três estados mais importantes do Brasil, o Rio é o que registra a maior taxa de desemprego. Em maio deste ano, tinha 15% de desempregados ou 1.323.000 trabalhadores sem trabalho. São Paulo registrou 10,8%, e Minas, 9,3%. Os dados são do IBGE. Provavelmente, existam muito mais desempregados, porque a pandemia ceifou a renda de milhões de cariocas agora dependentes da informalidade e que se tornaram camelôs, ambulantes nos sinais de trânsito, famílias amontoadas nas calçadas do Centro, da Zona Sul, em qualquer lugar da cidade.

A vida começou a piorar para os cariocas quando a Petrobras viveu o terremoto das investigações da Lava Jato. Em 2019, o Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep) informava que a crise vivida pela Petrobras desde 2015 custou o emprego de 2,5 milhões de brasileiros, o “equivalente a 19% do desemprego” (daquele ano de 2019). O Rio, maior produtor de petróleo, sofreu mais.

Uma psicóloga com mais de 30 anos de clínica, de uma hora para outra, viu seu consultório em Copacabana se encher de pacientes sofrendo de depressão. Eram os demitidos pelas empresas fornecedoras da Petrobras. Aquela classe média chegava ao divã dilacerada. Não perdera apenas o emprego, mas o status, o estilo de vida. Estava sendo obrigada a se mudar de bairro, a tirar os filhos da escola, a recomeçar. Muitos daqueles profissionais superqualificados se refugiaram no Uber, outros mudaram de profissão, alguns conseguiram ir para o exterior. Mas todos, sem exceção, entraram para a estatística do Ineep, na qual estavam incluídos cálculos indicando que 60% dos investimentos realizados no Brasil neste ano de 2022 viriam da Petrobras, o que não aconteceu.

O Rio e a Petrobras tiveram um longo caso de amor que começou nos anos 1950 com a campanha do Petróleo é Nosso e que culminou com a criação da empresa em 1953. Depois de investigada pela Lava Jato, posta de joelhos no exterior pagando multas, algumas secretas, a Petrobras deu uma guinada de 180 graus. Passou a ser a queridinha de grandes fundos de investimentos internacionais como os trilionários The Venture Group e Blackstone. Trocou de amor.

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Hoje, a Petrobras exporta empregos ao invés de se preocupar em repor aqueles tragados pela crise instaurada a partir de 2015. Parece absurdo, mas não é. A empresa tem encomendado plataformas para empresas estrangeiras, deixando de lado as brasileiras onde atuavam os trabalhadores superqualificados, mandados para o divã e, depois, para o Uber. Sem contar os menos qualificados, sem divã ou Uber. Atualmente, das 14 empresas qualificadas para participar de licitações de construção de plataformas, apenas uma, a Queiroz Galvão Naval, é brasileira. As demais são estrangeiras ou controladas por capital estrangeiro.

A exportação de empregos virou algo banal. A empresa Keppel Shipyard apresentou proposta de US$ 2,98 bilhões na licitação das plataformas P-80 e P-82, valor 26% acima do preço estimado pela Petrobras. A Sembcorp Marine Rig & Floaters, segunda colocada, cotou o serviço em US$ 3,6 bilhões. Ambas são empresas de Cingapura, do outro lado do planeta.

É muito esquisito que poucas empresas estrangeiras ditem o preço nas licitações da Petrobras, oferecendo orçamentos acima do estimado. Isso não aconteceu nem nos tempos da Lava Jato, quando o Ministério Público processou empresas acusadas de integrar um cartel. O próprio MP constatou que as empresas do cartel cotavam suas propostas pelo preço máximo estimado pela estatal nas licitações. Imagine se elas tivessem cobrado acima, como estão fazendo as multinacionais de Cingapura.

E por que a Petrobras exporta empregos para Cingapura quando o Rio de Janeiro, onde está sua sede, tem um dos maiores índices de desemprego do Brasil? Nesta era pós Lava Jato, a direção da petroleira decidiu implementar critérios técnicos e financeiros considerados absurdos para a classificação de fornecedores, inviabilizando a participação das brasileiras e também de muitas estrangeiras, que, mesmo estando pré-qualificadas para participar das licitações, se recusam a oferecer lances, diante do excesso de exigências da estatal, as quais vão muito além do praticado no mercado internacional.

 Nesse cenário, as companhias brasileiras, que pagaram multas e fizeram acordos de leniência, continuam sendo punidas, mesmo depois de acertarem as contas com a Justiça. Perderam o direito de competir, mesmo tendo capacidade técnica, pessoal qualificado e potencial para gerar os empregos de que tanto necessitam os brasileiros. 

Uma empresa e seu quadro de funcionários não podem ser confundidos com executivos processados e condenados por crimes. Na Alemanha, a Siemens e a Volkswagen tiveram problemas com a Justiça, mas lá ninguém confundiu pessoa física com pessoa jurídica. A falta de concorrência nas licitações da Petrobras, tão questionada pelas investigações da Lava Jato, ficou ainda maior nos dias de hoje, com três ou quatro empresas estrangeiras participando das licitações e determinando os preços dos projetos bem acima do estimado pela estatal.

É uma injustiça o Rio de Janeiro ser eternamente punido pela Petrobras, que mantém seus estaleiros à míngua, enquanto dá empregos em Cingapura ou na Coréia da Samsung, Hyundai e Daewoo. Esta política mostra o quanto a empresa se desconectou dos brasileiros, ao mesmo tempo que vai na contramão da conjuntura atual. Depois da pandemia e da guerra na Ucrânia, as empresas estratégicas querem proximidade com seus fornecedores, preocupadas em diminuir riscos políticos, geográficos e econômicos.

Um investimento de quase US$ 3 bilhões (cerca de R$ 16 bilhões) numa plataforma representaria uma injeção de dinheiro na economia fluminense capaz de gerar pelo menos uns 10 mil empregos diretos e dezenas de milhares de indiretos. Agora, imagine se multiplicarmos isso por 10, 20 plataformas. Isso mudaria a cara do Rio de Janeiro, refletindo em todo o Brasil. O Rio hoje é uma cidade com alto índice de violência e centenas de milhares de crianças condenadas a serem cidadãs de segunda classe, como acontece nos países nossos vizinhos ou na África.

Num texto brilhante, publicado em março deste ano, meu amigo Jamil Chade, pai de 2 garotos, descreve, com clareza e emoção à flor da pele, a história de meninos e meninas vítimas de todo tipo de violência. Jamil nos leva aos cárceres do Estado Islâmico, à Servia, a um campo de refugiados no Quênia e à cidade de Bagamoyo, na Tanzânia, onde conheceu duas meninas, de no máximo 10 anos de idade, que brincavam no pátio de um hospital. Conversou com elas e mostrou um cartão de visitas com seu nome, porque as garotas não entendiam direito quem era aquele homem branco com um bloquinho na mão e uma câmera fotográfica pendurada no pescoço.

Passou um tempo, e o Correio fez uma conexão Genebra-Bagamoyo. Dentro de um envelope surrado, Jamil encontrou um pedido desesperado de ajuda de uma das meninas. Suplicava que a levasse dali e prometia amor para sempre. Jamil chorou o choro dos impotentes, o mesmo que eu chorei quando li seu texto. Aquela criança faria qualquer coisa – qualquer coisa! – para escapar daquela escuridão miserável: “preciso sair daqui”.

As guerras, a inflação, a falta de educação e de cidadania são irmãs da miséria e da fome. Elas hoje brincam de mãos dadas pelos campos de refugiados da África, nas cidades destruídas da Ucrânia, nas noites de terror do Afeganistão, nas calçadas superpovoadas de Nova Dehli, do Rio, de São Paulo, nas palafitas de Manaus e Belém ou nas ruas de terra batida das periferias de Recife e Salvador.

Estas irmãs, agora, também andam pelas ruas de Paris, Madrid, Londres ou Roma. Em plena pandemia, um amigo diplomata ligou para contar que, em Genebra, os pobres estavam pedindo esmola nos sinais. Nos Estados Unidos, a pobreza também chegou forte. No fim do ano passado, uma pesquisa mostrou que cerca de 30% dos americanos não conseguiam bancar despesas básicas, 12% dos chefes de família amargavam dificuldade para comprar comida e 28% dos negros e 20% dos latinos não pagavam aluguel em dia. A pobreza virou vizinha, habita as calçadas do Champs Élysées, da Gran Via ou uma esquina da 5ª Avenida. Daí o desespero da Comissão Europeia e do governo Biden com a inflação estourando nos 2 dígitos.

Temos uma geração de sobreviventes que, cedo ou tarde, irá se confrontar com outros desta mesma geração tocados pela sorte de estudar, comer, receber amor e respeito. O abismo entre a classe média e os pobres ficou tão grande, tão profundo, a ponto de transformar num privilégio coisas básicas como comer, tomar banho, vestir e estudar. A bomba-relógio armada a partir do pós-guerra dividiu o mundo entre ricos e pobres. Agora, faz tique-taque nas grandes cidades do mundo desenvolvido. A miséria deixou de ser invisível, remota, para se tornar presente, cotidiana, ousada e incômoda.

Antigamente - ou seja, há uma década, no máximo -, uma pessoa saía do Brasil, da África ou da Ásia para ser pobre ou remediado nos Estados Unidos ou na Europa, porque a vida era mais digna, as crianças comiam e estudavam. A brutal concentração de renda patrocinada pelo setor financeiro, tão criticada pelo filósofo Stéphane Hessel, gerou a globalização da pobreza. E ao escrever sobre ela, há mais de 20 anos, o professor Milton Santos foi profético: “A globalização mata a noção de solidariedade, devolve o homem à condição primitiva do cada um por si e, como se voltássemos a ser animais da selva, reduz as noções de moralidade pública e particular a um quase nada”.

Sobre o autor

*Marcelo S. Tognozzi é jornalista e consultor independente. Fez MBA em gerenciamento de campanhas políticas na Graduate School Of Political Management - The George Washington University e pós-graduação em Inteligência Econômica na Universidad de Comillas, em Madri.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto/2022 (46ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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Ex-líder soviético, Mikhail Gorbachev, morreu na última terça-feira (30/8), em Moscou

Ivan Alves Filho*

Paris, 1978

Eu ouvi pela primeira vez alguém pronunciar seu nome em Paris, no ano de 1978, quando Tony Lainé, psiquiatra e membro do Comitê Central do Partido Comunista Francês, voltou de uma viagem a Moscou. Pai da minha então companheira Anne, ele era filho de uma siberiana nascida a apenas dez quilômetros da fronteira da China. Muito ligado à cultura russa, era primo em primeiro grau de Helena Sakharov.

Tony Lainé simplesmente ficara encantado com uma conversa que tivera "com o mais jovem membro da direção do Partido Comunista da União Soviética". Quem era ele? Mikhail Gorbachev. Após um encontro político em Moscou, mais formal, Gorbachev o convidara para ir à sua casa, nos arredores da cidade. O dirigente soviético conhecia as ideias de Tony Lainé a respeito da psiquiatria e da psicanálise e gostaria de aprofundá-las. Tony era conhecido por suas sínteses entre as propostas de Freud e aquelas de Marx. "Alguma coisa vai mudar por lá. Esse Gorbachev é excepcional". Não deu outra.

Lisboa, 1980

Álvaro Cunhal, então secretário-geral do Partido Comunista Português, chama Giocondo Dias, à época secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro, a um canto durante um congresso do PCP e informa ao dirigente brasileiro que um dos representantes do PCUS queria muito conhecê-lo. Giocondo foi estar com ele. E voltou impressionado. "Alguma coisa vai mudar na União Soviética. Eu conheci um soviético extremamente interessante, um homem com ideias novas". Era Mikhail Gorbachev, mais uma vez.

Arma di Taggia, 2000

Carlo Cioni, que presidia a Fundação Gorbachev, era um respeitado militante do Partido Comunista Italiano. Economista, estudara na Escola de Quadros do PCUS e era casado com Dulce Rocque, minha eterna cunhada. Era amigo de Gorbachev, privava do seu convívio. Conversando certa vez comigo na Itália, Carlo Cioni discorreu sobre a amizade que unia Gorbachev a Alexander Dubcek, desde os anos 50 quando estudaram juntos em Moscou. Para ele, as ideias inovadoras tanto do líder da Primavera de Praga quanto do formulador da Glasnost e da Perestroika poderiam ter sido gestadas nessa ocasião.

Mikhail Gorbachev, falecido ontem, contribuiu para mudar o mundo, colocando um ponto final na Guerra Fria e valorizando, como nenhum outro dirigente comunista, as ideias civilizadoras da Democracia. Era preciso coragem. Finalmente descansou.

Sobre o autor

*Ivan Alves Filho é é historiador licenciado pela Universidade Paris-VIII (Sorbonne) e pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris. Os mais recentes de suas dezenas de livros publicados são Os nove de 22: o PCB na vida brasileira e Presença negra no Brasil: do século XVI ao início do século XXI.

* Artigo produzido para publicação no site da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.


O Museu Comunitário da Memória Histórica em Rabinal, Guatemala, dignifica a memória das vítimas de assassinatos e desaparecimentos forçados na área | Pnud/ Guatemala/Caroline Trutmann Marconi

ONU alerta para malefícios na vida de vítimas de desaparecimentos forçados

ONU News*

Este 30 de agosto é o Dia Internacional das Vítimas de Desaparecimentos Forçados. Para as Nações Unidas, esse tipo de violência se tornou um problema global e não se restringe a uma região específica do mundo.

No passado, muitas pessoas desapareciam por consequência de ditaduras militares. Hoje, a prática acontece também em situações complexas de conflito interno, especialmente como meio de repressão política de opositores.

Impacto dos desaparecimentos forçados

Milhares de pessoas desapareceram durante conflitos ou períodos de repressão em pelo menos 85 países ao redor do mundo.

O desaparecimento forçado tem sido frequentemente usado como estratégia para espalhar terror na sociedade. O sentimento de insegurança gerado por essa prática não se limita aos familiares próximos dos desaparecidos, mas atinge também suas comunidades e a sociedade como um todo.

De particular preocupação são a perseguição contínua de defensores de direitos humanos, familiares de vítimas, testemunhas e advogados que lidam com casos de desaparecimento forçado, o uso pelos Estados de atividades antiterroristas como desculpa para o descumprimento de suas obrigações, e a impunidade.

A ONU também pede atenção especial a grupos específicos de pessoas especialmente vulneráveis, como crianças e pessoas com deficiência.

© Unicef/Sebastian Rich ONU diz haver centenas de milhares de vítimas da tortura

Tortura

As Nações Unidas também alertam que as vítimas de desaparecimentos forçados são frequentemente torturadas e temem constantemente por suas vidas, além de estarem cientes de que suas famílias não sabem o que aconteceu com elas e que há poucas chances pequenas de que alguém venha em seu auxílio.

Essas pessoas, quando retiradas do recinto de proteção da lei e ficam “desaparecidas” da sociedade, são privadas de todos os seus direitos e ficam à mercê de seus captores.

Mesmo que a morte não seja o resultado e a vítima seja finalmente libertada do pesadelo, as cicatrizes físicas e psicológicas desta “forma de desumanização e a brutalidade e tortura” que muitas vezes a acompanham permanecem.

Familiares das vítimas

Os familiares e amigos das vítimas experimentam angústia, sem saber se a vítima ainda está viva ou onde está detida, em que condições e em que estado de saúde. Além disso, sabem que estão ameaçados, que podem sofrer o mesmo destino e que a busca da verdade pode expô-los a um perigo ainda maior.

A angústia da família é frequentemente agravada pelas consequências materiais do desaparecimento. Em alguns casos, a legislação nacional pode impossibilitar o saque de uma pensão ou o recebimento de outros meios de subsistência na ausência de uma certidão de óbito.

Quando mulheres são vítimas diretas do desaparecimento, se tornam particularmente vulneráveis à violência sexual.

As crianças também podem ser vítimas, direta e indiretamente. A perda de um dos pais por desaparecimento também é uma grave violação dos direitos humanos de uma criança.

Foto ONU/Cia Pak O dia internacional aprovado na Assembleia Geral em dezembro de 2010

Origens do dia

O dia internacional aprovado na Assembleia Geral em dezembro de 2010. A resolução expressava profunda preocupação com o aumento de desaparecimentos forçados ou involuntários em várias regiões do mundo.

A ONU saudou a adoção da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forçados, criada em 1992, que é um conjunto de princípios para todos os Estados.

*Texto publicado originalmente na ONU News. Título editado.


No pós-pandemia, sete em cada 10 alunos relatam sintomas de ansiedade ou depressão, segundo estudo. Professora revela sensação de desespero e impotência ao lidar com situação

Crise de saúde mental: 'Alunos estão deprimidos, ansiosos e faltam psicólogos'

Thais Carrança *, BBC News Brasil

Estamos com muita criança com crise de ansiedade — a gente acha, né, porque não podemos diagnosticar ninguém. Mas acredito que é decorrente de tudo que aconteceu na pandemia.

A gente conversa com a criança, fala com a família e fica de dar encaminhamento para o psicólogo. Mas depois de um tempo perguntamos, 'E aí, você está indo [ao psicólogo]?' e eles falam 'Fui uma vez, mas não teve mais nada.' Eles fazem o atendimento inicial, mas não conseguem acompanhamento com o psicólogo no postinho.

Encaminhamos uma criança que sofreu estupro quando mais nova e a UBS [Unidade Básica de Saúde] respondeu com um documento falando que ela necessita de encaminhamento à psicologia. Mas fala também que eles estão sem psicólogo no núcleo de apoio à saúde da família na unidade e que ela não se enquadra no perfil do Caps IJ [Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenil].

Eles dizem que estão sem previsão de contratar novo profissional, entregando à família uma lista de serviços de psicoterapia gratuita ou a preço social. Mas isso é completamente irreal para essa comunidade, porque as famílias não têm dinheiro nem para a passagem. Tem um monte de famílias realmente passando fome. A gente vê alunos pedindo dinheiro no farol."

O relato é de uma professora da EMEF (Escola Municipal de Ensino Fundamental) Solano Trindade, no Jardim Boa Vista, zona oeste de São Paulo, que optou pelo anonimato.

O quadro descrito por ela está longe de ser um caso isolado.

Um mapeamento feito pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, em parceria com o Instituto Ayrton Senna, divulgado em abril deste ano, identificou que 69% dos estudantes da rede estadual paulista relatam ter sintomas ligados à depressão e ansiedade.

A pesquisa também indicou que 5,7% dos estudantes relatam presenciar violência psicológica com muita frequência e outros 3,8% afirmam presenciar violência física em casa com muita frequência.

Mas as demandas relacionadas ao bem-estar psicológico dos alunos não se resumem a essas.

"Estou com seis alunas que acham que são trans [transexuais, pessoas cuja identidade de gênero é diferente de seu sexo biológico] e temos relatos de abusos sexuais sofridos pelas crianças", conta a professora, sobre questões relacionadas a sexualidade e gênero que surgem no cotidiano escolar e que demandariam acompanhamento qualificado.

Ela conta do sentimento de frustração e impotência diante da impossibilidade de encaminhar os alunos para atendimento adequado.

"Eu me sinto bem desesperada, com uma sensação de impotência, sobrecarregada e despreparada", desabafa.

"Porque é isso: se a única coisa que eles têm sou eu, eu queria conseguir oferecer uma coisa melhor a eles, mas eu não sei como devo agir em algumas situações, então me sinto mal. É horrível uma criança te procurar com uma situação grave como violência e você não fazer nada, porque parece que a escola, enquanto instituição, está aceitando aquela situação", lamenta a professora.

"Isso me deixa muito mal. Nas férias, eu estava sonhando com essas crianças."

'Volta da pandemia está sendo muito difícil'

Adriana Curado, coordenadora pedagógica da EMEF Solano Trindade, confirmou à BBC News Brasil o quadro descrito pela professora. Segundo a pedagoga, as questões de saúde mental dos alunos se agravaram com a volta às aulas presencias pós-pandemia.

"A volta da pandemia está sendo muito difícil, pois os alunos trazem várias situações para a escola", diz Curado.

'São muitos alunos com problemas de ansiedade, de pânico, questões de violência, abusos, negligências. Os casos aumentaram demais', diz Adriana Curado, coordenadora pedagógica da EMEF Solano Trindade

"São muitos alunos com problemas de ansiedade, de pânico, questões de violência, abusos, negligências. Os casos aumentaram demais, inclusive os casos de conflito, de eles conseguirem lidar com situações do dia a dia", diz a coordenadora.

A avaliação da professora é similar. "Eles estão com muita dificuldade de relacionamento entre si. Essa situação de voltar à escola e conviver com os colegas todos os dias, nós percebemos muita dificuldade neles", diz a educadora.

"E eles têm outros motivos para sofrimento: mortes na família, pais se separando, falta de comida em casa, que são coisas que eles não estão conseguindo lidar."

A coordenadora pedagógica observa que tudo isso acaba prejudicando o aprendizado.

"A pandemia causou uma defasagem muito grande nos alunos, de conteúdo, do aprender. Com essa defasagem, a gente consegue lidar, porque somos formados para isso. Então temos várias ações pedagógicas de reforço, de priorização curricular, para dar conta disso", conta.

"Mas, junto com isso, tem todas essas questões de saúde mental, principalmente entre os adolescentes. Teve um momento aqui um dia, que numa sala de cerca de 30 alunos, dez começaram a apresentar sintomas de ansiedade ao mesmo tempo. Então o professor precisa parar a aula, conversar. Os alunos saem de sala, perdem aula, depois no outro dia, eles não vêm. Então não está fácil, porque o professor também não tem formação para lidar."

'Males do nosso tempo'

Roberto Campos de Lima, vice-presidente do Instituto Ayrton Senna, entidade que realizou o estudo sobre saúde mental nas escolas estaduais paulistas em parceria com a Secretaria da Educação, avalia que "os males de natureza psicossocial são males do nosso tempo".

"Antes da pandemia, essa já era uma questão importante e que vinha sendo tratada, com um aumento da ansiedade, depressão e burnout [quadro de exaustão e estresse resultante de trabalho desgastante]", diz Lima.

Um levantamento da OMS (Organização Mundial de Saúde) de 2017 apontou o Brasil como o país com o maior índice de ansiosos do mundo (9,3% ou 18 milhões de pessoas) e o terceiro maior em depressivos (5,8% ou 11 milhões), muito próximo dos EUA e da Austrália (5,9%).

'Durante a pandemia, pais e mães perderam seus empregos, e crianças que antes estavam na escola acabaram presenciando mais tanto episódios de violência, quanto a dificuldade enfrentada pelas famílias', diz Roberto Campos de Lima, do Instituto Ayrton Senna

"Mas é fato também que a pandemia acabou se convertendo numa espécie de indutor disso, pois fomos privados de uma necessidade humana básica, que é a interação social", afirma o representante do Instituto Ayrton Senna.

Outro fator indutor são as condições econômicas e sociais, acrescenta o executivo.

"Durante esse período em que as pessoas ficaram em casa houve um aumento importante de casos de violência doméstica, pais e mães com situações econômicas mais vulneráveis perderam seus empregos, e crianças que antes estavam na escola acabaram presenciando mais, tanto os episódios de violência, quanto a dificuldade enfrentada pelas famílias", afirma.

'Um desafio multidisciplinar'

Os resultados dessa situação foram captados em pesquisas diversas na volta às aulas presenciais.

Uma pesquisa Datafolha, encomendada por Itaú Social, Fundação Lemann e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e divulgada em julho deste ano, indica que 34% dos estudantes estão com dificuldade de controlar suas emoções desde que voltaram a ter aulas presenciais de acordo com seus pais — percentual que sobe para 40% no Ensino Médio.

24% dos alunos estão se sentindo sobrecarregados,18% estão tristes ou deprimidos e só 40% recebem algum tipo de apoio psicológico nas escolas, segundo pesquisa Datafolha

Além disso, 24% dos alunos estão se sentindo sobrecarregados e 18% estão tristes ou deprimidos, de acordo com os responsáveis. Ainda segundo a pesquisa, só 40% dos estudantes estão recebendo algum tipo de apoio psicológico nas escolas.

Lima, do Instituto Ayrton Senna, observa que as redes públicas de educação não estão bem preparadas para lidar com esse cenário de sofrimento psíquico dos alunos.

Segundo ele, uma primeira dimensão que precisa ser considerada na abordagem a essa questão é a dos profissionais de educação, que precisam ter condições para trabalhar seu próprio desenvolvimento socioemocional para serem capazes de lidar com o aprendizado socioemocional dos alunos.

O desenvolvimento socioemocional é a capacidade de gerenciar as próprias emoções de modo a desenvolver o autoconhecimento, a empatia e as boas relações interpessoais.

A segunda dimensão, conforme Lima, é que o desenvolvimento socioemocional dos estudantes tem caráter multidisciplinar.

"Num determinado ponto, esse desenvolvimento deixa de ser um desafio somente educacional e passa a ser um desafio de saúde", observa, destacando o papel central dos conselhos tutelares na conexão entre escola e a rede de proteção social.

Ele reconhece, porém, que há deficiências na capacidade do setor público como um todo de lidar com a demanda da população por atendimento de saúde mental.

Levantamento da pesquisadora Renata Weber Gonçalves, do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas de Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Nuppsam/UFRJ), mostra que a saúde mental representava apenas 2,7% dos gastos federais com saúde em 2001, percentual que caiu a 2,1% — ou R$ 12,50 por pessoa — em 2019.

"A rede de proteção não é superavitária na sua capacidade. É uma rede que tem desafios do ponto de vista logístico e operacional. Então, certamente, uma maior alocação de recursos, especialmente com o quadro que se agrava no pós-pandemia, seria fundamental", avalia Lima.

Para a professora e a coordenadora pedagógica da EMEF Solano Trindade, seria desejável também que as escolas públicas contassem com psicólogos em seus quadros de funcionários.

"Todo mundo que trabalha na educação municipal entende que cada escola deveria ter um psicólogo, para atender essas crianças e adolescente e também para atender professor, porque é difícil para caramba", diz a professora que optou pelo anonimato.

"Eu vejo no posto de saúde onde sou paciente e por essa situação na escola que há uma falta de funcionários de saúde mental muito grande, num momento em que está crítico para o Brasil inteiro, não é só para as escolas. Está todo mundo mal e há muita dificuldade de conseguir atendimento psicológico ou psiquiátrico na rede pública de saúde."

UBS terá nova psicóloga, diz prefeitura

Procurada com relação ao relato das educadoras da EMEF Solano Trindade, a Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo informou que a UBS Jardim Boa Vista — unidade de saúde mais próxima à escola — conta com uma vaga de psicologia de 40 horas, cujo processo de contratação está em estágio final.

"A profissional já foi selecionada e iniciará na unidade a partir do dia 5 do próximo mês", informou a pasta em 17/8. Ainda segundo a secretaria, a unidade conta também com equipe de Estratégia de Saúde da Família, com profissionais habilitados para atender demandas que incluem saúde mental.

A pasta destaca que a UBS implementou projeto de terapia comunitária para professores e funcionários da EMEF Solano Trindade, em parceria com o Centro de Convivência e Cooperativa (Cecco) Previdência, para contribuir com a saúde mental da comunidade escolar.

A Secretaria Municipal de Educação, por sua vez, informou que possui um Núcleo de Apoio e Acompanhamento para a Aprendizagem (Naapa), para crianças e adolescentes que em virtude de situações sociais, culturais ou emocionais, se encontram em sofrimento ou com significativos prejuízos no seu processo de escolarização.

"Em relação à escola EMEF Solano Trindade, a unidade é acompanhada pelo Naapa, que faz direcionamentos dos estudantes de acordo com cada situação, realizando o acolhimento e a escuta coletiva", disse a secretaria.

*Texto publicado originalmente na BBC News Brasil. Título editado.


Simone Tebet em comissão especial do Impeachment | Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Simone Tebet defende teto de gastos e desestatização de empresas

Karine Melo*, Agência Brasil

A defesa da manutenção do teto de gastos no país foi um dos destaques da candidata do MDB à Presidência da República, Simone Tebet, durante sabatina promovida pelos jornais O GloboValor Econômico, e rádio CBN, nesta quinta-feira (25).

Tebet classificou a medida como “única âncora fiscal que sobrou”, mas ressaltou que a regra precisa ser aperfeiçoada. “Eu garanto a vocês, se não fosse o teto, mesmo ele sendo completamente furado, o orçamento secreto não seria só de R$ 19 bilhões, seria muito mais que isso. Ele [o teto de gastos] é a única âncora fiscal que sobrou. Precisa ser melhorada, pode ser aprimorada sim, mas é a âncora que nós temos”, reforçou acrescentando que a área de Ciência e Tecnologia, em um eventual governo dela, ficará fora do teto.

A presidenciável voltou a criticar o orçamento secreto que avaliou, pode ser “o maior esquema de corrupção do planeta Terra". Diante disso a candidata garantiu que, caso eleita, dará total transparência às chamadas emendas de relator. Tebet também defendeu transparência por parte de sua equipe ministerial e no uso do cartão corporativo.

Desestatizações

Declaradamente contrária à privatização da Petrobras, a candidata afirmou que, se eleita, não quer “privatizar por privatizar” as empresas públicas. “O Brasil está precisando de posicionamentos centrados, não é oito ou 80, não é ser totalmente a favor de todas as privatizações ou ser estatizante”, disse.

Tebet defendeu manter empresas que prestam serviços importantes à população e privatizar empresas como Eletrobras, Valec Engenharia, Construções e Ferrovias e a Empresa de Planejamento e Logística (EPL), responsável prestar serviços na área de projetos, estudos e pesquisas para subsidiar o planejamento da infraestrutura, da logística e dos transportes no país.

Terras

A presidenciável disse ser favorável à demarcação de terras indígenas, desde que a medida tenha como base um estudo antropológico. "Sou contra a invasão dessas áreas antes, seja por uma lado, seja por outro". Ao falar sobre Meio Ambiente a emedebista prometeu políticas para o "desmatamento ilegal zero na Amazônia". Até o fechamento desta reportagem não constava mais nenhuma agenda de campanha da candidata para hoje.

*Texto publicado originalmente na Agência Brasil.


Eleições 2022 escrita na urna eletrônica | Imagem: Gustavo Preiss/Shutterstock

Revista online | Ressentimento e reação conservadora: sobre eleição histórica

Mayra Goulart*, especial para a revista Política Democrática online (46ª edição: agosto/2022)

Toda eleição presidencial é histórica, todavia, não na mesma proporção, na medida em que algumas sobressaem como marcos de rupturas que permitem o início de novos ciclos. Foi o caso da eleição de 1989, a primeira depois da redemocratização. A eleição de 1994 também foi histórica ao encerrar um ciclo de instabilidades econômicas, com a consolidação do Plano Real, e políticas dando início a um novo padrão de organização das preferências e identidades partidárias no país.

Neste pleito, concorreram Fernando Henrique Cardoso (FHC), ex-ministro da Fazenda e renomado professor de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP), e o líder sindical Luís Inácio Lula da Silva. FHC concorreu pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), representando um projeto social-liberal que priorizava a estabilidade econômica e a rentabilidade dos investimentos financeiros como estratégia para o desenvolvimento e para a modernização do país.

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Tal projeto, assim como o PSDB, representava identidades e interesses de eleitores que se identificavam com as camadas médias e altas, cujo ideal de sociedade se estruturava a partir dos princípios da meritocracia e da liberdade econômica. Lula concorreu pelo Partido dos Trabalhadores (PT), representando um projeto igualitário-democrático que envolvia, em termos prioritários, a redução da miséria e a inclusão das minorias demográficas e não demográficas.

Os pleitos de 1998, 2002, 2006 e 2010 se inserem nos marcos do ciclo iniciado em 1994 e foram organizados por esta polarização entre duas forças situadas em posições relativamente próximas ao centro do espectro ideológico. Em outros termos, o sistema político brasileiro de 1994 a 2010 se organizou em torno da polarização entre duas alternativas de centro: (a) uma mais à esquerda,  cujos eleitores foram progressivamente assumindo uma feição popular, reunindo os espectros menos favorecidos da sociedade em termos econômicos e simbólicos, atraídos pelas iniciativas distribuição de renda / fortalecimento do salário mínimo e pelos programas de ação afirmativa voltados às minorias implementados ao longo dos governos petistas; e (b) outra mais à direita, que tinha em seu eleitorado as camadas médias e aquelas que se identificavam com as administrações tucanas, atraídos por um discurso de liberdade econômica com responsabilidade social o que envolvia o respeito às minorias e aos direitos civis.

PT e PSDB, portanto, representam projetos de modernização que de um jeito ou de outro passam pela dissolução dos grilhões que nos atrelam a um passado patriarcal, refratário à pluralidade e incompatível com a consolidação da institucionalidade democrático-liberal erguida pela Constituição de 1988, resultante do fechamento do ciclo autoritário civil-militar (1964-1985) que lhe precedera.

Veja, a seguir, galeria de imagens

Brasil em defesa da democracia | Foto: Joa Souza/Shutterstock
Constituição de 1988 | Imagem: Appreciate/Shutterstock
Eleições 2022 escrita na urna eletrônica | Imagem: Gustavo Preiss/Shutterstock
Fernando Henrique Cardoso em momento de fala | Foto: JFDIORIO/Shutterstock
Lula com semblante sério e apreensivo | Foto: Isaac Fontana/Shutterstock
Plano real economia Brasil | Imagem: rafapress/Shutterstock
Símbolo da democracia | Imagem: Lightspring/Shutterstock
Em defesa da democracia estampado na bandeira do Brasil | Foto: ThalesAntonio/Shutterstock
Bolsonaro durante reunião com empresários no Rio de Janeiro | Foto: Antonio Scorza/ Shutterstock
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Não obstante, durante esse ciclo, aqueles segmentos sociais que de alguma maneira não se identificavam com essa ideia de modernização, cujos conteúdos ético-morais feriam sensibilidades conservadoras, foram acumulando um conjunto de mágoas e ressentimentos em relação às transformações sociais em curso, posto que identificavam-se com um ideal de sociedade e de família patriarcal, nostálgico em relação ao modelo de ordem do autoritário. 

Ainda que seja impossível operar uma datação precisa do processo, é possível sugerir que esse ressentimento, até então escondido na névoa de sentimentos contraditórios que perpassam os seres humanos, passou a ganhar o espaço público, conforme foi encontrando símbolos capazes de destacá-los. Um desses símbolos foi a discussão da criminalização da homofobia que, já em 2008, serviu de mote para ações organizadas do campo evangélico, que foi ganhando coesão política a partir da reação a este tipo de temática. Em paralelo, observa-se também o progressivo desconforto das camadas altas e médias com o processo de inclusão econômica e social que conferia maior visibilidade às classes populares.

Tal ressentimento, apresentado como um ódio à esquerda e ao PT, que não podia ser canalizado pelas lideranças do PSDB, demasiado identificadas com tais transformações, encontra em Jair Bolsonaro um porta-voz. Sua liderança foi gestada ao longo de sete mandatos consecutivos como deputado federal, ao longo dos quais manteve uma atuação parlamentar consistente voltada à defesa das Forças Armadas e demais segmentos identificados com o modelo de sociedade autoritário, elitista e patriarcal oriundo do passado.

A eleição de 2022 é, portanto, particularmente histórica na medida em que pode indicar a ruptura ou o aprofundamento deste ciclo reacionário, incompatível com os marcos constitucionais democrático-liberais e com a configuração de uma sociedade aberta ao pluralismo de afetos, identidades e cosmovisões. Oxalá ela seja suficiente para que o país consagre sua opção em prol da democracia através das urnas e que não seja preciso buscar outras formas de derrotar o autoritarismo que ameaça pegar em armas para se defender.

Sobre a autora

*Mayra Goulart é professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (PPGCS/UFRRJ). É, ainda, coordenadora do Laboratório de Partidos Eleições e Política Comparada (LAPPCOM).

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto/2022 (46ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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*Título editado.


Luiz Inácio Lula da Silva

É possível dizer que Lula foi inocentado na Lava Jato?

Mariana Schreiber*, BBC News Brasil

O petista havia sido considerado culpado pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, mas o STF anulou essas condenações por entender que Lula não teve seus direitos respeitados ao longo dos processos conduzidos pelo então juiz Sergio Moro.

Hoje candidato à presidência, Lula cita o fim das condenações como prova da sua inocência e afirma que foi perseguido pela Lava Jato.

"Eu tinha certeza que esse dia chegaria. Esse dia chegou com o voto do (ministro do STF Edson) Fachin, de reconhecer que nunca teve crime cometido por mim, de reconhecer que nunca teve envolvimento meu com a Petrobras. E todas as amarguras que eu passei, todo o sofrimento que eu passei, acabou", disse o ex-presidente no ano passado.

A declaração se referia à determinação do ministro Edson Fachin para que os processos julgados por Moro em Curitiba fossem anulados e julgados por outro juiz, em Brasília. Na decisão, Fachin entendeu que o Ministério Público (MP) não demonstrou que havia envolvimento da Petrobras nos supostos crimes de Lula, requisito necessário para o caso ser julgado na vara de Moro.

Essa decisão foi confirmada pela Segunda Turma do STF, que depois também julgou Moro como tendo sido um juiz parcial nos processos contra o petista, o que reforçou a anulação das condenações.

Para críticos do ex-presidente, como os processos foram anulados por razões técnicas, não ficou provada a inocência de Lula frente às acusações. Na visão desse grupo, ele não foi "inocentado" pela Justiça. Seu principal adversário na eleição, o presidente Jair Bolsonaro, inclusive, costuma se referir ao petista como "descondenado".

"Quando o Supremo Tribunal Federal anulou o caso Lula, muitas pessoas passaram a falar que ele foi inocentado, quando ele não foi inocentado. Três tribunais, primeira, segunda e terceira instâncias, juízes independentes, mais os ministérios públicos que atuavam perante essas instâncias de modo independente, entenderam que existiam fortes provas, não só de corrupção, mas de lavagem de dinheiro também", disse o ex-procurador da Lava Jato Deltan Dallagnol, em um vídeo compartilhado em julho nas suas redes sociais.

"E aí o Supremo vem e ele não inocenta o Lula. O Supremo não disse que não existiam provas. Ele não entrou no mérito. O Supremo anulou por uma questão formal, do mesmo modo como anulou, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) e o Supremo, os grandes casos contra corrupção no país. O sistema de Justiça nosso foi feito para garantir impunidade dos poderosos que roubam nosso país. Essa é a verdade", disse ainda o ex-procurador e agora candidato a deputado federal.

Nesta reportagem, a BBC News Brasil relembras as principais acusações contra Lula, explica porque as condenações foram anuladas e traz a opinião de diferentes juristas para a questão: afinal, Lula foi inocentado na Justiça?

Mas antes de abordar esses três pontos, é importante entender o princípio da presunção da inocência, previsto na Constituição brasileira. Segundo esse princípio, toda pessoa é considerada inocente até que se prove o contrário em um julgamento realizado dentro da lei. Dessa forma, com a anulação dos processos contra Lula, ele recuperou seu status de inocente perante a Justiça.

Já a opinião pública segue bem dividida. Uma pesquisa da consultoria Quaest de junho mostrou que 48% dos eleitores acreditam que Lula foi condenado corretamente, contra 43% que têm opinião contrária.

1. Relembre os processos contra Lula

O petista enfrentou uma série de acusações na Operação Lava Jato. Hoje, todos os desdobramentos na Justiça estão encerrados ou suspensos.

Grosso modo, houve dois caminhos para a conclusão desses processos: em alguns deles, Lula foi absolvido, ou seja, a Justiça considerou que não havia provas de que havia cometido crimes; em outros, as condenações foram anuladas porque os direitos do petista foram desrespeitados.

Um dos casos em que ele foi absolvido, por exemplo, foi o processo conhecido como "Quadrilhão do PT", em que Lula, a ex-presidente Dilma Rousseff e outros petistas eram acusados de formar uma organização criminosa.

"A denúncia apresentada, em verdade, traduz tentativa de criminalizar a atividade política. Adota determinada suposição — a da instalação de 'organização criminosa' que perdurou até o final do mandato da ex-presidente Dilma Vana Rousseff — apresentando-a como sendo a 'verdade dos fatos', sequer se dando ao trabalho de apontar os elementos essenciais à caracterização do crime de organização criminosa", escreveu o juiz Marcus Vinicius Reis Bastos, da 12ª Vara Federal em Brasília, na sentença que absolveu os acusados.

Na maioria dos casos contra Lula na Lava Jato, porém, os processos foram anulados ou interrompidos porque a Justiça entendeu que houve ilegalidades contra o ex-presidente.

Ou seja, nessa segunda situação, não houve uma análise final de mérito das acusações, para decidir se elas eram verdadeiras ou falsas, por que não é possível fazer essa análise em um processo em que os direitos do acusado foram desrespeitados.

Isso ocorreu, por exemplo, nos dois processos mais conhecidos, em que Lula chegou a ser condenado: o do tríplex do Guarujá e o do sítio de Atibaia.

No primeiro, o petista foi acusado de receber uma cobertura no Guarujá, cidade no litoral paulista, do grupo OAS como um suposto acerto por desvios de recursos da Petrobras durante o governo petista.

No segundo, Lula foi acusado de ser beneficiado por obras realizadas por OAS e Odebrecht em um sítio em Atibaia, no interior de São Paulo, que pertencia a um amigo seu e que o ex-presidente frequentava com sua família. Também nesse caso, a força-tarefa da Lava Jato dizia que essas benfeitorias foram bancadas com dinheiro desviado da estatal.

O que dizia a defesa do petista?

Em ambos os casos, a defesa de Lula argumenta que os dois imóveis jamais pertenceram a Lula. Os advogados também afirmaram que não havia qualquer prova concreta de que as obras foram pagas com dinheiro desviado da Petrobras, já que essas acusações se baseavam na palavra de delatores ou de outros réus do processo, que estariam tentando se beneficiar na Justiça ao acusar Lula.

No caso do tríplex do Guarujá, o petista havia comprado com sua então mulher, Marisa Letícia, um apartamento de dois quartos no mesmo prédio do triplex. Mas a cooperativa que iria construir o empreendimento faliu e a obra foi assumida pela OAS.

Foi após essa mudança que a cobertura teria sido reservada para Lula ao invés do apartamento de dois quartos. Ele e Marisa Leticia chegaram a visitar o imóvel para ver as obras realizadas pela OAS no triplex.

Na visão da acusação, o apartamento estava sendo personalizado para o casal e não havia sido passado formalmente para nome de Lula como forma de ocultar o crime.

Já a defesa diz que a OAS estava tentando vender o tríplex ao ex-presidente, que o casal visitou o apartamento para avaliar sua compra, mas que acabou desistindo do negócio.

Lula no local do velório do neto, quando deixou a carceragem da Polícia Federal em Curitiba durante seu período na prisão

Lula e seus advogados sustentavam ainda que as acusações seriam fruto de uma perseguição da Lava Jato contra Lula, com apoio de parte da imprensa brasileira, para tirá-lo da vida política.

Nos dois processos, Lula foi julgado culpado pelo então juiz Sergio Moro. Nas sentenças, Moro considerou que os imóveis não estavam no nome de Lula como forma de ocultar os benefícios que estaria recebendo ilegalmente e, por isso, o condenou por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

As duas condenações foram confirmadas depois pelo Tribunal Regional Federal da 4ª região. No caso do triplex, isso ocorreu ainda em 2018, o que tornou Lula inelegível naquela eleição. Ele também foi preso naquele ano porque o STF autorizou a prisão após condenação em segunda instância.

2. Por que os processos julgados por Moro foram anulados?

Primeiramente, o STF entendeu, em março de 2021, que esses processos não deveriam ter tramitado na Justiça de Curitiba. Pouco depois, em junho, a corte decidiu também que Moro não julgou Lula com imparcialidade.

Com essas duas decisões, as condenações foram consideradas nulas, mas Lula ainda poderia responder às acusações em novos processos, a serem realizados na Justiça de Brasília.

No entanto, esse retorno à estaca zero acabou provocando a prescrição da pretensão punitiva. Ou seja, terminou o prazo estabelecido na legislação penal para possível punição dos crimes, caso Lula fosse considerado culpado.

E quando não há mais possibilidade de punição, as acusações são arquivadas definitivamente. Ou seja, Lula não pode mais ser julgado nos casos do triplex e do sítio de Atibaia.

Que diferença faz Lula ser processado em Curitiba ou Brasília?

Existe uma regra no direito penal brasileiro que determina que um processo criminal deve ocorrer na vara do local onde o suposto crime ocorreu. Por exemplo, se um assassinato acontece no bairro carioca de Copacabana, o julgamento ocorre na Justiça do Rio de Janeiro.

Essa regra serve para evitar que um processo seja direcionado para um juiz específico, contribuindo para a neutralidade do julgamento.

Inicialmente, os casos da Lava Jato estavam concentrados na vara do então juiz Sergio Moro. Isso ocorreu porque a operação, que teve sua primeira fase em março de 2014, começou a partir de desdobramentos de investigações contra organizações criminosas que atuavam no Paraná, envolvendo doleiros e o ex-deputado federal do PP José Janene.

No entanto, com o avançar das investigações e as informações obtidas em acordos de delação dos primeiros investigados, a operação passou a apurar crimes em outras regiões do país, nem sempre relacionados a Petrobras.

A força-tarefa da Lava Jato, porém, argumentou que havia uma conexão entre esses crimes e que todos deveriam ser investigados pela operação e julgados por Moro.

Desde o início da Lava Jato, a defesa de vários investigados contestaram essa decisão e pediram que os casos fossem redistribuídos para outras varas de outros Estados.

A partir de 2015, diversos processos foram redirecionados principalmente para Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. No entanto, o STF determinou que todos os casos que envolvessem a Petrobras deveriam ser mantidos com Moro. Como o Ministério Público acusava as empreiteiras de terem usado recursos desviados da estatal para beneficiar Lula, os processos do ex-presidente continuaram na vara de Curitiba.

No entanto, em março de 2021, ministro Edson Fachin acolheu o argumento da defesa de que, na verdade, não havia elementos concretos na acusação comprovando que o petista teria interferido diretamente em contratos da Petrobras para favorecer OAS e Odebrecht em troca do tríplex ou das obras no sítio. Sua decisão depois foi confirmada pela Segunda Turma da Corte.

Para a professora de direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e procuradora da República Silvana Batini, que atuou em casos da Lava Jato do Rio de Janeiro, foi um erro não ter se adotado critérios mais objetivos para delimitar a competência dos casos da Lava Jato no início da operação.

"Quando (a Lava Jato) começou, era a primeira vez que você lidava com uma mecânica tão vasta de fatos ligados entre si. Então, você podia ter uma interpretação sobre competência técnica muito extensa, que tornava o juiz de Curitiba quase um juiz universal. Isso aconteceu e o Supremo deixou", afirmou à BBC News Brasil.

"Depois, quando o Supremo veio colocar um freio, colocou, criando um critério que não existia na lei. Disse: 'Olha, (permanece na Vara de) Curitiba só o que for Petrobras'. Não existe competência em razão da vítima. Inventaram aquilo. Então isso tudo, realmente, dá um visão de como (houve) uma insegurança jurídica que o próprio Supremo acabou plantando", disse ainda.

O impacto da Lava Jato

Por trás da decisão de Fachin de tirar os processos contra Lula de Curitiba havia o contexto de enfraquecimento da Lava Jato.

Em 2019, a série de reportagens Vaza Jato, do portal Intercept Brasil, revelou supostos diálogos privados da força-tarefa da operação, inclusive conversas entre o procurador Deltan Dallagnol e Sergio Moro, que indicavam uma espécie de conluio por parte do Ministério Público e do então juiz nos processos contra Lula e outros acusados.

Esses diálogos mostravam, por exemplo, que Moro teria sugerido aos procuradores ouvir uma testemunha que poderia incriminar o petista.

Foi nesse contexto que ganhou força o pleito antigo da defesa de Lula para que Moro fosse declarado suspeito nos processos que havia julgado o petista antes de deixar a magistratura para virar ministro no governo de Jair Bolsonaro.

Um dos argumentos dos advogados era, por exemplo, a condução coercitiva que o petista sofreu em 2016, mesmo sem ter sido previamente intimado a depor, como prevê a lei.

Conversas entre Sergio Moro e Deltan Dallagnol foram reveladas pelo Intercept Brasil

Com o aumento do desgaste da Lava Jato, foi aumentando a expectativa de que Moro seria declarado parcial nos processos contra Lula. O que se diz nos bastidores de Brasília é que Fachin queria evitar que Moro fosse declarado suspeito e, por isso, decidiu aceitar o pedido da defesa para retirar os processos da vara de Curitiba. O ministro de fato argumentou na sua decisão que, após a mudança dos casos para outra vara, não fazia mais sentido julgar se Moro era ou não parcial.

A preocupação de Fachin seria evitar que a declaração da suspeição do ex-juiz tivesse efeito mais amplo de anular não só as condenações, mas todas as investigações contra Lula realizadas na vara de Curitiba.

A maioria do STF, porém, discordou de Fachin e, com isso, a Segunda Turma analisou a suspeição de Moro e declarou que ele foi parcial contra Lula, provocando a anulação de todas as investigações.

3. Afinal, Lula foi inocentado nos casos do triplex e do sítio?

Gustavo Badaró, advogado e professor de Direito Processual Penal da Universidade de São Paulo (USP), explica que o termo inocentado não existe dentro da linguagem jurídica e é usado de forma coloquial. Dentro das normas jurídicas, lembra ele, uma pessoa acusada pode ser condenada ou absolvida.

Segundo Badaró, com a anulação da condenação de Lula, ele "é tão inocente quanto quem nunca foi processado".

Na sua avaliação, porém, não seria adequado, numa linguagem leiga, dizer que Lula foi inocentado nos casos do triplex e do sítio porque isso passa a ideia de que ele foi absolvido nesses processos.

"Tem um certo jogo de palavras que ao dizer 'o Lula foi inocentado pelo Supremo Tribunal Federal' parece que você está querendo dizer que o Supremo deu um atestado de idoneidade pra pessoa. A mim, parece que dá uma ideia de que o Poder Judiciário declarou absolvição", ressaltou.

Já para Davi Tangerino, advogado e professor de Direito Penal da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), não faz sentido colocar a questão se Lula foi ou não inocentado, a partir do momento em que os processos foram considerados nulos.

"Para alguém ser inocentado ou condenado, existe um pressuposto lógico, no Estado Democrático de Direito, que ele tenha sido julgado, entre outras coisas, por um juiz imparcial. Então, nos casos da Lava Jato (julgados por) Moro, quando você tem a declaração pelo Supremo de parcialidade do Moro, o binômio condenado ou inocente não faz mais sentido porque ele pressupõe uma denúncia recebida por um juiz competente e imparcial, um julgamento, e aprovação de uma sentença", argumenta

"Quando você retira dessa equação o juiz parcial, desaparece, via de consequência, o binômio condenado ou inocentado, e aí continua a valer o quê? A presunção de inocência", reforçou.

A procuradora Silvana Batini também diz que a discussão é irrelevante do ponto de vista jurídico. Já no campo político, nota ela, cabe a cada eleitor fazer seu juízo sobre Lula.

"No aspecto jurídico, não tem a menor relevância o que aconteceu, o fato de ele ser inocentado ou não ser inocentado. Os processos do Lula desapareceram porque foram anulados", disse.

"Não se obteve nenhum juízo definitivo sobre responsabilidade criminal dele. Se reconheceu que o processo estava nulo, então não é possível fazer juízo nenhum sobre aqueles fatos hoje. Se não tem nenhum juízo definitivo sobre culpa, o que prevalece é a presunção da inocência. Isso é o que a lei diz, o que a Constituição diz. No plano político, isso aí é absolutamente incontrolável, cada eleitor que faça as suas análises", ressalta.

Procurada a conceder entrevista à reportagem, a defesa de Lula se manifestou após a publicação.

"Nosso trabalho jurídico resultou no encerramento, nas mais diversas instâncias, de 26 procedimentos que foram abertos indevidamente contra o ex-presidente Lula durante a perseguição promovida contra ele pela "operação lava jato" e seus desdobramentos. Também conseguimos a primeira decisão proferida pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU em favor de um cidadão brasileiro, reconhecendo que Lula sofreu violação aos seus direitos fundamentais previstos no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos da ONU", disse o advogado Cristiano Zanin, por meio de nota.

"Foi um trabalho que necessitou de muita resiliência, muito fôlego e o uso de uma visão multidisciplinar do Direito, pois tivemos que passar quase 6 anos defendendo a inocência de Lula e os inúmeros vícios presentes nos processos e procedimentos abertos contra ele nas mais diversas frentes. Felizmente, conseguimos vencer o caso e permitir que Lula pudesse resgatar todos os seus direitos, inclusive os direitos políticos, permitindo que ele seja o candidato à Presidência da República mais bem posicionado nas eleições deste ano", acrescentou Zanin.

Divisão

Mesmo que cerca de metade da população considere o petista culpado, segundo pesquisa Quaest de junho, diversas sondagens eleitorais têm apontado Lula como favorito para vencer a eleição presidencial em outubro.

Com o acirramento da corrida eleitoral, a tendência é que os adversários de Lula usem cada vez mais o escândalo de corrupção na Petrobras durante o governo petista para tentar tirar votos do ex-presidente.

Mesmo que o STF tenha entendido que a operação cometeu abusos, R$ 6 bilhões desviados da estatal foram devolvidos após acordos de colaboração, leniência e repatriações. A expectativa é que PT rebata esses ataques reafirmando a inocência de Lula e acusando a Lava Jato de ter perseguido o partido politicamente.

Para reforçar esse argumento, os petistas costumam lembrar que Moro e Dallagnol entraram de vez para a política e são candidatos na eleição desse ano.

*Texto publicado originalmente na BBC News Brasil.