Revista online | Não! Não Olhe! Sim! Enxergue!
Lilia Lustosa*, especial para a revista Política Democrática online (47ª edição: setembro/2022)
Em um primeiro momento, o título pode confundir… Não, não se trata de outra resenha sobre o afiado Não Olhe Pra Cima (2021), de Adam McKay, lançado no ano passado. Desta feita, o assunto é o terceiro longa do diretor afro-americano Jordan Peele, autor dos também excelentes Corra (2017), Ópera Prima que lhe rendeu o Oscar de melhor roteiro original, e Nós (2019), filme assustador que se vale da mítica do doppelgänger para revelar o lado mais sombrio de cada um de nós. O que os três têm em comum é o mergulho em um gênero esnobado pela crítica, o terror, que no seu caso, vem sempre acompanhado de uma forte crítica social, centrada, principalmente, na questão da discriminação racial.
Em Não! Não Olhe!, essa questão continua presente, claro, mas ela se dilui em tantas outras camadas de simbolismos e significados que a trama apresenta. Em uma primeira leitura, estamos diante de um “neowestern de ficção científica trabalhado no suspense”.
A história se passa em um rancho perdido na aridez da Califórnia, onde a família Haywood cria cavalos e faz o adestramento dos animais para que eles possam “atuar” em produções hollywoodianas. Uma tradição familiar que descende do jóquei que aparece nas primeiras imagens em movimento da história do cinema: as dos cavalos de Muybridge. Acontece que os livros só se atêm ao movimento do animal, sem dar nenhum crédito a quem teria sido aquele jóquei negro da foto. Segundo Peele, um legítimo Haywood.
A trama poderia girar simplesmente em torno dessa omissão histórica e já seria por si só bem interessante. No entanto, essa é apenas uma das possibilidades de leitura que o filme nos proporciona. Há muitas mais.
Partindo de um prólogo incompreensível e aparentemente desconectado do resto da história, em que um chimpanzé ensanguentado aparece no meio de um set de filmagem, passamos, por meio de um corte seco, diretamente ao rancho Haywood. Ali, a morte repentina e inusitada do patriarca da família dá início à trama do filme.
A partir daí, O.J. (Daniel Kaluuya), primogênito do velho Haywood, toma a frente dos negócios e, por pura falta de habilidade, sobretudo social, fracassa em seguir os passos do pai. Nem com a ajuda da irmã Emerald (uma carismática Keke Palmer) os negócios conseguem ir adiante. O jeito então é vender alguns cavalos a fim de não perder o rancho. Seu maior comprador é o vizinho Jupe (Steven Yeun), um coreano, ex-ator-mirim, que agora ganha a vida com um parque de diversões temático, meio fajuto, instalado naquele meio do nada californiano. Jupe usa os cavalos para criar espetáculos não muito claros no começo da história. O que se sabe apenas é que a cada apresentação o empresário volta para comprar mais um animal.
Aos poucos, coisas estranhas começam a acontecer no rancho Haywood. Uma nuvem se fixa no céu, objetos caem sabe lá Deus de onde, a energia vai embora sem explicação, pessoas começam a desaparecer… Tudo muito surreal! A primeira suspeita é a de que esses fenômenos sejam obra de seres extraterrestres que estariam vigiando a Terra, talvez com o intuito de invadi-la. Até aí, nada de muito original. Acontece que Peele vai subverter essa lógica, e de observados, os terráqueos passarão a ser os observadores. De caçados a caçadores.
Isso porque os irmãos Haywood decidem instalar câmeras em todo o perímetro de sua propriedade, com o intuito de registrar qualquer objeto ou movimento suspeito no céu. Os olhos mecânicos voltados para o alto, vão devolver o olhar alienígena, que observa enquanto é observado.
O olhar é, portanto, central nessa história tão bem inserida em nossa sociedade do espetáculo, em que não basta ver, mas é preciso, sobretudo, ser visto. Não basta ter conhecimento da existência de algo, é preciso filmá-lo e/ou fotografá-lo a fim de midiatizá-lo, viralizá-lo, transformando-o em capital e fama. Vide aqui a insistência de Emerald para mandar o material filmado à apresentadora Oprah. Esse mesmo olhar, que é forma de controle para uns e de submissão para outros, é também fundamental para que Peele desenvolva a sua questão-destaque, que sempre é a das injustiças sociais enfrentadas até hoje pela população negra.
Confira, abaixo, galeria de imagens:
Menos assustador do que Corra, mas ainda mais complexo do que Nós, Não! Não Olhe! está mais para suspense do que para terror. Mas bem distante do tradicional, claro! Estamos aqui diante de um suspense com jeitão de western e de ficção científica, tudo junto e misturado, em que Jordan Peele parece ter ido beber da fonte de Hitchcock, Spielberg, Shyamalan e Sergio Leone, com direito a uma eclética trilha sonora, assinada por Michael Abels, espécie de homenagem às obras desses diretores.
Um filme que, em uma primeira leitura, pode parecer puro entretenimento, mas que a cada releitura, mostra que chegou para chacoalhar nossos neurônios. Para enxergar, é preciso, porém, abrir bem os olhos e a mente.
*Lilia Lustosa é crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), Suíça.
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de maio de 2022 (47ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Revista online | 1789 e 1822: duas datas emblemáticas
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Morre Jean-Luc Godard, o grande mestre da nouvelle vague no cinema, aos 91
Inácio Araujo*, Folha de São Paulo
Jean-Luc Godard, o ícone da nouvelle vague, morreu nesta terça-feira. Ele teria recorrido ao suicídio assistido, não por estar doente, mas muito cansado, de acordo com o relato de um familiar ao jornal francês Libération. A prática é permitida na Suíça, onde Godard vivia.
O diretor por trás de uma revolução no cinema veio de uma família de banqueiros riquíssima, mas procurou se afastar por completo dessa riqueza e foi como operário que financiou seu primeiro curta-metragem.
Mais tarde, já morando em Paris, ele roubou do avô um exemplar de um livro autografado por Paul Valéry especialmente para o avô, de quem era muito amigo. Godard podia ter pedido dinheiro em casa, mas preferiu o furto. Era sua forma de mostrar o desejo de independência.
Quando escreve seu primeiro artigo para a já mundialmente famosa revista Cahiers du Cinéma, há 70 anos, deu ao seu texto o nome de "Defesa e Ilustração da Decupagem Clássica". Expunha ali as virtudes dos filmes feitos e montados à maneira clássica, pois, como explicitaria quatro anos mais tarde, a montagem e a direção de um filme são a mesmíssima coisa.
Isso ele fez na revista daquele que foi "o pai espiritual" dos jovens redatores da revista —André Bazin, o criador da teoria realista do cinema moderno, para quem a montagem era não mais do que uma trapaça.
Jean-Luc Godard foi assim desde sempre —iconoclasta. Gostava de pôr tudo em questão, até ele mesmo.
Confira filmes de Jean-Luc Godard
Em 1959, questionaria o cinema inteiro, com "Acossado", sua retumbante estreia. Tudo era improvisado. Não havia roteiro. Pela manhã, o diretor tomava as notas sobre o que pretendia filmar naquele dia. Encerrava as filmagens quando entendia que a inspiração tinha acabado.
A classe cinematográfica tradicional, tão atacada nos Cahiers pela turma da nouvelle vague, se regozijava com aquele filme que, diziam, seria impossível de montar.
Doce ilusão. Não só "deu montagem", como a mais moderna do mundo. Aquela em que cada "raccord" —isto é, o encontro entre dois planos— parecia desafiar os postulados do "bom cinema" e anunciar o futuro de sua arte.
Desde então mudaram os parâmetros da montagem. Mas também os da filmagem. Com seu fotógrafo, Raoul Coutard, criou um estilo de reportagem, cinema com câmera na mão, sem luz artificial, ou quase, captação das ruas ao vivo, longe dos estúdios, um tanto de ficção e um tanto de documentário no mesmo filme.
Godard libertou o cinema de todas as convenções que o prendiam a um determinado tipo de forma. Sacudiu a poeira da sua arte com tal ênfase que com um único filme se tornou um diretor essencial para o conhecimento do cinema.
Sua arte era "a verdade em 24 quadros por segundo", disse. Era também a mais próxima do homem, pois a única que o captava por inteiro em seu tempo e espaço, sem intermediários. Mestre das frases de efeito (mas não só de efeito), postulou, com seu amigo Eric Rohmer, a superioridade de sua arte —"o cinema é um pensamento que toma forma, bem como uma forma que permite pensar".
Godard gostava da liberdade. Inclusive da de mudar de filme para filme. Cada filme era um novo experimento. Gostava, por isso mesmo, do cinema mudo, aquele de um tempo "em que o cinema ainda não sabia o que era" e se buscava, filme após filme. Antes de ser arte ou modo de expressão, o cinema se confundia então com a liberdade e a descoberta permanente.
Quando passou da crítica à direção, Godard desafiou todas as regras estabelecidas. Se as regras diziam que não se faz um primeiro plano com lente grande angular, ele fazia. Se diziam que não se pode usar branco para evitar o brilho, ele usava. Cada filme parecia ir em um sentido diferente do anterior. A contradição não deixa de ser uma forma de arte.
Além de Raoul Coutard, o fotógrafo, sua companheira nessa primeira fase foi a atriz dinamarquesa Anna Karina, por quem se encantou vendo um filme publicitário e com quem se casaria pouco depois, lançando seu rosto, já, em "Uma Mulher É u ma Mulher", de 1961.
O casamento duraria menos que a parceria. "Alphaville", de 1965, é o primeiro filme que eles fizeram depois da separação —e em não poucos momentos uma declaração de amor do cineasta por sua musa. Fariam ainda "Made in USA", de 1966.
A única fidelidade de Godard, desde então e até agora, foi à atualidade. Podemos vasculhar sua filmografia. É sempre do presente, de algo que o atrai ou inquieta que seus filmes estão falando. Além disso, se permitiu sempre ser contraditório.
A contradição atingiu também sua vida pessoal, como relata sua segunda ex-mulher, Anne Wiazemsky. Tão revolucionário na arte, podia ser doentiamente ciumento em casa. Casa que, por sinal, podia usar como locação. É Wiazemsky, de novo, quem relata a dureza de ser forçada a retomar pelo diretor, em cena, na manhã seguinte, a mesma discussão que tivera com ele, e no mesmo lugar, na noite anterior.
Para o bem e para o mal, assim construía sua arte. Seu amigo Eric Rohmer, também diretor, dizia que Godard era como um ladrão, que pilhava uma imagem aqui, uma citação literária ali, depois um trecho de música, depois a imagem de um outro filme, juntava tudo e transformava numa ideia própria. Assim montava seus painéis, colando pedaço a pedaço, às vezes desorientando o espectador que por vezes procurava ali uma profundidade que Godard mesmo nunca procurou. Sua arte era a do olhar, a da pele.
Era, também, do momento. Cada filme de Godard é uma espécie de documentário sobre o momento em que é feito —"O Pequeno Soldado", a Guerra da Argélia; "Alphaville", o totalitarismo informativo; "O Demônio das Onze Horas", a sociedade de consumo; "Weekend", a sociedade automobilística e seus congestionamentos-monstro; "A Chinesa" e a ascensão do maoísmo.
A esse último, por sinal, Godard aderiu nos idos de 1968. Renegou sua obra anterior, deixou o cinema comercial, passou a fazer filmes coletivos destinados à classe operária, que, verdade seja dita, não se sensibilizava muito com eles.
Godard passou daí às séries em vídeo, quando nenhum cineasta ousava usar essa tecnologia. Que importa? Godard experimentava. Foi experimentando que chegou à TV, com as séries "Seis Vezes Dois", de 1976, e "France, Tour, Détour, Deux Enfants", de 1977.
A partir daí, seus filmes podem ser definidos, cada vez mais, por um novo gênero —o ensaio cinematográfico. Nem ficção, nem documentário, às vezes os dois, às vezes nenhum. Voltou ao circuito comercial com "Salve-se Quem Puder (A Vida)".
Ora trouxe grandes estrelas, como Johnny Halliday e Isabelle Huppert, ora lançou talentos, como Marushka Detmers. Cada vez mais solitário, ele se recolheu à sua casa na Suíça e, não raro, apenas juntando pedaços de filmes de outros, soube impor, pela montagem, sua visão das coisas. Falou das guerras na Europa, da ascensão do neoliberalismo, da América, do socialismo.
Desde "Acossado", que sedimentou também o poder de seu ator-fetiche Jean-Paul Belmondo, até os mais recentes filmes-ensaio, é possível gostar ou não de sua arte, "entender" ou não o que está lá, achar chato ou não. Mas três coisas não se poderá negar: a primeira é que se contam nos dedos os artistas com a inteligência e a inquietude de Godard; a segunda, cada vez que ele pôs a câmera para filmar, combinou cores, moveu seus atores e produziu beleza; a terceira, desde que começou a filmar o cinema nunca mais foi o mesmo.
O solo em que pisamos, quem o fecundou foi Godard. Com chatices e erros, mas também e sobretudo com gênio e grandeza.
*Texto publicado originalmente no portal da Folha de São Paulo.
Milícias alcançam tráfico e já ocupam metade das áreas controladas por grupos armados no RJ, diz estudo
g1 Rio*
Um estudo que será lançado nesta terça-feira (13) afirma que as milícias alcançaram a influência do tráfico de drogas e passaram a ocupar metade das áreas dominadas por grupos armados na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Enquanto isso, mais de 2 milhões de pessoas estão sob controle da facção do tráfico de drogas Comando Vermelho.
O levantamento do Instituto Fogo Cruzado e do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense (Geni/UFF), mostra que o crescimento territorial dos milicianos foi de 387% em 16 anos. Com 256,28 km², ou 10% do estado, o domínio corresponde a quase duas vezes o tamanho da cidade de Niterói.
Avanço da milícia
Grupo ocupa 10% do território total do Grande Rio
O estudo apresenta também o Comando Vermelho ainda à frente do maior domínio populacional: 2,042 milhões de moradores. Mais de 60% da expansão da facção criminosa ao longo dos anos foi na Baixada Fluminense, em que quase metade das áreas controladas por grupos armados estão nas mãos da milícia.
De 2006 a 2008, o espaço total ocupado por grupos armados era de 8,7%. Desde então, as facções Comando Vermelho, Terceiro Comando Puro e ADA diminuíram a sua área de influência. A série histórica sinaliza então um “potencial de crescimento” das milícias “mais acelerado que os demais grupos”.
Mais de 90% da expansão de milicianos ocorreu em locais que não eram controlados por facções criminosas.
Os dados do Mapa dos Grupos Armados não deixam dúvidas: as milícias são as principais responsáveis por esse aumento de áreas sob domínio de grupos armados, razão pela qual se tornaram a principal ameaça à segurança pública no Grande Rio”, diz a pesquisa.
Enquanto isso, o Comando Vermelho corresponde a 40,3% dos territórios ocupados por grupos armados. Terceiro Comando Puro alcança quase 9%, e ADA, 1,1%.
Na capital, os números são ainda maiores: 74,2% da área dominada pelas milícias. Quase 30% da cidade é controlada por algum grupo armado, em que três em cada quatro são de milicianos.
O estudo mostra que a milícia se concentra “quase que exclusivamente” na Zona Oeste do Rio, seguida pela Zona Norte. Números são inexpressivos e tendem a zero na Zona Sul e no Centro.
O levantamento analisou mais de 689.933 mil denúncias do portal do Disque Denúncia que mencionavam milícias ou tráfico de drogas entre 2006 e 2021.
*Texto publicado originalmente no portal do g1.
Movimentos populares lançam carta-compromisso sociambiental para as eleições 2022
Redação*, Brasil de Fato
Nesta segunda-feira (12), será lançada a Carta Compromisso Socioambiental para as Eleições de 2022. Articulada por dezenas de movimentos populares, coletivos, organizações da sociedade civil e partidos políticos, a carta apresenta um conjunto de propostas e alternativas para superar a crise socioambiental que o Brasil atravessa.
São 16 propostas, organizadas em três eixos: Fortalecer a atuação do Estado, que inclui ações como recompor e fortalecer órgãos públicos socioambientais, valorizar servidores e ampliar a participação popular; Combater vetores de degradação sociambiental, que passa por reverter desmatamento e reflorestar unidades de conservação, proteger a fauna e combater o uso de agrotóxicos; e Construção do presente e futuro, que inclui implantar a transição ecológica justa, promover educação ambiental, universalizar o saneamento básico, entre outras propostas.
“Entre os elementos importantes, estão o cuidado com o solo, com a água, com todos os recursos naturais, cuidado com a alimentação saudável, a agroecologia", explica Gilmar Mauro, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), um dos movimentos que assina a carta.
“O cuidado com o saneamento, com geração de emprego, combate à fome e miséria. Porque, afinal de contas, somos natureza, o ser humano é parte da natureza e cuidar do ser humano é cuidar da natureza.”
A intenção é dialogar com candidaturas aos diversos cargos em disputa nessa eleição para que "assumam coletivamente conosco o compromisso com essas propostas”, explica Mauro.
“Mas também outras organizações populares estão conclamadas a assinar essa carta e fazermos uma luta para que os novos eleitos possam assumir esse compromisso. Mas, mais que isso, que essas organizações assinantes assumam esse compromisso pra lutar para que esses problemas e essa questões sejam resolvidas no próximo período”, afirma o dirigente do MST.
Candidaturas podem aderir à carta por meio deste formulário on-line.
O evento de lançamento acontece às 19h, no auditório do Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo (Sindsep/SP), na Rua da Quitanda, 101, região central da capital paulista.
*Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.
Ministro dá nova decisão contra uso de imagens do 7 de Setembro por Bolsonaro
Gabriel Hirabahasi e Gabriela Coelho*, CNN
O ministro Benedito Gonçalves, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), deu uma nova decisão, neste domingo (11), pela retirada do ar de propagandas do presidente Jair Bolsonaro (PL) que usem imagens gravadas durante os atos de 7 de Setembro.
Esta é a segunda decisão de Gonçalves nesse sentido. Desta vez, o ministro atendeu a um pedido feito pela candidata do União Brasil à Presidência, a senadora Soraya Thronicke.
No sábado (10), Gonçalves já havia suspendido a divulgação de vídeos que contivessem imagens da participação de Bolsonaro nos atos do bicentenário da Independência do Brasil.
Na decisão deste domingo (11), o ministro disse que “o que está demonstrado, até o momento, é que estruturas públicas custeadas pelo erário foram aquelas relativas à parte oficial do evento”.
Segundo o ministro, é possível “concluir que a associação entre a campanha dos réus e o evento cívico-militar foi incentivada pelo próprio presidente candidato à reeleição, o que pode ter desdobramentos na percepção do eleitorado quanto aos limites dos atos oficiais e dos atos de campanha”.
“Assim, no que diz respeito, especificamente, à proibição de uso de imagens na propaganda eleitoral, devem ser adotados os mesmos fundamentos da decisão proferida na AIJE 0601002-78 [apresentada pela coligação de Lula e analisada no sábado]”, disse o ministro.
Assim como na decisão de sábado (10), Gonçalves deu 24h para Bolsonaro e seu candidato a vice, Braga Netto, cessarem a veiculação de propagandas que contenham esses vídeos. Além disso, o ministro também deu cinco dias para a chapa de Bolsonaro apresentar defesa junto ao colegiado e determinou que sua decisão seja submetida à análise dos demais ministros na próxima sessão do TSE.
Debate
As emissoras CNN e SBT, o jornal O Estado de S. Paulo, a revista Veja, o portal Terra e a rádio NovaBrasilFM formaram um pool para realizar o debate entre os candidatos à Presidência da República, que acontecerá no dia 24 de setembro.
O debate será transmitido ao vivo pela CNN na TV e por nossas plataformas digitais.
*Texto publicado originalmente na CNN Brasil.
Revista online | 1789 e 1822: duas datas emblemáticas
Ivan Alves Filho*, especial para a revista Política Democrática online (47ª edição: setembro/2022)
O que verdadeiramente importa para a análise da Conjuração Mineira, em sua estreita ligação com os acontecimentos que culminaram na Independência do Brasil, é a compreensão do seu sentido histórico. Qual o traço de união existente entre o revolucionário Joaquim José da Silva Xavier, os poetas Tomás António Gonzaga e Cláudio Manoel da Costa e destes ao Padre Toledo e ao alfaiate Vitoriano Veloso? Todos sonharam com um país mais próspero e soberano. E o fizeram, basicamente, no espaço que vai do chamado Campo das Vertentes à região de Outro Preto, em Minas Gerais.
Na ordem do dia estava a luta pela construção da Nação brasileira. Essa é a característica fundamental do movimento de 1789, em Minas Gerais. E por que Minas? Porque em suas terras se formou, pela primeira vez entre nós, um mercado interno, colocando o brasileiro de Goiás em contato com o brasileiro do Rio de Janeiro e este com o brasileiro da Bahia. Para a região das minas, entrava o gado de outras áreas e o sal do Rio de Janeiro. Pela outra porta, saía o ouro. E por aí vamos. Ou seja, estava sendo plantada a semente da união entre os brasileiros e as prisões que ocorreriam em vários pontos da Colônia revelavam isso: conjurados foram detidos tanto na Capitania do Rio de Janeiro quanto naquela de Minas Gerais e mesmo na Bahia e no Mato Grosso. Nunca é demais recordar que Minas Gerais era o centro geográfico do futuro país, e que suas terras faziam divisa com várias outras capitanias. Surgia assim um sentimento de brasilidade, que a cultura tão bem expressava, o mesmo se dando com a nova organização econômica e até a conformação geográfica como ficou dito. É de se observar que, por aqui, a cultura saía na frente, como que se antecipando ao Estado Nacional. Todo o poder à sociedade civil, tal poderia ser a palavra de ordem da Conjuração Mineira.
Veja todos os artigos da revista Política Democrática online: Edição 46
O ouro de Minas Gerais (cerca de 75% de todo o ouro extraído na Colônia) contribuía para integrar o Brasil à nova fase da ordem econômica mundial, pautada pela acumulação primitiva de capital. Isso fazia com que os revolucionários de 1789 se movessem em um contexto marcado pela irrupção do ideário burguês no Ocidente. Eram os tempos da Revolução Americana e das transformações revolucionárias na França. Com a seguinte diferença, que dificultava um pouco mais as coisas: a Revolução Burguesa nos trópicos se processava em um ambiente colonial-escravista. As barreiras a serem transpostas eram portanto muito grandes e bem diferentes daquelas das Metrópoles em transição para o modo de produção capitalista.
A ousadia desse movimento político pode ser medida pelo fato de que, entre nós, o Estado nascera de fora para dentro, quase que por decreto. O que possibilitou isso foi o Regimento Tomé de Sousa, datado de 1548, o qual organizara as bases da ocupação do país, forjando toda uma administração. A primeira capital da Colônia, Salvador, surge desse processo. Havia algo de artificial nisso? Certamente. Sob essa ótica, o sonho dos revolucionários de 1789 ganha ainda maior relevo, uma vez que combinava com uma realidade concreta, ou seja, a nacionalidade em formação - a qual, por seu turno, apresentava problemas reais e até novos. Urgia, assim, tentar uma solução. Dessa vez, o Estado fazia mais sentido.
Confira, abaixo, galeria de imagens:
Mesmo assim, a Conjuração de 1789 colocou questões que só se resolveriam de fato mais de trinta anos depois (e este é o caso da Independência, em 1822). Ou, ainda, abordou lutas que teriam seu ápice na Abolição e na Proclamação da República, um século mais tarde!
Pode-se conjecturar que a Independência deixou intactas tanto as relações escravistas de produção quanto o sistema fundiário que lhe daria suporte. Isso só revela o quanto a Conjuração Mineira se antecipou historicamente, o quanto ela possuía inegáveis traços inovadores. É necessário ressaltar isso.
Como toda e qualquer prática que se pretenda revolucionária, a Conjuração Mineira foi atravessada de contradições. Nela, havia setores mais avançados e outros menos avançados. As revoluções são assim; nunca são quimicamente puras. Quem quiser que pense o contrário. Mais: por vezes, a situação histórica concreta, os limites impostos pelo movimento real da vida, impede a solução de certos problemas.
Seja como for, firmamos a convicção de que a Conjuração Mineira foi o máximo de consciência possível de sua época. Vale dizer, a Conjuração Mineira foi o Brasil antes do Brasil.
Sobre o autor
*Ivan Alves Filho é historiador licenciado pela Universidade Paris-VIII (Sorbonne) e pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris. Os mais recentes de suas dezenas de livros publicados são Os nove de 22: o PCB na vida brasileira e Presença negra no Brasil: do século XVI ao início do século XXI.
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de maio de 2022 (47ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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O que é liberdade de expressão?
Matheus Magenta*, BBC News Brasil
Para Ash, que é um estudioso da liberdade de expressão, as ofensivas contra o que chama de "ar que permite a todas as outras liberdades respirarem" põem em risco a participação democrática dos cidadãos, a internet, a qualidade dos governos, a diversidade, a privacidade, a educação, a liberdade religiosa, o jornalismo, a prosperidade coletiva e a busca pela verdade.
A liberdade de expressão é definida há séculos como o direito de manifestar opiniões e ideias praticamente sem obstáculos. Mas a defesa dela, na maioria dos países democráticos, passa por não violar direitos dos outros nem levar a males evitáveis.
Os problemas começam a surgir quando há discordância sobre quais seriam os limites da liberdade de expressão e quem teria o poder para defini-los. Governo? Juízes? Deputados e senadores? Quem se sentiu ofendido? A mídia? Professores? Redes sociais? Eles devem permitir ou barrar críticas e ofensas ao governo, à religião e às minorias? E o que deve ser feito em relação à pornografia e à incitação à violência?
Nenhum país democrático trata a liberdade de expressão como um direito ilimitado, acima dos demais e sem consequências. Mas os embates não se limitam às leis. Eles passam também por religião, jornalismo, universidades e internet.
As disputas nesses campos de batalha se transformaram ao longo dos anos. Se antes passavam por lutar para se expressar sem ser oprimido, hoje muitos defendem uma versão ilimitada da liberdade de expressão (inclusive para oprimir).
Para entender como esse debate surgiu e se desenvolveu no Brasil e em outros países, a BBC News Brasil detalha abaixo as origens da liberdade de expressão há milhares de anos. Em seguida, explica o que baseia os principais limites adotados (contra discurso de ódio e incitação à violência, por exemplo) e como esses limites passaram a ser considerados por alguns uma grave forma de censura.
As origens do conceito de liberdade de expressão
O marco inicial dos embates sobre limites à expressão no Ocidente é famoso. Um dos fundadores da filosofia ocidental, o grego Sócrates, é figura-chave nesta história.
Conta-se que Sócrates era conhecido como "a mosca de Atenas" e que até gostava deste apelido porque o descrevia muito bem: sua missão era provocar as pessoas por meio de perguntas e explicações que incomodavam e, sobretudo, faziam pensar.
Mas Sócrates foi condenado à morte por suas ideias e crenças nesta mesma Atenas, uma cidade que praticava e exaltava a livre expressão (e que ainda é vista quase como um sinônimo da democracia em si).
Há poucas informações disponíveis sobre o julgamento de Sócrates. Não há descrições oficiais sobre as acusações, as evidências e as leis que teriam sido desrespeitadas. Todos os registros conhecidos do processo foram feitos por dois discípulos de Sócrates: Xenofonte e Platão.
Mas muitos especialistas ressaltam que a atuação política de Sócrates antes do julgamento pode ter pesado para sua condenação.
O pensador ateniense tinha relações próximas com pessoas que eram consideradas inimigas da democracia ateniense. A exemplo de Crítias, um dos Trinta Tiranos que governaram Atenas por um breve período, e de famílias aristocráticas que preferiam a concentração de poder como a adotada por Esparta à distribuição mais igualitária de poder em Atenas.
Para parte dos atenienses, atitudes como essa faziam de Sócrates um traidor e uma ameaça à democracia. Por isso o simbolismo do caso de Sócrates, considerado por alguns um "mártir da liberdade de expressão", ganha ainda mais força, já que sua condenação buscava, em tese, conter os danos indiretos que suas ideias, atitudes e relações causavam à democracia ateniense.
No processo, Sócrates foi acusado de introduzir novas divindades, de não reconhecer os deuses de Atenas e de corromper os jovens. Em sua defesa, ele nega ter transmitido visões subversivas, mas argumenta que também não poderia ser responsabilizado pelas ações praticadas por aqueles que ouvem suas palavras.
Ao ser condenado à morte pelo júri, Sócrates defende sua liberdade de expressão sob o argumento de que ficar em silêncio e não refletir sobre a vida a tornaria sem valor ou sentido. "Encontramos aqui a insistência de Sócrates de que todos somos chamados a refletir sobre o que acreditamos, explicar o que sabemos e o que não sabemos e, em geral, buscar, viver de acordo e defender as visões que contribuem para uma vida significativa e bem vivida", explica o filósofo e professor James Ambury (Universidade de Notre Dame).
Para a cientista política americana Arlene Saxonhouse, autora de Liberdade de Expressão e Democracia na Antiga Atenas, o julgamento de Sócrates deve ser analisado em torno da tensão entre a disposição de falar a "verdade" com franqueza e o respeito às tradições que servem de liga aos Estados.
Saxonhouse aponta para um dos principais paradoxos desse caso. Sócrates insiste em falar verdades de forma tão aberta e desavergonhada que o próprio regime democrático não pode suportar porque se torna uma ameaça contra o próprio sistema.
Ou seja, para a cientista política, a prática pura da liberdade de expressão individual pode ameaçar liberdades e ideais coletivos, e sua existência demandaria limites e senso de respeito democrático. Tudo isso porque a expressão é um instrumento muito poderoso que serve "para incitar o outro a fazer investigações que levarão à transformação de seu próprio caráter".
Para Saxonhouse, a condenação de Sócrates à morte foi uma violação dos princípios democráticos básicos. "Atenas, ao executar Sócrates, admitiu a dependência da cidade ao aidôs (vergonha ou pudor) e ansiava por preservar suas tradições, por resistir à exposição de suas inadequações que a parrhesia (liberdade de expressão) estava preparada para relevar. Sócrates, por outro lado, livre do respeito ao passado e livre dos limites impostos pelo olhar julgador dos outros, era o homem verdadeiramente democrático."
O caso de Sócrates é citado por diversos defensores da liberdade de expressão, como o filósofo e economista britânico John Stuart Mill. Este considerava que a grande ameaça à liberdade de pensamento e de debate nas democracias não era o Estado, mas a "tirania social" dos outros cidadãos.
No clássico Sobre a Liberdade, de 1859, Mill afirma que silenciar a expressão de uma opinião constitui um roubo à humanidade, à posteridade, à geração atual e àqueles que discordam da opinião, mais ainda do que àqueles que àqueles que sustentam essa opinião — porque não terão a oportunidade de serem confrontados em sua verdade e perceberem seu erro.
Limites e transformações
Por séculos após Sócrates, a liberdade de expressão era — quando muito — privilégio de poucos.
No Reino Unido, uma lei aprovada em 1275 proibia as pessoas de expressarem qualquer coisa que gerasse desacordo entre o rei e a população. A depender da gravidade, a pena prevista era de prisão, chicotadas ou mesmo a morte.
"Apenas a elite, a monarquia e a pequena nobreza tinham o poder e o direito de falar em público. Camponeses, artesãos e classes consideradas inferiores simplesmente tinham que se submeter às chamadas classes superiores. A voz do povo era na verdade a voz das pessoas no comando", relata historiador e professor Justin Champion, da Universidade de Londres.
Mas por que se presumia naquela época que qualquer desacordo ou expressão livre era politicamente perigosa? "Porque todos os debates são sediciosos (rebeldes contra superiores). Ponto final", resume Champion.
A primeira grande transformação ligada à liberdade de expressão ocorre no século 15, mais especificamente em 1455, ano em que o alemão Johannes Gutenberg inventou a prensa. Esse equipamento permitiria a impressão de livros em massa e, por extensão, uma crescente difusão de informações e de conhecimento.
No século seguinte, a liberdade de expressão começa a ser vista e defendida na Europa como um valor importante para a política. "Isso começa com o entendimento de que tipos tradicionais de autoridade, como a monarquia e a Igreja, são na verdade apenas tipos de autoridade. E uma vez em que o debate é visto dessa forma, as pessoas começam a questionar quem deveria ter autoridade e por quê", afirma a pesquisadora e professora de literatura Karen O'Brien (Universidade de Oxford).
Estima-se que o número de títulos impressos por ano na Inglaterra passou de quase 2.000 no fim do século 17 para quase 6.000 no fim do século 19, entre livros, panfletos e outros produtos do tipo. "Isso foi acompanhado por um lento, mas crescente aumento na alfabetização da população, algo que claramente representa um desafio enorme para o Estado", afirma O'Brien. Naquela época, livros também eram lidos em público pelos letrados para aqueles que não sabiam ler.
Vale lembrar que o avanço das publicações já era acompanhado de uma espécie de censura prévia. Na Inglaterra, por exemplo, cada obra precisava de autorização da igreja ou da monarquia para ser imprensa e distribuída ou comercializada no século 17.
Mas o próprio mecanismo da censura prévia já era criticado naquele mesmo século. No panfleto Areopagítica, de 1643, o poeta britânico John Milton, trata dos prejuízos dos obstáculos inadequados à livre expressão. Para ele, por exemplo, a censura prévia prejudica a proteção da moral e da religião porque, entre outros motivos, as pessoas perdem a capacidade de identificar e contestar imoralidades a partir do próprio discernimento, da própria reflexão.
Milton acreditava que a censura prévia atrapalhava o único caminho possível em busca da verdade. Mas naquela época, Milton e muitos outros acreditavam na existência de apenas uma verdade, e não de várias verdades a depender suas crenças religiosas, políticas ou éticas, por exemplo. Ou seja, as ideias de tolerância e pluralismo eram praticamente impensáveis porque, na prática, elas significariam que não havia apenas um Estado ou apenas uma religião.
E foi exatamente o que aconteceu na prática. A religião se torna um grande campo de batalha pela liberdade de expressão a partir do século 17. O gatilho surgiu no século anterior com o monge católico e teólogo alemão Martinho Lutero e a chamada Reforma Protestante, movimento ocorrido há mais de 500 anos que deu origem ao principal desdobramento da Igreja Católica desde o cisma entre as igrejas do Ocidente e do Oriente em 1054.
Para Lutero, as pessoas deveriam ser salvas por meio de sua fé em um contato direto e individual com Deus. E não por meio de perdões concedidos por líderes católicos, de indulgências vendidas ou de intermediários para entender a mensagem de Deus (como a tradição escolástica elaborada pelos teólogos católicos).
A Reforma Protestante levou a uma explosão de correntes e entidades religiosas ligadas ao cristianismo que passaram a disputar entre si. Mas o que a liberdade religiosa tem a ver com liberdade de expressão?
"A Reforma Protestante implodiu a unidade da igreja cristã. Então, não há apenas católicos perseguindo protestantes como também protestantes perseguindo católicos. Além da incrível proliferação de vários séquitos protestantes que perseguiam uns aos outros. E todo mundo envolvido nesse drama, nesse conflito acreditava que o futuro de sua alma imortal dependia sua capacidade de se expressar e de agir da maneira que eles pensavam que Deus queria. Então, a liberdade de expressão para essas pessoas não era apenas uma questão de vida ou morte, mas uma questão de vida ou morte para a eternidade", explica Hannah Dawson, professora de pensamento político no King's College de Londres, em entrevista à BBC.
Melina Malik, professora de Direito da Universidade de Londres, ressalta que a ideia de liberdade de expressão é diferente entre aqueles que têm fé e aqueles que não têm. E um bom exemplo disso seria a blasfêmia (ofensa contra algo sagrado). "Mas eu acredito que a imaginação e a empatia podem permitir àqueles que não têm fé de entenderem a importância do sagrado para aqueles que acreditam e de entenderem a dor que eles podem vivenciar quando suas mais profundas crenças são atacadas por meio da expressão."
E como dito logo acima, na prática, os princípios de tolerância e pluralismo levariam ao fim da ideia de uma só religião e também de um só Estado.
Por isso, também a partir do século 17, a democracia representativa começa a se tornar um grande campo de batalha pela liberdade de expressão. Ou seja, o poder de reis e rainhas passa gradativamente para os membros do Parlamento, que precisavam disputar eleitores por meio de suas ideias. Assim, começava a ganhar força política e autoridade a chamada opinião pública.
Uma das mais influentes defesas da liberdade de expressão na política seria publicada no século seguinte, de 1720 a 1723, pelos escritores britânicos John Trenchard e Thomas Gordon. A influência da obra Cartas de Catão seria percebida na Europa, na América e na Ásia.
"Sem liberdade de pensamento, não pode haver conhecimento; e não há qualquer liberdade pública sem liberdade de expressão; isso é direito de todo homem, na medida em que por ele não fere ou contraria o direito de outro: este é o único controle que deve sofrer, e o único limites que deve conhecer. Este privilégio sagrado é tão essencial para os governos livres que a segurança da propriedade e a liberdade de expressão andam sempre juntas; e nos países miseráveis onde um homem não pode chamar sua língua de sua, ele dificilmente pode chamar qualquer outra coisa de sua", afirma um trecho de um dos 144 manifestos que compõem Cartas de Catão, obra contra a tirania, a corrupção e o abuso de poder inicialmente publicada em jornais britânicos.
O século 18 ainda é marcado pelo avanço das mulheres na esfera pública, tanto como leitoras como escritoras, apesar de todos os obstáculos que elas enfrentam até hoje para fazer suas vozes serem ouvidas.
"Há em todas as sociedades uma certa porção de homens para quem a tirania é, em certa medida, lucrativa. Eles consideram os defensores da liberdade uma perturbação da paz. Não há sinal mais claro de uma administração impotente ou mal arranjada do que as tentativas de restringir a liberdade de falar ou escrever", escreveu uma das mais populares escritoras em língua inglesa daquela época, a historiadora britânica Catharine Macaulay, no oitavo volume da obra A História da Inglaterra.
Mercado de ideias
A liberdade de expressão ganharia um de seus principais pilares ainda durante o século 18: a primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos, país que historicamente é conhecido como um dos que mais defendem uma ampla liberdade de expressão.
É um dos poucos países com Constituição que permite espalhar discurso de ódio, negar o Holocausto e até queimar a bandeira nacional. Ao longo dos anos, a Justiça americana adotou pouquíssimos limites, como proibições à incitação da violência, à fraude e à pornografia infantil.
"O Congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas", afirma o texto da Primeira Emenda, que data de 1791.
O pilar da doutrina por trás da Primeira Emenda é o chamado "mercado de ideias", cuja premissa é a crença na proteção de um ambiente livre em que as ideias e opiniões entrarão em disputa e a verdade prevalecerá no fim.
A origem da analogia com a lógica de livre comércio é apontada para Sobre a Liberdade, obra do britânico John Stuart Mill citada acima neste texto. "Mill argumenta contra a censura e a favor da livre circulação de ideias. Ao afirmar que ninguém sozinho conhece a verdade, ou que nenhuma ideia sozinha carrega a verdade ou sua antítese, ou que a verdade sem confrontação acabará sendo um dogma, Mill defende que a livre competição de ideias é a melhor forma de separar falsidades dos fatos", explica o cientista político e professor americano David Schultz (Universidade Hamline) na Enciclopédia da Primeira Emenda.
Essa metáfora de um mercado de ideias ganharia forma na prática no início do século 20 com uma decisão do juiz da Suprema Corte americana Oliver Wendell Holmes. Segundo ele, "o melhor teste para a verdade é o poder do pensamento de se fazer aceito na competição do mercado", sem qualquer interferência governamental ou restrição à liberdade.
Apesar da grande influência da Primeira Emenda na defesa da liberdade de expressão nos EUA e em outros países, esse conceito de livre mercado de ideias é alvo de muitas críticas ao redor do mundo.
Para diversos especialistas, como qualquer outro tipo de mercado, o chamado mercado de ideias demanda regulação. Afinal, os participantes não têm, por exemplo, o mesmo peso político ou econômico nem os mesmos valores éticos.
Outra crítica é que um dos principais "mercados" atuais, as redes sociais, tem algoritmos, vieses e regras que não representariam um mercado realmente livre de ideias. Algo parecido costuma ser dito sobre outro "mercado", o jornalismo.
Para além dessas limitações práticas nos mercados de ideias concretos, "inexiste evidência de que nas circunstâncias atuais a verdade prevaleça sobre a falsidade nas sociedades onde exista uma maior proteção à liberdade de expressão", escreve a advogada criminalista Milena Gordon Baker no livro Criminalização da Negação do Holocausto no Direito Penal Brasileiro.
Baker cita diversos casos, aliás, em que falsidades continuam em circulação na sociedade apesar de os fatos serem inquestionáveis, a exemplo da negação infundada da existência do Holocausto, em que foram mortos pelos nazistas mais de 6 milhões de judeus, além de adversários políticos, negros, homossexuais, pessoas com deficiência, comunistas, integrantes da etnia roma e outras minorias.
No século 20, a liberdade de expressão passaria a ser reconhecida como um direito universal. Em 1948, a Assembleia-Geral das Nações Unidas (ONU) insere o conceito na Declaração Universal dos Direitos Humanos, "uma norma comum a ser alcançada por todos os povos".
Segundo o artigo 19 do texto, "todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras".
Atualmente, os limites à liberdade de expressão nos países democráticos estão previstos em leis e preveem punições a crimes ligados à expressão, como incitação à violência, sedição (motim contra autoridades), difamação, calúnia, blasfêmia, racismo e conspiração.
No Brasil, a trajetória da liberdade de expressão é repleta de idas e vindas.
Em 1808, quando a família real portuguesa transferiu a Corte para o Brasil ao fugir das tropas francesas, um dos primeiros jornais brasileiros era editado e impresso na Inglaterra porque o editor e fundador do Correio Braziliense enfrentaria no Brasil um cenário de censura prévia e perseguição a jornalistas.
Apesar de proibições à circulação e à leitura do jornal no Brasil por causa de sua oposição à Coroa portuguesa, o Correio Braziliense e outras publicações conseguiam chegar e circular de forma clandestina no país.
O direito à liberdade de expressão apareceria pouco depois na primeira Constituição brasileira, a de 1824, que entrou em vigor dois anos após a declaração de independência do Brasil em relação a Portugal.
"Todos podem comunicar os seus pensamentos por palavras, escritas e publicá-los pela imprensa, sem dependência de censura, contando que hajam de responder pelos abusos que cometerem no exercício deste direito, nos casos e pela forma que a lei determinar", afirmava o artigo 179 daquele texto constitucional.
Com o fim da monarquia e a proclamação da República, em 1889, a liberdade de expressão avança e regride em curtos espaços de tempo. A exemplo da era Vargas, que em 1934 previu esse direito na Constituição, mas no ano seguinte criou um departamento para instituir a censura dentro dos jornais.
Outro revés para a liberdade de expressão conhecido se daria durante a ditadura militar (1964-85), com a volta da censura prévia, fechamento de jornais, perseguição a profissionais como artistas e jornalistas e a criação da chamada Lei de Imprensa (que instituiria crimes como "ofensa à hora do presidente" ou "propaganda subversiva"), entre outras medidas autoritárias.
Com o fim da ditadura militar em 1985, a nova Constituição de 1988 traria de volta a liberdade de expressão sem censura prévia e outros instrumentos. "A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição", diz o artigo 220 do texto constitucional em vigor atualmente no país.
Impacto da internet na liberdade de expressão
Mas, poucas décadas depois, o surgimento da internet levaria à maior transformação — e crise — da liberdade de expressão desde a invenção da prensa, no século 15, quando livros, jornais e panfletos passaram a circular em massa.
O novo ambiente de disseminação de informação agravou ou criou embates sobre o tema que as leis não conseguem acompanhar. Entre eles, a disseminação de discurso de ódio e notícias falsas, a incitação à violência, os algoritmos enviesados contra determinadas correntes políticas, a chamada cultura do cancelamento, o direito ao esquecimento e o poder das empresas de tecnologia de excluir usuários e conteúdos.
Como o caso do ex-presidente americano Donald Trump, que protagonizou o mais polêmico debate contemporâneo sobre liberdade de expressão.
Em 6 de janeiro de 2021, ele ainda era presidente dos EUA quando discursou publicamente e usou redes sociais para contestar sua derrota na eleição e incentivar apoiadores a irem até o Congresso e "demonstrar força". Em seguida, centenas de pessoas que ouviram o discurso invadiram a Casa Legislativa para tentar impedir a certificação do resultado das urnas. Cinco pessoas morreram.
Dias depois, Trump foi banido do Facebook, do YouTube e do Twitter por incitação à violência, crime que levou à aprovação do seu segundo impeachment pela Câmara dos Representantes. Ou seja, suas palavras levaram a ações concretas de violência de acordo com esse julgamento.
Esse banimento de sua plataforma política para milhões de seguidores levou a acusações de censura, discriminação política e violação do direito à liberdade de expressão. Uma empresa privada tem o poder de barrar o presidente do país mais poderoso do mundo?
"Ter que tomar essas ações fragmenta o diálogo público. Nos divide. Limita o potencial de esclarecimento, redenção e aprendizado. E estabelece um precedente que acredito ser perigoso: o poder que um indivíduo ou empresa tem sobre uma parte da conversa pública global", admitiu o então presidente-executivo do Twitter, Jack Dorsey. A disputa foi levada aos tribunais, e Trump acabou derrotado.
As críticas às plataformas de redes sociais no caso Trump ilustram o que especialistas enxergam como certa inversão de papéis entre a esquerda e a direita no antigo debate sobre liberdade de expressão.
Antes, as vozes que lutavam por mais espaço no debate público e menos obstáculos às críticas aos donos do poder eram majoritariamente ligadas à esquerda. Agora, nomes da direita brasileira, por exemplo, dizem ser ilegalmente tolhidos por redes sociais, veículos de comunicação e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
Apoiadores importantes do presidente brasileiro Jair Bolsonaro tiveram contas ou conteúdos apagados de redes sociais em meio a investigações no STF sob acusação de disseminação de informações falsas e discurso de ódio contra autoridades e participação em atos antidemocráticos.
Para o Twitter e o Google, em manifestações feitas no âmbito em processo judicial no STF, a determinação da Corte de excluir as contas é "desproporcional" e pode configurar "censura prévia". O argumento das plataformas é que o Marco Civil da Internet demanda que a ordem judicial aponte especificamente qual conteúdo é ilegal, e não apontar de forma genérica o perfil como um todo.
"Embora as operadoras tenham dado cumprimento à ordem de bloqueio da conta indicada por vossa excelência, o Twitter Brasil respeitosamente entende que a medida pode se mostrar, data máxima venia, desproporcional, podendo configurar-se inclusive como exemplo de censura prévia", afirmou o Twitter. "Ainda que o objetivo seja impedir eventuais incitações criminosas que poderiam vir a ocorrer, seria necessário apontar a ilicitude que justificaria a remoção de conteúdos já existentes", disse o Google.
O próprio Bolsonaro, que defende maior regulação sobre as redes sociais e quer impedi-las de excluir usuários e conteúdos sem justa causa, é investigado pela Corte e já teve excluídas postagens com informações falsas sobre o coronavírus por decisão das próprias empresas de tecnologia.
Em conflitos políticos como o de Trump e o de Bolsonaro, a defesa da liberdade de expressão mostra como vem sendo cada vez mais usada como arma pela direita e pela extrema-direita ao redor do mundo, afirma a historiadora e professora americana Joan Wallach Scott (Instituto de Estudos Avançados da Universidade Princeton).
Segundo Scott, o objetivo da defesa da liberdade de expressão aqui deixou de ser aceitar opiniões diversas, mas, sim, confundir e disseminar informações falsas nas disputas com a esquerda sobre temas como feminismo, vacinas, direitos dos homossexuais e currículo das universidades.
Ao provocar repúdio, protestos e às vezes violência, diz Scott, a direita atrai holofotes e se apresenta como vítima de discriminação, cancelamento, discurso politicamente correto e censura. Como resultado, os temas caros à esquerda deixam de ser o foco dos debates.
Para a jurista e feminista americana Catharine MacKinnon, a liberdade de expressão deixou de ser "uma proteção para dissidentes, radicais, artistas, ativistas, socialistas, pacifistas e desvalidos para se tornar uma arma para autoritários, racistas, misóginos, nazistas, supremacistas, pornógrafos e corporações que compram eleições na surdina".
Por outro lado, o jurista e professor americano Alan Dershowitz (Universidade Harvard) afirma que a liberdade de expressão enfrenta sua maior ameaça em 200 anos graças à "censura" liderada por progressistas em esferas privadas, como universidades e redes sociais, onde a lei não alcança.
"Tornou-se perigoso para carreiras, amizades e discurso público ficar do lado de direitos constitucionais e liberdades civis quando esses direitos e liberdades acabam por beneficiar Donald Trump", afirma Dershowitz.
O professor e pesquisador brasileiro Wilson Gomes (UFBA) aponta contradições desse conceito de liberdade de expressão absoluta que ele classifica como libertarianista (corrente mais radical do liberalismo que prega uma enorme redução da interferência do Estado na vida dos cidadãos).
"Não existe liberdade de expressão absoluta. Só nessa concepção libertarianista. Ou seja, 'eu posso dizer o que quiser, eu posso falar o que quiser, posso me comportar como queira e o Estado não pode pode censurar o que eu digo, e nem a Lei nem nada pode me punir'. Nem eles acreditam nisso. Porque, no fundo, no fundo, a qualquer momento eles partem para cima de outros. Os professores não podem ter liberdade de expressão, por exemplo, porque isso seria a doutrinação comunista", afirma Gomes, autor de Crônica de uma Tragédia Anunciada: Como a Extrema-Direita Chegou ao Poder.
Limites ao discurso de ódio x acusações de censura
Não há uma definição universal sobre o que é discurso de ódio, mas segundo a ONU, ele pode ser entendido como qualquer tipo de comunicação que ataque ou use termos pejorativos contra uma pessoa ou um grupo com base em sua religião, nacionalidade, etnia, cor de pele, raça, gênero ou qualquer outro elemento de identidade.
A tolerância ao discurso de ódio varia de um país para outro. "O sistema jurídico americano proíbe o discurso do ódio o mais tarde possível — apenas quando há perigo iminente de atos ilícitos. Já a jurisprudência alemã coíbe o discurso do ódio o mais cedo possível", exemplifica o jurista alemão Winfried Brugger.
No Brasil, a lei federal 7.716/89 prevê prisão para quem comete discriminação contra os outros por causa de "raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional". Em 2019, o STF decidiu que declarações homofóbicas também deveriam ser enquadradas no crime de racismo. A pena vai de um a três anos de prisão, pode chegar a cinco nos casos mais graves.
O momento-chave para esse debate sobre liberdade de expressão e discurso de ódio no Brasil ocorreu em 2003 durante um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF). Tratava-se do caso de Siegfried Ellwanger Castan (1928-2010), um brasileiro que foi um editor de livros antissemitas e de negação do Holocausto. Ele já havia sido condenado por racismo pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, mas recorreu ao STF, que manteve a condenação.
"O caso foi muito importante pois a Corte chegou a um entendimento sobre dois pontos", disse à BBC News Brasil o jurista, ex-ministro e professor emérito Celso Lafer (USP), que atuou no julgamento como amicus curiae (convidado a dar seu parecer no tribunal sobre um assunto de grande relevância). "O primeiro que antissemitismo se enquadra como crime de racismo. O segundo ponto foi sobre a amplitude da liberdade de expressão: existe ou não e quais os limites à liberdade de expressão."
No acórdão sobre a condenação de Ellwanger, o STF deixou claro que, embora a liberdade de manifestação do pensamento seja um direito garantido pela Constituição, ele não é um direito absoluto e há limites morais e jurídicos.
E a legislação, quando define o crime de racismo, deixa bem claro que discurso de ódio é um desses limites pois fere o direito à dignidade humana de quem é alvo desse discurso.
"O preceito fundamental da liberdade de expressão não consagra o 'direito à incitação do racismo', dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os direitos contra a honra", escreveu o ministro Maurício Correa. "Escrever, editar, divulgar e comerciar livros 'fazendo apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias' contra a comunidade judaica constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade."
Há muitos riscos coletivos em torno da livre circulação de discurso de ódio sob o pretexto de tolerância com ideias e opiniões diferentes. É o que pensava o filósofo da ciência austríaco Karl Popper, que cunhou o termo "paradoxo da tolerância" para discutir como uma tolerância ilimitada ao discurso de ódio põe em risco a democracia e, por extensão, pode levar ao desaparecimento da própria tolerância.
Para Popper, a melhor forma de combater a intolerância é debatê-la com argumentos racionais, e a proibição só deve ser usada como último recurso, quando o intolerante recorre a "punhos e pistolas", ou seja, à violência.
E o que uma plataforma como o Facebook, por exemplo, faz diante do discurso de ódio? Em texto sobre o tema, a empresa afirma excluir por mês quase 300 mil postagens denunciadas como discurso de ódio por meio de checadores e conselhos decisórios. A plataforma admite cometer erros nesse processo ao apagar conteúdo de teor político legítimo, mas nega que seu algoritmo tenha viés contra correntes políticas específicas.
A população discorda. Nos EUA, uma pesquisa do instituto Pew apontou que 90% dos republicanos (partido de Trump) e 59% dos democratas (partido de Biden) avaliam que as plataformas de redes sociais censuram suas opiniões políticas.
Para o secretário-geral da ONU, António Guterres, combater o discurso de ódio não significa limitar ou proibir a liberdade de expressão, mas evitar que ele se transforme em algo ainda mais perigoso, como incitações a discriminação, hostilidade e violência, que são proibidas na lei internacional.
Há cinco elementos de um discurso de ódio com grandes chances de catalisar ou amplificar a violência de um grupo contra outro, aponta a jornalista americana Susan Benesch, fundadora do projeto Fala Perigosa:
1. A pessoa que discursa tem bastante influência sobre o público;
2. O discurso claramente incita a violência;
3. O público tem medos ou mágoas que podem ser usados pela pessoa que discursa;
4. O local tem uma aceitação maior a episódios de violência (por já ter vivenciado vários deles, por exemplo);
5. O meio de transmissão desse discurso, como rádios e emissoras de TV, tem bastante influência e popularidade no local.
Para alguns especialistas, um exemplo recente de como o discurso chegou às vias de fato ocorreu durante o governo Trump. O FBI, polícia federal americana, registrou no período um aumento de quase 20% dos crimes de ódio, puxado por ataques a latinos e pessoas transgênero.
Houve uma explosão de casos logo após a eleição de Trump em 2016, e 2019 foi o período mais violento no país em 16 anos.
O Brasil registrou algo parecido no segundo turno da eleição de 2018, em que Bolsonaro saiu vitorioso. Segundo a ONG SaferNet, o número total de denúncias de discurso de ódio, como intolerância religiosa e xenofobia, mais que dobrou em relação ao pleito de 2014, de 14.653 para 39.316. Houve também aumento de denúncias de lgbtfobia (discriminação contra pessoas que não são heterossexuais), principalmente na internet.
Desde 2018, houve também um aumento considerável de ataques à liberdade de imprensa, considerada um dos pilares da liberdade de expressão.
"Insultos, difamação, estigmatização e humilhação de jornalistas passaram a ser a marca registrada do presidente brasileiro. Qualquer revelação da mídia que ameace os seus interesses ou de seu governo desencadeia uma nova rodada de ataques verbais violentos, que fomentam um clima de ódio e desconfiança em relação aos jornalistas no Brasil", afirma a entidade Repórteres sem Fronteiras, que incluiu Bolsonaro em sua lista global de predadores da liberdade de imprensa.
Em resposta a essas críticas e acusações, Bolsonaro, Trump e seus apoiadores afirmam que os grandes veículos de comunicação e as plataformas de redes sociais agem contra eles com notícias falsas, discriminação e perseguição a posições políticas que não são de esquerda.
Além da corrosão na confiabilidade da imprensa, a liberdade de expressão também é ameaçada pela crescente disseminação de notícias falsas, afirmaram MacKenzie Common e Rasmus Nielsen, pesquisadores da Universidade de Oxford, em relatório à ONU em 2021.
Segundo eles, países podem adotar medidas de combate à desinformação vagas demais que acabem servindo para restringir a livre expressão, ao serem usadas "seletiva ou indiscriminadamente por governos para incentivar ou obrigar empresas privadas a policiar o conteúdo de modo que fira a livre expressão e restrinja o debate público". Entre os exemplos citados pelos pesquisadores estão Vietnã, Turquia e Paquistão.
Ao redor do mundo, as respostas sobre como os governos devem agir dependem da corrente política de cada cidadão, do gênero, da idade, da origem, entre outras características.
Os Estados Unidos costumam ser o país que mais defende uma ampla liberdade de expressão, mas nem toda a sociedade americana apoia essa liberdade toda.
Em 2015, um levantamento do instituto de pesquisa Pew apontou que 40% das pessoas de 18 a 35 anos defendiam nos EUA que o governo pudesse impedir ofensas públicas a minorias. Esse apoio cai para 12% entre as pessoas de 70 a 87 anos. A oposição a limites é maior entre homens, brancos, pessoas mais velhas, pessoas com menor escolaridade e eleitores do Partido Republicano (dos ex-presidentes George W. Bush e Donald Trump).
Ao todo, 28% dos americanos defendem que o governo restrinja as ofensas públicas contra minorias. Na Alemanha, o patamar é de 70%.
Seis anos depois, o instituto Pew publicou um levantamento com cidadãos de quatro países sobre assuntos como o politicamente correto e o discurso ofensivo. Apenas na Alemanha a maioria dos cidadãos concordou que "as pessoas devem ser cuidadosas com o que dizem para evitar ofender os outros".
Na direção oposta, a maioria das pessoas na França, nos EUA e no Reino Unido afirmou que "as pessoas hoje se ofendem fácil demais com o que os outros dizem".
A principal divergência entre essas duas posições se dá nos EUA: 65% das pessoas de esquerda defendem o cuidado com discurso ofensivo, e apenas 23% das pessoas de direita concordam com isso.
A socióloga e pesquisadora Sabrina Fernandes (Universidade Livre de Berlim) defende que todo esse debate sobre liberdade de expressão e seus limites e soluções deveria passar também por livrar as pessoas da opressão antes se discutir a linguagem.
"É preciso libertar as pessoas da opressão também. E aí tudo se torna natural, porque se você tem uma sociedade que é mais feminista e menos machista, você não vai precisar ficar regulando as coisas machistas que as pessoas falam porque elas não vão sentir necessidade de falar isso. Porque se promoveu mudanças mais profundas", afirma Fernandes.
Para o linguista e professor Sírio Possenti (Unicamp), as palavras ou expressões não carregam significados intrínsecos, em si, mas, sim, significados consolidados nas estruturas e relações sociais e culturais.
Por isso, diz Possenti, se uma sociedade é racista, mudar os termos considerados ofensivos (ou criminosos) por outros mais "neutros" somente não tornará as relações ou os falantes menos ou mais racistas, e os significados preconceituosos acabarão sendo carregados e reproduzidos nas novas expressões substitutas.
*Texto publicado originalmente na BBC News Brasil.
Rainha Elizabeth 2ª morre aos 96 após reinado mais duradouro da Inglaterra
João Batista Natali* Folha de São Paulo
A rainha Elizabeth 2ª, que por sete décadas ocupou o trono britânico e se tornou um símbolo da monarquia em todo o mundo, morreu nesta quinta-feira (8), aos 96 anos. Seu filho mais velho, o príncipe Charles, deve sucedê-la no trono.
A morte foi confirmada pelo Palácio de Buckingham depois da informação de que ela estava sob cuidados médicos e que a família mais próxima havia sido chamada a Balmoral, na Escócia, onde a rainha passava o verão. Dias antes, em uma de suas últimas aparições, Elizabeth deu posse à nova primeira-ministra britânica, Liz Truss. Segundo comunicado oficial, ela morreu em paz; a nota chama Charles de rei e sua mulher, Camila, de rainha consorte.
Preocupações com sua saúde vinham se avolumando havia meses, principalmente desde que ela passou uma noite no hospital, em outubro de 2021, por motivos não totalmente esclarecidos pela monarquia. Desde então, a rainha chegou a cancelar a participação em diversos eventos públicos —inclusive alusivos à celebração de seu Jubileu de Platina— e mesmo virtuais em decorrência de "problemas de mobilidade".
Em fevereiro de 2022, ela chegou a receber o diagnóstico de Covid-19, mas se recuperou.
Elizabeth passará para a história como a soberana britânica de mais longo reinado. Em julho de 2015, ela superou os 63 anos e cinco meses de trono da rainha Vitória (1837-1901), cuja coroa, no entanto, tinha um peso bem maior de um imenso império colonial, hoje não mais existente.
De maneira discreta, Elizabeth deixa como trunfo a preservação da confiança na coroa, ainda que a mídia tenha destrinchado —de forma quase impiedosa— as crises internas da família real em seu longo reinado.
Em 1992, em discurso comemorativo aos 40 anos de sua coroação, afirmou que aquele ano fora um "annus horribilis" (horrível, em latim), referindo-se aos divórcios quase simultâneos do príncipe Andrew, seu segundo filho, com Sarah Ferguson, e da princesa Anne, sua única filha mulher, com Mark Phillips.
A rainha já tivera tempo para se acostumar aos escândalos. Sua irmã, a princesa Margaret (1930-2002), fora amante de um plebeu divorciado e pai de dois filhos, Peter Townsend, casando-se depois com o fotógrafo Antony Armstrong-Jones, de quem se divorciou. Depois, passou a colecionar namorados.
O pior viria em 1996, com o divórcio de Charles e Diana Spencer, que no ano seguinte morreria em um acidente de carro, em Paris, junto com o companheiro Dodi Fayed. A comoção gerada pela morte de Lady Di, que recém-completou 25 anos, contrastou com os cinco dias de silêncio da rainha, o que fez despencar sua popularidade.
Mais recentemente, viu seu filho tido como favorito, o príncipe Andrew, envolvido em um escândalo sexual ao vir à tona denúncias de que manteve relações sexuais com uma adolescente de 17 anos, em 2001, vítima do esquema de tráfico sexual do bilionário Jeffrey Epstein.
Elizabeth não nasceu para ocupar o trono. Sua vida mudou quando tinha dez anos. Seu tio, Eduardo 8º, renunciou para se casar com a socialite americana Wallis Simpson. O irmão dele, George 6º, tornou-se rei, e a princesa, caso não nascesse um irmão de sexo masculino, seria a sucessora da dinastia de Windsor.
Foi o que aconteceu na abadia de Westminster, em 2 de junho de 1953. Pela primeira vez, no Reino Unido, uma coroação era transmitida pela TV. Elizabeth assumia também como chefe de Estado de um grupo de países historicamente vinculado ao antigo Império Britânico, como Canadá, Austrália e Nova Zelândia.
Com funções políticas apenas simbólicas —nomear como primeiro-ministro o líder do partido majoritário—, Elizabeth 2ª assistiu passivamente à desintegração do império e à transformação em república de antigos territórios coloniais. Foi um longo e contínuo sopro de história que não a afetou.
Ela discretamente criticou decisões do governo, como a invasão franco-britânica do Egito para recapturar o Canal de Suez, em 1956, o aumento do desemprego quando a premiê era Margaret Thatcher, nos anos 1980, ou, 20 anos depois, o número excessivo de militares que Tony Blair enviou a Iraque e Afeganistão.
Apoiou em 1983 a Guerra das Malvinas —reconquista do arquipélago ocupado pela à época ditadura argentina. Orgulhava-se de ter seu filho Andrew entre os militares enviados ao Atlântico Sul.
Também, e sempre discretamente, preocupou-se com o desapego à monarquia do primeiro-ministro canadense Pierre Trudeau (1919-2000) e teria ficado furiosa quando os Estados Unidos invadiram Granada, em 1983. É um arquipélago do Caribe do qual Elizabeth 2ª era a chefe de Estado.
*Texto publicado originalmente na Folha de São Paulo.
Bienal do Livro de Brasília abre seleção para autores interessados em lançar obras no evento
g1 DF*
Autores interessados em ter obras lançadas na 5ª Bienal Internacional do Livro de Brasília (BiLB) podem se inscrever gratuitamente, pelo site, até o dia 9 de setembro. A seleção vai escolher 18 títulos para terem lançamento na edição deste ano do evento, que ocorre entre 21 e 30 de outubro, no Pavilhão do Parque da Cidade.
Para participar, as obras devem ter publicação registrada em primeira edição entre 2020 a 2022 . O resultado dos selecionados será divulgado em 30 de setembro.
A curadora da BiLB, Paulliny Tort, afirma que o edital possibilita maior número de publicações de autores locais, além de democratizar o acesso da população a novas obras.
"O edital de lançamentos da bienal abre oportunidade para que autores e autoras do Distrito Federal participem ativamente dessa grande festa do livro, contando com a estrutura de um ambiente diverso e repleto de trocas culturais", diz.
Categorias
Os 18 títulos selecionados pela curadoria do Bienal devem estar enquadrados dentro de oito categorias. São elas:
- Biografia: texto narrativo e expositivo em que o autor narra a história da vida de uma pessoa ou de várias pessoas.
- Conto: narrativa breve, concisa e ficcional.
- Crônica: narrativa breve que descreve fatos do cotidiano.
- Infantil: textos dedicados especialmente ao público infantil de 6 a 10 anos, incluindo histórias de ficção, biografias, poemas, obras folclóricas e de cultura popular.
- Juvenil: textos dedicados especialmente ao público juvenil de 11 a 16 anos, incluindo histórias de ficção, biografias, poemas, obras folclóricas e de cultura popular.
- Poesia: linguagem de conteúdo lírico ou emotivo, escrita em forma de verso ou prosa.
- Romance: narrativa longa em prosa na qual se relatam fatos imaginários ou fictícios da experiência humana.
- Reportagem: texto de caráter jornalístico baseado no testemunho direto, fatos e situações abordadas em perspectiva investigativa.
Inscrições
Cada interessado pode participar com a inscrição de apenas um livro, que deve ter número de identificação ISBN. Para se inscrever, o autor deve acessar o site, preencher os dados solicitados e apresentar breve histórico sobre a formação e o envolvimento com a produção literária, além de uma foto pessoal.
A Comissão de Seleção da BiLB informa que também é permitido apresentar clippings, reportagens e críticas publicadas em meios de comunicação ou outros documentos que o autor possa considerar necessários, para auxiliar na avaliação do mérito cultural do projeto.
Além disso, o autor deve enviar três cópias físicas da obra literária, exclusivamente por via postal, à organização da BiLB, para finalizar a inscrição.
A comissão avisa que o envio deve ser feito por meio de serviços de entrega rápida ou carta registrada, no seguinte endereço: SBS, Quadra 2, Bloco E, Sala 902, Edifício Prime Business Center, Brasília-DF, CEP: 70070-120.
Segundo informações do edital, a "documentação deve ser entregue em envelope lacrado com cola ou grampo, identificado no seu exterior apenas com os dizeres: 'Seleção de lançamentos da 5ª bienal'".
Avaliação e resultado
No período de 14 a 28 de setembro, as obras serão avaliadas pela Comissão de Seleção da BiLB. De acordo com o edital, todas as propostas são analisadas de acordo com a qualidade do texto, clareza e concisão textual em relação ao público-alvo, coerência da linguagem com o estilo, além da qualidade do material e do projeto gráfico da obra literária
*Texto publicado originalmente no g1.
'Machopopulismo' de Bolsonaro é parte de tradição que remonta ao fascismo, diz historiador
Thais Carrança*, BBC News Brasil
A análise é do historiador argentino Federico Finchelstein, professor da New School for Social Research (EUA) e autor do livro Do Fascismo ao Populismo na História (Edições 70, 2020), e foi feita pouco depois de o presidente Jair Bolsonaro (PL) puxar um coro de "imbrochável" para si mesmo, em discurso na Esplanada dos Ministérios no 7 de Setembro, em Brasília.
Mas o que é esse "machopopulismo", que na visão de um dos principais estudiosos do radicalismo e do populismo da atualidade une líderes como Donald Trump (EUA), Silvio Berlusconi (Itália), Abdalá Bucaram (Equador), Carlos Menem (Argentina), Rodrigo Duterte (Filipinas) e Jair Bolsonaro?
"É uma característica notável de todos esses populistas e, antes deles, dos movimentos fascistas. Um entendimento da sociedade baseado na supremacia masculina, num senso particularmente reacionário de virilidade e na distinção entre gêneros", disse Finchelstein, em entrevista à BBC News Brasil nesta quarta-feira (7/9).
"Por mais chocante que soe o presidente do Brasil celebrar dessa forma sua própria virilidade, isso não é algo novo ou original. É parte de uma tendência reacionária e da história do fascismo e do populismo", completa o pesquisador.
Finchelstein lembra episódios diversos de bravata viril e grosseria machista por líderes contemporâneos considerados populistas.
Durante debate no processo de eleições primárias do Partido Republicano, Trump se gabou do tamanho de seu órgão genital. E num vídeo de 2005, recuperado durante a campanha eleitoral de 2016, usou termos chulos ao falar sobre beijar, acariciar e tentar fazer sexo com mulheres ("Pegue-as pela vagina. Você pode fazer qualquer coisa", dizia Trump no vídeo).
O ex-primeiro-ministro da Itália, Silvio Berlusconi, fez referências grosseiras ao físico da ex-chanceler alemã Angela Merkel e constantemente se gabava de sua performance sexual, além de ter dito certa vez que sua paixão pelas mulheres era "melhor do que ser gay", lembrou Finchelstein.
"Se eu posso amar 100 milhões [de Filipinos], eu posso amar quatro mulheres ao mesmo tempo", disse certa vez o ex-presidente filipino Rodrigo Duterte, que também fez piada sobre querer estuprar uma missionária australiana, morta após ser torturada e sofrer estupro coletivo.
Segundo o professor da New School for Social Research, todos esses episódios revelam líderes cujo entendimento da política e da sociedade é extremamente discriminatório com relação às mulheres.
"Eles consideram que as mulheres têm um papel secundário e que os homens, por suas alegadas proezas sexuais, devem ser os líderes das nações", diz Finchelstein. "Isso não faz o menor sentido de um ponto de vista racional e democrático, mas é parte da lógica irracional dessas tradições reacionárias."
'Dois lados da mesma moeda'
Para o especialista, a exaltação à própria sexualidade, combinada a um conservadorismo repressor da sexualidade da população, são dois lados de uma mesma moeda.
"Essa ideia bastante violenta de dominação masculina já implica em si na repressão de outros. No passado, líderes fascistas e populistas eram um pouco mais discretos com relação a essa dimensão. No caso de Trump, Berlusconi e Duterte, a coisa se torna cada vez mais explícita. Mas, embora a vulgaridade seja algo mais recente, a ideologia é bastante antiga, com origem em [Adolf] Hitler e [Benito] Mussolini. Essa ideia de um líder macho que, devido a essa masculinidade exacerbada, deve ser aceito como o líder da nação", diz Finchelstein.
Para o pesquisador, essa perspectiva machista e chauvinista apela a uma parcela da população que se vê refletida nessas declarações repressoras e discriminatórias, se identificando com essas mensagens.
"Esse líderes têm apelo não para a maioria da sociedade, mas para aqueles que estão insatisfeitos com a democracia e com a diversidade", afirma.
Ele cita a comparação feita por Bolsonaro entre sua esposa Michelle Bolsonaro e as esposas de outros candidatos.
"É ultrajante, porque trata-se de uma clara objetificação das mulheres. Mas não é uma surpresa quando falamos desses 'machopopulistas' e seu senso de masculinidade discriminatória."
Finchelstein lembra que Trump fez o mesmo durante as primárias americanas, ao comparar sua esposa, Melania Trump, com a esposa do também republicano Ted Cruz.
"Isso é parte do manual trumpista, há poucas coisas originais a respeito de Bolsonaro", afirma.
Os quatro elementos do fascismo
Para o pesquisador, apesar de sua falta de originalidade, Bolsonaro se destaca entre os líderes autoritários contemporâneos por estar, assim como Trump, mais próximo do fascismo do que os demais populistas.
Finchelstein enumera os quatro elementos-chave do fascismo:
- Mentiras e propaganda autoritária;
- Militarização da política e glorificação da violência e de armas;
- Política do ódio e total demonização do outro;
- Ditadura.
"Mesmo em seu discurso de Dia da Independência, e isso não é irrelevante, Bolsonaro classificou o outro lado como 'o mal'", observa Finchelstein — as palavras do presidente foram as seguintes: "O mal que perdurou por 14 anos no nosso país, que quase quebrou nossa pátria e que deseja voltar à cena do crime. Não voltarão, o povo está do lado do bem."
Para o pesquisador, "se você tem esses quatro elementos, você está numa situação fascista".
*Texto publicado originalmente na BBC News Brasil.
Grito dos Excluídos e Excluídas: os contrastes de um Brasil ainda dependente
Revista Esquinas*, Brasil de Fato
Organizado desde 1995, o Grito dos Excluídos e Excluídas é uma das manifestações mais tradicionais dos movimentos populares ao redor de todo o Brasil. Ele surge com a proposta de contrapor a "celebração" da Independência do Brasil, uma vez que uma parcela de sua população ainda se encontra sem acesso a condições básicas de sobrevivência, fato que se agravou com as crises política e econômica dos últimos anos.
O Grito de 2022 aconteceu em diversas cidades do país com o tema "Independência para quem?", que ressaltou o aumento da população em situação de rua nas grandes capitais, além da violência contra povos marginalizados.
Em ano de eleições presidenciais, o Grito em São Paulo também deu espaço para manifestações a favor da democracia. "Não é uma resposta, porque não é para ser uma manifestação defensiva, ela é ofensiva, porque apresentamos um projeto", comenta Ian Neves, professor de história e criador de conteúdo para internet.
A escolha da data se refere também à dualidade de se estar em um país livre do colonialismo, porém, onde as pessoas que vivem nele ainda estão presas a um sistema que condiciona a desigualdade social.
"É importante nos auto-intitularmos excluídos num dia que celebra a pós-Independência quando o nosso país ainda é subserviente perante aos países imperialistas", diz Rafaela Puri, da Ressurgência Puri-goitacá da aldeia Marakanà (RJ).
Parte do Movimento de Saúde Mental e Bem-Viver dos Povos Indígenas, Rafaela também explica que o Grito dos Excluídos é uma forma dos movimentos sociais se imporem diante de um cenário pouco favorável para as minorias.
"Se eles jogam a gente na rua para morrer, nós nos levantamos para lutar, a rua é nossa para lutar. A necessidade do povo na rua é contínua", completa.
O Grito dos Excluídos desse ano não está alheio às ameaças de violência política no Brasil. Marcio Pereira, professor da rede municipal de ensino de São Paulo, ressalta que ao longo dos anos essa é uma situação que tem se intensificado.
"Venho ao Grito dos Excluídos desde a sua primeira edição. A diferença [de 2019] é que hoje a gente saiu de casa com medo. Medo das armas e de defender a nossa bandeira."
Tomar a frente da Catedral da Sé enquanto a Avenida Paulista é palco de uma das manifestações de direita mais esperadas do ano parece ter despertado um sentimento em comum, porém, que não foi capaz de diminuir a dimensão do Grito dos Excluídos.
Confira outros depoimentos de quem esteve no ato:
"Quando o medo é grande, a resistência tem que ser maior”, conclui Marcio. "A classe dominante celebra o 7 de setembro, trazendo até o coração de um monarca. A classe trabalhadora não é representada. O Grito dos Excluídos nos representa."
(Ian Neves, professor de história e criador de conteúdo)
"Esse ato é, simbolicamente, um dos mais importantes do ano, pois precisamos mostrar que não estamos recuando, não abaixando a cabeça para os bolsonaristas."
(Josias Lima, estudante e membro do Diretório Central Estudantil (DCE) Unifesp)
"Nós queremos um Brasil efetivamente democrático, fraterno e distante dos objetivos do atual governo, que incita mais o ódio do que o amor."
(Eduardo Suplicy, vereador da cidade de São Paulo e candidato a deputado estadual)
*Revista Esquinas é um órgão laboratório da Faculdade Cásper Líbero (SP). Com reportagem de Luisa Monte, Miguel Teles e Nathalia Jesus
*Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.
Dia da Amazônia: floresta foi tema ausente em debate presidencial
Maria Eduarda Portela*, Metrópoles
O Dia da Amazônia é comemorado nesta segunda-feira (5/9) e tem como finalidade conscientizar a população sobre a importância desse bioma, que é um dos principais patrimônios naturais da humanidade. Embora existam diversas campanhas de preservação da floresta, a Amazônia continua sob risco de desmatamento e queimadas.
A conservação e o desenvolvimento sustentável da Região Amazônica, no entanto, são temas que foram praticamente ignorados durante o debate entre presidenciáveis em 28 de agosto.
O Metrópoles conversou com especialistas sobre a importância de discutir a preservação da Amazônia e a economia verde desenvolvida na região.
Para o doutor em Ecologia e cientista sênior do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Paulo Moutinho, os candidatos só citaram a Amazônia no contexto do desmatamento na região, que é um grande problema, mas deixaram de lado as soluções para outros problemas enfrentados pela floresta.
“Eu espero que, no Dia da Amazônia, a gente tenha muito o que comemorar, mas também muito com o que se preocupar, e que isso reflita nos discursos e nos debates que os candidatos farão, especialmente no tocante ao clima”, declara Moutinho.
O secretário-executivo do Observatório do Clima, Marcio Astrini, lembra que a proteção da Amazônia atualmente é muito mais discutida, em comparação a eleições anteriores, mas ainda não é o suficiente.
“Ainda é muito pouco, precisamos de muito mais. Mesmo porque, quando falamos sobre clima, a Amazônia é o principal componente de clima no Brasil”, afirma Astrini.
“É uma floresta importantíssima nesse debate e, quando falamos sobre clima, não estamos falando apenas sobre dados científicos, negociações diplomáticas, acordos feitos em Paris. Nós estamos falando sobre a vida das pessoas”, reforça o secretário-executivo do Observatório do Clima.
Desmatamento na Amazônia
Dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) apontam que o desmatamento na Amazônia atingiu o maior nível para o mês de agosto nos últimos dez anos. O levantamento mostra que a área desmatada aumentou 7% em relação ao mesmo período do ano passado.
Informações do Imazon apontam que, de agosto de 2021 a julho de 2022, foram derrubadas 10.781 km² de floresta, número equivalente a sete vezes a cidade de São Paulo.
Para Moutinho, a falta de comprometimento dos governos estaduais, municipais e federal é um dos principais fatores para a alta do desmatamento.
“É um desleixo geral dos estados e dos municípios, que ainda acham que a Floresta Amazônica impede um tal progresso, já instalado em uma grande porção da Amazônia, e não traz duas coisas fundamentais: distribuição de renda e distribuição de terra para as pessoas trabalharem”, declara o cientista sênior do Ipam.
Futuro da Amazônia
Para Moutinho, políticos e candidatos atuais não demonstram muita disposição para discutir uma solução de preservação da Amazônia e o desenvolvimento sustentável de uma maneira mais profunda e de longo prazo.
“Isso é extremamente grave, porque a conservação da Amazônia, o uso sustentável dos seus recursos e a necessidade do fim do desmatamento são questões de segurança nacional”, reforça.
O secretário-executivo do Observatório do Clima declara que é possível reverter a situação atual da Amazônia. Segundo o especialista, nesse intuito, é necessário dar autonomia, novamente, para os órgãos ambientais do governo e resolver o problema de caixa das pastas.
“Portanto, é possível reverter o lastimável quadro atual da agenda ambiental no Brasil, mas é preciso tomar algumas atitudes, revogar muitas normas, implementar outras medidas no lugar do que foi revogado, criar novos atos legais e administrativos”, afirma Astrini.
O Metrópoles procurou o Ministério do Meio Ambiente para comentar as ações do governo federal contra o desmatamento da Amazônia; contudo, não obteve respostas até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestações.
*Texto publicado originalmente em Metrópoles.