Escândalo da Americanas e o jornalismo seletivo da grande imprensa
Brasil de Fato*
Se a imprensa corporativa entendeu que a Lava Jato, por conta do apelo midiático que exercia na audiência, com reviravoltas e prisões espetaculares de políticos e empresários graúdos, era um assunto para ser trabalhado em ritmo de seriado dramático, com alguma dose de sensacionalismo, o escândalo da Americanas oferece em tese todos os ingredientes de que a grande mídia precisa para desenvolver um jornalismo investigativo instigante: envolve gente importante, grandes somas de dinheiro, inside information, mistério, provavelmente intrigas, ameaças e corrupção nas altas esferas do poder econômico, além de indicar se tratar de um crime perfeito.
Mas ao contrário, o que vemos é uma cobertura burocrática, asséptica e previsível como são as notícias da temporada de compras Black Friday. O que mudou? Os atores. Enquanto na Lava Jato os protagonistas eram as lideranças do PT, pelas quais a imprensa nutre antipatia, no caso da Americanas são os homens mais ricos do país, incensados cansativamente pelo “jornalismo independente e profissional”. A troca de personagens faz uma grande diferença.
A inflexão não é um descuido. Colocar em questão assuntos que contrariem a posição dos veículos e do empresariado é buscar sarna para se coçar. Com o tempo, ensina Robert McChesney – estudioso do papel que a mídia desempenha nas sociedades democráticas e capitalistas -, os jornalistas bem-sucedidos simplesmente internalizam a ideia de que é tolice e "não profissional" querer perseguir histórias controversas que, em sua maioria, causam dores de cabeça e demandam muito esforço para obter a aprovação da chefia – que exige cada vez mais provas “irrefutáveis” para submeter ao escrutínio jornalístico um ator político aliado -, um padrão absurdo pela qual, como apontou a produtora da CNN April Oliver, "não teria havido Watergate".
Parece ser esse o caso do golpe bilionário da Americanas. A cobertura jornalística tem sido extremamente zelosa na apresentação dos fatos e de seus protagonistas. A dívida exorbitante de mais de R$ 40 bilhões é abordada muito mais como um rombo contingente do que como uma fraude deliberada (desculpe o pleonasmo).
A maior parte das notícias explora as repercussões do caso para o mercado acionário, a guerra judicial entre os bancos credores e a varejista, as possíveis implicações do pedido de recuperação judicial e as alternativas para os milhares de pequenos acionistas e fornecedores, questiona como um rombo daquela magnitude pôde ter passado despercebido aos olhos dos executivos, dos sócios de referência, da auditoria externa e dos órgãos de fiscalização e especula sobre as medidas que deveriam ter sido tomadas para que a inconsistência contábil não acontecesse e quais as providências que o Conselho de Valores Mobiliários, órgão normatizador, deverá tomar.
Nem os editoriais - dois apenas (O Globo e Folha de S. Paulo) -, que costumam ser contundentes e intransigentes com as autoridades, os servidores públicos e as políticas econômicas que lhes desagradam, aplicaram um tom quase que indulgente sobre o calote.
Enquanto isso, ao contrário da práxis corriqueira nas páginas policiais e políticas, em que suspeitos de crimes e esquemas de corrupção são rapidamente expostos, até agora estão envoltos em mistério os responsáveis por uma das maiores falcatruas contábeis do país, apesar das fortes suspeitas de que se trata de um golpe de mestre, não de um problema de governança. A descoberta de que o ex-CEO e a então diretoria da Americanas, cujos nomes estranhamente pouco aparecem nas matérias, venderam R$ 241,5 milhões em ações da companhia no segundo semestre de 2022 é evidência indiscutível de má-fé e de que a fraude nos balanços da varejista foi um plano bem arquitetado.
A falta de interesse na cobertura jornalística para revelar os culpados e provocar uma reflexão sobre a permissiva lei das S.A., sobre a frágil proteção ao consumidor e aos pequenos fornecedores, sobre a selvagem desregulação dos mercados e sobre a responsabilização penal dos crimes de fraudes não apenas pouco tem ajudado a esclarecer quem é o vilão dessa “pirotecnia contábil” como tem contribuído para criar uma nuvem cinzenta que engolfa a história, tergiversa e deixa confuso quem vê de fora toda essa bagunça.
Mesmo os sócios de referência da Americanas - Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira -, sob inevitável pressão dos credores e da Justiça, ainda gozam do infinito benefício da dúvida por parte da mídia, que até outro dia os tratava como os semi-deuses do “capitalismo do bem”, ou seja lá o que isso quer dizer.
Até que um jornalista investigativo faça o dever de casa, como se atreveram os advogados de defesa do BTG , que meteram o dedo na cara dos festejados bilionários chamando-os de fraudadores , a percepção de quem acompanha pelo noticiário o desenrolar das apurações é a de que essa lambança não resulta de um golpe de caso pensado, mas de mero efeito colateral do arriscado mundo dos negócios. É do jogo!
É como se os jornalistas que cobrem e comentam o assunto fossem orientados pela chefia a não colocar em questão o caráter dos super-ricos e o mito de que as corporações são os faróis da meritocracia, da moralidade e da eficiência, a não questionar os alicerces do liberalismo, quais sejam a desregulação dos mercados, o corte de impostos e o acúmulo de capital, ou a disfuncionalidade desse modelo capitalista para a sociedade brasileira.
Esse apagão jornalístico não é caso isolado e ocorre toda vez que o estrago causado pela elite econômica emerge.
Como fica difícil de ignorar o tamanho da encrenca, a cobertura da imprensa faz um trabalho de redução de danos, aborda o assunto pelas franjas e evita expor os personagens centrais da barafunda até o episódio virar memória.
A lista é grande, como o das varejistas Magazines Luiza e Americanas que vendem produtos de marcas acusadas de trabalho análogo à escravidão, das gigantes de tecnologia que usam ouro ilegal de terras indígenas brasileiras, do cartel da Crutale que levou milhares de pequenos agricultores à ruína financeira, das milhares de famílias que perderam suas casas pela mineração da Braskem, em Maceió, da fabricante de alumínio Norsk Hydro, responsável pela poluição de rios com resíduos tóxicos que adoeceram comunidades quilombolas e povos indígenas no Pará, e a vista grossa que os bancos fazem para o desmatamento causado por seus clientes.
Não se pode esquecer da Operação Zelotes da Polícia Federal deflagrada 2015 visando investigar um esquema de corrupção no Conselho de Administração de Recursos Fiscais (CARF), órgão colegiado do Ministério da Fazenda, responsável por julgar os recursos administrativos de autuações contra empresas e pessoas físicas por sonegação fiscal e previdenciária. Foram investigadas ao menos 70 empresas, com destaque para a Gerdau, BankBoston, Mundial-Eberle, Ford, Mitsubishi, Santander, Bradesco, Banco Safra e o Grupo RBS, afiliado da Rede Globo no Rio Grande do Sul, todos com dívidas fiscais milionárias em jogo.
Por fim, o rompimento das barragens da mineradora Vale em Brumadinho e Mariana. Que fim deram o ex-CEO da companhia, os demais membros de sua diretoria e os responsáveis pelos frágeis laudos técnicos que atestaram a estabilidade das barragens? A exemplo de outros peixes graúdos enrolados em crimes e denúncias de toda ordem, Fabio Schvartsman, presidente da mineradora à época dos desastres, parece estar bem. Apesar da tragédia ambiental e da morte de mais de 270 pessoas, continua corado com sua imperturbável vida de luxo e glamour e seu sono reparador protegido por medalhões da advocacia, às expensas da Vale. Reapareceu na cena corporativa brasileira no ano passado numa espécie de reabilitação no mundo dos negócios.
A proximidade que existe entre os figurões da elite dominante e a cúpula dos jornais e emissoras de TV dificulta ainda mais a disposição dos veículos em ir a fundo na apuração jornalística. Os laços estreitos, notou o estudioso Silvio Waisbord , constrangem as organizações midiáticas de irem atrás dos segredos dos envolvidos, que transitam nos mesmos ambientes exclusivos por onde perambulam os magnatas dos grandes grupos de comunicação. Têm a mesma origem aristocrata, compartilham a mesma visão de mundo e criam vínculos afetivos que vão além do pacto ideológico.
Registro raro da intimidade dos moradores do andar de cima foi o jantar, flagrado em setembro de 2021, no apartamento de Naji Nahas, que resume com inteireza a relação promíscua entre mídia e gente poderosa com ficha suja. Além do anfitrião, especulador preso por corrupção e lavagem de dinheiro, mais conhecido como “o homem que quebrou a Bolsa de Valores do Rio de Janeiro” , estavam no repasto o ex-presidente Michel Temer , detido pela Polícia Federal por corrupção ativa e lavagem de dinheiro, seu amigo e advogado José Yunes , preso pela PF e acusado de ser intermediário de propina, e o presidente do PSD, Gilberto Kassab, indiciado pela PF pela propina de R$ 58 milhões recebidos do grupo J&F.
Junto a essas celebridades de reputação questionável estavam os jornalistas Roberto D'Ávila, apresentador e diretor da GloboNews, João Carlos Saad, presidente do Grupo Bandeirantes, e o jornalista Antonio Carlos Pereira, que foi diretor de opinião do jornal O Estado de S. Paulo.
A cumplicidade e a descontração reveladas em vídeo nos levam a desconfiar da independência que teria a redação do veículo de qualquer um daqueles prepostos da grande mídia para apurar em profundidade seus pares sociais. Daí, explica Waisbord, o porquê de os jornalistas serem propensos a fornecer uma cobertura complacente ou a ignorar as transgressões de gente poderosa do mercado.
O jornalismo investigativo brasileiro é seletivo. O compromisso da imprensa corporativa em combater a corrupção, em revelar as irregularidades de autoridades e empresários depende em grande medida de quem as comete. Citando mais uma vez Robert McChesney, o mais producente e prudente, no entendimento dos jornalistas mais experientes, é gerar histórias de fórmula testada e comprovada que custem pouco, que se ajustem bem aos objetivos comerciais dos meios e não antagonizem com os interesses da elite e dos anunciantes. Afinal, como resumiu o escritor e colunista Richard Reeves sobre a visão pragmática dos executivos que governam o mundo da mídia: o bom jornalismo é ruim para os negócios.
* Luís Humberto Carrijo é sócio-fundador da agência de comunicação Rapport Comunica, especializada em relacionamento com a imprensa para o funcionalismo público. Jornalista e comunicador, tem pós-graduação em Comunicação Empresarial na USP e mestrado em Comunicação e Cultura na Universidade Autônoma de Barcelona. É também autor do livro O Carcereiro – o Japonês da Federal e os preso da Lava Jato.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.
Nas entrelinhas: Disputa no Senado é vital para governabilidade de Lula
Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense
Na contabilidade dos candidatos, o Senado teria mais de 81 parlamentares. A conta não fecha porque tanto o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que concorre à reeleição, quanto o seu desafiante, o senador recém-eleito Rogério Marinho (PL-RN), estão contando com promessas que podem não se realizar, em razão da votação secreta. Até agora, certo mesmo, na eleição para a Presidência do Congresso, Pacheco contaria com o apoio de 39 senadores; Marinho tem 26 votos confirmados, mas diz que está recebendo muito apoio e vai surpreender. Os votos restantes estão realmente na faixa de risco, pois são de parlamentares que mantêm sigilo sobre o voto ou prometeram apoio a ambos os candidatos.
Para ser eleito, o presidente do Senado precisa de 41 votos, ou seja, metade mais um do total. A recondução de Pacheco é vital para a governabilidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, porque é um aliado leal, com o poder de engavetar qualquer proposta que possa desestabilizar o governo. A Casa tem o poder de bloquear nomeações para os tribunais superiores, sobretudo ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), que deve abrir duas vagas ainda neste ano, com as aposentadorias compulsórias da presidente da Corte, ministra Rosa Weber, e do ministro Ricardo Lewandowski. Embaixadores, diretores de autarquias e o procurador-geral da República, entre outras autoridades, dependem do aval do Senado.
Seis partidos declararam apoio a Pacheco, cujas bancadas representam 42 senadores, mas nem todos os parlamentares devem cumprir os acordos feitos por suas legendas. A bancada do PSD, com 15 senadores, já tem três dissidentes que declararam apoio Marinho: Nelsinho Trad (PSD-MS), muito influente na Casa; Samuel Araújo (PSD-RO) e Lucas Barreto (PSD-AP). Os demais partidos que apoiam Pacheco são MDB (10 senadores), PT (9), PDT (3) senadores; PSB (4); e Rede(1).
Rogério Marinho cresceu na disputa em razão de dois motivos, principalmente. Primeiro, o fato de que a reeleição de Pacheco abre caminho para a volta do senador Davi Alcolumbre (União Brasil -AP) ao comando da Casa em 2025. O ex-presidente do Senado foi o principal artífice da eleição de Pacheco, que agora não tem como não retribuir o gesto sem trair o aliado, embora diga que esse assunto nunca foi tratado nem existe esse compromisso. O problema é que ninguém acredita.
Câmara
O segundo fator é o mal-estar existente em parcela do Senado em relação ao Supremo, cuja atuação é considerada abusiva por muitos senadores, principalmente a do ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e responsável pelo inquérito das fake news. Há um claro propósito dos aliados de Bolsonaro, que agora contam com o reforço do ex-vice-presidente Hamilton Mourão (RS), da ex-ministra dos Direitos Humanos Damares Alves (DF) e do ex-ministro da Justiça Sergio Moro (PR), de constranger o Supremo e pedir o impeachment de Moraes.
Ontem, o líder do PSDB, senador Izalci Lucas (DF), anunciou apoio dos três senadores da legenda a Rogério Marinho, que é um ex-deputado do PSDB e tem no currículo o sucesso das negociações para aprovação da reforma trabalhista, durante o governo Michel Temer.
Além do PSDB, Marinho conta com o apoio do PL (13 senadores), PP (6) e Republicanos (4). O União Brasil liberou a bancada. Alcolumbre garante que Pacheco tem a maior parte dos votos do partido. O senador eleito Alan Rick (AC), do União, já declarou publicamente que votará em Marinho. O Podemos, com quatro senadores, tem um candidato isolado: Eduardo Girão (CE), que está sendo pressionado a desistir da disputa.
Na Câmara, a situação é completamente diferente. O deputado Arthur Lira (PP-AL), candidato à reeleição, tem apoio de 20 partidos, do PL de Bolsonaro ao PT do presidente Lula, com quem pretende manter uma relação “tranquila”. Lira apoiou a reeleição de Bolsonaro, mas pulou na frente na hora de reconhecer a vitória do petista, operando um giro na política de alianças do PP, o partido hegemônico no Centrão. Segundo disse ontem, suas críticas do passado “nunca” foram pessoais.
A força de Lira na Câmara não tem precedentes, sendo prevista a maior votação da história da Casa desde a redemocratização: cerca de 450 votos dos 513 totais ou mais, maior até que a eleição de Ibsen Pinheiro (MDB-RS), em 1995, e João Paulo Cunha (PT-SP), em 2003. Seus únicos adversários são Marcel Van Hattem (Novo-RS) e Chico Alencar (PSol-RJ), que volta à Câmara em grande estilo. “Quanto maior a votação de Lira, maior será a dificuldade de Lula na Presidência”, prevê Alencar, que conta com o apoio do PSol (12) e da Rede (2), mas imagina que pode receber os votos dos descontentes com o acórdão dos demais partidos com Lira. Hattem conta com 3 votos do Novo e o apoio do ex-procurador Deltan Dallagnol (Podemos).
Nas entrelinhas: Estava em curso o genocídio dos ianomâmis
Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense
Não poderia ser diferente, depois da reportagem da jornalista Sônia Bridi na reserva Indígena Ianomâmi, domingo, no Fantástico (TV Globo). O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou, ontem, a investigação da possível prática dos crimes de genocídio de indígenas e de desobediência de decisões judiciais por parte de autoridades do governo Jair Bolsonaro.
São imagens chocantes, que equivalem às das crianças do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, cujas fotos me embrulharam o estômago quando lá estive e vi montanhas de cabelo, sapatos, brinquedos, agasalhos, próteses, óculos e outros pertences pessoais que lhes foram tirados. O que mais impressiona é a “racionalidade” com que tudo foi feito, a partir da “banalidade do mal”, como disse a filósofa judia-alemã Hannah Arendt.
O conceito foi cunhado a partir do julgamento em Jerusalém do criminoso de guerra nazista Karl Adolf Eichmann, responsável por ocupar funções na Seção de Assuntos Judaicos do Departamento de Segurança de Berlim. Um dos principais colaboradores de Hitler, acusado pela morte de inúmeros judeus, Eichmann havia fugido para a Argentina, onde foi localizado por agentes israelenses, que o sequestraram e levaram para Jerusalém, onde foi julgado e condenado à morte.
Convidada para assistir ao julgamento, Arendt escreveu um livro. Chegou à conclusão de que Eichmann não era um ser demoníaco, mas um mal constante, que fazia parte da rotina de trabalho dos oficiais nazistas. Eichmann nunca se considerou culpado pelos crimes cometidos, disse que apenas “cumpria ordens, seguindo as leis vigentes naquele período”. Acreditava na sua inocência porque seguia ordens superiores e as leis do Estado nazista.
Na avaliação de Arendt, essa seria a justificativa para a ascensão em regimes totalitários e a banalização da razão e coerência do ser humano. Obcecado por poder e ascensão social, Eichmann faria qualquer coisa pelo reconhecimento social e o sucesso na hierarquia nazista, daí a banalização do mal que praticava. No entendimento de Arendt, a razão pela qual deveria ser punido era principalmente essa. Sua racionalidade não era voltada para o bem comum, mas apenas em seu próprio benefício.
As crianças ianomâmis não foram exterminadas nas câmaras de gás como as crianças judias (1,5 milhão foram mortas no Holocausto), estavam sendo mortas pela fome e falta de assistência médica; as adolescentes e jovens eram exploradas sexualmente em troca de comida. Os ianomâmis estavam sendo exterminados por uma política de Estado. Um livro escrito pelo coronel Carlos Alberto Lima Menna Barreto (Biblioteca do Exército, 1995) sustenta que a existência dos Ianomâmis era uma farsa.
Política de extermínio
A Farsa Ianomâmi disseminou nas Forças Armadas e em alguns setores o medo de perder a soberania em áreas da Amazônia brasileira. Menna Barreto apontava um conluio entre ONGs e forças estrangeiras para “separar do Brasil” o território indígena, “cedê-lo aos fictícios ‘ianomâmis’ e “preparar a dominação futura da Amazônia (…) para a posterior criação de países indígenas independentes, sob a tutela das Nações Unidas”.
O general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional de Bolsonaro, quando comandante militar da Amazônia, vocalizou essa tese publicamente, em razão da demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol. Todos os órgãos federais, inclusive os destacamentos de fronteira das Forças Armadas, governadores e prefeitos foram coniventes com a situação. Sabia-se que os garimpeiros estavam contaminando os rios, matando e explorando os ianomâmis, em aliança com os traficantes de cocaína.
Havia um centro de comando dessa política de extermínio: o então presidente Jair Bolsonaro, aliado dos garimpeiros, que trocou e escolheu a dedo os principais responsáveis pelos órgãos de fiscalização, controle e repressão de Roraima, com a orientação de deixar os índios à míngua e liberar geral o garimpo ilegal, assim como em outros estados da Amazônia.
Barroso tomou a decisão de mandar investigar a grave situação enfrentada por nossos indígenas, como a Ianomâmi, com base nos fatos já comprovados. De acordo com lei, comete o crime de genocídio a pessoa que age com intenção de destruir, totalmente ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Ordenou, ainda, que o governo atue para garantir a retirada de garimpos ilegais em sete terras indígenas e fixou prazo de 30 dias para que seja apresentado um diagnóstico dessas comunidades, com o respectivo planejamento e cronograma de execução de medidas.
Seu despacho traduziu a banalização do mal: “Quadro gravíssimo e preocupante, sugestivo de absoluta anomia (ausência de regras) no trato da matéria, bem como da prática de múltiplos ilícitos (crimes), com a participação de altas autoridades federais”.
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Janeiro descortinou o ambiente no qual o governo recém-empossado trabalhará ao longo do seu mandato. Nos primeiros dias do mês, uma tentativa de golpe de estado, que reuniu, às claras, manifestantes doutrinados por dois meses nos acampamentos e a omissão das forças policiais do Distrito Federal. Nas sombras, indícios da atuação de profissionais da desordem e a cumplicidade de apoiadores civis e militares, em extensão e profundidade ainda não completamente mapeadas.
Poucas horas após o início dos tumultos, a reação do governo se fez presente e a ordem foi restabelecida sobre os destroços provocados pelos golpistas nos palácios de Brasília, símbolos visíveis dos Poderes Constitucionais que sediam. O balanço dos acontecimentos revela, até agora, o isolamento crescente dos partidários do governo anterior, enquanto soma pontos para o novo governo, no quesito manejo da crise, grave, provocada por seus adversários.
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O mês não terminaria, contudo, sem um segundo enfrentamento, desta vez no campo político e institucional. Na disputa pela presidência do Senado Federal confrontam-se, em eleição a se realizar no dia primeiro de fevereiro, seu atual presidente, Senador Rodrigo Pacheco, e dois outros candidatos, alinhados ambos, em graus diferenciados, com a bancada de apoiadores do governo anterior.
Um dos pontos relevantes das diferenças diz respeito justamente à relação que deve prevalecer entre os Poderes Legislativo e Executivo. O atual presidente da Casa posicionou-se, em momentos decisivos, pela defesa das instituições, em particular das decisões tomadas no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e do Supremo Tribunal Federal (STF). Seus adversários, por sua vez, vocalizam as críticas a supostos excessos dos tribunais superiores, levantando inclusive a bandeira do julgamento de ministros.
De certa forma, o país se encontra diante de mais um episódio da batalha eleitoral, após os combates havidos nas campanhas do primeiro e do segundo turno, as expectativas e incertezas que cercaram os atos de diplomação e posse do eleito, assim como na violência aberta praticada contra o patrimônio público no dia 8 passado por grupos de inconformados com o resultado das urnas.
Em breve, o resultado desse embate será conhecido. Seja ele qual for, uma lição se impõe, para o governo e para o campo democrático como um todo: a unidade e cooperação dos democratas é hoje, e continuará a ser por algum tempo, indispensável para o fortalecimento da democracia no país, bem como para o início, exitoso, do processo de reconstrução material e institucional do país.
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Lula faz reunião sobre ações emergenciais na Terra Yanomami
Agência Brasil*
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez reunião hoje (30) para tratar de ações emergenciais para proteção e auxílio aos yanomami, povo que vive uma crise sanitária que já resultou na morte de 570 crianças por desnutrição e causas evitáveis, nos últimos quatro anos.
Entre as ações previstas estão a assistência nutricional e de saúde, com alimentos adequados aos hábitos dos indígenas, e a garantia de segurança necessária para que equipes de saúde possam atuar nas aldeias. Outra prioridade é garantir rapidamente o acesso a água potável por meio de poços artesianos ou cisternas e medir a contaminação por mercúrio dos rios e nas pessoas.
A Terra Indígena (TI) Yanomami é a maior do país em extensão territorial e sofre com a invasão de garimpeiros. A contaminação da água pelo mercúrio utilizado no garimpo e o desmatamento impacta na segurança e disponibilidade de alimento nas comunidades.
“O presidente determinou que todas essas ações sejam feitas no menor prazo, para estancar a mortandade e auxiliar as famílias yanomami”, informou a Presidência, em nota.
Para combater o garimpo ilegal e outras atividades criminosas na região, devem ser adotadas iniciativas que impeçam o transporte aéreo e fluvial que abastece os grupos criminosos.
“As ações também visam impedir o acesso de pessoas não autorizadas pelo poder público à região buscando não apenas impedir atividades ilegais, mas também a disseminação de doenças”.
Participaram do encontro os ministros da Casa Civil, Rui Costa; da Justiça, Flávio Dino; da Defesa, José Mucio; dos Povos Originários, Sônia Guajajara; dos Direitos Humanos, Silvio de Almeida; de Minas e Energia, Alexandre Silveira; das Relações Institucionais, Alexandre Padilha; além do comandante da Aeronáutica, Marcelo Damasceno; a presidenta da Funai, Joenia Wapichana; e o secretário-executivo do Ministério da Saúde, Swedenberger Barbosa.
Embora entidades indígenas e órgãos como o Ministério Público Federal (MPF) já denunciem a falta de assistência a essas comunidades há muito tempo, agora, com a posse do presidente Lula, o governo federal está implementando medidas emergenciais para socorrer os yanomami.
A última delas, nesta segunda-feira, o Ministério da Justiça e Segurança Pública criou um grupo de trabalho que deverá apresentar propostas de ações a serem implementadas pelo governo federal a fim de combater a ação de organizações criminosas em terras indígenas, incluindo o garimpo ilegal.
Texto publicado originalmente na Agência Brasil.
Governo cria grupo para barrar garimpo ilegal, PM mandou novatos para 8 de janeiro e mais
Brasil de Fato*
O Ministério da Justiça e Segurança Pública criou um grupo de trabalho para elaborar em 60 dias medidas contra a presença de organizações criminosas, como de madeireiros e garimpeiros, em terras indígenas na região amazônica.
O grupo contará com a participação dos ministérios da Justiça e Segurança Pública, dos Povos Indígenas, de Minas e Energia, da Defesa, dos Direitos Humanos e Cidadania, da Fazenda, da Polícia Federal (PF), da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e das secretarias de Acesso à Justiça e Nacional de Segurança Pública.
A ação ocorre em meio à divulgação da situação de abandono que vive a Terra Indígena Yanomami, entre Roraima e Amazonas. Segundo o Ministério dos Povos Indígenas, 99 crianças do povo Yanomami entre um e quatro anos morreram em 2022 devido aos impactos do avanço do garimpo ilegal na região, como desnutrição, pneumonia e diarreia.
Em 20 de janeiro, o Ministério da Saúde decretou estado de emergência para "planejar, organizar, coordenar e controlar as medidas a serem empregadas" a fim de reverter o quadro de desassistência instalado na TI Yanomami.
PM mandou novatos para 8 de janeiro
O interventor da Segurança Pública do Distrito Federal, Ricardo Cappelli, afirmou que o comando da Polícia Militar do DF enviou formandos da corporação para a linha de frente de contenção aos bolsonaristas que invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes, em Brasília, no 8 de janeiro.
"Foi verificado, ainda, pela Subsecretaria de Operações Integradas da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, que foram empregados policiais militares do curso de formação na linha de contenção", diz um trecho do relatório final do gabinete de intervenção do DF.
O documento também informa que os policiais mais experientes não estavam em exercício no dia. "Importante destacar a existência de informação de que parcela da tropa alocada para o reforço do efetivo que estava na Esplanada encontrava-se de prontidão em casa."
Os policiais "sem a proteção adequada, sem o exoesqueleto e outras proteções adequadas. Os alunos de formação ali da Polícia Militar na linha do gradil sem a proteção adequada, de forma frágil. Isso facilitou muito que a linha fosse quebrada", disse Cappelli.
Senador quer investigação contra Valdemar por destruição de decreto golpista
O líder do PT no Senado, Fabiano Contarato (ES), solicitou ao Supremo Tribunal Federal (STF) a inclusão de Valdemar Costa Neto, presidente do PL, no inquérito das fake news.
O parlamentar fez o pedido depois que o aliado do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) afirmou, em entrevista ao jornal O Globo, que destruiu a minuta de um decreto que possibilitava um golpe de Estado, encontrado na casa de Anderson Torres, ministro da Justiça no governo Bolsonaro. Na visão do congressista, a destruição do documento seria "para benefício próprio ou de outrem".
Ministro das Comunicações usou orçamento secreto para beneficiar a própria fazenda
O atual ministro das Comunicações, Juscelino Filho (União Brasil-MA), direcionou R$ 5 milhões do orçamento para reformar uma estrada que liga as oito fazendas de sua família, em Vitorino Freire, no Maranhão, segundo apuração do Estadão.
A estrada de 19 quilômetros corta as oito propriedades e termina em uma pista de pouso privada e um heliponto. A obra foi realizada pela Construservice, que disputou sozinha a licitação e foi contratada por Luanna Rezende, irmã do ministro e prefeita de Vitorino Freire.
No total, R$ 7,5 milhões foram direcionados para reformar a estrada: R$ 5 milhões foram para a obra e o restante para 11 ruas em bairros do município. Os recursos para a obra foram enviados justamente a pedido de Juscelino Filho.
Governo diz que gestão anterior bloqueou quase R$ 1 milhão da Lei Rouanet
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) informou a gestão de seu antecessor Jair Bolsonaro bloqueou R$ 968.376.281 da Lei Rouanet para 1.946 projetos. O valor será desbloquado até o fim de janeiro deste ano.
O secretário de Fomento e Economia da Cultura, Henilton Menezes, afirmou que não há motivos técnicos para o bloqueio do dinheiro que havia sido captado ainda em 2021. "Quando a gente foi ver esse dinheiro bloqueado, não tinha razão nenhuma de estar assim", disse em entrevista ao Poder360.
"Se ele [o artista] não tiver uma liberação, ele para a produção. Ele tá fazendo uma peça de teatro, o orçamento dele é R$ 1 milhão, ele captou R$ 200 mil, ele começa a peça. Se ele continuar captando e a gente não der o fluxo para continuar, ele para a produção. Qual foi a coisa mais danosa do bloqueio? Você impediu projetos de se iniciarem e impediu projetos de darem continuidade", afirmou Henilton.
Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.
Holocausto: Alemanha homenageia vítimas LGBTQIA+ no aniversário do fim do campo de Auschwitz
Esta sexta-feira (27) marca a Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, data que coincide com o aniversário do fechamento, em 1945, do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, um dos locais mais emblemáticos da política de extermínio nazista. Pela primeira vez na história, o Parlamento alemão decidiu dedicar a data àqueles que foram perseguidos em razão de sua identidade de gênero ou orientação sexual.
Desde 1996, os deputados alemães organizam na Câmara Baixa do Parlamento uma cerimônia solene para lembrar a liberação do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau. Tradicionalmente, a data é um momento de homenagear principalmente os 6 milhões de judeus exterminados pelo regime de Adolf Hitler.
No entanto, outros grupos eram perseguidos pelo nazismo, entre eles os gays e lésbicas. Durante o regime de Hitler, cerca de 57 mil pessoas foram presas por causa de sua identidade de gênero ou orientação sexual. Desse grupo, entre 6.000 e 10.000 foram enviadas aos campos de concentração, onde eram obrigadas a usar, em seus uniformes, um triangulo rosa que indicava o motivo da prisão.
Estima-se que entre 3.000 e 10.000 homossexuais morreram durante o nazismo. Muitos deles também foram castrados ou submetidos a experimentos médicos, como cobaias.
"Esse grupo é importante, pois ele continua sofrendo discriminação e hostilidade", declarou a presidente do Bundestag, Bärbel Bas, ao anunciar a decisão dos parlamentares de se concentrar este ano na história das pessoas LGBTQIA+ perseguidas pelo regime. Em 1996, o fim trágico de gays e lésbicas foi lembrado pelo então presidente alemão, Roman Herzog, mas o destino dessa comunidade nem sempre é lembrado durante as homenagens.
A ausência sempre foi criticada pelos militantes dos direitos LGBTQIA+, que consideravam que essa população era marginalizada pelos historiadores, quando não era totalmente esquecida. Por essa razão, a decisão do Parlamento alemão este ano é vista como "um símbolo importante de reconhecimento" do "sofrimento e da dignidade das vítimas presas, torturadas e assassinadas", declarou Henny Engels, representante da Associação alemã para os direitos de gays e lésbicas.
A iniciativa do Bundestag também foi saudada por Dani Dayan, diretor do memorial Yad Vashem, em Jerusalém. "O Holocausto foi um ataque contra a humanidade: contra os judeus em particular, mas também contra as pessoas LGBTQ, os ciganos (rom e sinti) e as pessoas com deficiências mentais", lembrou. Segundo ele, é importante respeitar e honrar todas as vítimas.
De acordo com a presidente do Parlamento alemão, quase 80 anos depois do fechamento de Auschwitz, não há mais sobreviventes do campo de concentração na comunidade LGBTQIA+. Na ausência de testemunhas vivas, atores se apresentam nesta sexta-feira no Bundestag lendo textos que relatam as histórias trágicas de membros desta comunidade perseguidos pelo regime de Hitler.
Situação da comunidade LGBTQIA+ durante o nazismo
A legislação alemã datando de 1871 proibia as relações sexuais entre homens e entre mulheres. No entanto, o texto praticamente não era aplicado e em algumas cidades do país, como Berlim, tinha uma verdadeira cena LGBTQIA+.
Mas tudo mudou quando o partido nacional-socialista chegou ao poder, após as eleições de 1933, com um endurecimento das regras. Em 1935, a lei passou a impor dez anos de trabalhos forçados para quem fosse condenado em caso de relações sexuais entre dois homens.
Mesmo com o fim do nazismo, o Código Penal da Alemanha do Oeste reestabeleceu, em 1969, um artigo baseado na versão que precedia o regime de Hitler e que continuava criminalizando a homossexualidade. O texto só foi totalmente abolido em 1994, mas só em 2017 o governo indenizou as pessoas condenadas por homossexualidade após 1945. Porém, nesse momento muitas das vítimas já estavam mortas.
Putin aproveita a data para criticar ucranianos
O presidente da Rússia, Vladimir Putin, aproveitou o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto para acusar a Ucrânia de cometer crimes "neonazistas". "Esquecer as lições da história leva à repetição de tragédias terríveis. Isto é evidenciado pelos crimes contra civis, a limpeza étnica e as ações punitivas organizadas pelos neonazistas na Ucrânia", afirmou o líder do Kremlin em um comunicado, em uma retórica utilizada com frequência para justificar a ofensiva militar no país vizinho. "É contra este mal que nossos soldados lutam de maneira corajosa", acrescentou.
O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, reagiu imediatamente. Sem fazer alusão direta às declarações de Putin, ele disse apenas que "a indiferença e o ódio criam juntos o Mal".
Texto publicado originalmente no portal UOL.
Revista online | Uma crônica de dois golpes
Luiz Sérgio Henriques*, ensaísta, especial para a revista Política Democrática online (51ª edição: janeiro de 2021)
O imaginário das velhas revoluções consagrou o assalto direto aos palácios como a via privilegiada para o poder. Tais lugares supostamente materializavam o domínio das classes do passado, que deveria ser abatido num só golpe, à vista de todos, antes de neles se instalarem os novos senhores. Surpresos e desconcertados, vimos esta concepção de mudança, que hoje somos unânimes em considerar pobre e abstrata, sair do baú de ossos e ser posta em prática pela nova direita “revolucionária”, primeiro no Capitólio norte-americano, dois anos depois nas sedes dos poderes em Brasília.
Em ambos os casos, um pesado rastro de destruição – e no Capitólio até mortes. Um ar de farsa rodeou imediatamente o primeiro episódio, com sua bizarra multidão de conspiracionistas reunidos em torno da fantasiosa ideia de uma eleição roubada ilegitimamente a Donald Trump. Tratou-se de algo insano e inédito, a saber, impedir a certificação dos votos do presidente Biden, chegando-se, para tanto, ao despropósito de ameaçar com a forca o vice-presidente republicano que presidia a cerimônia e, mesmo pertencendo ao partido de Trump, insistia em se manter “dentro das quatro linhas da Constituição”.
Veja todos os artigos da edição 50 da revista Política Democrática online
Por aqui, a farsa em dobro, sobrecarregada pelo cinismo adicional que a reencenação de um golpe de Estado exige. Bem verdade que há diferenças, uma vez que o desatino brasileiro amparou-se numa concepção “revolucionária” de tipo mais clássico. Criado o caos e a desordem, as classes possuidoras acorreriam em favor da vanguarda revoltosa. A instituição policial e militar como tal, e não só alguns setores desviados, marcharia em ordem unida para depor o governante recém-eleito. E a maioria silenciosa, enfim incendiada, se ergueria em torno de palavras de ordem de inequívoco sabor fascista, como a tríade “Deus, Pátria e Família”, a que os grandes farsantes agora acrescentam uma “liberdade” concebida como atributo do indivíduo desligado de obrigações e responsabilidades com sua sociedade.
O sociólogo Luiz Werneck Vianna tem apontado que na nossa História está presente um descompasso forte entre modernização e moderno. Em síntese sumária, a modernização aconteceu pelo alto, comandada com mão de ferro por regimes autoritários e mesmo ditatoriais, como o de 1937 ou o de 1964. Ao contrário, a modernidade a que aspiramos, para se afirmar de modo continuado, requer cisões e rupturas, muitas vezes imperceptíveis, com este caminho acidentado que teve início lá atrás, num tempo agrário e escravocrata. Sua meta, no entanto, é uma democracia em que se combinem liberdades formais e substantivas, representação e participação, direitos do indivíduo e da sociedade, tal como assinalado simbolicamente pela Carta de 1988.
Mas o fato é que ainda hoje ressurge continuamente o hiato entre modernização e moderno. Há, por isso, disfunções e impulsos regressivos, sinais preocupantes de anomia e irracionalismo, como os que marcaram a ação das hordas de janeiro. Para os bárbaros, tudo é bárbaro. Vale esfaquear Di Cavalcanti ou quebrar o artesanato fino de Balthazar Martinot; desrespeitar as colunas de Oscar Niemeyer ou depredar os painéis de Athos Bulcão e Marianne Peretti. Vale ainda dessacralizar os lugares da nossa comum religião cívica, como as sedes dos poderes. Subindo a rampa do Congresso, certa vez Le Corbusier exclamou: “Aqui há invenção”. No dia fatídico, contudo, houve só destruição e destruidores.
Confira, a seguir, galeria:
A democracia política e social é o moderno. Permite a livre movimentação de todos os atores, inclusive os seres ditos subalternos. Obriga todos os seus participantes a participarem de um jogo complexo, cujas regras – e o respeito a elas – são pelo menos tão importantes quanto os resultados que cada ator, individual ou coletivo, colhe em cada circunstância. Eleições ganham-se e perdem-se numa sucessão indefinida. A construção democrática, sempre inacabada, impõe uma ideia de mudança social que, sem negar a correlação de forças e a luta áspera por seu progressivo realinhamento, repele a aniquilação do adversário mediante a violência política.
A democracia norte-americana, com todas as suas falhas e imperfeições, dura há mais de dois séculos e seus documentos originais, como ainda recentemente lembrou a historiadora Anne Applebaum, inspiraram a linguagem radical dos revolucionários de 1789 e de muitos outros lutadores anticoloniais. Simón Bolívar – outro exemplo lembrado por Applebaum – viu naquele País a concretização da “liberdade racional”. Em contraposição, nossos períodos de liberdade plena foram muito mais curtos, mas, sem falsa modéstia, nem por isso temos menos a oferecer ao mundo. Aqui também há originalidade, vocação para o moderno e um sentido de futuro que temos mantido, apesar de todas as quedas.
Sobre o autor
*Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de janeiro/2023 (51ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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Por que governo Bolsonaro é investigado por suspeita de genocídio contra os yanomami
BBC News Brasil*
A investigação vai começar após um pedido feito por Flávio Dino, ministro da Justiça e da Segurança Pública, um dos integrantes da comitiva que visitou o território indígena no dia 21 de janeiro.
Outras duas denúncias estão em avaliação preliminar no Tribunal Penal Internacional, localizado em Haia, nos Países Baixos. Nelas, a Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Comissão Arns defendem que o ex-presidente cometeu crimes de genocídio durante a pandemia de covid-19 e na forma como ele lidou com a proteção dos indígenas nos últimos quatro anos.
Procurado pela reportagem, Bolsonaro não comentou o tema. Antes, Bolsonaro escreveu em aplicativo de mensagens que a denúncia sobre a crise yanomami era "farsa da esquerda" e argumentou que seu governo levou atenção especializada para territórios indígenas.
Quais são os argumentos que fundamentam acusações tão graves? E o que mais disse Bolsonaro?
Os juristas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que há elementos suficientes para iniciar uma investigação, mas que é preciso encontrar evidências e provas para seguir com eventuais julgamentos no futuro. A seguir, entenda como, segundo eles, questões como estímulo ao garimpo, apuração sobre desvio de medicamentos e alertas ignorados pelo governo podem ser levados em consideração.
O que é genocídio?
O Tribunal Penal Internacional diz que o genocídio é caracterizado pela "intenção específica de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, matando seus membros por outros meios, causar lesões corporais ou mentais graves, impor deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar a destruição física total ou parcial, impor medidas destinadas a prevenir nascimentos ou transferir forçadamente crianças de um grupo para outro".
A jurista Sylvia Steiner, única brasileira que foi juíza da corte de Haia entre 2003 e 2012, explica que "genocídio não é qualquer matança".
"Tem que existir a intenção de destruir um grupo por causa da nacionalidade, da etnia, da raça ou da religião dele", resume.
A especialista também aponta que há uma diferença entre genocídio e crimes contra a humanidade.
"Crimes contra a humanidade são aqueles praticados por parte de uma política de um Estado ou de uma organização que atacam a população civil. Eles incluem assassinato, violência sexual, deportação forçada, perseguição, extermínio, escravidão…", lista.
"Nesse caso, não existe um dolo especial, ou seja, a intenção clara de eliminar um grupo por questões como nacionalidade, etnia, raça, religião", complementa.
O que é genocídio?
O Tribunal Penal Internacional diz que o genocídio é caracterizado pela "intenção específica de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, matando seus membros por outros meios, causar lesões corporais ou mentais graves, impor deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar a destruição física total ou parcial, impor medidas destinadas a prevenir nascimentos ou transferir forçadamente crianças de um grupo para outro".
A jurista Sylvia Steiner, única brasileira que foi juíza da corte de Haia entre 2003 e 2012, explica que "genocídio não é qualquer matança".
"Tem que existir a intenção de destruir um grupo por causa da nacionalidade, da etnia, da raça ou da religião dele", resume.
A especialista também aponta que há uma diferença entre genocídio e crimes contra a humanidade.
"Crimes contra a humanidade são aqueles praticados por parte de uma política de um Estado ou de uma organização que atacam a população civil. Eles incluem assassinato, violência sexual, deportação forçada, perseguição, extermínio, escravidão…", lista.
"Nesse caso, não existe um dolo especial, ou seja, a intenção clara de eliminar um grupo por questões como nacionalidade, etnia, raça, religião", complementa.
O advogado Belisário dos Santos Junior, da Comissão Internacional de Juristas, lembra que o Brasil possui uma lei sobre o genocídio desde 1956.
"Ela foi aprovada ainda no governo de Juscelino Kubistchek, que reconhece não apenas a ação direta, mas também a incitação ao genocídio", diz.
A lei brasileira, portanto, também pune aqueles que estimulam "direta e publicamente alguém a cometer qualquer dos crimes" relacionados ao genocídio.
Mas o que pode pesar contra o governo Bolsonaro durante as investigações?
Estímulo ao garimpo
O relatórioYanomami Sob Ataque, publicado em abril de 2022 pela Hutukara Associação Yanomami e pela Associação Wanasseduume Ye'kwana, com assessoria técnica do Instituto Socioambiental, faz um balanço da extração ilegal de ouro e outros minérios nessa região, que compreende a maior reserva indígena do país.
"Sabe-se que o problema do garimpo ilegal não é uma novidade na TIY [Terra Indígena Yanomami]. Entretanto, sua escala e intensidade cresceram de maneira impressionante nos últimos cinco anos. Dados do MapBiomas indicam que a partir de 2016 a curva de destruição do garimpo assumiu uma trajetória ascendente e, desde então, tem acumulado taxas cada vez maiores. Nos cálculos da plataforma, de 2016 a 2020 o garimpo na TIY cresceu nada menos que 3.350%", aponta o texto.
O levantamento das associações mostra que, em outubro de 2018, a área total destruída pelo garimpo somava pouco mais de 1.200 hectares. "Desde então, a área impactada mais do que dobrou, atingindo em dezembro de 2021 o total de 3.272 hectares", continua a publicação.
Durante os quatro anos de presidência, Bolsonaro falou diversas vezes sobre a mineração em terras indígenas — o governo propôs inclusive um projeto de lei que viabilizaria a prática dentro da lei.
Em março de 2022, por exemplo, ele afirmou que "índio quer internet, quer explorar de forma legal a sua terra, não só para agricultura, mas também para garimpo".
"A Amazônia é uma área riquíssima. Em Roraima, há uma tabela periódica debaixo da terra", acrescentou.
Santos Junior, que integra a Comissão Arns, entende que são vários os exemplos do estímulo de Bolsonaro ao garimpo.
"Os garimpeiros vão se apropriando das áreas, desmatam a floresta, invadem unidades básicas de saúde… Quem dá suporte a isso é justamente quem incentiva o garimpo e o desmatamento, quem não dá as condições para que povos e etnias sobrevivam", defende.
Falta de remédios e alimentos
O Ministério Público Federal também fez operações para apurar desvios de medicamentos em território yanomami.
Segundo o órgão, só 30% de mais de 90 tipos de medicamentos que deveriam ser fornecidos foram entregues em 2022.
Os procuradores dizem que o desvio de vermífugos (que tratam de infestações de vermes) impediu o tratamento adequado para 10 mil das 13 mil crianças que vivem nesta região.
Há ainda denúncias sobre a interrupção no fornecimento de alimentos.
Alisson Marugal, procurador da República em Roraima, afirmou que o Ministério da Saúde cortou o fornecimento de alimentação aos indígenas nos postos de saúde do Estado em 2020, sem dar explicações.
Todo o cenário de casos e mortes por desnutrição e malária fez com que o Ministério da Saúde decretasse uma emergência sanitária no território yanomami em 21 de janeiro.
Entre as ações emergenciais, o governo anunciou o envio de profissionais de saúde e a criação de hospitais de campanha para atender os pacientes.
Segundo o secretário de Saúde Indígena do ministério, Ricardo Weibe Tapeba, mais de mil indivíduos já foram resgatados em situação de extrema vulnerabilidade do local.
Alertas ignorados
Por fim, diversas instituições nacionais e internacionais chamaram a atenção para o que vinha acontecendo com os yanomami nos últimos meses e anos.
Em nota, a Apib disse que a invasão do garimpo ilegal na terra indígena yanomami foi denunciada pelo menos 21 vezes à justiça e aos órgãos do governo durante a gestão de Bolsonaro.
Existe também uma petição feita ao Supremo Tribunal Federal em maio do ano passado sobre esse assunto. Nela, a Apib e outras entidades pedem ações do governo para conter a invasão de garimpeiros nas terras onde vivem os yanomami e outros povos, como os munduruku.
No dia 1º de julho de 2022, a Corte Interamericana de Direitos Humanos emitiu uma decisão cobrando uma resposta do Brasil para "proteger a vida, a integridade pessoal e a saúde dos membros dos povos indígenas yanomami, ye'kwana e munduruku".
A comissão que avaliou o caso disse que a situação dos indivíduos dessas três populações era de "extrema gravidade e urgência".
Entre as medidas que o país precisaria tomar, a corte apontou a necessidade de "proteger efetivamente a vida, a integridade pessoal, a saúde e o acesso à alimentação e água potável" desses povos.
A corte pediu ao Estado brasileiro um relatório com um resumo das ações que foram tomadas para reverter a situação até o dia 20 de setembro de 2022. Depois disso, novas atualizações sobre o caso deveriam ser enviadas a cada três meses.
A BBC News Brasil entrou em contato com a Corte Interamericana de Direitos Humanos para saber se o país estava cumprindo as medidas.
Por meio da assessoria de comunicação, o órgão afirmou que, "até o dia de hoje, a corte está esperando uma resposta por parte do Estado brasileiro".
O que pode acontecer?
Para Santos Junior, "o ex-presidente, por causa de suas obsessões [com o garimpo], aparenta preencher os requisitos de quem assume os riscos". "Não é normal você deixar um povo sem assistência médica, sem as condições mínimas de sobrevivência", diz.
"Os indígenas foram sufocados de uma tal forma que as mortes e a redução do grupo se encaixam, a meu ver, na descrição do genocídio pelas ações ou inações do então Presidente da República", acrescenta o advogado.
A jurista Sylvia Steiner pondera que a abertura de um inquérito serve justamente para fazer investigações e reunir provas de possíveis crimes que foram eventualmente cometidos.
"Por ora, não há fatos provados. Existem alguns indícios em relação ao genocídio. E isso é sempre complicado, porque você precisa comprovar que havia uma intenção de eliminar os yanomami da face da Terra", explica.
Na visão da jurista, outra possibilidade é investigar possíveis crimes contra a humanidade — e não o genocídio.
"Pode ser observada a existência de um plano, de uma política de Estado contra os yanomami, mas em função da terra que eles ocupam e do interesse em se apropriar das riquezas que existem ali. Ou seja, nesse caso não falamos de uma perseguição dos yanomami por causa da etnia deles", pontua.
"Acontece que essa política de Estado leva à exterminação do grupo. Então, nós podemos estar diante de um crime contra a humanidade de extermínio ou perseguição", completa.
Steiner chama a atenção para o fato de a legislação brasileira não prever crimes contra a humanidade. Nesse caso, a eventual investigação e um julgamento posterior dependem da ação do Tribunal Penal Internacional.
A especialista aponta que esses julgamentos em Haia, de possíveis responsáveis pelos atos criminosos, podem render penas de até 30 anos ou prisão perpétua em casos extremos.
Controvérsias e discordâncias
Steiner aponta que o conceito de genocídio e crimes contra a humanidade é alvo de muitas discussões entre os juristas.
"Uma parcela acredita que, decorrido tanto tempo desde que o conceito foi definido nos anos 1940, é preciso ter um entendimento um pouco mais alargado do que é um genocídio. Eles argumentam que o mundo mudou e a interpretação desse crime deveria ser mais flexível", diz
"Eu me situo entre aqueles que seguem a letra da lei. Então, para mim, tem que ficar demonstrado que realmente houve a intenção genocida, a intenção de destruir no todo ou em parte aquela comunidade, seja em razão da religião, da etnia, da raça ou na nacionalidade."
"Fora disso, pode ser que estejamos diante de um crime contra a humanidade, que é tão grave quanto", complementa.
De acordo com a especialista, o conceito de crimes contra a humanidade é relativamente novo — foi ratificado internacionalmente a partir do Estatuto de Roma em 2002 — e, por isso, ainda gera confusão.
"Esse conjunto de normas está acima das regras dos países e proíbe uma série de condutas que põe em risco a paz e a humanidade de comunidades inteiras", conta Steiner.
"Quando temos escândalos lamentáveis e catástrofes humanitárias, devemos usar esse momento para progredir do ponto de vista moral e ético. Que a atual situação desperte as pessoas e os países para as necessidades especiais das populações indígenas. Já não era sem tempo", conclui.
A BBC News Brasil tentou o contato com Bolsonaro por meio de assessores, ex-ministros, pessoas próximas, a comunicação do Partido Liberal e pelas próprias redes sociais para que ele pudesse dar um posicionamento a respeito de todos os pontos e alegações. Não foram enviadas respostas até a publicação desta reportagem.
Assim que a emergência de saúde veio à tona nos últimos dias, o ex-presidente fez postagens no aplicativo de mensagens Telegram.
Ele classificou a denúncia sobre a crise yanomami como "farsa da esquerda" e disse que seu governo realizou 20 ações de saúde entre 2020 e 2022 que levaram atenção especializada para dentro dos territórios indígenas, especialmente em locais remotos e com acesso limitado.
Segundo o ex-presidente, foram beneficiados mais de 449 mil indígenas, com 60 mil atendimentos. Ainda na mensagem, ele afirmou que o governo federal encaminhou 971,2 mil unidades de medicamentos e 586,2 mil unidades de equipamentos de proteção individual, totalizando 1,5 milhão de insumos enviados para essas operações.
Texto publicado originalmente na BBC News Brasil.
Nas entrelinhas: O impeachment de Dilma foi uma queda anunciada
Luiz Carlos Azedo/Correio Braziliense
Logo após a aprovação do impeachment da presidente Dilma Rousseff pelo Senado, por 61 votos a 20, fiz ao então senador Lindberg Faria (PT-RJ), hoje deputado federal, aquela pergunta básica de repórter sobre o “day after” da derrocada petista: “E agora?”. Ele respondeu: “Vamos fazer desse limão uma limonada, estávamos na defensiva, agora já temos um discurso para as eleições: ‘foi um golpe'”. A limonada demorou seis anos; nesse ínterim, o presidente Michel Temer pôs a casa em ordem, e o presidente Jair Bolsonaro, depois, fez uma bagunça muito maior, mesmo.
Agora, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva toma a limonada. Como narrativa eleitoral, a tese do golpe contra Dilma serviu para a unificação da esquerda no primeiro turno; no segundo turno, quando venceu com menos de 1% dos votos, exatamente 0,9%, passou a ser um estorvo para os novos aliados. Depois de eleito, por isso mesmo, chamar o impeachment de Dilma Rousseff de “golpe de Estado” é uma tolice política, além de um desrespeito às regras do jogo do nosso Estado Democrático de Direito.
Impeachment existe para que o Congresso e o Supremo possam destituir um presidente da República por “crime de responsabilidade” e evitar uma tragédia nacional, como a que se desenhava entre 2015 e 2016, ou um “golpe de Estado” daqueles que a gente já conhece. É um processo político, ao qual qualquer presidente da República está sujeito, segundo a Constituição de 1988, pelos mais variados motivos, um deles o crime orçamentário, ou seja, as “pedaladas fiscais”. Quem faz a denúncia é a Câmara; quem julga é o Senado, sob a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF).
De fato, não foi por causa das “pedaladas fiscais” que Dilma Rousseff caiu. Outros presidentes fizeram coisas piores e foram até o fim do mandato. O impeachment ocorreu porque Dilma levou a economia ao colapso e enfrentava uma oposição de massas que “nunca antes” a esquerda conhecera, nem mesmo às vésperas do golpe militar que destituiu João Goulart em 1964. Ela também deu todos os motivos políticos que seus algozes precisavam.
Entender esse processo é importante para evitar que a crise se repita. Houve irresponsabilidade fiscal, sim; e constitucionalidade no julgamento, também. Presidido pelo ministro Ricardo Lewandowski, à época presidente do STF, o impeachment poderia ter sido evitado se a presidente Dilma tivesse abandonado a arrogância como fez política, tivesse um mínimo de sensibilidade para ouvir as opiniões críticas, corrigisse os rumos equivocados e buscasse restabelecer a coesão nacional, dilacerada com os desdobramentos das manifestações de junho de 2013. Chance teve com a reeleição, em 2014, porém imaginou que a sua vitória era um endosso ao rumo que tomara.
A narrativa do “golpe de Estado” também permite a dedução de que o governo Dilma continuaria a usar as pedaladas como forma de encobrir as irresponsabilidades fiscais; que os gastos públicos seguiriam sem respeito aos limites da aritmética; que o eleitoralismo se manteria como lógica fundamental do governo; e que o aparelhamento da máquina pública conduziria à decadência de grandes empresas estatais. Por isso, gera expectativas negativas sobre o terceiro mandato de Lula.
Chumbo trocado
A propósito, entre os petistas, nem a cadelinha Resistência tem dúvida de que Lula deveria ter sido candidato em 2014, em vez de Dilma Rousseff. Mas ela se fez de desentendida e usou a prerrogativa da candidatura à reeleição como fato consumado na convenção do PT. Todos os dirigentes petistas sabem disso. Qualquer repórter de política já ouviu de algum parlamentar petista que Lula se arrependeu de ter escolhido Dilma como sucessora. Outros petistas seriam mais capazes, como Jaques Wagner e Fernando Haddad, por exemplo.
O maior problema de Lula não é o chumbo trocado com o ex-presidente Michel Temer, são os aliados do ex-presidente que destituíram Dilma, sem os quais não teria sido eleito. Por exemplo, a então senadora Simone Tebet (MDB-MS), que foi candidata no primeiro turno, apoiou-o no segundo e, agora, é ministra do Planejamento. Ou os senadores Davi Alcolumbre (União-AP), Eduardo Braga (MDB-AM), Osmar Azis (PSD-AM), Jader Barbalho (MDB-PA) e Renan Calheiros (MDB-AL), que votaram a favor do impeachment. São aliados fundamentais para que Lula possa ter uma retaguarda no Senado.
Temer estava quieto no seu canto. Chamado de golpista, reagiu no Twitter com meia dúzia de verdades: “Mesmo tendo vencido as eleições para cuidar do futuro do Brasil, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva parece insistir em manter os pés no palanque e os olhos no retrovisor, agora tentando reescrever a história por meio de narrativas ideológicas. Ao contrário do que ele disse hoje (anteontem) em evento internacional, o país não foi vítima de golpe algum. Foi, na verdade, aplicada a pena prevista para quem infringe a Constituição. E sobre ele ter dito que destruí as iniciativas petistas em apenas dois anos e meio de governo, é verdade: destruí um PIB negativo de 5% para positivo de 1,8%; inflação de dois dígitos para 2,75%; juros de 14,25 para 6,5%; queda do desemprego ao longo do tempo de 13% para 8% graças à reforma trabalhista; recuperação da Petrobras e demais estatais graças à Lei das Estatais; destruí a Bolsa de Valores, que cresceu de 45 mil pontos para 85 mil pontos”.
Vladimir Carvalho fala sobre festival de Brasília, ditadura e memória
#24 - Vladimir Carvalho fala sobre o festival de Brasília, ditadura e memória - Podcast do Correio
O convidado do novo episódio do Podcast do Correio é o cineasta Vladimir Carvalho, diretor de grandes clássicos do cinema brasileiro, como Conterrâneos velhos de guerra (1992) e O País de São Saruê (1971). No programa, o documentarista, que comemora 88 anos, fala sobre suas mais de cinco décadas vivendo em Brasília, sobre o Festival de Cinema da capital e sobre preservação da memória.
O Podcast do Correio está disponível também nas principais plataformas de áudio. Confira:
Podcast originalmente produzido pelo Correio Braziliense.
Funai: déficit é de 1,5 mil servidores, diz assessor especial do min. dos Povos Indígenas
Brasil de fato*
Além da criação do Ministério dos Povos Indígenas, chefiado por Sonia Guajajara, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) entregou o comando da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) para Joenia Wapichana, confirmando o apoio do governo federal à causa indígena. Agora, o movimento se organiza para ocupar a administração pública, enquanto se prepara para brigar por estrutura e orçamento.
O cacique Marcos Xukuru, uma das principais lideranças indígenas do país, que será assessor especial do Ministério dos Povos Indígenas, estima que o déficit de servidores da Funai possa chegar a 1.500 cargos.
“Eu tenho conversado com a Sônia e hoje falei rapidamente, pela primeira vez, com a Joenia e ela me falava da preocupação com a paralisação de processos da Funai, a falta de recursos e a questão da reestruturação da Funai, que não atende às necessidades dos povos indígenas”, afirmou o cacique, em entrevista ao Brasil de Fato.
Em entrevista ao portal UOL, em 3 de janeiro, Joenia Wapichana, já havia comentado sobre a necessidade de ampliar os recursos do órgão, que deve ser de R$ 600 milhões em 2023. “Esse orçamento não é suficiente, mas o presidente Lula já sabe disso e, com isso, eu espero que a Funai tenha um apoio financeiro a mais por conta das necessidades do órgão que é tomar conta de 14% do território brasileiro.”
Na última segunda-feira (23), o governo federal anunciou a dispensa de 43 chefes regionais e nacionais da Funai. Marcos Xukuru afirmou que o órgão priorizará a nomeação de indígenas para os cargos.
“É preciso ter muita cautela, porque não é só ocupar o espaço por ocupar, é ocupar com critérios estabelecidos pelo próprio movimento. Faremos um processo de escuta ampliado. A intenção é que seja ocupado por nossos irmãos, os parentes indígenas, mas que não seja apenas a ocupação do espaço, mas dentro de um perfil estabelecido, para que as pessoas possam contribuir com a gestão, porque não temos o direito de errar.”
O cacique celebrou o gesto de Lula, que foi à Terra Indígena Yanomami, em Roraima, observar de perto o agravamento do estado de saúde de milhares de indígenas, que sofrem com malária e desnutrição grave.
“Nosso presidente tem uma visão de sensibilidade com a causa indígena. A ida dele lá (Roraima) mostra o tamanho da importância que ele está dando para essa pauta, é algo histórico. Hoje, não estamos à margem da vida do país. Há uma compreensão da dimensão do papel dos povos indígenas, pois podemos contribuir para esse país”, comemorou.
Xukuru
Marcos Luidson de Araújo, o Cacique Marcos Xukuru, foi eleito prefeito de Pesqueira, município de 68 mil habitantes na região agreste de Pernambuco, em 2020. Seria o primeiro indígena a comandar uma prefeitura no Nordeste. No entanto, foi barrado pela Lei da Ficha Limpa, que o impediu de tomar posse.
O cacique tem uma condenação por “crime contra o patrimônio privado”, por um incêndio que ele supostamente teria cometido contra uma residência em 2003, num contexto de conflito fundiário. Marcos negou ter participado do ato, mas acabou condenado em todas as instâncias. O Tribunal Eleitoral Superior (TSE) cassou sua chapa e impediu que ele governasse o município, que foi submetido a nova eleição em outubro de 2022.
Embora já tenha sido anunciado na função de assessor especial do Ministério dos Povos Originários e, inclusive tenha se reunido com Sônia Guajajara, Marcos Xukuru ainda aguarda a nomeação para o cargo.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Após a investigação da equipe de transição e os primeiros dias de governo, já é possível ter uma dimensão do trabalho que foi feito pela gestão anterior na Funai?
Marcos Xukuru: Evidentemente que houve um desmonte da política indigenista nesse país. Nunca houve interesse em se resolver nossos problemas. Há interesses econômicos que impactam diretamente nas pautas dos povos indígenas no país, com o agronegócio, o garimpo ilegal e os madeireiros. Por outro lado, há um grupo articulado para não permitir a resolução desses problemas. O Estado brasileiro precisa dar essa resposta, por isso eu digo que o governo tem que estar alinhado, inclusive nosso presidente, para dar uma resposta a esses grupos.
Esse é um momento muito importante. Evidentemente que assumindo esse protagonismo, assumimos também uma grande responsabilidade, pois saímos do espaço de cobrança e vamos entrar em outro contexto, que é a execução de ações que antes pautávamos. Esperamos também que nosso presidente dê as condições necessárias para que possamos desenvolver um excelente trabalho, para que nossas ações possa chegar em diversas regiões do país.
O que vocês encontraram na Funai e demais órgãos que incidem na vida dos povos indígenas?
Precisamos reestruturar esses espaços que foram sucateados, porque encontramos uma terra arrasada. Tratando-se da Funai, principalmente, que tem uma missão importante de demarcação e proteção dos territórios indígenas, é preciso que haja um olhar cuidadoso do governo, que possamos trabalhar orçamento e força de trabalho, para que essa missão possa ser cumprida. É um desafio imenso...
Exato. Eu tenho conversado com a Sônia e hoje estive rapidamente, pela primeira vez, com a Joenia e ela me falava da preocupação com a paralisação de processos da Funai, a falta de recursos e a questão da reestruturação da Funai, que não atende às necessidades dos povos indígenas. Evidentemente a presença dos militares na Funai sempre foi um problema, isso travava os processos e não deixava chegar as demandas da população na ponta. Sem falar na falta de pessoal, um déficit enorme de servidores que precisamos ter.
Não temos ainda a informação de quantos precisam. Os rumores, ouvindo outras pessoas também, é de que precisaremos de mil a 1.500 servidores para suprir toda a necessidade da Funai.
O governo federal anunciou a dispensa de 43 chefes regionais e nacionais da Funai. Como será feita essa substituição? Indígenas serão priorizados na ocupação dos cargos?
É uma discussão que o movimento está fazendo. É preciso ter muita cautela, porque não é só ocupar o espaço por ocupar, é ocupar com critérios estabelecidos pelo próprio movimento. Faremos um processo de escuta ampliado. A intenção é que seja ocupado por nossos irmãos, os parentes indígenas, mas que não seja apenas a ocupação do espaço, mas dentro de um perfil estabelecido, para que as pessoas possam contribuir com a gestão, porque não temos o direito de errar. É preciso tomar muito cuidado, o movimento tem pautado essa discussão em nível regional e nacional. Vamos identificar os indígenas que têm o conhecimento técnico e as especificações para os cargos.
Como foi recebido o gesto de Lula, que foi até a Terra Indígena (T.I.) Yanomami?
Nosso presidente tem uma visão de sensibilidade com a causa indígena. A ida dele lá (Roraima) mostra o tamanho da importância que ele está dando para essa pauta, é algo histórico. Hoje, não estamos à margem da vida do país. Há uma compreensão da dimensão do papel dos povos indígenas, pois podemos contribuir para esse país. A demarcação das terras dos povos indígenas, que incidem nos biomas, na Mata Atlântica e na Amazônia, é fundamental para a questão climática. A ida dele ao território do povo Yanomami mostra a importância que temos na reconstrução desse país.
Na última semana, tivemos a deflagração da crise na T.I. Yanomami e também a morte de dois indígenas na Bahia...
A responsabilidade não é só do governo federal, é preciso cobrar os governos estaduais, para que haja uma parceria no monitoramento dos conflitos fundiários. A Funai terá um papel importante, mas os governos estaduais precisam estar alinhados. Na medida que avançarmos com as demarcações, os conflitos serão amenizados. Identificando o processo de regularização dos territórios, não tenho dúvida, haverá uma redução nos conflitos.
Vocês estão otimistas sobre o crescimento no número de terras indígenas demarcadas?
Na parte administrativa, haverá as condições necessárias para que possamos avançar. Mas não podemos esquecer que há entraves jurídicos, nossos oponentes travam os processos na Justiça. Vai depender também do poder judiciário, como ele se comportará. É preciso que tudo seja feito com muito cuidado dentro do governo, na parte administrativa, para que os processos não sejam levados à Justiça.
Há um cenário favorável. Porém, o governo é formado por vários partidos e tem gente que discorda. Evidentemente, se há vontade do presidente, é um avanço. Porém, haverá pressão do outro lado. É preciso que o movimento indígena esteja coeso e que façamos muito debate e o movimento indígena terá que ir para a rua e pressionar o governo também.
Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.