Em defesa da democracia | Foto: Shutterstock

Sem o direito de errar

Luiz Werneck Vianna*, Esquerda Democrática

Sob condução perita, a democracia conquistou uma nova oportunidade para tentar se impor na vida política dos brasileiros. Não foi uma vitória fácil e não encontra pela frente um céu de brigadeiro, mas um cenário tempestuoso carregado de ameaças. O capitalismo autoritário de estilo vitoriano teve quatro longos anos para instalar minas e casamatas em sua defesa, e operou a partir de um plano de estado-maior, favorecendo sem meias medidas interesses já constituídos como os do agronegócio e os das finanças, ao lado dos novos que estimulava com recursos políticos, especialmente na fronteira amazônica com a mineração e as madeireiras, fazendo vistas grossas à invasão de terras e à depredação do meio ambiente. Nessa faina seu lema implícito foi o de que não existe essa coisa chamada sociedade, os apetites de acumulação não deveriam conhecer freios regulamentadores do direito.

Os resultados eleitorais estampam o sucesso dessa empreitada com sua expressiva votação entre os eleitores de renda mais alta, embora insuficiente para sua vitória, que significaria a legitimação de um regime autocrático de pendores fascistas. A reação a essa política demofóbica foi caracterizadamente classista. Opuseram-se a ela os pobres, as mulheres ainda sujeitas ao patriarcalismo milenar em nossa história e as regiões desfavorecidas no capitalismo brasileiro, como o Nordeste.

A vitória eleitoral da coalizão democrática, embora tenha desatado esperança e júbilo, vem à luz num cenário hostil, com a arregimentação de setores renitentes à derrota nas urnas em aberta conspiração em favor de uma intervenção golpista a ser desfechada por militares. O caminho da democracia brasileira é o de pedras, e avançar nele está a requerer manobras ainda mais audaciosas do que as praticadas na campanha eleitoral, como a de ampliar alianças em direção às forças políticas agrupadas no chamado centrão, assim como as de representação do agronegócio que possam se associar na defesa do meio ambiente.

Nesse sentido, marcham em boa direção as tratativas realizadas no processo da transição para o novo governo sob a condução do vice-presidente eleito Geraldo Alckmin, atento às necessidades de preservar e alargar uma coalizão política do tipo "geringonça", onde caibam alhos e bugalhos, tal como já ocorreu em Portugal, que possam vir a garantir sustentação ao governo democrático, desafiado antes mesmo de nascer pela grei dos derrotados nas eleições em movimentos subversivos, mas que conta a seu favor com um inédito apoio no cenário internacional.

A vitória em nosso país do campo democrático sobre os iliberais e negadores dos processos de globalização e das políticas ambientalistas transcendeu suas fronteiras, fato testemunhado pelo reconhecimento imediato, logo que fechadas as urnas, por parte do governo de Biden, da Alemanha, da França e de outras potências ocidentais, a que não faltou a presença dos principais países da nossa região. Tal rápida e vigorosa movimentação blindou o resultado das eleições, reforçada pela feliz oportunidade aberta pela conferência climática com sede no Egito, para a qual foi convidado o presidente eleito Lula, quando, além dos pronunciamentos importantes sobre a temática do clima que enunciou, teve a oportunidade de corpo presente de obter reconhecimento por parte de altos dirigentes nacionais. Tacitamente, o mundo desenvolvido deixava o recado de que a solução brasileira importava a todos.

A natureza estratégica das relações internacionais para o destino da democracia brasileira foi ainda mais realçada com o fracasso da chamada onda trumpista nas eleições legislativas nos Estados Unidos, assegurando-se ao governo Biden o comando do Senado a partir de uma campanha em que o tema da defesa da democracia e do meio ambiente ocupou papel de centralidade. O fato de bons ventos vindos de fora serem propícios aos bons propósitos do governo Lula-Alckmin para nada servirá se as velas não enfunarem em boa direção, guiadas por uma pilotagem consciente dos riscos presentes na situação, em que uma encarniçada oposição do bolsonarismo e dos grossos interesses a ele associados, temerosos de uma eventual perda dos seus privilégios, não perde de vista uma intervenção golpista.

Na Inglaterra da 2ª Guerra Mundial, sob os pesados bombardeios da aviação nazista, dizia-se, referindo-se aos pilotos britânicos que porfiavam por rechaçar os ataques aéreos, que nunca tantos dependeram de tão poucos. Os membros do governo de transição, que ora saem em busca dos caminhos difíceis que viabilizem nosso reencontro com um Estado democrático, não têm o direito de errar. Certamente não é tarefa fácil compatibilizar a responsabilidade social com a fiscal num país em que boa parte do seu povo vive abaixo da linha da pobreza. Os que não estiverem à altura do desafio que deixem seus lugares para os de melhor têmpera, que encontrarão os meios para vencer.

* Sociólogo, Puc-Rio

Texto publicado originalmente no Facebook da Esquerda Democrática.


Fifa Exemplo de espaço da FIFA Fan Festival | Crédito: Divulgação

Catar: mitos e verdades do país sede da Copa do Mundo

Catraca livre*

Catar é um país pequeno situado no Oriente Médio. A península tem apenas 11,571km 2 fazendo fronteira terrestre unicamente com a Arábia Saudita, e possui mais de 560 km de praias banhadas pelo Golfo Pérsico. O país é rico em petróleo, dono da terceira maior reserva de gás natural e da maior renda per capita mundial.

Como país monárquico, o Catar é governado pela família Al Thani desde meados de 1825. Em 1916, tornou-se protetorado britânico permanecendo assim até 1971, ano de sua independência. A religião islâmica rege todos os âmbitos do país: cultura, política e valores do cotidiano. Um lugar tão diferente dos padrões ocidentais acaba trazendo dúvidas e atiçando a curiosidade das pessoas que querem conhecer mais sobre o país que sediará a Copa do Mundo de 2022.

Aqui vamos desmistificar algumas impressões e trazer outras informações que vão fazer você querer conhecer o Catar. Para começar nossa jornada é interessante saber que a capital do país é Doha e qatari, qatariano ou qatarense é aquele que nasce no país, mas apenas 15% da população é nativa. Aqui vivem pessoas de aproximadamente 90 países, sendo a maioria do Egito, Índia, Filipinas e Bangladesh. O árabe é o idioma oficial, porém 80% da população fala inglês. Quanto ao dinheiro, a moeda é o qatari rial (QAR), que equivale em média a R$ 1,50.

Mesmo com a cultura islâmica bem forte no dia a dia das pessoas, é possível ouvir os cinco chamados das mesquitas na hora da reza, é fácil adaptar o jeito ocidental durante sua permanência aqui. O país é um dos mais seguros do mundo, então a liberdade em ir e vir está assegurada em qualquer horário. Como já falado, o inglês facilita sua comunicação com os locais, a leitura de placas também com tradução, rádios com músicas estrangeiras, culinárias
diversas e atrações para todos os tipos de pessoas.

O fim de semana é diferente

Outra curiosidade é sobre as horas e os dias da semana. Aqui a semana começa no domingo e vai até quinta-feira. Sexta-feira e sábado são os dias destinados ao fim de semana. Porém, em relação ao nosso fim de semana, aqui difere um pouco. A sexta-feira equivale ao nosso domingo, isso porque para os mulçumanos esse dia é sagrado e a partir do meio dia, eles se reúnem para a oração nas mesquitas para celebrar o “salat al Jumah”. O sábado é como o
nosso, todos os estabelecimentos abertos e a vida noturna agitada. Caso você queira ligar daqui para o Brasil para contar suas aventuras, saiba que o fuso horário é de seis horas a mais em relação ao horário de Brasília. Apenas um adendo, whatsapp aqui funciona apenas para mensagens e ligações e chamadas de vídeo são bloqueadas.

Símbolo da riqueza

Sendo um país rico, o turista encontra algumas extravagâncias pelas ruas de Doha e não falo só pelos modelos luxuosos que circulam por aqui. Não é apenas o veículo que mostra o status do proprietário, mas as placas com numerações diferentes ou quantidades de dígitos comprovam a influência e riqueza de quem os dirige. Por exemplo, uma placa padrão tem seis números com ordem aleatória, mas para aquele que pagar mais, a placa pode ter seis números escolhidos ou até menos dígitos. Uma placa com apenas três dígitos certifica o poder e dinheiro do motorista. O custo para isso é caríssimo. Para se ter uma dessas, basta participar de um leilão. Em maio deste ano foi realizado um leilão de placas com o logo da Copa do Mundo e o valor mais alto por uma placa foi de 1,8 milhões de qatari rials.

As mulheres usam burca?

Em relação ao cotidiano do Brasil, há algumas diferenças e estando por dentro vai te ajudar a evitar qualquer saia justa. Como moradora aqui há quase dois anos o que mais me perguntam é sobre como se vestir. Não, eu não uso burca e nem as mulheres mulçumanas. As mulheres qataris usam um vestido preto longo e de mangas longas chamado abaya. Para cobrir o cabelo, elas usam um lenço, chamado hijab. Os homens usam a roupa tradicional, o thobe, que é uma camisa branca que vai até os pés. Na cabeça usam um lenço chamado ghutra.

Há sim um dress code que é basicamente você usar roupas que cobrem os joelhos e os ombros, mas isso não te impede de usar blusas e vestidos de alça, basta ter sempre um lenço para cobrir os ombros caso seja necessário ou pedido. Em alguns lugares, como o bairro The Pearl, a vestimenta é liberada, então você encontra pessoas com shorts, saias curtas, decotes, etc.

Beijo é proibido?

Nós brasileiros somos muito afetuosos, estamos sempre abraçando, dando beijos, andando de mãos dadas…. Pois saiba que aqui no Qatar essas demonstrações em público não são bem vistas, independente do sexo e do estado civil do casal.

Pode beber na rua?

Beber aqui também requer algumas regras. Entrar no país com bebida alcoólica é proibido. Aqui os lugares para beber são restritos aos restaurantes e bares de hotéis autorizados, ou em casa. Em bares, por exemplo, uma cerveja long neck chega a custar aproximadamente R$ 65. Já para os residentes, e que não sejam mulçumanos, existe uma única loja no país que vende bebidas e carne de porco, e é necessário obter uma licença e marcar horário para a visita. Diferente do álcool, a carne suína é proibida em qualquer estabelecimento no Qatar.

E na Copa, como ficará a questão da bebida alcóolica para os turistas? Durante o Mundial será permitido o consumo no FIFA Fan Festival e nos arredores dos estádios em horários próximos aos jogos. Além disso, bares e restaurantes que já servem bebidas alcóolicas continuarão com o serviço normalmente.

Como faz com o calor de quase 50°C?

O clima aqui também influencia bastante o dia a dia de quem mora e vem visitar Doha. Toda a cidade tem um sistema de ar condicionado nos principais pontos turísticos seja ao ar livre, como no Souq Waqif, Katara e Msheireb (a refrigeração sai pelo chão), como em locais fechados. Isso é necessário porque no verão as temperaturas chegam a quase 50 o C. Mesmo nós brasileiros, acostumados ao calor, não conseguimos aguentar.

Outro problema durante essa estação é a umidade alta. Não é à toa que durante a estação a cidade fica vazia, porque a maioria aproveita as férias escolares e viaja para destinos mais amenos. O melhor dos mundos é quando o outono chega em meados de outubro (ainda é quente, por volta de 32 o C) até o final do inverno, que dura até março. É por isso que a Copa será realizada entre os dias 20 de novembro e 18 de dezembro. Será a primeira vez que o Mundial não acontecerá no meio no ano. A razão para a mudança é exatamente por conta das altas temperaturas nos meses de junho e julho no Oriente Médio. Para o período dos jogos é esperada temperatura média de 25 o C. Apenas uma dica, a noite o termômetro cai um pouco mais, por isso esteja preparado para o frio do deserto.

Agora que você já tem todas as informações sobre o Catar, viu que não é nenhum bicho de sete cabeças, que o povo árabe é tranquilo e te receberá de braços abertos, vale incluir uma visita para cá sendo para a Copa do Mundo 2022 ou para qualquer outro momento.

*Juliana Lauar é jornalista que se mudou, há dois anos, para o Catar movida pelo calendário da Copa do Mundo. 

Texto publicado originalmente no portal do Catraca livre.


Manifestantes protestam durante funeral de três iranianos mortos baleados durante manifestação | Foto: Alireza Mohammadi/ AFP

Mais de 300 já morreram em protestos no Irã, diz agência da ONU

g1*

Mais de 300 pessoas já morreram durante os protestos que tomaram conta do Irã e que pedem o fim do regime islâmico nos dois últimos meses, segundo levantamento da agência das Organizações das Nações Unidas (ONU) para os Direitos Humanos apresentado nesta terça-feira (22).

O país vive a maior onda de protestos de sua história, que eclodiram em reação ao caso da jovem curda Mahsa Amini, de 22 anos, que apareceu morta após ser presa no fim de setembro pela chamada polícia dos bons costumes do país por "uso inadequado" do véu islâmico, obrigatório no Irã.

As reivindicações, contra a repressão às mulheres, rapidamente se tornaram o maior movimento contra a República Islâmica desde a sua proclamação, em 1979.

O governo tem respondido com repressão às manifestações, e há diversos relatos apontam que tiros vindos de policiais durante os atos são os responsáveis pela maior parte da morte.

A agência da ONU não sustenta diretamente essa informação, mas descreve um "endurecimento da resposta das autoridades aos protestos que resultaram em mais de 300 mortes nos últimos dois meses".

"Instamos suas autoridades a atender às demandas das pessoas por igualdade, dignidade e direitos, em vez de usar força desnecessária ou desproporcional para reprimir os protestos", disse o porta-voz do chefe de direitos humanos da ONU, Volker Turk.

Os números apresentados pela ONU são similares aos da Organização Não Governamental (ONU) Iranian Human Rights Watch, , a principal organização de monitoramento das manifestações. A ONG fala em 380 mortes desde o início dos protestos. Ainda segundo esse balanço, 45 eram crianças.

Texto publicado originalmente no portal g1.


Foto: Senado Federal

George Gurgel de Oliveira: O 20 de novembro, a população afrodescendente e os desafios da sociedade brasileira

Cidadania23*

Devemos aproveitar o mês de novembro para uma reflexão sobre o presente e o passado da sociedade brasileira em relação à sua história, desde a chegada da população negra como escrava, das suas lutas pela libertação e a realidade da população negra hoje no Brasil.

Saber como tudo isso se desenvolveu e os fundamentos da escravidão no Brasil, assim como o processo de libertação da escravatura até à atualidade, são desafios para avançarmos e superarmos a difícil realidade enfrentada pela população negra ainda hoje na sociedade brasileira.

As lutas de libertação da população negra

A escravidão africana, até meados do século XIX, era um dos fundamentos da vida econômica na América e na Europa. Fazia parte da estrutura das relações políticas, econômicas e sociais, assim como tornou-se base de acumulação de riqueza dos países europeus, inclusive da Inglaterra, berço da revolução industrial.

A cultura do racismo nasceu como uma maneira de exclusão dos povos africanos da vida e das conquistas da sociedade humana durante o século XV, foi se desenvolvendo e deixando marcas profundas até à atualidade. Desde então, o escravismo passou a ser diretamente relacionado aos povos africanos, como uma maldição, a partir de uma visão cultural e religiosa eurocêntrica nas colônias da América, na Europa e no próprio continente africano. O Brasil foi o país de maior concentração de escravos africanos do mundo. Chegou a uma população de 5 milhões de escravos ao longo de mais de 300 anos em que perdurou o escravagismo negro em nosso país.

A escravidão na América já tinha precedentes no continente: houve escravização de indígenas e com a chegada de Cristovão Colombo, em 1492, iniciou-se um massacre e o escravismo destas populações indígenas em todo o continente americano, inclusive no Brasil, a partir da colonização portuguesa.

A abolição da escravatura em nosso país, em 13 de maio de 1888, assinada pela princesa Isabel, foi fruto das lutas históricas e das mudanças que já vinham acontecendo na sociedade brasileira, pressionada pelas transformações políticas, econômicas e sociais que aconteciam na Europa, na própria América, a exemplo do movimento de libertação dos escravos no Haiti, que foi fundamental na proclamação da República naquele pais. O fim do escravismo no Brasil atendia também aos interesses da Inglaterra em plena industrialização, que necessitava de novos mercados e de matéria prima fora da Europa para consolidar a sua hegemonia no cenário internacional.

As leis abolicionistas no Brasil promoveram a emancipação dos escravos de maneira gradual. A primeira foi a Lei Eusébio de Queiroz, em 1850. Posteriormente, a Lei do Ventre Livre, em 1871, e a Lei dos Sexagenários, em 1885. Finalmente, a lei assinada pela Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888, aboliu a escravidão no Brasil. As principais lideranças negras abolicionistas foram: André Rebouças, José do Patrocínio e Luiz Gama. Ainda devem ser destacadas as lideranças femininas de Maria Tomásia, Adelina e Maria Firmina dos Reis, entre outras brasileiras.

Ressalte-se que a abolição da escravatura no Brasil atendeu também aos interesses das oligarquias nacionais que já não podiam manter o custo da mão de obra escrava, base da acumulação da riqueza colonial, ainda em função da realidade internacional e em razão do que o Brasil já representava em função das suas riquezas naturais, particularmente minerais, produção/potencialidades agrícola e pecuária, um espaço de acumulação e de mercado da economia capitalista mundial.

Em uma outra perspectiva, aconteceu a luta dos quilombolas. Os quilombos eram organizados como espaços de resistência, de libertação, no caminho de construção de novas relações políticas, econômicas e sociais. O de Palmares é o mais conhecido e aclamado com a liderança de Zumbi, cuja data de sua morte, 20 de novembro, passou a ser a data nacional de resistência e de luta pelos direitos da população negra no Brasil, desde 2011.

A libertação da população negra no Brasil desde os primórdios até à atualidade é o resultado das lutas de resistência dos movimentos de libertação desde quando os(as) escravos(as) chegaram ao Brasil, dos movimentos Quilombolas e dos abolicionistas, de resistências e de conquistas no processo de emancipação da população negra como parte integrante das lutas de transformação da sociedade brasileira, com seus conflitos e contradições históricos e atuais.

O 20 de novembro, dia da consciência negra, é um momento de reflexão e ação sobre a atual realidade política, econômica e social do Brasil, particularmente da população negra, na perspectiva de superação desta nossa difícil realidade que excluiu e continua excluindo a população negra brasileira.

Quais os desafios?

Os desafios históricos de inclusão da população negra na sociedade brasileira continuam atuais.

A abolição da escravatura, no século XIX, não incorporou a população negra à nova realidade política, econômica e social capitalista. Sem a terra e a escolaridade necessárias, os(as) negros(as) libertos(as), na sua maioria, ficaram à margem da sociedade brasileira, situação que continua até à atualidade, apesar das conquistas e dos avanços da população negra no Brasil, consolidadas na Constituição de 1988 e os seus desdobramentos político-institucionais.

Desde então, por tudo o que o Brasil representava e continua representando, inicialmente como Colônia, depois como Monarquia até à proclamação da República e atualmente, a população negra continua sem a devida representação na vida política, econômica e social no País. A realidade da Bahia é a mais perfeita tradução desta falta de representação política, econômica e social da população negra brasileira.

Atualmente quais são os compromissos dos que governam, da sociedade e da cidadania em geral frente a essa realidade de exclusão da população negra brasileira?

A agenda do Movimento Negro e dos outros movimentos políticos, econômicos, sociais, ambientais e multiculturais que lutam pela inclusão da população negra no Brasil deve ser a agenda de toda a sociedade brasileira, na qual a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, a ciência e a tecnologia seriam os fundamentos de construção de políticas públicas afirmativas, inclusivas para a população negra e para todas as populações discriminadas da nossa sociedade.

No Brasil, particularmente os(as) trabalhadores(as) de menor renda e a população desempregada em geral, na sua maioria negra, continuam enfrentando sérias dificuldades econômicas e sociais, entre as quais a falta de uma renda emergencial permanente que lhes assegure o mínimo de dignidade para atravessarem a crise agravada com a pandemia que atinge principalmente a população de baixa renda, as mulheres na sua dupla jornada de trabalho, a população indígena e negra, historicamente excluídas no Brasil.

A inclusão da população negra – 54% da população brasileira, segundo o IBGE – deve ser realizada a partir de pautas afirmativas e de reparação com o olhar do presente no caminho de um futuro que unifique a sociedade brasileira construindo uma agenda nacional para a saída da crise no caminho da consolidação e ampliação da democracia. Os negros, homens e mulheres, e suas representações no Brasil devem estar em diálogo permanente com a opinião pública e a sociedade em geral, fortalecendo suas redes sociais e de comunicação, defendendo a melhoria das condições de vida da população negra, ampliando sua participação nas organizações do Estado, do Mercado e da Sociedade Civil; apostando em uma agenda nacional reformista que retire o Brasil desta grave crise política, econômica, social, ambiental e de valores que estamos vivendo.

Portanto, a população negra e a sociedade brasileira em geral estão desafiadas a construir uma agenda propositiva a ser pactuada para o enfrentamento dos reais problemas nacionais agravados com a pandemia: realizar as reformas no caminho de uma nova economia, pensando o Brasil nos próximos 5, 10, 15 e 20 anos, considerando a sua dimensão continental, as potencialidades nacionais e regionais, seus ativos naturais e a diversidade étnica e cultural.

A base desta reforma democrática é a educação, a ciência e a tecnologia que devem ser incorporadas como estruturantes e estratégicas, melhorando a qualidade de vida dos que trabalham, da população negra e de toda a sociedade brasileira nas próximas décadas.

Assim, a população negra e os brasileiros em geral estão desafiados à construção de uma sociedade que supere os conflitos e as contradições nela gerados historicamente, no caminho de uma sociedade mais democrática, inclusiva na sua organização política, econômica e social, e melhor distribuidora da riqueza produzida por toda a sociedade.

O novo governo que se inicia, em 2023, sob a liderança do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e amparado em uma frente ampla, deve ser um momento de reflexão e avaliação da difícil realidade social, econômica e ambiental da população brasileira, na perspectiva de que nos próximos quatro anos o governo e a sociedade em geral construam políticas públicas que venham efetivamente melhorar a vida dos excluídos da sociedade brasileira, cuja maioria é negra.

Incorporar a população negra na vida política, econômica e social é enfrentar e superar definitivamente no Brasil o legado histórico e atual de exclusão da população negra na sociedade brasileira, afirmando-a como um dos fundamentos de construção de um Brasil com mais democracia, liberdade, igualdade e fraternidade.

Estamos desafiados(as)! (Blog Democracia Política e novo Reformismo – 19/11/2022)

George Gurgel de Oliveira, professor, doutor, da Oficina da Cátedra da Unesco-Sustentabilidade e do Conselho do Instituto Politécnico da Bahia

Texto publicado originalmente no Cidadania23.


Questão migratória é um dos assuntos mais delicados da política doméstica dos EUA e um dos pontos frágeis da gestão Biden

Lula estuda anular medidas do governo Bolsonaro que facilitaram deportação de brasileiros dos EUA

Mariana Sanches,* BBC News Brasil

É o que dizem fontes especializadas em política externa ouvidas pela BBC News Brasil envolvidas na transição de governo e que devem assumir posições de relevo na nova gestão.

Entre outubro de 2019 e novembro de 2022, 7.549 brasileiros que entraram nos EUA sem vistos foram deportados em 80 voos fretados pelos americanos com destino final no Aeroporto de Confins, em Minas Gerais.

O levantamento inédito, ao qual a BBC News Brasil teve acesso, foi feito a partir de dados de desembarque desses passageiros no terminal internacional de Minas Gerais e compilados pelo sociólogo Gustavo Dias, professor da Universidade Estadual de Montes Claros.

Os voos fretados, autorizados pelo Brasil em 2019, são alvos de inúmeras denúncias de maus-tratos e abusos cometidos contra os deportados, que costumam ter os pés e as mãos algemados durante toda a viagem. Até mesmo um menor de idade brasileiro já ficou preso a algemas em um desses voos, o que provocou protestos verbais do Itamaraty junto ao Departamento de Estado americano.

"Eu não estudei atentamente essas medidas, mas, evidentemente, o governo do presidente Lula, como fez no passado, vai revisar e, se necessário, modificar ou anular, cancelar, revogar as medidas que sejam contrárias aos interesses dos cidadãos brasileiros. Como será feito isso é um detalhe que eu não tenho como responder agora", afirmou à BBC News Brasil o ex-chanceler Celso Amorim, que assessora o presidente eleito Lula no tema.

Auxiliares de Lula garantem que esse será um dos temas que o presidente eleito deve levar à mesa quando tiver sua primeira conversa de trabalho com o colega americano Joe Biden.

A revisão dessas regras, no entanto, poderá criar um dos primeiros espinhos na relação até agora positiva com o governo do democrata — já que a questão migratória é um dos assuntos mais delicados da política doméstica dos EUA e um dos pontos frágeis da gestão Biden.

Trump 'cerrou os punhos'

O número de brasileiros que se arriscam na travessia terrestre entre México e EUA deu um salto nos últimos anos, em meio a uma crise de milhões de migrantes que se avolumaram na fronteira americana sul neste mesmo período.

Ao todo, mais de 53,4 mil brasileiros foram localizados pelo serviço migratório na fronteira Sul dos EUA no ano fiscal de 2022 (encerrado em setembro passado) e 56,9 mil, em 2021, segundo o serviço de Proteção das Alfândegas e Fronteiras dos EUA (CBP, na sigla em inglês).

Estes são os números mais altos da série histórica desde 2007. De acordo com o sociólogo Gustavo Dias, que estuda as comunidades mineiras de onde saem boa parte dos jovens e adultos que decidem tentar entrar nos EUA sem visto e por via terrestre, a principal motivação desses migrantes é a busca por oportunidades de ascensão econômica, que essas pessoas se desiludiram de alcançar no Brasil.

"O governo Bolsonaro talvez seja um caso único no mundo de uma gestão que atua para dificultar a mobilidade de uma população que ele ajuda a expulsar do país", afirma Dias, em referência às medidas de facilitação de exportação.

Desde outubro de 2019, quando o republicano Donald Trump era ainda o presidente dos Estados Unidos, o Brasil passou a concordar com o envio de dois voos mensais - fretados pelos americanos - para repatriar brasileiros.

Excepcionalmente, os EUA chegaram a enviar até três voos em um mesmo mês. Na prática, isso resultou em uma devolução média de 204 brasileiros a cada 30 dias desde então.

Segundo relataram à BBC News Brasil três diplomatas brasileiros com conhecimento das negociações, o aceite para o envio de voos americanos com brasileiros ao Brasil veio depois que a gestão Trump "cerrou os punhos".

Considerado o maior aliado internacional de Bolsonaro, Trump comandou uma das políticas mais duras contra imigrantes da história dos EUA, que incluiu até mesmo a construção de um muro em trechos da fronteira com o México.

Ao Itamaraty, então comandado pelo chanceler Ernesto Araújo, a gestão Trump disse que o Brasil fazia parte de uma lista de países "pouco cooperativos" do Departamento de Segurança Interno (DHS, na sigla em inglês), porque não facilitava a deportação de nacionais que chegavam aos EUA.

E fez entender que isso afetaria o estreitamento de laços que o governo Bolsonaro buscava como prioridade. A negociação foi fundamental para que o Brasil voltasse a autorizar os voos fretados dos EUA, que não aconteciam nesses termos desde 2006.

Entre 2006 e 2019 - salvo em casos negociados especificamente - repatriações dependiam da disponibilidade de vagas em voos de carreira entre os dois países.

Como havia poucas vagas nas aeronaves de companhias aéreas comerciais, era relativamente comum que os americanos vissem estourar o prazo para que pudessem manter legalmente o migrante brasileiro detido em algum dos seus centros de detenção.

Assim, os brasileiros acabavam liberados em território americano, com uma notificação para comparecer em alguma corte migratória em alguma data específica. Parte desses migrantes jamais voltava a se apresentar às autoridades. Entre os agentes de migração dos EUA, a medida ganhou o apelido irônico de "notificação para desaparecer".

Mas os voos fretados não foram a única mudança feita pelo governo Bolsonaro para facilitar a deportação de brasileiros. Migrantes indocumentados costumam ter como estratégia se desfazer de seus documentos de identidade, para dificultar ou retardar o processo de devolução a seus países e tentar encontrar formas de não serem expulsos.

Sob Bolsonaro, os consulados brasileiros também passaram a expedir, a pedido de autoridades americanas e até mesmo contra a vontade dos cidadãos brasileiros, atestados de nacionalidade, para comprovar que se tratavam de brasileiros. E a permitir a entrada de deportados ao Brasil apenas com este tipo de documento.

Parte dos deportados brasileiros também afirma não ter sido atendido pelos americanos ao pedir assistência consular antes da deportação, o que é um direito dos migrantes. No ano passado, os EUA chegaram a deportar dezenas de crianças brasileiras filhas de haitianos para o Haiti sem o conhecimento de autoridades do Brasil, conforme mostrou a BBC News Brasil na ocasião.

"Um brasileiro ilegalmente fora do país é problema do Brasil, isso é vergonha nossa, para a gente", afirmou o deputado federal e filho do presidente Eduardo Bolsonaro, em visita a Washington em março de 2019, justificando as decisões que o governo já começava a tomar sobre o tema.

No mesmo período, a gestão Bolsonaro extinguiu a necessidade de vistos para a entrada de americanos no Brasil - em desacordo com o princípio da reciprocidade adotado até então pela diplomacia brasileira.

"Quantos americanos vão vir morar ilegalmente no Brasil, aproveitar essa brecha para entrar aqui como turista e passar a viver ilegalmente? Agora vamos fazer a pergunta contrária: se os EUA permitirem que o brasileiro entre lá sem visto, quantos brasileiros vão para os Estados Unidos se passando por turistas e vão passar a viver ilegalmente aqui?", disse Eduardo Bolsonaro, na mesma ocasião.

O fim dos vistos para brasileiros é um pedido antigo do Brasil, mas não há qualquer previsão para que isso ocorra atualmente.

Bolsonaro também desmontou a política estabelecida em decreto de Lula em 2010 para os migrantes brasileiros, com base nos princípios de não discriminação e garantia dos direitos humanos previstos na Convenção de Viena, da qual o Brasil é signatário. E desmantelou o Conselho de Representantes de Brasileiros no Exterior (CRBE), que servia como interface entre as comunidades e o governo.

"Olha, o que eu falar aqui vai dar polêmica, tá certo? Acho que, em qualquer país, as suas leis têm que ser respeitadas, né? Qualquer país do mundo onde pessoas estão lá de forma clandestina, é um direito daquele chefe de Estado, usando da lei, devolver esses nacionais. Lamento que os brasileiros foram buscar novas oportunidades lá fora e voltam para cá deportados. Lamento, mas temos que respeitar a soberania dos outros países", disse o presidente Jair Bolsonaro em janeiro de 2020, ao justificar as medidas.

Biden deportou mais brasileiros que Trump

Sob Bolsonaro, o Itamaraty tem apresentado reclamações constantes ao governo dos EUA em relação ao tratamento dado aos brasileiros devolvidos - especialmente ao uso de algemas de pés e mãos, que forçam a posição curvada das pessoas por horas seguidas.

Os americanos afirmam que trabalham em uma solução que seja customizada para o Brasil, já que não quer abrir o precedente para que outros países da região também possam contestar o uso de algemas em seus cidadãos.

"Ainda estamos tentando fazer um diagnóstico, mas o que percebemos é que esse governo só olhava pro migrante quando era pra fazer comício. Mas não cuidou, e permitir que o brasileiro seja algemado e enfiado de volta no avião não são medidas condizentes com uma política externa minimamente razoável", afirmou um integrante da equipe de transição sob condição de anonimato por não ter autorização para falar em público sobre o tema. A declaração é uma referência à motociata feita por Bolsonaro em Orlando em junho. A maioria da comunidade brasileira nos EUA votou em Bolsonaro.

Em tese, bastaria uma decisão unilateral de Brasília para que os voos americanos fossem vetados de adentrar o espaço aéreo brasileiro e para que os consulados interrompessem a emissão de atestados de nacionalidade.

A decisão, no entanto, é politicamente sensível e divide até mesmo os diplomatas do Brasil - que reconhecem o direito dos americanos de escolher a quem recebem em seu território.

E embora as medidas tenham sido negociadas por Bolsonaro com a gestão Trump, quem mais se beneficiou delas foi Biden. No período do republicano, segundo o estudo de Dias, apenas 985 brasileiros foram deportados, em 22 voos. Já com Biden na Casa Branca, foram 6.564 devolvidos em 58 voos.

"Uma coisa é falar sobre rechaçar essas regras em 2010, quando quase não entrava brasileiro nos EUA e não havia a pressão que tem hoje dos americanos para liberar documento e mandar de volta. Outra coisa é falar disso agora, a realidade mudou", disse à BBC News Brasil um embaixador que acompanha a questão consular Brasil-EUA.

Por pressão dos americanos, os mexicanos recentemente voltaram a exigir visto para a entrada de brasileiros no país. É uma tentativa de coibir o fluxo de cidadãos do Brasil na fronteira com os EUA.

O time de Lula afirma que tentará convencer os americanos de que a repressão a quem chega na fronteira não é o caminho, e sim atuar nas causas que levam esses latinos a partir de seus países. Um discurso que o próprio Biden defendeu na campanha, mas que se mostrou pouco eficiente em seu governo, quando ele lançou mão de expedientes semelhantes aos de Trump pra tentar controlar a onda migratória.

Em negociação para que os americanos façam aportes de dinheiro para a preservação da Amazônia, apoiem uma candidatura do Brasil numa eventual reforma do Conselho de Segurança da ONU e tentando reatar uma relação com os EUA abalada pelas tensões entre Biden e Bolsonaro, Lula terá que decidir se enfrentará os custos políticos que as mudanças para dificultar a deportação de brasileiros poderão acarretar.

Texto publicado originalmente na BBC News Brasil.


Fontes renováveis de energia são debatidas no COP 27 | Foto: Mohamed Abd/El Ghany Reuters

Revista online | A COP 27 fracassou?

Benjamin Sicsú*, especial para a revista Política Democrática online (49ª edição: novembro/2022) 

A resposta ao título provocativo depende, claro, da premissa adotada para a análise. De todos os temas analisados no âmbito das Nações Unidas, a mudança climática é, atualmente, o que encontra maior engajamento, ainda que a intensidade das decisões seja diferente a cada rodada de discussão. 

A precariedade do contexto mundial, desencadeado pela pandemia da covid-19, e posterior invasão da Ucrânia pela Rússia, forçou países a tomarem algumas medidas que se refletiram sobre essa edição da COP, levando à leitura de que ela não teve sucesso. 

A Conferência das Partes (COP) é o órgão supremo da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática, adotada em 1992. As reuniões de deliberação ocorrem anualmente desde 1995. Durante duas semanas, os países avaliam a situação do clima no planeta e propõem mecanismos para garantir a efetividade da convenção.

Este ano, o encontro realizou-se no Egito e muitas das expectativas do mundo ecológico-climático não foram atendidas, o que gerou o sentimento de frustração. Mas é preciso avaliar a situação dentro do marco histórico e do contexto político mundial para se ter a real dimensão dos resultados obtidos em Sharm el-Sheikh.  

Os resultados acordados na COP de Paris, em sua edição de número 21, ocorrida em 2015, foram, até o momento, os mais impactantes para o encaminhamento de soluções visando equacionar a crise climática. Decidiu-se ali que era preciso manter a temperatura média da terra abaixo de 2 graus celsius acima dos níveis pré-industriais. 

Pactuou-se também a necessidade de realizar esforços para que esse limite não ultrapasse 1,5% acima dos níveis pré-industriais. Foi acordado, ainda, que os países desenvolvidos manteriam um fluxo regular de financiamento de recursos financeiros para os países mais pobres poderem adotar tais medidas visando a redução do aquecimento global.

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De Paris para o Egito, as sucessivas COPs foram destinadas a avaliar e criar as condições de implantação dessas medidas, sendo também monitorado o anúncio feito por cada um dos países sobre quais seriam suas contribuições para o objetivo de redução da temperatura. 

Este ano, havia grande expectativa de que fossem pactuadas novas medidas em direção à eliminação do uso de combustíveis fósseis, como o carvão. Eles representam atualmente 80% das emissões que causam aumento de temperatura. Na COP 26, realizada em Glasgow, pela primeira vez, o texto final trouxe a citação ao carvão e enunciou medidas necessárias para o fim de seu uso. Não houve, então, qualquer menção ao uso de gás e de petróleo. 

Na COP do Egito, além de continuar não priorizando medidas em relação ao gás e petróleo, o acordo finalizado retirou o foco dado ao uso do carvão. No texto final, foi trocado o termo “redução gradativa” para “eliminar subsídios ineficientes”, e isso foi entendido como um retrocesso.

Em função da invasão da Ucrânia, temos que entender que, no último ano, países líderes nas medidas de contenção da temperatura, como a Alemanha, foram impelidos a adotar medidas contrárias ao enunciado em Glasgow. País da Europa mais dependente do gás russo, a Alemanha teve que acionar usinas a carvão para se contrapor à diminuição do recebimento do insumo importado da Rússia. Logicamente, esse choque de realidade refletiu-se sobre o documento final da COP 27.

Mas essa é uma situação transitória. Tão logo o mundo reequacione as consequências geopolíticas da invasão da Ucrânia, medidas de extinção do uso do carvão voltaram a ser debatidas e adotadas. As razões técnico-científicas permanecem apontando o carvão como o grande vilão do aquecimento. Portanto, esse pequeno recuo não pode ser entendido como um fracasso. Trata-se de uma acomodação política a um imperativo causado por uma situação-limite. 

O que se tem que levar em conta é que a COP 27 produziu uma grande vitória. O documento final cria, pela primeira vez, o mecanismo denominado “perdas e danos”. Por ele, os países ricos pagarão os mais pobres na implantação de medidas de combate à destruição climática. Significa que países que sofreram danos humanos e materiais por causa do aquecimento global poderão ser compensados ou indenizados pelos países que causaram a alteração. 

Essa questão, que remonta às consequências do passado colonial, terá seu mecanismo detalhado tecnicamente ao longo do próximo ano. E poderá, em sua parte operacional, ser implementada na próxima COP. Trata-se de um acordo histórico, pois, pela primeira vez, os países do passado colonizador se comprometeram a pagar àqueles que foram objetos de políticas destrutivas relacionadas ao clima.

Confira, a seguir, galeria:

Presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva na COP 27, no Egito | Foto: Agência Brasil
O documento final faz menção a florestas e a soluções baseadas na natureza, levando em conta as questões da biodiversidade | Foto: reprodução/Agência Brasil
O acordo finalizado retirou o foco dado ao uso do carvão. Usina de energia a carvão, em Mannheim, Alemanha| Foto: EFE/EPA/RONALD WITTEK
A COP 27 segue não priorizando medidas em relação ao gás e petróleo | Foto: reprodução | FIRJAN
A Conferência das Partes (COP) é o órgão supremo da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática, adotada em 1992 | Imagem: reprodução
Presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva na COP 27, no Egito | Foto: Agência Brasil
O documento final faz menção a florestas e a soluções baseadas na natureza, levando em conta as questões da biodiversidade | Foto: reprodução/Agência Brasil
O acordo finalizado retirou o foco dado ao uso do carvão. Usina de energia a carvão, em Mannheim, Alemanha| Foto: EFE/EPA/RONALD WITTEK
A COP 27 segue não priorizando medidas em relação ao gás e petróleo | Foto: reprodução | FIRJAN
A Conferência das Partes (COP) é o órgão supremo da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática, adotada em 1992 | Imagem: reprodução
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Presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva na COP 27, no Egito | Foto: Agência Brasil
O documento final faz menção a florestas e a soluções baseadas na natureza, levando em conta as questões da biodiversidade | Foto: reprodução/Agência Brasil
O acordo finalizado retirou o foco dado ao uso do carvão. Usina de energia a carvão, em Mannheim, Alemanha| Foto: EFE/EPA/RONALD WITTEK
A COP 27 segue não priorizando medidas em relação ao gás e petróleo | Foto: reprodução | FIRJAN
A Conferência das Partes (COP) é o órgão supremo da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática, adotada em 1992 | Imagem: reprodução
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Outra importante vitória é a menção a florestas e a soluções baseadas na natureza. Embora vagas, essas referências colaboram para criar uma ponte entre as COPs do Clima e as da Biodiversidade, que também são organizadas no âmbito das Nações Unidas. Passa-se a ter o entendimento de que, para resolver a crise climática, é preciso levar em conta as questões da biodiversidade. Este é um passo fundamental para o melhor encaminhamento da relação clima-biodiversidade, essencial para a sobrevivência do planeta. Já poderemos ver consequência desse novo elo nas discussões da COP 15 da Biodiversidade, marcada para dezembro de 2022, em Ottawa.

Por todas essas questões e considerando a reentrada do Brasil como um dos líderes da discussão das mudanças climáticas e o anúncio feito, pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, de adotar a política de desmatamento zero da Amazônia, considero que a COP 27 foi um sucesso. 

Sobre o autor

*Benjamin Sicsú é ex-ministro de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior do governo Fernando Henrique Cardoso; presidente do conselho administrativo da Fundação Amazônia Sustentável, maior ONG a atuar na Floresta Amazônica, e integrante do Conselho Fiscal da Fundação Astrojildo Pereira.

** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de novembro de 2022 (49ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

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Manifestantes golpistas montaram acampamentos em frente a vários quartéis do Exército desde que Bolsonaro perdeu as eleições | Foto: Diego Vara/Reuters

Revista online | A leniência por trás das manifestações de bolsonaristas radicais

Cleomar Almeida*, especial para a revista Política Democrática online (49ª edição: novembro/2022)

Em frente ao Quartel-Geral do Exército em Brasília, as manifestações bolsonaristas mudaram de caráter. Não são mais como antes, com famílias, mulheres, crianças e idosos com a bandeira do Brasil. Em sua maior parte, são formadas por homens violentos e armados, a maioria encapuzados, instigando métodos terroristas por não aceitarem a derrota do presidente Jair Bolsonaro (PL) nas urnas. Acampamentos antidemocráticos são patrocinados por multiplicidade de agentes.

A reportagem da Política Democrática online esteve no local, sem se identificar. Por todos os lados do acampamento, os apoiadores de Bolsonaro estimulam uns aos outros a fazerem ataques, aumentando o clima de tensão. “Se Bolsonaro sair da presidência, vai ter tiros, rojões e explosão aqui em Brasília”, disse um homem, encostado em sua motocicleta de luxo. Tudo se repete sob o silêncio absoluto do presidente.

No acampamento, os bolsonaristas radicais fazem orações, repetem gestos semelhantes aos de seita, planejam arruaça e dizem que não vão embora. Mergulham em alucinação. “Estamos recebendo comunicado de Ustra dizendo que não podemos sair daqui”, afirmou outro homem em um grupo. Exaltado por Bolsonaro e seus seguidores, o coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra foi o primeiro torturador condenado, em 2008, pela Justiça brasileira.

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Na aglomeração dos bolsonaristas, eles também lembram atos antidemocráticos registrados no Brasil, compartilhados ao mesmo tempo pelas redes sociais, com apenas um clique no celular. No último dia 7 de novembro, manifestantes espalhados pelo país reagiram a ações de desbloqueio da polícia, jogaram pedras e cadeiras e lançaram rojões nas viaturas. Tiros também foram disparados.

Entre os crimes investigados, estão tentativas de homicídio contra agentes da polícia e a resistência ao cumprimento da decisão judicial que ordenava o desbloqueio da BR-163, em Novo Progresso (PA). Atentados também foram registrados à base da concessionária Rota do Oeste, perto da cidade de Lucas do Rio Verde (MT). “A polícia está atacando os patriotas”, disse um simpatizante.

Em Brasília, tudo é lembrado com exaltação em frente ao QG do Exército. E não somente isso. Com cartazes pedindo intervenção militar, que é inconstitucional, os bolsonaristas ameaçam “acabar com tudo, a qualquer custo”, alegando que houve fraude nas eleições. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), porém, já provou que as eleições foram realizadas sem qualquer irregularidade, e o resultado das urnas foi reconhecido por líderes internacionais.

“Temos algo mais importante que a própria vida, que é a nossa liberdade”, afirmou outro apoiador de Bolsonaro, repetindo uma frase frequentemente dita pelo líder da extrema direita. “Fomos roubados, não vamos aceitar isso jamais. É lutar ou morrer, não há outra saída”, gritou um homem, no meio do grupo bolsonarista.

A iminência de explosão de ataques ganha força diante do silêncio do presidente. Ele ainda não agiu para pacificar os ânimos e ir para uma transição democrática de poder. Por isso, juristas dizem que a escalada da delinquência bolsonarista aumenta o desafio de se enquadrar a violência da extrema direita, que atenta contra a democracia e representa risco para a institucionalidade brasileira, em caso de impunidade.

Doutor em Direito e Ciência Política e professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Conrado Hübner Mendes, disse que os acampamentos são financiados. “Há militares, policiais, o próprio presidente da República e seu entorno e grupos que se mobilizam. [Os acampamentos] são financiados. Portanto, há também empresários”, disse.

O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinou ao Banco Central o bloqueio das contas bancárias de 43 empresários e empresas suspeitos de financiarem atos antidemocráticos realizados na última semana. A decisão foi proferida no último dia 12.

O ministro chamou de inautêntico e coordenado o deslocamento de mais de 100 caminhões para Brasília, em frente ao QG do Exército. A Polícia Rodoviária Federal (PRF) informou que empresários oferecem refeições, banheiros e barracas aos manifestantes. Além disso, segundo a PRF, o potencial danoso das manifestações ilícitas aumenta, considerando o financiamento que o bolsonarismo recebe por parte de empresários investigados.

De acordo com Mendes, há total leniência do governo e do Exército em relação aos acampados em frente aos quartéis. “O Estado de Direito está diante de um desafio histórico de dar algumas respostas, ainda que não perfeitas e completas, a um programa político e governamental estruturado em torno da violação à lei. Violação como método de governo. Apostaram que um volume imenso de ilegalidades não seria possível controlar”, afirmou.

Para a responsabilização dos culpados, as investigações devem separar quem tem prerrogativa de foro, que é o direito de determinados ocupantes de cargos e funções públicas de serem julgados por juízos ou tribunais específicos por causa do que exercem.

Bolsonaro, por exemplo, poderá ser investigado por associação criminosa, incitação ao crime e crime de favorecimento pessoal, que é o ato de ocultar pessoas para não serem processadas. Isto porque a pessoa que favorece outra para impedir que seja investigada é partícipe também. Diversos manifestantes foram recebidos no Palácio da Alvorada para não serem vistos pela polícia. 

Veja, a seguir, galeria:

Atos pró - Bolsonaro levam apoiadores a diversas cidades do país | Foto: Agência Brasil
Bolsonaristas rezam de mãos dadas em manifestação no QG do exército |  Foto: Agência Brasil
Avenida em frente a casa de Bolsonaro é fechada para o trânsito | Foto: Agência Brasil
Bolsonaristas tentam invadir sede da polícia federal  | Foto: Metrópoles
Manifestantes incendiam ônibus e carros em protesto contra a prisão de um indígena bolsonarista | Foto: BBC News Brasil
Acampamento de bolsonaristas no QG do Exército | Foto: Agência Brasil
Manifestações a favor e contra Bolsonaro são registradas em Brasília | Agência BrasilManifestações a favor e contra Bolsonaro são registradas em Brasília | Agência Brasil
Atos pró - Bolsonaro levam apoiadores a diversas cidades do país | Foto: Agência Brasi
Bolsonaristas rezam de mãos dadas em manifestação no QG do exército | Foto: Agência Brasil
Avenida em frente a casa de Bolsonaro é fechada para o trânsito | Foto: Agência Brasil
Bolsonaristas tentam invadir sede da polícia federal | Foto: Metrópoles
Manifestantes incendeiam ônibus e carros em protesto contra a prisão de um indígena bolsonarista | Foto: BBC News Brasil
Acampamento de bolsonaristas no QG do Exército | Foto: Agência Brasil
Manifestações a favor e contra Bolsonaro são registradas em Brasília | Agência Brasil
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Atos pró - Bolsonaro levam apoiadores a diversas cidades do país | Foto: Agência Brasi
Bolsonaristas rezam de mãos dadas em manifestação no QG do exército |  Foto: Agência Brasil
Avenida em frente a casa de Bolsonaro é fechada para o trânsito | Foto: Agência Brasil
Bolsonaristas tentam invadir sede da polícia federal  | Foto: Metrópoles
Manifestantes incendeiam ônibus e carros em protesto contra a prisão de um indígena bolsonarista | Foto: BBC News Brasil
Acampamento de bolsonaristas no QG do Exército | Foto: Agência Brasil
Manifestações a favor e contra Bolsonaro são registradas em Brasília | Agência Brasil
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Com as manifestações espalhadas pelo país, o presidente e outras autoridades aliadas tentam equilibrar dois pratos, segundo o professor da USP. “De um lado, precisam alimentar uma turma ensandecida a praticar crimes efetivamente, a violar a lei. De outro, precisam se proteger individualmente porque sabem que podem se dar mal e sofrer um conjunto de investigações. De um lado, dizem falas apaziguadoras, acenam para pacificação, pedem para liberar estradas. De outro, apelam para palavras abstratas e distorcidas”, acentua.

De acordo com o jornalista Bernardo Mello Franco, colunista do Globo e da CBN, “o golpismo que hoje está em porta de quartel, defendendo golpe militar, intervenção, não vai desaparecer da noite para o dia”. “Vai continuar presente na sociedade. Esse cenário é completamente diferente de 20 anos atrás. Lula não deve enfrentar apenas adversários, vai passar a enfrentar inimigos. E esses inimigos já mostraram que sabem jogar inclusive fora das regras do jogo para tentar atrapalhar a vida de quem está do outro lado”, disse em podcast.

A leniência com atos antidemocráticos aprofunda o risco de essas práticas serem normalizadas no Brasil. Nos Estados Unidos, o ex-presidente Donald Trump ainda não pagou qualquer preço pela invasão do Capitólio, em janeiro de 2021, mas o departamento de Justiça americano prendeu cerca de 900 pessoas em quase todos os estados. Mais de 300 pessoas foram julgadas, e quase 200 pessoas, condenadas à prisão. Alguma coisa já está acontecendo por lá.

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No true crime à brasileira, a vítima é sempre negra

Folha de São Paulo Piauí*

Em 300 anos de escravidão regulamentada por lei, mais 41 anos de República Velha, uma década e meia de Era Vargas, 19 anos da hoje chamada Quarta República (1946-1964), 21 anos de ditadura e pouco mais de 30 desde a promulgação da Constituição de 1988, a sociedade brasileira ostenta uma característica de impressionante imutabilidade, que é também um de seus pilares: a violência racial. Só nos 34 anos que se seguiram à redemocratização, quando houve certo consenso em oficializar a distribuição irrestrita da cidadania, já tivemos: policial acusado de homicídio qualificado alegando que a vítima foi responsável por sua própria morte ao ter dado cabeçadas na porta de uma viatura; secretário de Segurança Pública promovendo PM que entrou numa favela e executou moradores sumariamente; Ministério Público arquivando casos cheios de provas de tiros à queima-roupa; Tribunal de Justiça anulando condenação do júri… Este texto poderia ser todo ele uma lista.

Entre 2021 e 2022, o Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV-SP se dedicou a analisar oito casos dessa lista: o massacre no presídio do Carandiru (1992); a execução sumária de Mário Josino na Favela Naval (1997), em Diadema (SP), quando policiais militares foram filmados agredindo moradores; a chacina do Borel, no Rio de Janeiro, com quatro execuções sumárias (2003); o desaparecimento do corpo do pedreiro Amarildo Dias de Souza, na favela da Rocinha, no Rio (2013); a chacina do Cabula (2015), quando a Polícia Militar executou doze jovens negros na Vila Moisés, Salvador (BA); a tortura e morte de Luana Barbosa dos Reis (2016), em Ribeirão Preto (SP); o massacre de Paraisópolis (2019), quando o cerco da Rota ao baile da DZ7 resultou na morte de nove jovens; e o assassinato de João Alberto Silveira Freitas por forças da segurança privada no Carrefour do Passo d’Areia (2020). São oito casos, 140 mortes e, até muito recentemente, apenas nove condenações confirmadas. Isso porque foi somente ontem – 17 de novembro de 2022, mais de 30 anos após os fatos – que o Supremo Tribunal Federal declarou o trânsito em julgado da condenação de 74 policiais militares acusados de participar do Massacre do Carandiru.

O estudo Desafios da Responsabilidade Estatal pela Letalidade de Jovens Negros: Contextos Sociais e Narrativas Legais no Brasil (1992-2020) investiga o que acontece depois que crimes cometidos por agentes de segurança vão parar nas mãos das instituições do sistema de justiça criminal. O projeto também deu origem a um memorial online que documenta cada uma das histórias e um podcast com oito episódios chamado Justiça em Preto e Branco.

Todo o projeto parte de dois consensos no campo acadêmico antirracista voltado para a relação entre raça, justiça e violência: 1) no Brasil, a letalidade policial afeta desproporcionalmente a população negra; 2) a ausência de responsabilização do Estado nesses homicídios. Partindo dessas duas premissas, analisamos as respostas institucionais às mortes, considerando também demandas históricas do associativismo negro e das articulações políticas lideradas por familiares de vítimas.

Ocorridas em diferentes momentos do pós-redemocratização, as oito histórias tiveram em comum repercussão midiática e mobilização social. Pensamos que a atenção pública poderia ter motivado respostas mais eficientes à violência letal contra a população negra. Mas, mesmo nesses casos marcantes, não houve o mínimo zelo procedimental por parte de autoridades, em especial, das do sistema de justiça criminal, que, em vez disso, têm aprimorado um repertório, ao mesmo tempo padronizado e adaptável, de práticas e discursos para não responsabilizar indivíduos e órgãos do Estado. 

Investigamos então os mecanismos, normas, recursos administrativos e interpretações jurídicas mobilizados nesses processos de não responsabilização. Como essas narrativas jurídico-institucionais criadas em torno dos assassinatos cometidos por policiais reproduzem valores de uma cultura e uma prática jurídicas racializadas? Qual o impacto das mobilizações e da pressão da mídia? Repercussão e mobilização redundaram em mudanças políticas? Foram algumas de nossas perguntas.

O foco foi a Justiça, já que a engrenagem que faz a administração burocrática das mortes conta com autoridades judiciais, as quais aceitam acriticamente versões de policiais sob investigação. Outra peça chave aqui é o Ministério Público, que se destaca em todos os casos por não desempenhar sua função constitucional de controle externo das polícias, tanto na avaliação de operadores do direito, quanto de familiares de vítimas e ativistas que ouvimos. 

Dos 28 anos entre o primeiro caso – Massacre do Carandiru (1992) – e o mais recente – Beto Freitas (2020) –, identificamos algumas linhas de continuidade. Entre elas, decisões discricionárias proferidas em 2ª instância anulando as (raras) condenações de policiais em primeira instância pelo Tribunal do Júri. Isso ocorreu em três dos oito casos analisados – o que, na verdade, representa a totalidade de casos que havia ido a júri até o momento de realização da pesquisa. Na Chacina do Borel, uma das condenações, que já havia inclusive recebido um segundo veredito do Tribunal do Júri, foi anulada pela 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio, em 2005. A justificativa se apoiou na inusitada afirmação de que os jurados haviam se mostrado vacilantes e incoerentes ao responderem às perguntas direcionadas ao Conselho de Sentença.

Nos casos do Massacre do Carandiru e da Favela Naval, condenações do Tribunal do Júri também foram modificadas em 2ª instância. O Coronel Ubiratan, que conduziu a invasão da Casa de Detenção de São Paulo, em 1992, e foi originalmente condenado a 632 anos, teve sua sentença revertida, em 2006. De forma semelhante, no ano 2000, desembargadores do TJSP anularam o júri de Otávio Lourenço Gambra, o “Rambo”, PM responsável pela morte do mecânico Mário José Josino, vítima fatal do caso Favela Naval, sob a justificativa de que a decisão dos jurados havia contrariado a prova dos autos. Avaliou-se que não existiam evidências para condenar o policial por outras três tentativas de assassinato: somente foi admitida a condenação quanto à morte de Josino, que, além de ter sido filmada, “Rambo” confessou. 

A anulação de veredictos do Júri é apresentada como medida excepcional na Constituição Federal. Nas histórias que estudamos ela é a regra.  A investigação dos homicídios cometidos por policiais está entregue às próprias corporações, que tendem a corroborar narrativas de legítima defesa, ainda que diante de provas irrefutáveis de execução. E o Poder Judiciário, em vez de se contrapor, dá continuidade a essa cadeia de chancelamento das versões policiais. A Chacina do Cabula exemplifica outra estratégia nesse sentido: a absolvição sumária dos acusados, sem que sequer houvesse instrução processual ou Júri. Nesse caso, a decisão foi posteriormente anulada, mas atrasou significativamente o andamento processual.

Nesse sentido, duas mudanças são urgentes: a legitimação das versões das testemunhas de acusação, bem como de eventuais vítimas sobreviventes; e o reconhecimento do racismo como motivador da violência policial e impulsionador do modo de agir do Poder Judiciário.

Todos os levantamentos apontam que negros morrem mais do que brancos, por homicídios em geral e pela ação da polícia. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam que, em 2021, das 6.145 vítimas de mortes decorrentes de intervenções policiais, 84,1% eram negras. As cifras de guerra racial tornam mais escandalosa a ausência de respostas também em termos de políticas públicas que, junto com o sistema de justiça, tem contribuído deliberadamente para o apagamento das evidências do racismo de Estado.

A linha temporal dos casos analisados explicita, de outro lado, a importância das estratégias de familiares, movimentos e organizações internacionais no estímulo ao debate e no questionamento dos silêncios institucionais sobre o peso de raça, gênero, sexualidade e classe/território, nas mortes provocadas por policiais. Assim, os casos de Luana Barbosa, Amarildo, João Alberto e Paraisópolis chegaram ao Judiciário a partir da denúncia do racismo como causa das mortes.

O que observamos na Justiça são barreiras a esses argumentos. O caso de Luana Barbosa é paradigmático por demonstrar a retirada sistemática do conteúdo referente à raça ao longo das instâncias do fluxo processual. Na cidade de Ribeirão Preto, SP, em abril de 2016, Luana, mulher negra e lésbica, saía de casa com o filho quando foi abordada por uma viatura com três policiais homens. Luana, que na ocasião vestia roupas consideradas masculinas, reivindicou seu direito de ser revistada por uma policial mulher – protesto ao qual um dos PMs reagiu com a frase “se quer andar que nem homem, vai ser tratada como homem”, seguida de socos e chutes, com os agentes chegando a esfregar seu rosto no chão. Tudo na frente do filho, então com 14 anos, e de outras testemunhas. Levada à delegacia na condição de agressora dos policiais, Luana foi liberada no mesmo dia. Em mais cinco, ela morreria em decorrência de lesões cerebrais, que ocorreram no caminho até a delegacia. 

Na última movimentação processual acompanhada pela pesquisa na 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de SP, mesmo com o arcabouço probatório e a sustentação oral da assistente de acusação abordando a problemática do racismo interseccionado a gênero e classe, a decisão dos desembargadores foi por manter a sentença de pronúncia dos réus no artigo 121, caput, do Código Penal, mas afastar as qualificadoras indicativas do motivo de agir dos policiais: racismo e sexismo. Os PMs declararam que foi Luana que jogou repetidas vezes sua cabeça na porta da viatura, sendo a responsável por sua própria morte. A decisão dos magistrados foi ratificada pelo procurador da República. 

A Pesquisa sobre Negros e Negras no Poder Judiciário (2021), do Conselho Nacional de Justiça, aponta que escolas de magistratura que atuam com a formação continuada não têm, em sua maioria, promovido cursos que abarquem temáticas relacionadas à raça. Apenas 32,6% das escolas tiveram cursos nos últimos doze meses envolvendo o assunto, e 16,9% das escolas mapearam o interesse de magistrados e servidores sobre isso. O desinteresse se reflete ainda na insuficiência de dados sobre o perfil de quem acessa a justiça na condição de usuário ou réu.

Compreender e reconhecer a composição de raça e gênero dentro das instituições da Justiça é uma tarefa primordial para o enfrentamento ao racismo institucional. Essa política somada às ações afirmativas e à educação continuada na temática racial são medidas que põem em questão a manutenção de uma maioria de juristas brancos desconectada dos efeitos do racismo no acesso à justiça.

Já a possibilidade de fortalecimento do controle social das polícias passa necessariamente por uma escuta simétrica das demandas e análises políticas dos movimentos negros e movimentos de familiares de vítimas da violência do Estado. Levando a sério o questionamento sobre a diferença entre o que o Estado chama de justiça e o entendimento das pessoas diretamente impactadas pela violência racial é que poderemos começar a caminhar para superar o silêncio e a negação, dupla de fiéis escudeiros do racismo no Brasil: um racismo que mata.

Texto publicado originalmente na Folha de São Paulo Piauí.


Copa do Mundo da FIFA Catar 2022 | Imagem: reprodução twitter/FiFA

Revista online | Copa do Mundo: poder do dinheiro comanda o espetáculo

Henrique Brandão*, especial para a revista Política Democrática online (49ª edição: novembro/2022) 

A Copa do Mundo bate às nossas portas, invade o cotidiano, toma conta das conversas. Em nosso dito “país do futebol”, essa rotina se repete de quatro em quatro anos. Estamos sempre entre as seleções favoritas. Que o digam as casas de apostas londrinas, insuspeitos templos das previsões futuras, onde o Brasil aparece bem cotado a cada campeonato mundial.

Em toda edição da Copa, haverá uma seleção que será lembrada, como ocorreu com a Hungria de Puskas, em 1954; o Brasil do tricampeonato (1958,62,70), com Pelé, Garrincha, Jairzinho e Tostão; a Holanda de 1974, com seu carrossel e o talento de Cruyff; Camarões em 1990, comandada por Roger Milla; a França de 1998, com Zidane & Cia. São várias as referências, ao gosto do freguês. 

Mas o critério esportivo, nos tempos atuais, deixou de ser o único balizador a medir o sucesso de uma Copa. Os indicadores econômicos, hoje, para os burocratas da todo-poderosa Fifa, são tão ou mais importantes do que os legados surgidos em campo. 

Na véspera da abertura da Copa 2022, o Conselho Executivo da Fifa divulgou seu faturamento: US$7,5 bilhões, o melhor resultado da história da entidade. Dentre as propriedades comerciais, os direitos de transmissão televisiva são o filé mignon. Desde a Copa de 1970, a primeira a ser transmitida para o mundo inteiro, os números não param de crescer. No Catar, a história se repete.  

Para se ter uma ideia do volume de dinheiro, no Brasil os direitos da Copa do Catar são exclusivos da Globo para TV aberta e paga. O contrato, fechado na Rússia em 2018, é de US$90 milhões por ano.

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O próximo Mundial será ainda maior que o atual, disputado por 32 seleções. Em 2026, serão 48 equipes e 80 jogos, no total. O gigantismo da Copa começou a ser desenhado em 1974, quando o brasileiro João Havelange (1916-2016) foi eleito presidente com os votos de africanos, latino-americanos e asiáticos, destronando Sir Stanley Rous, o candidato da Europa.

Havelange presidiu a Fifa entre 1974 e 1998, período marcado pela expansão da entidade. Uma das promessas de campanha foi ampliar o número de vagas de África, Ásia e Concacaf – Confederação que engloba a América do Norte e a América Central – na Copa do Mundo. 

Promessa cumprida. Em 1974, quando assumiu a presidência, a Copa era disputada por 16 seleções. Em 1998, quando deixou a entidade, o Mundial tinha o dobro de participantes.

Sob o comando de Havelange, a Fifa inaugurou uma nova maneira de atuar, que perdura até hoje, marcada pela aproximação com o poder político institucional e práticas questionáveis para a manutenção do status quo interno. Desde então, nenhum outro presidente foi eleito como candidato de oposição, como foi o caso do brasileiro.

Bom de negócios, Havelange elevou a Fifa a outro patamar financeiro. Em 1974, a entidade obteve receitas de US$11 milhões. Na Copa de 1994, a última em que esteve na presidência, a arrecadação foi de US$230 milhões. Daí em diante, o volume de dinheiro só aumentou. 

Estava estabelecido o “padrão Fifa de qualidade”. Quando decidiu deixar o cargo, em 1998, Havelange indicou Josef Blatter como sucessor. Blatter, que exercia o cargo de secretário-geral desde 1981, ficou na presidência por mais 17 anos. Tanta longevidade tem explicação: era ele quem negociava todos os contratos comerciais da entidade e organizava as Copas do Mundo.

Em 2015, às vésperas de mais um Congresso para sua reeleição, Blatter foi surpreendido pela prisão, na Suíça, de sete cartolas ligados à Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) e à Confederação de Futebol da América do Norte, Central e Caribe (Concacaf). Diante de pressões, quatro dias depois, mesmo reconduzido, convocou novas eleições, marcadas para fevereiro de 2016. Sete candidatos se apresentaram. Gianni Infantino, secretário-geral da Uefa, foi eleito. 

A Copa do Catar é a primeira sob o comando de Infantino. Seu modus operandi não difere muito do de seus sucessores. Quando divulgou os resultados financeiros do Mundial 2022, fez um discurso que Blatter assinaria embaixo: “Arrecadamos mais em patrocínios do que na última Copa, mais em direitos de transmissão e mais em camarotes. Tantas e tantas empresas acreditam nesta Fifa. Acreditamos que limpamos a entidade. Então, quem diz que esta Copa será um fracasso está errado”, disse, exultante.

Confira, a seguir, galeria:

Giovanni Vincenzo Infantino dirige a FIFA desde 2016, sucedendo Joseph Blatter | Foto reprodução REUTERS/ Leonhard Foeger
Cerimônia de abertura da copa 2022 | Foto: reprodução/Creative Commons
O Banco Nubank é um dos apoiadores oficiais da Copa do Mundo da FIFA 2022 | Imagem: reprodução/Nubank
João Havelange presidiu a FIFA entre 1974 e 1998
Seleção brasileira tricampeã mundial na copa de 1970, no México | Foto: reprodução/CBF
Giovanni Vincenzo Infantino dirige a FIFA desde 2016, sucedendo Joseph Blatter | Foto reprodução REUTERS/ Leonhard Foeger
Cerimônia de abertura da copa 2022 | Foto: reprodução/Creative Commons
O Banco Nubank é um dos apoiadores oficiais da Copa do Mundo da FIFA 2022 | Imagem: reprodução/Nubank
João Havelange presidiu a FIFA entre 1974 e 1998
Seleção brasileira tricampeã mundial na copa de 1970, no México | Foto: reprodução/CBF
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Giovanni Vincenzo Infantino dirige a FIFA desde 2016, sucedendo Joseph Blatter | Foto reprodução REUTERS/ Leonhard Foeger
Cerimônia de abertura da copa 2022 | Foto: reprodução/Creative Commons
O Banco Nubank é um dos apoiadores oficiais da Copa do Mundo da FIFA 2022 | Imagem: reprodução/Nubank
João Havelange presidiu a FIFA entre 1974 e 1998
Seleção brasileira tricampeã mundial na copa de 1970, no México | Foto: reprodução/CBF
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Observando o estilo de governança da Fifa, fica a impressão de que a frase dita por Tancredi, um dos personagens de O Leopardo, romance do italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1897-1957), adaptado para o cinema (1963) pelo genial Luchino Visconti (1906-1976), é mais atual do que nunca: “Tudo deve mudar para que tudo fique como está”.

Ainda bem que temos, para quem gosta de futebol, jogos que ainda nos dão imensa satisfação, pelo talento exibido em campo pelos jogadores, que, afinal, são os verdadeiros protagonistas do espetáculo. 

Viva o futebol!

Sobre o autor

*Henrique Brandão é jornalista e escritor.

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de novembro/2022 (49ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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Fernando Abrucio: Alimentar o ódio é minar a nação

Democracia Política e Novo Reformismo*

A construção de nações foi uma das tarefas mais complexas da história da humanidade. O primeiro passo é estabelecer os limites territoriais dos países, algo ainda inacabado em parte do mundo, tendo muitas vezes a guerra como solução. Mas o aspecto mais complicado está na produção da identidade nacional. Constituir um povo que conviva com suas diferenças não é nada trivial. Mesmo sendo escandalosamente desigual, o Brasil conseguiu edificar uma sociedade razoavelmente tolerante, com espaços de convívio e respeito mútuo. Só que o ódio entre brasileiros tem sido alimentado cotidianamente. Isso pode afetar o destino de curto e longo prazo da nação.

O ódio social nunca foi uma bússola para construir civilizações. Nos casos mais extremos, produziu-se a barbárie. Assim foi na Alemanha nazista, com a perseguição de vários grupos sociais, especialmente os judeus, com 6 milhões de mortos. O Brasil atual está longe disso, mas o crescimento do neonazismo nas redes sociais e manifestações declaradamente nazistas em universidades e até em escolas particulares de educação básica revelam que há sementes totalitárias sendo plantadas em nossa nação.

Mas o ódio pode ter uma forma mais branda e duradoura, com divisões sociais marcadas pelo rechaço completo entre as forças políticas, transformando a atividade da política em um jogo de mágoas perpétuas. A Argentina tem trilhado essa história desde a Segunda Guerra Mundial, com períodos autoritários muito violentos e com momentos democráticos em que o diálogo tem pouco espaço entre os diferentes. O fato é que o desenvolvimento econômico e social argentino foi barrado por um grau de polarização que dificulta qualquer decisão que resulte da negociação e do respeito mútuo. Esse é o efeito Orloff que o Brasil mais deveria temer.

Nos últimos 15 anos, um novo ciclo internacional de ódio político foi constituído. Ele é a combinação do avanço de redes sociais propositadamente polarizadoras com o discurso da nova extrema direita, caracterizada pela defesa de valores tradicionais, pelo nacionalismo excludente (nem todos os integrantes da nação são legítimos) e pela crítica às instituições impulsionadas a partir do Iluminismo ocidental. Por meio desses dois elementos, construiu-se um movimento baseado na busca da destruição dos inimigos, como a mídia tradicional, os liberais globalistas, a esquerda em seus vários matizes, a ciência e os intelectuais, além de grupos sociais politicamente minoritários (mulheres, negros, LGBTQIA+ etc.), para citar os principais alvos, realizando uma hiperpolitização de todos os espaços da vida humana.

A hiperpolitização significa que nenhum espaço da vida humana pode estar alheio às ideias políticas que norteiam o grupo que se pretende dominante, ou melhor, que pretende eliminar todos os que não concordam com ele. É uma noção similar ao conceito de ideologia usado por Hannah Arendt para descrever os totalitarismos do século XX. Os filmes de Goebbels muitas vezes falavam da vida cotidiana, da higiene que a raça ariana deveria cultivar para se tornar superior. Hoje, a hiperpolitização não define apenas o que se deve fazer na seara política, mas como se comportar na esfera privada.

A política é a atividade mais nobre entre os seres humanos, como já pensavam os clássicos como Aristóteles e Maquiavel, porém, quando tudo vira política, há grandes chances de se criar uma sociedade incapaz de conversar na padaria, de tomar o mesmo ônibus, de se sentar numa mesma sala de aula, de entender que o direito de um termina quando afeta a liberdade do outro - evitar que uma pessoa doente atravesse uma estrada é matar o sentido de uma nação. Será que a Copa do Mundo nos trará a ideia de brasileiros, iguais na sua diferença, de volta?

É muito assustador quando uma sociedade começa a funcionar segundo uma divisão baseada no ódio ao outro, a quem pensa diferentemente ou tem uma origem social distinta. O clima social geral e em todas as organizações fica extremamente pesado. Haverá mais conflitos desnecessários, em algumas situações se chegará à violência, com a possibilidade da morte de um irmão ou irmã não de sangue, mas de identidade nacional. As escolas se tornarão menos suscetíveis ao aprendizado como resultado do diálogo e do compartilhamento de experiências diferentes. As empresas também sofrerão com esse processo de disseminação do ódio, provavelmente reduzindo sua produtividade, porque o sucesso organizacional depende bastante da combinação de talentos e visões de mundo diferentes.

Para exemplificar a que ponto se chegou o ódio alimentado pelo bolsonarismo, basta lembrar que o Brasil precisa do Nordeste para a construção de seu imaginário cultural e de seu sucesso econômico - experimente segregar os estados, e barreiras econômicas nascerão a seguir, perdendo-se mercado consumidor e capital humano. Os meninos da escola privada que trataram seus colegas de forma preconceituosa terão enormes dificuldades de conseguir empregos no futuro, pois as empresas estão demandando diversidade, e quem for contra isso terá menos espaço na economia do século XXI. Voltando à Copa do Mundo, tema que vai ser dominante nas próximas semanas, seria impossível ganhar qualquer um dos cinco títulos que temos se o atual modelo de ódio definisse as convocações.

Aqui vale diferenciar o conceito de pátria do sentido da palavra nação. Ficou na moda em certos círculos sociais se definir como patriota. Gostar da bandeira e do hino nacional unifica as pessoas de um país. Só que a palavra pátria tem a ver mais com o lado oficial do Estado nacional, e relaciona-se menos com o que profundamente liga as pessoas em uma determinada sociedade. A pátria pode ser evocada por ditadores, por gente que mata seus semelhantes em nome de objetivos políticos - muitos dos autoproclamados patriotas que estão nas ruas querem destruir seus inimigos, mesmo que sejam seus vizinhos que um dia os levaram ao hospital ou cuidaram de seus filhos quando estavam fora de casa.

A nacionalidade, ao contrário, vai além da estrutura institucional do poder. Ela está lá também, entretanto, sua principal característica é ser um sentimento profundo e de longo prazo de pertencimento a uma coletividade. A nação unifica sem que se produza a homogeneidade social. Em vez disso, deve garantir a unidade na diversidade, alimentando consensos e gerindo dissensos. O pertencimento a uma nação é a possibilidade de discordar e conviver, como quem torce para times diferentes, discute quem é a melhor equipe, xinga o juiz do jogo, mas ao final aceita as regras e acredita que o futebol só tem graça porque há adversários. O que seria do Corinthians sem o Palmeiras, e vice-versa?

O ódio político está minando os vínculos básicos da nação brasileira. Em termos coletivos e intertemporais, ninguém ganha com isso, a não ser grupos organizados para conquistar o poder por meio da violência política e social. O problema é que esse tipo de extremismo convenceu uma parcela relevante da sociedade brasileira que, inebriada pela hiperpolitização que parece dar respostas a todas as angústias da vida social, mobiliza-se cegamente para a destruição das bases mais amplas da coletividade, colocando em risco o seu presente e, sobretudo, o futuro de seus filhos e netos.

No curto prazo, é preciso construir espaços públicos de diálogo entre os diferentes, mostrando como é possível conviver com a divergência, negociar posições e até mudar de opinião. Claro que aqueles que cometeram crimes contra a democracia, segundo define a lei, podem ser punidos. Todavia, a maioria que está descontente com o resultado eleitoral e acredita nas teorias conspiratórias que são alimentadas pela hiperpolitização pode ser trazida de volta ao debate democrático com suas diferenças em relação ao presidente eleito.

Para isso, é preciso que as principais instituições sociais, como a mídia e a universidade, e o novo governo se guiem pela maior abertura possível para conversar e incorporar demandas de diferentes setores sociais. No caso da terceira gestão presidencial de Lula, ele terá que se vigiar constantemente para evitar o hegemonismo que por muitas vezes acomete o PT. A frente ampla é a única forma de salvar a nação da doença do ódio que cresce no país, e ela será feita de grandes decisões e de pequenos atos, como o relativo à discussão da presidência do BID, quando o petismo se esqueceu das lições recentes e atuou como no passado hegemonista.

A solução estrutural para evitar o crescimento do ódio político e social está na educação. É preciso fazer da diversidade a peça central do ensino, da creche à universidade. Há quase 30 anos formo alunos com ideias diferentes, e sempre estimulei o convívio e o aprendizado entre os divergentes. Já falhei na minha jornada pedagógica, como num episódio recente em que fui desrespeitoso com quem pensava diferentemente de mim. Talvez todos estejamos envoltos em muito ódio, quando precisamos de paciência e de empatia. Por essa razão, dedico este artigo a Danielle Klintowitz, falecida precocemente há algumas semanas. Ela foi minha orientanda e seu doutorado mostrava que uma política pública bem-sucedida depende de negociação e acordos entre os diferentes. E o que vale para ações governamentais, vale para a convivência de todas as pessoas da nossa nação.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

Texto publicado originalmente no Democracia Política e Novo Reformismo.


Padrão único para dispositivos eletrônicos de comunicação vai reduzir custos e o lixo eletrônico, diz senadora (Fotos: Reprodução/Internet/Agência Senador)

Eliziane Gama propõe a padronização de carregadores de celulares no País

A líder do Cidadania e da Bancada Feminina do Senado, Eliziane Gama (MA), apresentou projeto de lei (PL 2799/2022) que dispõe sobre a padronização de interface de carregamento de telefones móveis celulares e de dispositivos com funcionalidade de telecomunicações.

“A padronização dos carregadores de celulares e demais dispositivos eletrônicos de comunicação é necessária não só para a redução de custos ao consumidor, como para mitigar o lixo eletrônico”, afirma a senadora sobre o projeto, que acrescenta o dispositivo à legislação (Lei nº 9.472/1997) que trata da organização dos serviços de telecomunicações.

A proposta, de acordo com Eliziane Gama, tem o objetivo de fazer com que o Brasil se associe ao esforço mundial para adoção de uma solução tecnológica que agrega sustentabilidade ecológica, eficiência econômica e comodidade para os usuários.

Ela cita que essa padronização ocorreu na Europa, com a aprovação pelo Parlamento dos países do bloco econômico do projeto de lei obriga a comercialização de celulares compatíveis com um carregador de uso comum ou universal, no caso, a interface padrão USB tipo C.

O projeto de lei torna obrigatória a definição de um padrão único de carregadores de celular e demais dispositivos que contenham funcionalidade de telecomunicações, dentre eles tablets, notebooks e fones de ouvido sem fio.

“A padronização ficará a cargo da Agência Nacional de Telecomunicações, que somente poderá homologar aparelhos equipados com a interface universal de carregamento, com as condições e prazos para implantação do padrão único definidos em regulamento”, explica Eliziane Gama.

Texto publicado originalmente no Cidadania23.