Debate: Bolsonaro distorce dados sobre desmatamento
Paulo Motoryn*, Brasil de Fato
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) defendeu, durante o debate na TV Bandeirantes, na noite deste domingo (16), a preservação ambiental, enquanto o presidente Jair Bolsonaro (PL) distorceu os dados do desmatamento durante o seu governo. O tema dominou boa parte do terceiro bloco do confronto entre os candidatos ao Palácio do Planalto.
"Foi no nosso governo o menor desmatamento da Amazônia. Foi no nosso governo. E o seu é o maior todo ano. Vocês estão brincando de desmatar, vocês estão brincando de abrir cerca, vocês estão brincando de derrubar árvore, vocês vão ver o que vai acontecer com o comércio brasileiro, porque o brasileiro do agronegócio que é sério, aquele que quer ganhar dinheiro, aquele que quer exportar, sabe que não pode invadir a Amazônia", afirmou Lula.
"Nós vamos ganhar as eleições para poder cuidar da Amazônia e não permitir que haja invasão em terra indígena, em garimpo ilegal, e muito menos alguém querer plantar milho, soja ou algum outro produto no lugar que não se pode plantar", declarou o petista.
Na resposta, Bolsonaro disse: "Dá um Google em casa aí: 'Desmatamento 2003 a 2006', quatro anos do governo Lula. Depois dá um Google: 'Desmatamento, Jair Bolsonaro, 2019 a 22'. No seu governo foi desmatado mais do que o dobro do que o meu. Dá um Google em casa. Deixa eu terminar, Lula. Dá um Google em casa. Você desmatou duas vezes e meio mais do que no meu governo".
Logo em seguida, contudo, entidades que atuam com o tema contestaram o presidente nas redes sociais. O Observatório do Clima, rede da sociedade civil que luta contra a crise climática, publicou a seguinte mensagem no Twitter: "Jair Bolsonaro MENTE sobre desmatamento no governo Lula. O PT pegou o desmatamento em 25 mil km2 e reduziu a 4.500 km2. Bolsonaro pegou com 7.500 km2 e levou a 13.000 km2", escreveu.
*Texto publicado originalmente no Brasil de Fato. Título editado.
Escritores negros contribuem para uma visão mais ampla e inclusiva, diz ativista dos direitos humanos
João Vítor*, com edição da Coordenadora de Mídias Sociais Nívia Cerqueira
Em geral, a população negra corresponde, de acordo com Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a 56% do Brasil. Ou seja, a maior parte da população do país. Imagine se todos tivessem as mesmas oportunidades.
Para o ativista de direitos humanos e igualdade racial Sionei Ricardo Leão, a produção de autores negros contribui para uma visão mais ampla e inclusiva. “Seria bom se as editoras de livros tivessem a sensibilidade de oportunizar, com igualdade, a produção para autores de toda tonalidade de pele”, diz o jornalista.
Questões de igualdade racial na literatura brasileira, e afins, serão parte das próximas edições do Clube de Leitura Eneida de Moraes, promovido pela Biblioteca Salomão Malina, mantida pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília. A roda de conversa virtual será no dia 31 de outubro, a partir das 19 horas, com transmissão para o perfil de Facebook da biblioteca e canal de YouTube da FAP.
Participe você também do Clube de Leitura Eneida de Moraes na nossa sala do aplicativo Zoom!
A obra deste mês será O avesso da Pele, de Jeferson Tenório (2020), que conta a história do personagem Pedro, cujo pai foi assassinado durante uma desastrosa abordagem policial. Após esse acontecimento, Pedro busca resgatar o passado de sua família. O livro foi vencedor do Prêmio Jabuti 2021, na categoria “Romance Literário”.
A história de um negro contada por ele próprio tem destaque para o ativista Leão. “É legítimo [pessoa branca] escrever e falar sobre. Mas é diferente você fazer parte do grupo e falar com propriedade”, ressalta.
É importante ainda, conforme acrescenta Leão, que a imprensa divulgue escritores pretos. “Dar condições iguais significa mostrar um país mais verdadeiro e enriquecer o conteúdo para o leitor”, diz.
No mês seguinte, será vez da obra O pequeno príncipe preto, de Rodrigo França (2020) ser tema de debate no Clube de leitura. A ordem das obras foi decidida via votação. O encontro online é gratuito e aberto ao público. Interessados podem solicitar mais informações por meio do WhatsApp oficial da Biblioteca Salomão Malina (61 98401-5561).
Veja, a seguir, fotos da biblioteca:
Serviço
Clube de Leitura Eneida de Moraes: O avesso da Pele, de Jeferson Tenório (2020)
Dia: 31/10/2022
Horário: 19 horas
Onde: transmissão ao vivo pelo Facebook da biblioteca e YouTube da FAP
Realização: Biblioteca Salomão Malina e Fundação Astrojildo Pereira (FAP)
*Integrante do programa de estágio da FAP sob supervisão.
Entenda por que o orçamento secreto flerta com ilegalidades e com a corrupção
Tiago Pereira*, Brasil de Fato
O orçamento Secreto está produzindo um rastro de destruição em áreas sensíveis do Estado brasileiro, como saúde e educação, já combalidas com a perda paulatina de recursos, em função do teto de gastos. Recursos que iriam para políticas públicas, por exemplo, foram desviados para atender ao apetite por emendas da base aliada do presidente Jair Bolsonaro no Congresso Nacional. No episódio mais recente, o governo Bolsonaro bloqueou mais R$ 2,4 bilhões de recursos que seriam destinados ao Ministério da Educação (MEC) deste ano. A verba vai para parlamentares aliados aplicarem como bem entenderem, em mais uma manobra do chamado orçamento secreto.
A manobra é resultado de um governo fraco, que precisou do Congresso para não investigar seus crimes de responsabilidade que poderiam levar a um impeachment. Desse modo, o Executivo passou a subordinar grande parte do Orçamento da União passou ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Lira coordena o esquema e sentou em cima de mais de 140 processos de impeachment contra o atual presidente. Por meio dessa barganha que fere os princípios republicanos, Lira recebeu somente neste ano R$ 492 milhões em emendas para aplicar nos seus redutos eleitorais. Como resultado, ele viu sua votação crescer mais de 50% nas últimas eleições, na comparação com pleitos anteriores.
Ignorando critérios técnicos, esses recursos são aplicados ao sabor dos interesses dos parlamentares agraciados com as chamadas “emendas de relator”. É possível saber quanto cada parlamentar recebeu. No entanto, não há transparência, e não se pode saber ao certo onde foi aplicado o dinheiro.
“Maior esquema de corrupção do planeta”
De acordo com a senadora Simone Tebet (MDB-MT), “podemos estar diante do maior esquema de corrupção do planeta Terra”. Em entrevista recente ao podcast Flow, a então candidata à presidência – que agora declarou apoio ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno – explicou o funcionamento do esquema.
Ela citou o caso, revelado pela revista piauí, do município de Pedreira (MA). Com 39 mil habitantes, para justificar as emendas recebidas via Orçamento Secreto, a prefeitura informou que realizou mais de 540 mil extrações dentárias.
“Significa ter tirado 14 dentes de cada cidadão da cidade, inclusive do bebê recém-nascido, que não tem dente.”
A mesma reportagem mostra outro município do interior do Maranhão que realizou mais testes de HIV/aids do que toda a cidade de São Paulo, que tem mais de 12 milhões de habitantes.
“Então posso estar falando de uma nota fria onde digo ‘fiz tal coisa, me paguem’. Não estou falando daquela coisa de levar 10%, não (superfaturamento). Estou falando de uma nota inteira. O dinheiro pode ter saído de Brasília, chegado lá e ter ido para o bolso de alguém. Não tem sentido as menores cidadezinhas do Maranhão receberem os maiores recursos desse orçamento”, criticou Simone.
Para se ter ideia da influência das emendas do orçamento, o Maranhão deu 69% dos votos a Lula, elegeu o ex-governador Flávio Dino (PSB) com 62%, e também o candidato apoiado por ele, Carlos Brandão (PSB), com 51%. Por outro lado, dos 18 deputados federais eleitos pelo estado, 12 são de partidos apoiadores de Bolsonaro no segundo turno. Inclusive os quatro mais votados, dois do PL e dois do União Brasil.
Os “vencedores”
O Orçamento Secreto explica, em parte, porque o Brasil votou em Lula, mas deu ao PL de Bolsonaro a maior bancada de deputados federais.
Além das suspeitas de corrupção e dos desvios de finalidade, o Orçamento Secreto é um dos fatores que contribuiu para o crescimento das bancadas dos partidos do chamado Centrão – como o PL, PP, e Republicanos. O PL, por exemplo, conquistou 33 cadeiras nas eleições de 2018. Com a janela partidária, o partido de Bolsonaro subiu para 76, antes da eleição. Ma no último domingo (2), o partido elegeu 99 deputados para a próxima legislatura.
A votação de Bolsonaro, que teve cerca de 51 milhões de votos no primeiro turno, por si só, não explica o crescimento da bancada do seu partido. Fosse assim, o PT, que elegeu 68 deputados, deveria ter ficado com mais de 100 cadeiras na Câmara. Isso porque o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) obteve mais de 57 milhões de votos, 6 milhões a mais que Bolsonaro. Assim, uma das causas da diferença do tamanho das bancadas entre os dois partidos é o Orçamento Secreto, que serviu para irrigar candidaturas de aliados do presidente, e não da oposição.
Levantamento do jornal O Globo mostra que dos 13 que receberam de R$ 100 milhões do orçamento secreto neste ano, apenas um não se reelegeu. Outros dez tiveram votações mais expressivas agora do que nas últimas eleições. Arthur Lira, por exemplo, que recebeu R$ 492 milhões em emendas, viu sua votação saltar de 143.858, em 2018, para quase 220 mil votos nessas eleições, crescimento de 52,55% no total de sufrágios.
“Como você se sente ao ver que o Arthur Lira embolsou sozinho MEIO BILHÃO DE REAIS em emendas do orçamento secreto?”, questionou o cientista social Leonardo Rossato. “Não tem discussão de ideias que consiga concorrer com isso”, frisou o especialista. Assim, o orçamento secreto destrói com qualquer princípio de equidade entre os atores que disputam as eleições.
Batalha
A discussão em torno da revogação ou manutenção do Orçamento Secreto deve ser uma das principais batalhas no Congresso no ano que vem. Em caso de vitória de Bolsonaro, pouca coisa deve mudar, com os parlamentares avançando sobre fatias cada vez maiores das verbas da União. O ex-presidente Lula, por outro lado, promete acabar com o esquema, retomando para o governo federal a prerrogativa de decidir sobre a alocação dos recursos federais. O ex-presidente aposta no diálogo com os líderes do Congresso para pôr fim às emendas de relator.
Outro caminho é sepultar o orçamento secreto através do Supremo Tribunal Federal (STF). A ministra Rosa Weber, que assumiu a presidência da Corte no mês passado, é a relatora de um processo que questiona a legalidade das emendas de relator. O tema entraria em votação após o segundo turno das eleições.
No entanto, caciques do Centrão, como o próprio Arthur Lira, dizem que caso o STF ou o próximo presidente da República decida acabar com o Orçamento Secreto, os parlamentares do Centrão e aliados fariam passar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC), oficializando o esquema. Lira ameaça inclusive se antecipar ao próprio STF, colocando a PEC em votação também logo após o segundo turno.
*Texto publicado originalmente no site Brasil de Fato
Esquerda precisa focar em emprego contra 'identitarismo de maioria'
Shin Suzuki*, BBC News Brasil
O pastor Alexandre Gonçalves, presidente do Movimento Cristãos Trabalhistas, ligado ao PDT, diz que "emprego, saúde e trabalho têm que ser o foco para a esquerda". "Porque se for entrar com a luta identitária, o Bolsonaro ganha com o identitarismo de maioria."
Ele se refere à substancial fatia da população brasileira que é evangélica e conservadora e se reúne em torno do ideal de "defesa da família" — associado a plataformas contra o aborto e o casamento gay.
Projeção do doutor e pesquisador em demografia José Eustáquio Alves aponta que os evangélicos serão o maior grupo religioso do Brasil em dez anos.
Gonçalves considera que atualmente há uma ênfase excessiva do que ele chama de "nova esquerda" na questão identitária (luta contra a discriminação racial, feminista e LGBT) em lugar de temas sociais, ligados a mais garantias e bem estar dos trabalhadores.
Para o pastor, que assessorou o candidato derrotado Ciro Gomes (PDT) no primeiro turno, isso, somado a uma atitude que ele chama de "condescendente" da esquerda em relação aos evangélicos, leva os neopentecostais conservadores a cerrar fileiras pela candidatura de Jair Bolsonaro (PL).
Gonçalves decidiu declarar voto em Luiz Inácio Lula da Silva (PT) por sua oposição ao atual presidente, que considera o introdutor de uma "seita pseudocristã chamada 'bolsonarismo dentro da igreja'".
"Nós estamos indo para o caminho de uma ex-nação."
Carioca de 52 anos, ele é pastor da Igreja de Deus, uma denominação pentecostal, fundada em 1836 nos Estados Unidos, "conservadora e tradicional" e "que de 2014 para cá vem tendo umas ideias muito erradas em relação à questão política".
"Mesmo com todas as dificuldades, problemas e as nossas contradições, me mantenho ali porque ainda acredito que é um ambiente que a gente ainda pode de alguma forma viver sem que fique insalubre."
Em meio a pressões na igreja, Gonçalves deixou de ser pastor em tempo integral e desde 2004 é concursado da Polícia Rodoviária Federal. Mora hoje em Santa Catarina.
O Movimento Cristãos Trabalhistas, que ele ajudou a fundar no final de 2017, inicialmente era formado apenas por evangélicos como Assembleia de Deus, Presbiteriana, Batista e Quadrangular, e mais tarde agregou católicos.
O grupo ainda vai se reunir para definir a posição conjunta sobre o segundo turno — a declaração de voto em Lula é uma posição pessoal de Gonçalves.
Veja abaixo os principais trechos da entrevista com o pastor:
BBC News Brasil - Por que Lula e a esquerda têm dificuldades de obter o voto evangélico?
Pastor Alexandre Gonçalves - Se você pergunta para os evangélicos se eles querem ter saúde e escola públicas de qualidade, um transporte público ágil para não ficar 3 horas no trânsito e direitos trabalhistas como férias, eles vão dizer que sim. É dessa forma que a gente consegue se conectar com as igrejas.
Se você inicia um diálogo com temas transversais, ainda que eles tenham a sua importância, mas que são dominados por um identitarismo de minoria, isso acaba fazendo surgir um identitarismo de maioria. Isso faz muito bem à direita. A direita ganha nesse campo.
A prioridade hoje da chamada nova esquerda, que a gente acredita que é oriunda de uma tendência norte-americana, é de defesa de um identitarismo que entendemos ser raso e dissociado da luta universal dos trabalhadores em prol de sua emancipação.
E se você quer impor através do Estado conceitos de família, seja o conceito cristão tradicional ou o conceito liberal da esquerda, você vai causar conflito.
Emprego, saúde e trabalho têm que ser o foco para a esquerda ganhar alguma eleição majoritária. Porque se for entrar com a luta identitária, o Bolsonaro ganha com o identitarismo de maioria. É só saber matemática.
BBC News Brasil - Quais são os problemas de comunicação da esquerda com essa fatia da população?
Gonçalves - Se uma pessoa fala qualquer termo que não está de acordo com a linguagem da nova esquerda, o que acontece com essa pessoa? Ela não é ensinada: ela é massacrada. Não há uma pedagogia para essa pessoa. Ela não é, com amor, induzida a mudar o seu modo de pensar, ela é destruída.
Querem mudar uma estrutura brutal de opressão mudando a linguagem, ou seja, de fora para dentro. Eles acham que alterando a forma vão conseguir alterar o conteúdo. Primeiro, você tem que mexer lá dentro, no conteúdo. A forma vem depois.
Isso é ensinamento de Jesus: "Lave o copo por dentro". Ou seja, primeiro é ali dentro, tem que mexer nessa estrutura. E como mexe nessas estruturas? Justamente mexendo na economia.
A esquerda fica mais preocupada em falar "vamos legalizar o aborto". Não estou dizendo que essas pautas não sejam importantes. Elas têm a sua importância. Mas não vão resolver o problema estrutural. Qual é o motivo que faz as pessoas abortarem? Qual o motivo que faz com que pessoas transsexuais sejam discriminadas?
Outro ponto [ruim na comunicação] é a fragilidade moral da nova esquerda. Quando ela se tornou governo, houve uma realidade de roubalheira generalizada que é injustificável. Houve o lavajatismo? Houve sim, mas a autoridade moral que a esquerda tinha quando era oposição foi perdida.
BBC News Brasil - Mas por que denúncias de corrupção relacionadas ao governo e à família Bolsonaro, além de declarações do presidente que afrontam valores das igrejas cristãs, como a defesa do aborto feita no passado, não afetam o apoio majoritário dos evangélicos a ele?
Gonçalves - Aí são dois problemas: um na esquerda e outro dentro da igreja. No Brasil, entre os anos 1950 e 1960, entraram duas teologias: a do domínio e a da prosperidade, uma com ligação à outra. A do domínio pregava que o reino de Deus será estabelecido aqui na Terra pela igreja. Daí o nome.
E como é esse domínio? A igreja tem que exercer influência nas principais áreas da sociedade: política, economia, cultura, arte, tudo. E aí uma grande parte das igrejas, principalmente as neopentecostais, tomaram essa teologia podre, que veio para cá importada dos EUA, e colocaram na vida política.
Vários falam para mim: "Bolsonaro não é cristão, a gente sabe que ele não é. A gente sabe que ele tem um monte de erros, mas ele defende os valores cristãos".
Bom, mas você não vota num governante para que ele imponha princípios cristãos à sociedade. Você vota no governante para que ele possa administrar o bem público de forma que todos possam se beneficiar. Isso se inverteu na cabeça de grande parte dos evangélicos, principalmente por causa do aumento das igrejas mercantilistas massivas.
E a igreja evangélica tem o olhar reducionista sobre a esquerda: diz que todo mundo é comunista e não consegue separar entre sociais-democratas, trabalhistas etc. Reduz a esquerda a casamento gay, aborto e maconha. A esquerda, por sua vez, se sente superior, tem um olhar condescendente com os evangélicos.
BBC News Brasil - Há como a esquerda usar uma linguagem, usando as palavras do senhor, "menos condescendente" e defender temas como o combate à violência homofóbica e a legalização do aborto?
Gonçalves - Não numa eleição majoritária. Candidatos a presidente, a governador, não tem que entrar nessas pautas. Quem tem que entrar, quem vai entrar, são os candidatos a cargos proporcionais. É esse o ponto. Até porque o presidente não pode fazer nada sobre isso. Presidente não pode legalizar o aborto. Isso é tarefa do Congresso Nacional. Um candidato a presidente tem que fugir dessas cascas de banana. Numa campanha majoritária você não quer só o voto da esquerda, você quer o voto da maioria da população.
O que aconteceu no Chile recentemente foi uma oportunidade imensa de mudar o sistema previdenciário e introduzir uma nova Constituição. A nova esquerda do Chile introduziu esses temas na reforma constitucional. O que aconteceu? 60% de rejeição.
Nós temos um Brasil de interior com muita gente que não tem a mentalidade das grandes cidades. E mesmo dentro das grandes cidades, nas periferias, há pessoas com um pensamento muito diferente do que se vê nas novelas, nos filmes, na arte… e eles são brasileiros.
O caminho é não falar e deixar isso para as representações legislativas. Houve eleição de representantes transsexuais para a Câmara Federal. Essas pessoas terão que levar debates, por exemplo, sobre se o SUS [Sistema Único de Saúde] poderá bancar cirurgias de mudança de sexo, fazer projetos de lei e, dentro da democracia do país, ou seja, no Congresso Nacional, levar isso à votação, que será aprovado ou não.
BBC News Brasil - Nesta segunda-feira (8/10), Lula afirmou ser contra o aborto e que a discussão sobre o assunto é "papel do Legislativo". O que achou do anúncio?
Gonçalves - Eu acho que é a declaração correta. Ele falou aquilo que ele pensa. Com toda certeza se outra pessoa declarasse isso seria cancelada para o resto da vida na internet. Mas como é o Lula não tem problema, ele pode falar.
BBC News Brasil - Qual é a visão do senhor como pastor sobre o casamento gay e a comunidade transsexual?
Gonçalves - Nós temos uma posição clara no nosso movimento dos Cristãos Trabalhistas que não somos contra a união civil de pessoas do mesmo sexo e a existência de qualquer pessoa. Isso são fundamentos do Estado laico. Não somos contra que possam estabelecer seus direitos previdenciários, de plano de saúde, tudo.
O que nós nos colocamos contra é uma imposição para que, dentro das igrejas, pastores sejam obrigados a efetuar o casamento religioso de pessoas do mesmo sexo. Eu acho que aí deve ser de acordo com a consciência de cada pastor. Tem igrejas que fazem e tem igrejas que não fazem. É uma questão teológica, doutrinária, que diz respeito à liturgia dentro de cada igreja, e elas devem ter essa independência, que é um pressuposto do estado laico.
As pessoas num estado laico são livres para o que anteriormente se via como escolha e hoje pode ter uma força biológica. Isso não é algo que a igreja tenha que se intrometer. Essas pessoas têm todo o direito de existir e ter a sua plena cidadania. Dentro do movimento a gente tem bastante respeito.
BBC News Brasil - Como o senhor vai se posicionar no segundo turno?
Gonçalves - O nosso movimento está para se reunir, mas a minha posição pessoal é de voto silente no Lula. E as minhas razões não são de cunho econômico ou social porque eu entendo que Lula e Bolsonaro têm o mesmo modelo. É por conta de que, embora eles causem mal ao país de maneiras diferentes, Bolsonaro introduziu o que a gente chama de uma seita pseudocristã chamada "bolsonarismo dentro da igreja". É um mal que ele causa à igreja, muito maior do que o mal que, de maneira abstrata, Lula poderia causar. O mal do Bolsonaro é concreto porque tem entrado na estrutura da igreja usando símbolos cristãos em nome do poder. Não há como não me posicionar contra ele. E o que tem hoje contra ele é o Lula. Então, a minha posição é o voto em Lula.
*Texto publicado originalmente no site BBC News Brasil. Título editado
Nas entrelinhas: Os Brasis que vão às urnas com Lula e Bolsonaro no segundo turno
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o presidente Jair Bolsonaro (PL), que disputarão o segundo turno das eleições no dia 30 de outubro, alcançaram 48,43% e 43,20% dos votos no primeiro turno, respectivamente. Lula venceu em 14 estados; e Bolsonaro, em 12, além do Distrito Federal. Esse resultado revela uma profunda divisão do país, que também ocorreu em eleições anteriores.
O petista ficou com a maioria dos votos em todos os estados do Nordeste, enquanto Bolsonaro teve maior adesão em todos os estados do Sul e Centro-Oeste. As regiões Sudeste e Norte ficaram divididas. No Sudeste, Lula venceu em Minas Gerais, mas perdeu nos outros três estados. No Norte, quatro estados ficaram com o ex-presidente; e três, com o atual, entre os quais o Pará.
Há muitas leituras para essa divisão entre os Brasis meridional e o setentrional, principalmente o Nordeste. Uma delas é a de que o Brasil moderno apoia Bolsonaro, enquanto o atraso está firme com Lula e não abre. Esse tipo de interpretação já se traduziu numa guerra suja de memes nas redes sociais, na qual o preconceito contra os nordestinos revela uma xenofobia estranha e perigosa para a coesão social e a unidade nacional.
Xenofobia é a hostilidade e o ódio contra pessoas por elas serem estrangeiras ou por serem enxergadas como estrangeiras, como às vezes acontece com os nordestinos no Sul do país. Esse sentimento já foi muito comum no Rio de Janeiro, contra os “paraíbas”, e em São Paulo, em relação aos “baianos”, como eram chamados de forma generalizada, durante o processo de urbanização e industrialização do país, que atraiu para essas metrópoles grande número de migrantes, que fugiam da miséria, da fome e da seca do Nordeste. Em Brasília, a expressão “candango”, que era pejorativa em relação aos que trabalharam na construção da nova capital, porém, virou sinônimo de brasiliense.
Autor de Casa Grande & Senzala, o sociólogo Gilberto Freyre foi muito contestado por estabelecer como padrão para a formação do patriarcado brasileiro a composição étnica do Nordeste brasileiro, principalmente de Pernambuco. Em resposta, na conferência “Continente e ilha”, apresentou sua tese de que nos desenvolveríamos social e culturalmente em ilhas, e essas ilhas, em arquipélagos, ou numa enorme ilha-continente. Segundo Freyre, na América Portuguesa haveria uma base cultural lusitana e cristã que nos daria unidade, e, por consequência, seria a chave da brasilidade.
“Desculturização”
Freyre destacou que o “processo sociológico de povoamento” do Sul do país, a partir de Porto Alegre, se desdobrou em dois sentidos: no de ilha e no de continente. Ressaltou, ainda, as contribuições italianas e alemãs à cultura nacional, que chamou de “valores neobrasileiros”, mas que só ganham espaço na medida em que são assimilados pela cultura nacional. Quanto a isso, chamou atenção para o “pangermanismo”, que representaria uma ameaça real, que viria a ser duramente combatida por Getúlio Vargas após o Brasil entrar na guerra contra o Eixo.
Os sentimentos de continente e de ilha seriam antagonismos constitutivos do Brasil e estariam em equilíbrio, uma vez que o contrário disso nos sujeitaria “(…) a uma verdadeira guerra civil, na sua psicologia social e dentro de sua cultura”. É mais ou menos o que está ocorrendo neste momento de radicalização política.
Por outro lado, essa xenofobia reflete um processo regressivo de “desculturização”, que outro genial intérprete do Brasil, Darcy Ribeiro, atribuiu à crueldade, à rigidez e ao autoritarismo com que se deu a associação entre negros, índios e brancos no processo de colonização e que se reproduz em razão do nosso deficit educacional e atraso cultural, inclusive das elites econômicas.
Segundo Darcy Ribeiro, foi dentro dos cenários regionais que a busca de si mesmo se fez necessária para se iniciar o nosso processo civilizatório. A “humanidade” renasceria da extinção de povos, com suas línguas e culturas próprias e singulares, a partir do surgimento de macroetnias maiores e mais abrangentes. Darcy registra a existência dos Brasis “crioulo”, “caboclo”, “sertanejo”, “caipira” e “sulino”, facilmente identificados, por exemplo, na nossa cultura popular, mas que também têm expressão na forma como se faz política nas diferentes regiões do país.
De certa forma, Lula e Bolsonaro se identificam com maior ou menor facilidade com cada um desses Brasis. Ou seja, a divisão política e ideológica do país tem uma dimensão antropológica que precisa ser levada em conta para que possa ser superada, condição para a construção de qualquer projeto de futuro em bases democráticas e que busca a superação de nossas desigualdades e iniquidades sociais.
Revista online | Quilombos Urbanos: Identidade, resistência e patrimônio
Wanessa Sabbath*, especial para a revista Política Democrática online (48ª edição: outubro/2022)
Nosso país é plural em diversidade natural, cultural, religiosa e o papel de qualquer liderança em nosso país vem com a responsabilidade de abranger e respeitar todos os povos, entre eles, os povos originários indígenas e quilombolas. Diferente do conceito civilista de propriedade privada, quilombos e aldeias são porções de terra do território nacional habitadas por uma ou mais etnias como os indígenas e quilombolas.
Esses povos originários abrangem suas atividades produtivas para sustento próprio, como plantio de alimentos, confecção de artesanatos para além de garantir seu bem-estar, necessário à reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições que são guardados e mantidos a séculos. Além do zelo imprescindível à preservação dos recursos naturais, nossos povos têm por costume manter uma relação muito mais saudável e sustentável de contato com a natureza – bem como os patrimônios diversos construídos pelas mãos dos nossos antepassados.
Veja todos os artigos da edição 48 da revista Política Democrática online
Os quilombos são exemplos de respeito e acolhimento da diversidade, local onde existiam africanos e indígenas de diferentes etnias, bem como representantes de diferentes povos de resistência comungando do mesmo espaço, onde o respeito e a preservação das histórias e costumes de cada um constitui a base das vivências.
"É um direito humano e universal a vida, a liberdade e a segurança pessoal sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”. Esses e outros artigos estão, na íntegra, publicados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro de 1948.
É por isso que, como brasileiros, diversos, plurais, nos cabe esse papel de refletir. É por isso também que devemos fazer esse resgate diário sobre o que é o nosso país e quem somos.
Confira, a baixo, galeria de imagens:
O Brasil é um imenso Quilombo!
O quilombo é o epicentro do fenômeno da quilombagem, que foi organizado e dirigido pelos próprios africanos escravizados durante o escravismo brasileiro em todo o seu território. Um verdadeiro movimento de mudança social provocado, que desgastou significativamente o sistema escravista, social, econômico e militar, contribuindo para a crise do escravismo, que mais tarde foi substituído pelo trabalho “livre”. Os quilombos foram muito mais do que esconderijos de povos de resistência: foram, com certeza absoluta, a maior forma de protesto, luta e resistência contra o sistema escravista e um espaço onde os pretos puderam desenvolver seus costumes e reafirmar sua identidade. Estes espaços de resistência não ocorreram apenas nas áreas rurais, existem muitos relatos da existência também em áreas urbanas. Esses locais ou eram cômodos e casas coletivas no centro da cidade ou núcleos semi-rurais. Vale ressaltar que importantes núcleos negros nasceram desse tipo de configuração.
No final do século XIX, quando muitas mudanças ocorriam no Brasil, como a “abolição” formal da escravatura, e a adesão ao regime político republicano, a cidade de São Paulo se consolidava com a mudança de ricos fazendeiros da lavoura de café. Os cafeicultores foram morar nas regiões da Avenida Paulista, Campos Elíseos e Higienópolis, trazendo consigo pretos escravizados e trabalhadores domésticos “livres”, que foram residir próximo aos seus senhores e patrões em residências coletivas conhecidas como Quilombos Urbanos ou Irmandades Negras, na área central da cidade.
Sobre a autora
*Wanessa Sabbath é cantora, compositora, atriz e fundadora da @casaamarelaquilombo, ocupação cultural que visa abrir espaço à cultura afro-brasileira integrando as periferias ao centro da cidade utilizando a arte como transformador social.
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de outubro de 2022 (48ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
Leia também
Revista online | E agora, Darcy?
Acesse todas as edições (Flip) da Revista Política Democrática online
Acesse todas as edições (PDF) da Revista Política Democrática online
Chomsky: PT tem que lembrar que apoio de artista e reunião em universidade não ganham eleição
Mariana Sanchez*, BBC News Brasil
Pela janela, Noam Chomsky, de 93 anos, assiste à motociata pró-Bolsonaro rasgar a rua, preenchendo o ambiente com bandeiras verde e amarelas e o ronco alto dos motores das motocicletas.
Ativista político que se autodenomina um socialista libertário, Chomsky diz seguir "com grande interesse" aquela que tem sido descrita como a eleição mais tensa no país desde a redemocratização. Suas reflexões, ele ressalta, não são as de um especialista. "Não me leve muito a sério", diz, antes de emendar observações afiadas sobre a política brasileira.
Chomsky nota que, se as motociatas de Bolsonaro têm ocupado espaços públicos ao redor do Brasil, o mesmo não tem acontecido com a campanha do petista Luiz Inácio Lula da Silva, que tenta voltar à presidência e impedir que o atual presidente conquiste mais quatro anos no Palácio do Planalto. Para o pensador, a esquerda deixou de ocupar as ruas de modo organizado.
"No Brasil, minha impressão é que o PT simplesmente falhou nos últimos 20 anos em se organizar como movimento de base. Então, só para ilustrar, a gente conversa com as pessoas e as pessoas não sabem que se beneficiaram dos programas que o Lula criou, não sabem que ele foi o responsável por seus filhos poderem entrar na faculdade, por terem conseguido abrir um pequeno negócio. É Deus, é sorte, ou algo assim. Não o PT", aponta Chomsky.
Segundo ele, assim como o partido Democrata nos Estados Unidos, o PT se afastou do trabalhador, do mais pobre. Ao abraçar agendas neoliberais, perdeu a conexão histórica com seu eleitorado. E isso abriu espaço para que movimentos de direita radical capturassem essa audiência.
"(O PT vai fazer) uma grande reunião do partido para tentar responder ao que aconteceu (no primeiro turno), uma reunião na universidade, onde estarão artistas e escritores. Enquanto isso, as pessoas comuns (seguem) dizendo (sobre o PT): 'nos livramos dos bandidos'", avalia Chomsky, que conversou com a BBC News Brasil, por vídeo chamada, na tarde de segunda-feira (03/10), menos de 24 horas após a definição de segundo turno entre Lula, que conquistou 48,43% dos votos válidos, e Bolsonaro, com 43,20% dos votos.
Segundo Chomsky, um defensor incondicional da liberdade de expressão, a falta de capilaridade de base do PT e da esquerda brasileira explica a eficácia que têm algumas fake news na campanha, como a de que Lula planeja fechar templos religiosos.
"Se você tivesse um partido político ou qualquer organização geral defendendo os trabalhadores e os pobres, eles poderiam reagir a isso (fake news) na base, via organização local. Os Democratas não têm. E acho que não existe nada parecido no Brasil. O PT simplesmente não está se organizando na base, no chão de fábrica", afirma Chomsky.
O filósofo, aposentado pelo Massachussets Institute of Technology (MIT) e atualmente professor da Universidade do Arizona, afirma que pautas como o aborto e o armamento civil são estratégias diversionistas para que a população mais pobre não perceba que as políticas econômicas dos governos são desfavoráveis a seus interesses. E afirma que o "pior crime de Bolsonaro é destruir a Amazônia", algo que pode colocar em risco a sobrevivência da humanidade como um todo.
Chomsky vê muitos paralelos entre a política nos EUA e no Brasil: desde o erro das pesquisas eleitorais ao medir as performances dos candidatos populistas de direita ao risco de uma repetição da invasão do Capitólio à brasileira.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Noam Chomsky à BBC News Brasil, editada por concisão e clareza.
BBC News Brasil- Como o senhor avalia o quadro político do Brasil hoje, à luz dos resultados do primeiro turno, que mostraram Lula a 1,5 ponto percentual de ganhar no primeiro turno mas com Bolsonaro apenas 5 pontos percentuais atrás dele, mostrando um vigor que as pesquisas não detectaram e que surpreendeu muita gente?
Noam Chomsky - Em primeiro lugar, isso é apenas uma parte do quadro político. Tem outra parte que eu acho ainda mais reveladora, que é que os candidatos de direita, os candidatos de Bolsonaro, realmente varreram a maior parte do Brasil muito além do que se esperava para o Congresso e entre os governadores.
E foi bastante surpreendente ver o que aconteceu com as pesquisas, dá pra supor que é bastante semelhante ao que está acontecendo nos Estados Unidos (onde as pesquisas demonstraram erro fora do esperado em antever a votação trumpista). Eles foram exatos em Lula, quase precisos. Mas subestimaram muito Bolsonaro e também seus candidatos.
Isso é exatamente o que acontece com Trump. As pesquisas subestimam o apoio popular a ele e aos que ele apoia. E suspeito que o motivo seja o mesmo. A parte da população que está inclinada a votar em Trump ou Bolsonaro provavelmente é tão anti-elite que não confia nos pesquisadores, acha que eles fazem parte dessa conspiração de esquerda que está tentando destruir a família, a igreja. Eles simplesmente não respondem. Eu não ficaria surpreso se o mesmo estivesse acontecendo aqui.
Houve uma tonelada de publicidade negativa nos anúncios da campanha de Bolsonaro em relação ao Lula. "Livre-se do ladrão". "Livre-se da corrupção". "Eles estão apenas roubando você". E a impressão que dá ao falar com as pessoas nas ruas é que isso teve um grande efeito. Que o grupo de Bolsonaro seja corrupto até o pescoço não é o que as pessoas têm ouvido ou captado no WhatsApp. Então, o papo das pessoas conversando na rua é 'vamos nos livrar dos corruptos, dos ladrões'. Novamente um fenômeno bastante semelhante tem acontecido nos Estados Unidos.
BBC News Brasil - Mas por que a esquerda não consegue reagir a isso?
Chomsky - O Partido Democrata, que você poderia supor ser a oposição (a Trump e aos republicanos nos EUA), na verdade praticamente se juntou à onda neoliberal no início dos anos 1980. Eles abandonaram a classe trabalhadora e os pobres apenas para seguir a guerra de classes de (Ronald) Reagan. Muito parecido com o Partido Trabalhista na Inglaterra, onde a piada era que Tony Blair havia se tornado uma versão light de (Margareth) Thatcher.
O resultado final é que esse público não é de ninguém. Não há nenhum partido político que esteja de fato defendendo os direitos e interesses dos trabalhadores, dos pobres. Eles (os trabalhadores e os pobres) são facilmente desviados para outras preocupações quando alguém como Trump, nos EUA, aparece no palco segurando em uma mão dizendo uma faixa que diz "eu te amo" enquanto que com a outra mão, ele te apunhala pelas costas. Eles apenas olham para o "eu te amo", não para o programa de governo.
No Brasil, minha impressão do que aconteceu é que o PT simplesmente falhou por 20 anos em se organizar na base. Então, só para ilustrar, a gente conversa com as pessoas e as pessoas não sabem que se beneficiaram dos programas que o Lula criou, não sabem que ele foi o responsável por seus filhos poderem entrar na faculdade, por você ter conseguido abrir um pequeno negócio. É Deus, é sorte, ou algo assim. Não o PT. Vimos isso em discussões pré-eleitorais de ativistas do partido, falávamos sobre como eles tiveram um grande apoio de artistas e de alguns movimentos sociais, mas não são essas pessoas que vão votar e vencer a eleição. Na verdade, (minha esposa) acabou de me dizer que haverá uma grande reunião do partido para tentar responder ao que aconteceu (no primeiro turno), uma reunião na universidade, onde estarão artistas e escritores. Enquanto isso, as pessoas comuns (seguem) dizendo que nos livramos dos bandidos. Essa é uma observação superficial, mas essa é a impressão que tenho há muitos anos.
BBC News Brasil - A direita radical tem ganhado terreno entre grupos que antes eram considerados esquerdistas, como trabalhadores sindicalizados, os mais pobres. Esse é inclusive um objetivo declarado deles, como disse recentemente Steve Bannon à BBC News Brasil. Por que isso está acontecendo?
Chomsky - Devo dizer que, embora acompanhe de perto os assuntos brasileiros, não estou intimamente envolvido neles, então posso dar apenas julgamentos superficiais. Mas me parece muito com o que aconteceu nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha. Então, vamos dar uma olhada nos Estados Unidos: o chamado neoliberalismo não tem praticamente nada a ver com mercados ou qualquer coisa assim, é apenas uma guerra de classes massiva e selvagem, muito concentrada e bem planejada, o capitalismo selvagem em seu extremo.
Na década de 1970, o mundo dos negócios viu uma oportunidade de reverter as odiadas medidas do New Deal, as medidas social-democratas, que eram significativas. Eles foram fortemente apoiados por alguém como (o presidente americano republicano Dwight) Eisenhower, mas a comunidade empresarial nunca gostou e, no início dos anos 1970, houve uma crise econômica e uma oportunidade para os empresários de basicamente ir na jugular dessas medidas e lançar uma grande guerra de classes. Reagan embarcou. Margareth Thatcher, na Inglaterra, fez o mesmo. Tanto eles quanto seus conselheiros pelo menos entenderam que era apenas uma guerra de classes. A primeira coisa que fizeram foi ir atrás de destruir os sindicatos. Esse é o único mecanismo de defesa que os trabalhadores têm, isto está bem compreendido ao longo de mais de um século. Você tem que destruir os sindicatos se quiser levar a cabo uma guerra de classes. Divida a população e faça com que ela se desvie, se afaste das questões econômicas. Não queremos que olhem para isso porque estamos apunhalando-na pelas costas. Em vez de olhar para a economia, olhe para o aborto ou para armas ou qualquer coisa.
Isso começou com (o republicano) Richard Nixon com o que foi chamado de Estratégia do Sul (um discurso político que explorava eventuais episódios de violência em protesto antirracismo e advogava pela insegurança da população branca nas cidades), quando ele percebeu que podia conquistar os democratas do Sul que se opunham aos direitos civis (dos negros), apresentando-se como o partido racista.
Claro, Nixon não dizia: 'sou racista'. O que fazia era dar indicações, os chamados apitos de cachorro, que são códigos para fazer as pessoas entenderem que você está do lado da supremacia branca. E no momento em que chega a Reagan, não eram nem apitos de cachorro, era um racista aberto.
Ao mesmo tempo, os republicanos foram percebendo que se fingissem ser contrários ao aborto - apenas fingissem - poderiam ganhar o enorme voto evangélico. Se a gente voltar para a década de 1960, os líderes do Partido Republicano eram pró-escolha da mulher. Reagan, George H. W. Bush faziam parte basicamente dos apoiadores de Roe versus Wade (a decisão da Suprema Corte que liberou o aborto em todos os EUA até ser derrubada pela Corte este ano). Reagan, como governador da Califórnia, passou uma das leis mais abrangentes para garantir o acesso ao aborto (em 1967). Os estrategistas do Partido Republicano de meados dos anos 1970 que perceberam que, se fingissem ser anti-aborto, poderiam obter o enorme voto evangélico e o voto católico do norte. E num estalar de dedos, todos eles se tornaram apaixonadamente anti-aborto.
Isso está acontecendo agora no Brasil, o grande voto evangélico vai para Bolsonaro também. Novamente, (a estratégia de investir nas) questões culturais. Você olha para as eleições de 2018 no Brasil, nas quais suspeito que Steve Bannon esteve muito envolvido, e as mensagens que vinham no WhatsApp, que é o que a maioria das pessoas olham, é que o PT ia destruir as igrejas, ia transformar seus filhos em homossexuais e assim por diante. Esse é o problema. Desta vez, eles são todos ladrões corruptos que atacam a igreja, e por aí vai. Se você tivesse um partido político ou qualquer organização geral defendendo os trabalhadores e os pobres, eles poderiam reagir a isso (fake news) na base, via organização local. Os Democratas não têm. E acho que não existe nada parecido no Brasil. O PT simplesmente não está se organizando na base, no chão de fábrica. O que eles estão fazendo é como quando os democratas nos Estados Unidos se reúnem para ir a uma das festas chiques de (Barack) Obama, onde podem ouvir Beyoncé cantando e discutir. Se os republicanos querem apelar à classe trabalhadora, o que eles fazem é mandar que George W. Bush vá a um bar e peça uma cerveja e finja ser um "Zé" da classe trabalhadora comum. O que os democratas fazem: John Kerry vai praticar windsurf. Isso realmente não vai agradar aos trabalhadores. O PT e os Democratas se tornaram partidos de pessoas abastadas, que vão às universidades discutir o que fazer. E aí já está perdido.
De outro lado, os republicanos estão já bastante esgotados com os seus principais apoiadores, os setores corporativos, que não gostam deles. Assim como a classe empresarial no Brasil não gosta da vulgaridade e crueldade de Bolsonaro. Mas ainda assim, os dois grupos acham melhor isso do que ter outro petista ou democrata no poder.
BBC News Brasil - O senhor está traçando muitos paralelos entre os EUA e o Brasil. Há quem acredite que o país pode viver uma situação como o 6 de janeiro de 2021, quando trumpistas invadiram o Capitólio pra contestar os resultados eleitorais. O senhor vê esse risco no Brasil?
Chomsky - O tumulto das motociatas do Bolsonaro dão uma ideia do que poderia ser. E olha que era apenas um desfile pelas ruas da cidade. Acho que os próximos serão meses muito difíceis. Bolsonaro fez declarações alegando possíveis fraudes tão extremas que a comunidade diplomática internacional se opôs fortemente. Então eu acho que eles vão se abster desse tipo de movimento. Mas é perfeitamente possível que eles possam replicar o 6 de janeiro. Lembre-se, o 6 de janeiro chegou muito perto de um golpe e só não o foi porque meia dúzia de pessoas decidiram diferente. Teria sido um golpe se (o vice de Trump) Mike Pence e (o então líder da maioria no Senado) Mitch McConnell estivessem dispostos a ver o sistema democrático formal derrubado. Foi muito perto.
Se aconteceu nos EUA, há um risco muito grande de que aconteça no Brasil. O país está obviamente muito dividido e Bolsonaro está despejando armas na mão de pessoas que se organizariam facilmente para dar um golpe. Não é preciso muita imaginação para pensar que os mesmos que participam da motociara também poderiam pegar em armas se for o caso. Como Trump, Bolsonaro disse muito explicitamente que ele não vai ser derrotado, quem sabe o que ele quer dizer?
BBC News Brasil - Se Lula vencer, o que ele deveria fazer em seu terceiro mandato?
Chomsky - Bom, a essa altura está meio tarde, mas eles precisam começar a se organizar entre a população em geral. Não basta ter artistas do seu lado, ou ter acadêmicos, é preciso sair às ruas e se organizar para realmente ter forças populares reais ali.
Não é que faltem pessoas (nesse campo da esquerda). Houve grandes manifestações populares (contra Bolsonaro), mas meio espontâneas. Eu não acho que eles tinham uma organização unificada ou um conteúdo político direto, exceto o "fora Bolsonaro" ou algo assim. Isto não é suficiente.
BBC News Brasil - Como o governo Bolsonaro se compara ao de Trump?
Chomsky - Uma das semelhanças é voltar a atenção do público para outro lugar. Essa técnica de apontar pro outro lado e gritar 'olha lá o ladrão', pra se livrar de questionamento sobre o aumento da fome e da pobreza, sobre as mortes da pandemia.
Mas o pior crime de Bolsonaro, não só para os brasileiros, mas para o mundo inteiro, é destruir a Amazônia. Mais alguns anos com o atual avanço da extração ilegal da madeira, do agronegócio e da mineração e chegaremos em pontos de inflexão irreversíveis, no qual a floresta se converte em savana. Sabe-se que isso acontecerá mais cedo ou mais tarde, mas essa possibilidade se aproximou muito por causa desses ataques destrutivos. É um desastre para o Brasil, uma catástrofe para o mundo inteiro. Em vez de tratar disso, vamos fazer campanha em outra coisa: 'olha aí, os ladrões do PT, tentando enganá-lo', 'eles vão destruir a família', 'vão atacar a igreja cristã'. Enquanto isso, nos aproximamos mais e mais do ponto em que não vamos mais sobreviver.
*Texto publicado originalmente na BBC News Brasil
Nas entrelinhas: Adesismo e derrota na federação PSDB-Cidadania
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
A coligação PSDB-Cidadania elegeu 18 deputados, de uma bancada de 29 parlamentares. Os tucanos eram 22, agora são 13. Os “cidadânios”, digamos assim, eram sete, e agora são cinco. A coligação foi feita para consolidar a hegemonia interna dos deputados paulistas de ambas as legendas, em torno da candidatura à reeleição do governador Rodrigo Garcia, que não chegou ao segundo turno. À época, o candidato do PSDB era o governador João Doria, candidato à Presidência, mas havia uma conspiração armada para defenestrá-lo tão logo se desincompatibilizasse do cargo para disputar a eleição.
No começo, Doria não acreditou que isso poderia ocorrer, mas levou um xeque-mate tão logo Garcia assumiu controle pleno do Palácio dos Bandeirantes. O vice que assumira o governo fazia a política municipalista, enquanto Doria se digladiava com o presidente Jair Bolsonaro (PL) durante a pandemia, diga-se de passagem, em defesa da causa mais justa naquele momento: a política de distanciamento social e a corrida para produção de vacinas.
O governador foi vitorioso do ponto de vista da política sanitária, mas a superexposição aumentou sua taxa de rejeição no plano eleitoral. Garcia era um articulador suave, que conquistou o apoio da maioria dos prefeitos e da bancada tucana. Conduziu com competência a operação de cerco e aniquilamento de seu padrinho político no partido.
O PSDB não queria Doria como candidato, ou melhor, não queria ter candidato algum à Presidência. Isso seria um estorvo para a maioria da sua bancada federal, que estava grudada como bigode no Centrão, ou seja, na boca do Orçamento Secreto, mas do lado de fora do governo Bolsonaro.
A federação com o Cidadania facilitava a montagem das chapas proporcionais e trazia um aliado para disputa contra Doria. A preferência do Cidadania era o governador gaúcho Eduardo Leite, que jogou a toalha na disputa com Doria, ao perceber que os paulistas também não queriam que fosse candidato. Para o Cidadania, a federação resolveria suas dificuldades para ultrapassar a cláusula de barreira e poderia garantir a sobrevivência do partido, que sucedeu o antigo PPS (ex-PCB).
A salvação da lavoura foi a candidatura de Simone Tebet (MDB), um dos raros produtos da alta política dessas eleições, que sobreviveu a todos os assédios para que retirasse seu nome da disputa. O presidente do Cidadania, Roberto Freire, obsessivo articulador de uma alternativa de centro democrático à polarização Lula x Bolsonaro, e o deputado Baleia Rossi, presidente do MDB, que bancou a candidatura, foram os artífices dessa empreitada. Simone fez uma bela campanha, apesar de “cristianizada” pelo MDB e pelo PSDB. O Cidadania investiu em sua candidatura, mesmo sem possibilidade de ir ao segundo turno, vislumbrando que seria uma aposta para o futuro, ou seja, para 2026.
O que deu errado? O maquiavelismo provinciano de Garcia e seus aliados, que não contavam com a força do presidente Jair Bolsonaro (PL) na alavancagem da candidatura de Tarcísio de Freitas (Republicanos), que virou o primeiro turno como franco favorito. Garcia ainda tentou desbancá-lo, fazendo pilhérias com o fato de o adversário não ser paulista e sequer saber onde ficava a seção eleitoral na qual votou. Mas não contava com o desgaste da longa permanência do PSDB no poder e das defecções que legenda sofreu desde quando Doria passou a controlar seu diretório regional. A mais importante foi a do ex-governador Geraldo Alckmin, que virou vice de Lula, mas houve outras, como a do ex-senador Aloysio Nunes Ferreira.
Troca-troca
O fato de o PT tratar Garcia como inimigo principal foi um equívoco grave, porque deixou Tarcísio solto e acabou empurrando toda a base do governador paulista para o colo do candidato que encarnava a polarização nacional. Isso criou as condições para que Garcia anunciasse apoio a Bolsonaro no segundo turno, para horror dos tucanos históricos, que estão vendo a legenda se transformar num partido meramente fisiológico. Com todos os seus defeitos, Doria tinha uma proposta programática social-liberal. Já o grupo liderado por Garcia não tem proposta alguma.
Liderado por Roberto Freire, o Cidadania tenta resistir ao arrastão bolsonarista em São Paulo, mas o líder da bancada na Câmara, Alex Manente, que se elegeu com grande votação, fez questão de marcar posição e anunciou que a bancada ficaria neutra na disputa nacional. A maioria apoiará a reeleição do presidente da República nos estados.
Entretanto, a legislação permite a troca de legendas dentro da federação, sem perda de mandato. Os dois partidos teriam mais nitidez se fizessem um troca-troca: quem apoia Lula no segundo turno fica ou vai para o Cidadania, quem apoia Bolsonaro permanece ou muda para o PSDB. Ou vice-versa. Seria mais coerente.
Nas entrelinhas: Segundo turno entre Lula e Bolsonaro não é nova eleição
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
É um lugar comum nas campanhas eleitorais, principalmente de parte de quem está perdendo, a tese de que o segundo turno é uma nova eleição. Há controvérsias. As forças em movimento são as mesmas, porém, os dois primeiros colocados operam forte atração sobre as demais, por expectativa de poder, motivação ideológica e/ou emocional. Isso provoca o realinhamento eleitoral, cuja resultante será a formação de uma maioria de votos válidos, que garante a consagração inequívoca do presidente eleito.
A eventual mudança de posição entre os dois candidatos é resultado da inércia da primeira votação e da eventualidade de o líder não se dar conta de que a sua estratégia está sendo superada pelo segundo colocado. Estamos falando do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e do presidente Jair Bolsonaro (PL), obviamente. O que ocorreu na reta final do primeiro turno, por isso, gera uma força de inércia que pode resultar numa troca de posições.
Na última semana da eleição, Lula perdeu posições e Bolsonaro avançou. Mais do que frustrar a expectativa petista de vitória no primeiro turno, o resultado da votação de domingo embalou a campanha de Bolsonaro e gerou perplexidade na campanha de Lula, ainda que ninguém queira passar recibo do que aconteceu. Com 96,93% das urnas apuradas, Bolsonaro recebeu 43,70% dos votos válidos, enquanto o Lula teve 47,85% dos sufrágios. Os candidatos Simone Tebet (MDB) e Ciro Gomes (PDT) obtiveram, respectivamente, 4,22% e 3,06% dos votos válidos.
Um bom exemplo dessa expectativa é a fotografia da manifestação petista na Avenida Paulista, no dia da eleição, com Lula ao lado da esposa Janja; da ex-presidente Dilma Rousseff; da presidente do PT, Gleisi Hoffman; do ex-senador Aloizio Mercadante e do seu vice, Geraldo Alckmin, quase um estranho no ninho. Era uma espécie de “Lula é meu e ninguém tasca”, armado na expectativa de que a eleição estava decidida. Entretanto, o resultado do primeiro turno exigia que o palanque fosse muito mais amplo.
Lembrei-me de certa passagem do romance Vida e Destino (Alfaguara), do escritor judeu ucraniano Vassili Grosman, que foi correspondente de guerra na Batalha de Stalingrado, na Segunda Guerra Mundial. A publicação do livro esteve proibida durante muito tempo e seu autor chegou a ser preso por causa dele. Grossman relata a experiência de guerra, os absurdos de seus efeitos sobre a vida das pessoas, com toda a inversão de valores que acarretou. Realista, mostra os bastidores da batalha no partidos e na antiga sociedade soviética. É uma descrição impressionante de como a resistência ao invasor alemão se transformou numa guerra patriótica, na qual o protagonismo popular foi decisivo na frente de batalha. Mas também desnuda o comportamento do aparelho partidário, que se recolhe à retaguarda e, no momento de virada da guerra, opera para colher os louros da vitória.
O palanque de Lula no domingo refletiu uma falsa expectativa, na qual não se levou em conta que a onda do voto útil havia se esgotado e fora protagonizada por formadores de opinião que já estavam no campo da esquerda. O alarido e a agressividade da campanha, porém, provocaram o voto útil reverso dos eleitores anti-petistas, que não desejavam votar em Bolsonaro, mas o preferem em relação a Lula.
É aí que mora o perigo de virada eleitoral logo no começo do segundo turno, porque a inércia desse movimento silencioso pode não ter se esgotado no dia da votação.
Alianças
O PT se movimenta em direção ao centro com dificuldades. Lula recebeu o apoio do PDT, com a aquiescência de Ciro Gomes, e do Cidadania, liderado por Roberto Freire, ambos duros desafetos, que ontem anunciaram formalmente o apoio a Lula no segundo turno. Esses apoios decorrem de um claro posicionamento contra Bolsonaro e não de uma negociação de ambos com o petista.
Lula espera obter o apoio de Simone Tebet, a candidata do MDB, com quem deve se encontrar para tratar dos termos do apoio. No dia da eleição, a senadora anunciou que não iria se omitir e aguardava um posicionamento firme do partido.
O deputado Baleia Rossi (SP), o presidente da legenda, que bancou sua candidatura, porém, deve anunciar a neutralidade do MDB. Houve uma forte mudança na composição da bancada, que passou a contar com maior participação de parlamentares bolsonaristas eleitos no Sul, Sudeste e Centro-Oeste, em contraponto aos representantes do Norte e Nordeste, aliados de primeira hora de Lula.
O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), no domingo anunciou seu apoio a Bolsonaro, que ontem recebeu a adesão do governador de Minas, Romeu Zema (Novo), que o visitou no Alvorada. Ele ficou neutro no primeiro turno, apesar de Lula apoiar o ex-prefeito de Belo Horizonte Alexandre Kalil (PSD).
O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), no domingo anunciou seu apoio a Bolsonaro, que ontem recebeu a adesão do governador de Minas, Romeu Zema (Novo), que o visitou no Alvorada. Ele ficou neutro no primeiro turno, apesar de Lula apoiar o ex-prefeito de Belo Horizonte Alexandre Kalil (PSD).
O governador de São Paulo, Rodrigo Garcia, que ficou fora do segundo turno, fechou o cerco ao anunciar, ontem, o apoio a Bolsonaro. O PSDB paulista apoiará Tarcísio de Freitas (Republicanos), candidato do presidente em São Paulo, mesmo tendo ele declarado que não deseja o apoio de Garcia. A. bancada do Cidadania, liderada pelo deputado paulista Alex Manente, que apoiará Tarcísio, anunciou neutralidade, contrariando a Executiva do partido.
Erika Hilton, Duda Salabert, Linda Brasil e Dani Balbi: deputadas trans eleitas
Nayara Fernandes, G1*
As deputadas federais Erika Hilton (PSOL -SP) e Duda Salabert (PDT-MG), e as deputadas estaduais Linda Brasil (PSOL), e Dani Balbi (PCdoB), eleitas no último domingo (2), serão as primeiras mulheres trans a ocupar a Câmara dos Deputados e a as assembleias legislativas de Sergipe e do Rio de Janeiro.
A candidatura de pessoas trans nas eleições saltou 44% entre 2018 e 2022, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais.
Antes de disputarem a Câmara dos Deputados, Hilton e Salabert também foram as primeiras vereadoras trans eleitas em São Paulo e Minas Gerais, respectivamente. As duas estão entre os 50 deputados federais mais votados em todo o Brasil.
Já a sergipana Linda Brasil (PSOL) será a primeira mulher trans a compor a Assembleia Legislativa de Sergipe com outros 23 eleitos, assim como Dani Balbi, no Rio de Janeiro.
Veja, a seguir, a trajetória política das deputadas.
Quem é Erika Hilton?
Primeira mulher trans eleita deputada federal por SP, Erika Hilton, de 29 anos, foi a 17ª deputada federal mais votada em todo o Brasil. Em entrevista ao g1, Erika falou sobre a importância da conquista para a população trans e travesti.
"Me sinto dando um grito de desespero daquelas e daqueles que sempre foram sub-representados, tratadas como cidadãs de segunda classe neste país e que agora retomam para tentar reconstruir a nossa cidadania e a nossa dignidade", celebrou a deputada.
Erika Santos Silva ocupou seu primeiro cargo político em 2018 como codeputada estadual pela Mandata Ativista, o primeiro mandato coletivo do estado paulista, na Assembleia Legislativa (Alesp).
Em 2020, Erika Hilton se tornou a primeira vereadora trans eleita na capital paulista, com 50.508 votos. Ela também foi a mulher mais votada para o cargo naquele ano.
Duas atuações marcantes de Erika como vereadora foram como presidente da Comissão Extraordinária de Direitos Humanos e Cidadania e como presidente da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Violência Contra Pessoas Trans e Travestis.
Quem é Duda Salabert?
Duda Salabert é a primeira trans da história da Câmara Municipal de BH e foi a vereadora eleita com mais votos em 2020. — Foto: Reprodução / Facebook de Duda Salabert
Com mais de 208 mil votos, Duda Salabert (PDT) é a primeira deputada federal trans na história de Minas Gerais. Ela ficou em 39º lugar na lista dos 50 deputados mais votados nas eleições de 2022.
Em 2020, Duda Salabert foi eleita a primeira vereadora trans em Belo Horizonte, tornando-se a mais votada da história da capital mineira, com 37.613 votos.
Quem é Linda Brasil?
Primeira mulher trans a ocupar o cargo de deputada estadual no Sergipe, Linda Brasil também foi a primeira vereadora trans de Aracaju. Ela disputou os cargos de vereadora e deputada estadual em 2016 e 2018.
Quem é Dani Balbi?
Professora e doutora em ciência da literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Dani Balbi é a primeira parlamentar transexual a ocupar um cargo na Alerj e teve mais de 65 mil votos. Entre suas propostas voltadas para a comunidade LGBTQIA+, a deputada estadual defende a implantação de cotas para transexuais nas universidades do Rio de Janeiro.
*Texto publicado originalmente no G1
Lula precisa dar guinada ao centro se quiser governar, dizem economistas
Alexa Salomão, Folha de S. Paulo
Logo após a contagem dos votos no primeiro turno das eleições neste domingo (2), o presidente Jair Bolsonaro (PL) atribuiu o resultado a sua bem-sucedida estratégia na economia, que elevou o valor do Auxílio Brasil, ao mesmo tempo em que reduziu o preço dos combustíveis e a inflação às vésperas do pleito. Economistas que acompanham a cena política discordam.
A economia até pode ter ajudado um pouco, como ocorre em qualquer eleição. No entanto, analistas atribuem a arrancada bolsonarista ao avanço da uma onda conservadora —e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vai precisar se adaptar a esse movimento para ganhar a eleição e, depois, governar com um Congresso mais a direita.
Terminada a contagem, Lula recebeu 48,4% dos votos válidos, resultado dentro da margem de erro sinalizada pelas pesquisas. Bolsonaro teve 43, 22%, uma diferença de quase sete pontos percentuais, que fortalece o presidente no segundo turno.
"Para ocorrer essa diferença no resultado do Bolsonaro em relação às pesquisas, cujos votos foram subestimados vergonhosamente, [o motivo] não foi a economia —o que estamos vendo é uma onda conservadora", afirma a economista e advogada Elena Landau, que coordenou o programa econômico de Simone Tebet (MDB).
"Tem o astronauta Marcos Pontes virando senador por São Paulo, Hamilton Mourão ganhando no Rio Grande do Sul, Magno Malta voltando pelo Espírito Santo, Eduardo Pazuello, o ex-ministro da Saúde, como deputado federal mais votado no Rio. Isso não tem nenhuma relação com a economia."
Elena sai satisfeita com o resultado de sua candidata. "Simone foi de completa desconhecida à terceira mais votada", afirma. No entanto, ela se declara muito preocupada com os futuros efeitos do conservadorismo em duas áreas específicas, caso Bolsonaro se reeleja: o meio ambiente e o STF (Supremo Tribunal Federal).
"O próximo presidente poderá indicar dois ministros para o Supremo", diz ela. "Imagine o efeito disso."
Elena aguarda a posição de sua candidata no segundo turno, que deve ser divulgada até terça-feira. Se Simone apoiar Lula, existe a expectativa de que parte de suas propostas para a economia possa ser levada para o PT.
O economista Nelson Marconi, que atuou na coordenação econômica nas campanhas de Ciro Gomes (PDT) em 2018 e 2022, também não acredita que a melhora da economia explique o resultado.
"No levantamento que encomendamos, dá para ver que o governo Bolsonaro injetou cerca de R$ 450 bilhões na economia neste segundo semestre, com medidas em diferentes áreas, então, as pesquisas teriam de estar muito erradas para não captarem isso antes", diz Marconi. "Acredito que ocorreu outro movimento, mais ligado a agenda dos costumes."
Marconi garante que o seu candidato não vai apoiar Bolsonaro, mas ainda não tem uma definição sobre um eventual apoio a Lula.
O economista Edmar Bacha, um dos pais do Plano Real, espera uma reação petista nos próximos dias. "Lula precisa dar uma guinada dramática ao centro se quiser segurar essa onda conservadora", diz Bacha, histórico apoiador do PSDB que participou da campanha de Tebet para "ajudar na construção da terceira via".
Para o economista, Lula precisa atuar para fortalecer sua coalizão no segundo turno.
Membro da Academia Brasileira de Letras, Bacha tem forte atuação nos bastidores do debate econômico como sócio-fundador do Casa das Graças, um instituto de estudos de política econômica no Rio de Janeiro voltado à promoção de debates sobre o desenvolvimento do Brasil. Neste ano, no entanto, preocupado com os rumos da política, assumiu uma posição mais pública.
Bacha diz que o primeiro passo do PT é concentrar esforços em São Paulo, onde Fernando Haddad (PT) chega ao segundo turno com 35,70% dos votos válidos, abaixo do que previam as pesquisas. O ex-ministro de Infraestrutura, Tarcísio de Freitas (Republicanos), apoiado por Bolsonaro, terminou o primeiro turno na frente, com 42,32%.
"Foi isso que fez a diferença para Bolsonaro, e será preciso reverter essa situação", afirma ele.
Petista histórico e ex-ministro do Planejamento e da Fazenda, o economista Nelson Barbosa, costuma estar em campos opostos aos colegas egressos do PSDB. Desta vez, porém, concorda com a importância das alianças mais amplas.
"Pelo aspecto político, o resultado indicou que Lula estava certo em construir uma frente ampla, pois só assim há chance de derrotar Bolsonaro", afirma Barbosa, que é colunista da Folha.
No segundo turno, Barbosa acredita, essa frente será mais ampla, com colaboração de pessoas que apoiavam Tebet e Ciro.
O economista Arminio Fraga, ex-presidente do BC (Banco Centra) e colunista da Folha, destaca que uma revisão na estratégia do PT é importante também por causa do perfil que a eleição deu ao Legislativo. "Bolsonaro sai muito forte no Congresso", diz ele. "Erros monumentais precisam ser corrigidos."
Cartas pró-democracia são lidas na Faculdade de Direito da USP
O PL de Bolsonaro ganhou ao menos 23 deputados, chegando a 99. Tornou-se a maior bancada eleita na Câmara nos últimos 24 anos. A sigla terá praticamente um em cada cinco votos , consolidando-se como um ator essencial nas negociações políticas entre os deputados. Terá praticamente um em cada cinco votos entre os deputados, consolidando-se como um ator essencial nas negociações políticas.
Um terço do Senado foi renovado, e.o resultado também consolida o PL como a maior bancada. Terá 14 cadeiras, 5 a mais do que tinha no primeiro semestre deste ano, e ainda pode chegar a 15. Entre os eleitos estão ex-ministros bolsonaristas, como Damares Alves (Republicanos-DF) e Rogério Marinho (PL-RN).
Sócio-fundador da Gávea Investimentos, Fraga prefere a a discrição e não gosta de exposição pública. Neste ano, porém, à medida que o cenário político ficava mais tenso, aderiu a movimentos de apoio ao equilíbrio institucional.
Em agosto, numa atitude inédita, discursou no evento da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da USP (Universidade de São Paulo), em que foi lançado um manifesto de apoio à democracia.
O economista Bernard Appy, que foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda na gestão de Lula, chama a atenção para a necessidade de alianças mais conservadoras para exercer o governo em caso de vitória.
"Será preciso levar a coalizão mais para o centro não apenas para ganhar a eleição, mas para garantir a governabilidade em caso de vitória", afirma ele. "Há muito a ser feito, em várias áreas, principalmente na economia, que depende do Legislativo."
Diretor do CCiF (Centro de Cidadania Fiscal), Appy integra o Grupo de Seis, que redigiu propostas de reformas para os presidenciáveis em diferentes áreas. Também fazem parte os economistas Francisco Gaetani, Marcelo Medeiros e Pérsio Arida, o professor Carlos Ari Sundfeld (FGV Direito SP) e o cientista político Sérgio Fausto. Eles redigiram uma proposta de governo com reformas, entregue aos presidenciáveis
*Texto publicado originalmente na Folha de S. Paulo
Sônia Guajajara: São Paulo elege sua primeira deputada indígena
Brasil de fato*
São Paulo elegeu, neste domingo (2), a primeira deputada federal indígena. Sônia Guajajara (PSOL) foi eleita para o cargo com 156.695, junto a outros 69 novos parlamentares que irão representar o estado paulista na Câmara dos Deputados.
No Congresso, Guajajara irá somar o coro de parlamentares da esquerda em defesa do meio ambiente e de comunidades indígenas.
No Twitter, a parlamentar eleita comemorou. "São Paulo, nós conseguimos! A primeira mulher indígena eleita como deputada federal por SP vai aldear o Congresso Nacional. Muito, muito obrigada pela confiança! Vamos aldear mentes e corações, e construir um novo Brasil. Seguimos juntes!"
Compromisso de campanha
O material utilizado durante a campanha reforça que a sua grande pauta é “trazer as vozes dos povos originários e historicamente oprimidos e silenciados ao centro do debate político brasileiro: Indígenas, população negra, caiçaras e quilombolas”.
“Suas principais bandeiras são a defesa da Amazônia e da Mata Atlântica, a defesa dos direitos das minorias, o respeito à diversidade e à pluralidade e a reconstrução da democracia no Brasil, que foi tão enfraquecida nos últimos quatro anos.”
Durante a campanha, em carta escrita à população brasileira, Guajajara mirou o agronegócio como uma das facetas da destruição de florestas, com a regularização das invasões de terras públicas e indígenas. “Não podemos aceitar o garimpo com derramamento de mercúrio e outros contaminantes nos rios, com a destruição da floresta, matando os peixes, matando os Yanomami, matando os Munduruku, com a exploração dos trabalhadores e trabalhadoras. O ouro, o diamante, o alumínio, e outros minérios não podem carregar o sangue indígena”, afirma.
Nascida em 1974 na Terra Indígena de Araribóia, no Maranhão, Sônia dedicou a vida para combater a invisibilidade dos povos indígenas. Em cerca de duas décadas de atuação na luta pelos direitos das populações originárias, atuou em diferentes organizações e movimentos, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), da qual é coordenadora executiva.
Além de atuar no país, Sônia Guajajara tem voz no Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). Ativista há mais de vinte anos, a indígena representa os povos tradicionais nas Conferências Mundiais do Clima (COP) desde 2009, onde já apresentou diversas denúncias de violações aos direitos desses grupos.
Aos 15 anos, ela deixou a região pela primeira vez para estudar em Minas Gerais, convidada pela Funai. Hoje, é formada em letras e em enfermagem, pós-graduada em educação especial e mestra em Cultura e Sociedade.
Em 2001, participou do primeiro evento nacional indígena, a pós-conferência da Marcha Indígena, para discutir o Estatuto dos Povos Indígenas em Luziânia, no estado de Goiás. Em 2012, coordenou a organização do Acampamento Terra Livre na Cúpula dos Povos. No ano seguinte estava à frente da Semana dos Povos Indígenas e de ocupações no plenário da Câmara e no Palácio do Planalto.
Foi premiada diversas vezes, em 2019 recebeu da Organização Movimento Humanos Direitos o Prêmio João Canuto pelos Direitos Humanos da Amazônia e da Liberdade. No mesmo ano, foi agraciada com o prêmio Packard concedido pela Comissão Mundial de áreas protegidas da União Internacional para Conservação da Natureza (UICN).
Guajajara entrou para a história da política brasileira em 2018, quando foi candidata a vice-presidente na chapa de Guilherme Boulos (PSOL). Foi a primeira indígena a concorrer ao cargo.
Foi Boulos, aliás, quem escreveu o perfil de Guajajara na revista estadunidense Time, que a elegeu uma das 100 pessoas mais influentes do mundo. Convidado pela revista para apresentar a colega de partido, Boulos destacou o fato de ela ter saído de casa aos 10 anos para trabalhar e, contrariando as estatísticas, ter chegado ao ensino superior. Ela é professora e auxiliar de enfermagem.
"Sônia é uma inspiração, não só para mim, mas para milhões de brasileiros que sonham com um país que quita suas dívidas com o passado e finalmente acolhe o futuro", destacou Boulos.
*Texto publicado originalmente no Brasil de Fato