Flávia Marreiro: As elites que escolhem Bolsonaro colocam em risco as vidas de outros

Não é necessário que o extremista do PSL aprove uma lei, se for eleito. A sua simples ascensão já é uma autorização para humilhar e até matar

Na reta final da campanha do Brasil, está em curso em vários setores das elites brasileiras uma marcha imparável de normalização dos graves riscos de um Governo Jair Bolsonaro. Primeiro, operadores do mercado financeiro, apoios formais das bancadas conservadoras no Congresso, endosso do candidato que foi presidente da poderosa Fiesp. Sem falar do endosso tácito do silêncio. É um processo a jato. Ninguém sério acha que aquele plano de Bolsonaro cheio de exclamações e delírios seja crível, ou que ele tenha equipe, ou que não vá haver turbulências. Mas, seja como for, é melhor já ir se acomodando. Talvez daí a pressa de Xico Graziano, ex-chefe de gabinete do Governo FHC, em declarar apoio ao capitão reformado do Exército, mesmo não concordando "com várias das ideias dele." Vai que sobra um lugar no palácio para os serviços desse tucano de tão boa plumagem?

Graziano é a versão às claras sobre esse cinismo de largos setores das elites políticas e econômicas que pretendem aderir ao bolsonarismo sem nem sequer tapar o nariz. É o que leva Paulo Guedes a balbuciar frases conservadoras sobre educação sexual nas escolas só para tentar parecer mais integrado e menos oportunista, por exemplo. Ocorre, no entanto, que "várias das ideias" de Bolsonaro representam riscos concretos a vidas. Representam muitos passos a mais no aprofundamento da nossa barbárie. As elites devem saber disso, mas ter as mãos sujas de sangue parece ser um dano colateral que já precificado. Não será a deles, desde logo. E pensar que aceitar a mão decisiva e corrompida do (bolsonarista) Eduardo Cunha para tirar o PT do poder – com o apoio do ex-presidente Fernando Henrique Cardosoparecia um capítulo vergonhoso da história recente.

Não se trata de dizer que o bolsonarismo é um fenômeno apenas de elites, ainda que ele já estivesse eleito se fossem contados apenas os mais ricos, já que para entrar nos "mais ricos" não é preciso muito no nosso país pobre. A declaração de voto em Bolsonaro se espraia em todas as faixas de renda. Mas o ponto aqui é quem mais vai ganhar e quem mais vai perder com esse arranjo. Quem, no 1% mais rico, mal pode esperar por um experimento com tintas pinochetistas. Vamos pular a parte em que os analistas fingem acreditar que se trata de "dois extremos" em disputa ou que as nossas instituições, mergulhadas até o pescoço no salve-se quem puder da nossa crônica política, serão um muro de contenção. Com um pouco de raciocínio, chega-se à obviedade de que o projeto representado pelo populista de extrema direita Jair Bolsonaro não precisa de lei alguma para fazer dano.

O discurso violento do capitão reformado do Exército é um endosso cruel aos piores problemas que já temos: machismo, intolerância à comunidade LGBTQ+, e, algo transversal a tudo isso e potencialmente explosivo, a violência policial. Não custa repetir que o flerte mais próximo do projeto Bolsonaro não é com Donald Trump, é com Rodrigo Duterte, o presidente "bandido bom é bandido morto" das Filipinas e as milhares vítimas que já deixou. Veja bem, não estamos falando apenas do tristes enfrentamentos entre antifas e racistas em Charlottesville. Nem apenas da indignidade de separar crianças imigrantes de seus pais nos EUA. A nossa escala, num país com 63.000 mortos ao anos, pode ser catastrófica. O outro aqui não é necessariamente o imigrante. O outro, que não merece o mesmo status humano, é só a empregada ou o porteiro da classe média alta de São Paulo depois que ela cruza a marginal rumo às franjas da cidade.

O policial médio brasileiro é jogado em campo sem inteligência ou estratégia, para matar e morrer com outros de sua faixa de renda. Esse policial faz parte da tragédia, nós sabemos, como também sabemos dos sádicos que praticam tortura e gravam e distribuem no WhatsApp. A tortura, herança da escravidão e da ditadura, jamais desapareceu das nossas delegacias e prisões. Agora, aquilo que era tolerado, quase nunca investigado ou punido, para o que se fazia vista grossa, ganha um respaldo, vertical, se irradia. É o torturador que será fortalecido, acalmado em qualquer mal-estar que lhe reste, porque o heroi do candidato a presidente é também um torturador.

Mesmo que o candidato de extrema direita não vença, apesar desse esforço veloz de levá-lo de outsider a campeão do establishment sem escalas em uma semana, o dano já estará feito. Cabe à nossa sociedade saber como lidar politicamente, sem alienar de pronto, com uma parte expressiva do país que vê uma esperança legítima em Jair Bolsonaro.

*Flávia Marreiro é jornalista