Guerra de quadrilhas por trás da Copa no Qatar
Leo Eiholzer e Andreas Schmid*, Outras Palavras
Uma rede de espionagem trabalha em segredo. Agentes de inteligência planejam influenciar eventos mundiais agindo secretamente. Hackers roubam informações controversas. E um cliente obscuro financia todo o projeto com centenas de milhões de dólares.
Esta é a história de uma operação secreta global.
A investigação realizada pela equipe investigativa do canal suíço SRF, a “SRF Investigativ”, mostra os detalhes de como o Estado do Catar espionou autoridades do futebol mundial. E como os críticos da próxima Copa do Mundo, de fora da FIFA, também foram visados.
O objetivo final desses esforços: evitar que o Catar perdesse a candidatura à Copa do Mundo depois que muitas críticas foram levantadas, quando a FIFA concedeu o torneio ao país autoritário em 2010.
A dimensão das atividades de espionagem é considerável. Uma única sub-operação envolveu a mobilização planejada de pelo menos 66 agentes ao longo de nove anos. O orçamento totalizou US$ 387 milhões. E as atividades abrangeram cinco continentes.
Os mais altos escalões do governo do Catar estiveram envolvidos nas atividades de espionagem, incluindo o atual chefe de Estado, o Emir do Catar.
Os documentos mostram que o país desértico queria garantir que nenhuma mudança de posição dentro da FIFA, nenhuma nova amizade, nenhuma aliança potencialmente perigosa, nada que pudesse comprometer a realização da Copa do Mundo de 2022 no Catar escapasse de sua atenção. O objetivo era obter o controle absoluto. Ou “penetração mundial”, como está escrito em um documento da operação de espionagem.
Para isso, o Catar contratou a empresa privada estadunidense Global Risk Advisors (GRA). A equipe da empresa é formada por ex-membros das agências de inteligência dos Estados Unidos. Seu fundador é o ex-agente da CIA, Kevin Chalker.
A Suíça foi um local chave na operação. O espião-chefe e seus clientes do Catar se encontraram em Zurique. E foi na Suíça que eles espionaram vários indivíduos. Assim, presume-se que os crimes foram cometidos por ordem do Catar.
Chalker nega todas as acusações. O estado do Catar não respondeu às perguntas. Logo após o contato da SRF, o emir do Catar reclamou em um discurso público sobre uma “campanha” contra seu país.
A investigação da SRF constatou que as vítimas estavam completamente à mercê dos agentes que as espionavam. Suas contas de e-mail, computadores, telefones, amigos e até familiares se tornaram alvos dos guerreiros das sombras do Catar.
A operação visava mais do que obter informações. A investigação conclui que houve uma mão invisível tentando controlar o direcionamento da FIFA durante os últimos dez anos. Os espiões afirmam ter penetrado na mais alta instância decisória da FIFA, o Comitê Executivo.
Esta é a história do “Projeto Sem Piedade”.
A história se passa em um mundo de bastidores. Os espiões são invisíveis. Suas atividades, no entanto, têm consequências na vida real. Em lugares reais.
Em 5 de janeiro de 2012, um ciberataque contra um cidadão suíço é lançado. Um ex-assessor do presidente da FIFA, Joseph Blatter, recebe e-mails estranhos. Seus remetentes parecem querer que ele abra os anexos das mensagens por todos os meios. Eles tentam repetidas vezes.
Se ele tivesse clicado nos arquivos, um software teria sido instalado secretamente em seu computador. Sem que ele percebesse, o software copiava todos os dados de seu disco rígido e os enviava aos hackers.
O homem sentado atrás do computador é Peter Hargitay. Oficialmente, ele atua como conselheiro, mas dentro da FIFA, ele é considerado uma espécie de porta-voz, um influente agente de poder nos bastidores. Ele havia sido próximo do então onipotente presidente Joseph Blatter. Mais tarde, ele foi consultor da associação australiana de futebol e de seu presidente, Frank Lowy, um bilionário. Hargitay deveria ajudar a Austrália a sediar a Copa do Mundo de 2022 e, portanto, trabalhou em estreita colaboração com Lowy.
Sem dúvida, o computador de Hargitay continha informações valiosas. Um tesouro para quem deseja ter uma boa noção do que realmente acontecia na FIFA.
Quem poderia querer tais informações tão desesperadamente a ponto de estar preparado para o risco de tomar um processo?
O líder indiano
Hargitay é cidadão suíço; sua empresa tinha um escritório em Zurique na época. Ele apresentou queixa e o ataque ao informante da FIFA se tornou um caso para as autoridades suíças.
As evidências apontaram rapidamente para a infraestrutura de uma empresa de TI com sede na Índia, a Appin Security. A SRF obteve registros do processo criminal de Zurique. Os hackers parecem ter sido descuidados em seu trabalho. O servidor que eles usaram para o ataque contém muitas evidências que indicam o envolvimento da Appin.
A Appin é uma empresa evasiva. Na época, era controlada por um empresário indiano. Oficialmente, a Appin oferecia apenas serviços jurídicos, incluindo proteção contra ataques de hackers.
Um representante legal do empresário disse à SRF que seu cliente era “um empresário internacional de sucesso com boa reputação. Ele nunca foi questionado pelas autoridades policiais em nenhum país. Ele nega claramente todas as conexões com quaisquer atividades ilegais”.
No entanto, os ataques que traziam a impressão digital da Appin começaram a atrair atenção em todo o mundo. Eles aparentemente não seguiam nenhum padrão, como se a empresa indiana estivesse atacando aleatoriamente.
De acordo com a investigação da SRF e reportagens da mídia internacional, um modelo de negócios relativamente novo está por trás do método: uma empresa ataca alvos por uma taxa e fornece as informações ao cliente. Chama-se “hackeamento de aluguel”.
O ataque ao colaborador da FIFA, Peter Hargitay, foi apenas um serviço contratado.
Mas quem é o cliente?
Documentos mostram que Peter Hargitay era alvo de uma rede secreta de espionagem que trabalhava para o governo do Catar. Um documento de planejamento altamente confidencial da Global Risk Advisors revela o que provavelmente aconteceu no caso de hackeamento. E mostra que os cidadãos suíços foram, ao que tudo indica, atacados em nome do governo do Catar.
Os documentos revelam um plano para uma campanha global de difamação, uma manipulação cínica da base de poder da FIFA. A ideia apresentada no documento era coletar informações incriminatórias sobre os membros da FIFA Hargitay e Lowy e vazá-las para o Federal Bureau of Investigation, o FBI.
O documento é intitulado “Project Clockwork: Concept of Operations” (Projeto Engrenagem: Conceito de Operações) e é datado de dezembro de 2011 – apenas um mês antes de Peter Hargitay receber os primeiros e-mails infectados.
O verdadeiro alvo era Lowy, não Hargitay, como mostram os documentos. Lowy estava trabalhando em estreita colaboração com Hargitay para a candidatura australiana à Copa do Mundo. A razão para os esforços dos espiões contra Lowy parece óbvia: o australiano era um duro adversário da realização da Copa do Mundo no Catar e havia dito publicamente que o país desértico poderia perder o direito de sediar o torneio.
O documento de planejamento diz, sob o título “o que devemos realizar”: “plano de 9 meses para neutralizar o papel e a influência de […] Frank Lowy”. Também menciona que Lowy era um alvo difícil. Sua riqueza e rede lhe davam acesso a consideráveis meios na área de contra-espionagem. O risco para os diretores da Global Risk Advisors, caso alguma coisa desse errado, foi considerado alto. O documento também especifica que o “Prazo exige ataque de força bruta”. Além disso, o documento apresenta uma foto de Peter Hargitay.
Na seção intitulada “Andando na corda bamba”, os agentes expõem como pretendiam neutralizar Lowy e Hargitay. Aparentemente, eles tinham informações internas a respeito de uma investigação das agências policiais dos EUA e planejavam usar essa investigação para seus próprios fins.
O documento alega conexões entre Hargitay, Lowy e a candidatura russa para a Copa do Mundo de 2018 e pergunta: “Podemos ajudar a conectar os pontos?”. E em seguida: “Fornecer provas de apoio às agências policiais relevantes”.
Uma investigação do FBI teria destruído a reputação de Lowy e Hargitay em âmbito global. Eles teriam sido efetivamente “neutralizados”.
De acordo com os documentos, o Catar aprovou o “Projeto Engrenagem”. E um mês após a elaboração do documento de planejamento, o computador de Hargitay foi hackeado. Que o ataque tenha sido realizado por outra empresa não é algo incomum. A Global Risk Advisors frequentemente recorre aos serviços de subcontratados para realizar operações, mostra a investigação da SRF. Essa abordagem torna mais difícil atribuir o ataque à empresa de Chalker. E mais ainda identificar o Catar como cliente. Em um documento, a empresa se compromete explicitamente a fornecer um “bode expiatório” e “para-raios” para desviar as suspeitas.
Chalker identificou Hargitay como um alvo importante muito antes do ataque cibernético contra ele. Ele havia dito isso aos associados na época. Chalker até tinha um codinome para Hargitay: “Broken Arrow”.
A ponta de um enorme iceberg
O plano para comprometer Lowy e Hargitay, no entanto, representa a ponta de um enorme iceberg. Nos anos seguintes à decisão sobre a Copa do Mundo, que aconteceu no final de 2010, uma operação de espionagem e manipulação não detectada que ninguém poderia imaginar se desenrolou nos bastidores da FIFA.
A SRF obteve uma série de documentos que descrevem a operação. Os repórteres receberam as informações de várias fontes que autorizaram o acesso a elas.
O cérebro por trás das atividades de espionagem é Kevin Chalker, ex-membro da Agência Central de Inteligência (CIA), o serviço de inteligência internacional dos EUA.
Chalker – de cabelos castanhos e barba ruiva – trabalhava para a CIA há pelo menos cinco anos. E não trabalhou como analista em algum escritório, atuou como “oficial de operações” e, portanto, em uma área do serviço de inteligência que realiza atividades secretas. Um verdadeiro espião.
Chalker deixou a CIA há vários anos. Posteriormente, ele primeiro negociou para trabalhar para a Diligence, uma empresa britânica de espionagem particular. Mas acabou fundando sua própria empresa, a Global Risk Advisors. Sua equipe consiste principalmente de ex-membros dos serviços de inteligência dos EUA. Por fim, a Global Risk Advisors estava trabalhando para o Catar.
Um advogado de Chalker negou todas as alegações quando procurado pela SRF para comentar o caso: “A Global Risk Advisors e o senhor Chalker não sabem nada sobre esses supostos novos hacks ou outras más condutas sugeridas em sua investigação e certamente não participaram deles de forma alguma”. Além disso, “Você afirma ter documentos da GRA para apoiar algumas das falsas acusações. Se você realmente tiver algum documento, como jornalista você deve questionar sua autenticidade”.
A SRF empregou uma série de medidas para verificar a autenticidade dos documentos. Chalker não quis comentar sobre questões específicas quanto à natureza do papel que desempenhou no Catar.
A investigação da SRF mostra que inicialmente, antes da premiação da Copa do Mundo em dezembro de 2010, Chalker espionou as várias licitações. Mas, com as críticas levantadas sobre corrupção e violações de direitos humanos no Catar após a conquista da Copa, o alvo mudou. Agora, a tarefa era impedir, a qualquer custo, que a FIFA tirasse a Copa do Mundo do Catar.
Chalker e sua empresa desenvolveram o plano que não deixaria nada ao sabor do acaso.
O “Projeto Engrenagem” e as atividades contra Lowy e Hargitay eram apenas parte desse plano.
A próxima parte foi o “Projeto Sem Piedade”. A descrição do projeto revela o quão elaborada era a trama do serviço de inteligência e quão ambicioso era o projeto.
“O Catar deve obter informações preditivas para alcançar a consciência informacional total”, diz o documento. O plano era conhecer os planos e intenções de vários alvos com antecedência, incluindo os de “figuras críticas dentro da FIFA”, do “presidente da FIFA Joseph Blatter” e dos “membros-chave do FIFA ExCo – presentes e futuros”. A sigla significa Comitê Executivo da FIFA.
“O objetivo final é alcançar a penetração de abrangência mundial”, especifica o documento. Os Global Risk Advisors pretendiam não perder nada. Nenhuma mudança em nenhum plano, nenhuma mudança de posição dentro da FIFA. O objetivo era obter o controle absoluto.
Especialistas em TI e especialistas em “coleta técnica” deveriam ser destacados para o projeto.
Segundo documentos internos da empresa, o “Projeto Sem Piedade” foi aprovado pelo Catar, com orçamento de US$ 387 milhões.
Esta foi apenas a “menor” opção das três apresentadas. Mas, aparentemente, causou impacto. Um documento diz: “A maior conquista até hoje do Projeto Sem Piedade […] veio de operações de penetração bem-sucedidas visando críticos vocais dentro da organização da FIFA”.
Outro documento descreve as atividades da seguinte forma: “[O projeto] é projetado para esconder o papel do Catar nas operações, enquanto utiliza tecnologia e inteligência humana para […] manipular o sentimento público”.
Os mais altos escalões do governo do Catar estiveram envolvidos nas atividades de Chalker, apurou o SRF Investigativ. De acordo com documentos analisados pela SRF, o então herdeiro do trono e atual emir Tamim bin Hamad Al-Thani ordenou pessoalmente a obtenção de registros detalhados de telefone e SMS de vários membros do Comitê Executivo da FIFA antes do anúncio do país sede da Copa do Mundo.
O quanto exatamente o Emir estaria envolvido depois que a Copa do Mundo foi concedida ao Catar ainda não está claro. A operação ainda tinha um codinome para ele – “Apex” – anos depois.
Claramente, no entanto, Chalker e Qatar estavam mais do que prontos a assumir riscos e não tiveram qualquer constrangimento em mirar em figuras proeminentes. Um documento obtido pela SRF indica que Michael Garcia, principal investigador do Comitê de Ética da FIFA, pode ter se tornado alvo de operações. O documento intitulado “Target Profile” contém várias páginas descrevendo Michael Garcia.
Segundo a agência de notícias Associated Press, o FBI está investigando Chalker há vários meses. Além das possíveis violações à lei na área de lobby e exportação de tecnologia sensível, os promotores estão se concentrando nas atividades de vigilância de Chalker em nome do Catar. A Associated Press já publicou relatórios sobre as operações de Chalker para o país desértico em conexão com a Copa do Mundo.
Nem a embaixada do Catar em Berna nem o Escritório de Comunicações do Governo em Doha responderam a vários pedidos de informações da SRF. Logo após os pedidos, o emir fez um discurso na Assembleia Consultiva do Catar, uma espécie de parlamento sem poder, no qual mencionou que o Catar havia sido vítima de uma “campanha inédita” depois que o país foi escolhido como sede da Copa do Mundo. Ele disse: “Logo ficou claro para nós que a campanha continua, se expande e inclui invenções e padrões duplos, até atingir uma ferocidade tal que fez muitos se perguntarem, infelizmente, sobre as verdadeiras razões e motivos por trás dessa campanha”.
Operação de vigilância na Suíça
A investigação da SRF mostra que a Suíça foi fundamental para a operação de inteligência do Catar.
Segundo a investigação, Chalker, a mando do Catar, viajou a Zurique com o objetivo de grampear quartos de hotel de membros do Comitê Executivo e de jornalistas.
Um documento inclui fotos obviamente tiradas em segredo como parte de uma operação de vigilância. Elas foram tiradas no luxuoso hotel Baur au Lac, em Zurique. E mostram pessoas ligadas à FIFA reunidas com dirigentes e jornalistas.
Os agentes aparentemente se sentiram à vontade na Suíça. De acordo com a investigação, Chalker se reuniu com seus clientes do Catar em Zurique para discutir as operações. Pelo menos um membro da Global Risk Advisors fixou sua base permanente na Suíça, depois que o Catar foi escolhido como sede da Copa do Mundo de 2022.
Isso é um problema. Espionar em nome de um terceiro país em solo suíço é proibido. Tais atividades podem ser indiciadas como espionagem.
No entanto, Chalker conheceu um de seus contatos mais próximos, um alto funcionário do Catar chamado Ali Al-Thawadi, em Zurique. Seu codinome era “Shepherd” (“Pastor”). Ele é o chefe de gabinete do irmão do atual emir, Mohammed bin Hamad bin Khalifa Al Thani, também conhecido como MBH.
Além disso, dois jovens tinham laços estreitos com Chalker na operação de espionagem em nome do Catar: Ahmad Nimeh, oficialmente consultor da candidatura do Catar, e um catariano chamado Ahmed Rashad. Ambos os homens têm conexões com uma misteriosa empresa com sede em Doha chamada Bluefort Public Relations. Nimeh esteve ligado às chamadas “operações negras” relacionadas à Copa do Mundo pelo jornal britânico The Sunday Times em 2018. Nimeh é genro de Patrick Theros, ex-embaixador dos Estados Unidos no Catar. Outro parceiro próximo de Nimeh, Nikos Kourkoulakos, estava trabalhando oficialmente para a candidatura do Catar à Copa do Mundo.
De acordo com o registro de empresas, Ahmad Rashad, colega de Nimeh, é o acionista majoritário da Bluefort Public Relations.
A investigação da SRF descobriu que uma pessoa-chave para a próxima Copa do Mundo, Hassan Al Thawadi, supervisionou a operação de espionagem em nome do Catar. Ele foi o CEO da bem-sucedida candidatura à Copa do Mundo e é o atual secretário-geral do Comitê Supremo, órgão que organiza a Copa do Mundo no Catar.
A FIFA aparentemente permaneceu alheia à operação de espionagem. O ex-presidente da entidade, Joseph Blatter, disse em entrevista à SRF: “Que houve um caso de espionagem organizada na FIFA, foi algo que me surpreendeu. E é alarmante”. Vários documentos mostram que Blatter era de grande interesse para os espiões. Mencionam, por exemplo, que os “planos e intenções” de Blatter devem ser conhecidos com antecedência.
A Chalker e a Global Risk Advisors estão atualmente enfrentando uma ação civil relacionada a supostas atividades semelhantes. A ação foi movida por Elliott Broidy, aliado do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Dados privados de Broidy vazaram para jornais em 2018, e ele acusa Chalker e sua empresa de um ataque de hackers em nome do Catar. Chalker nega todas as acusações. O processo ainda está pendente.
“Câncer do futebol mundial”
Houve uma figura no futebol mundial que pareceu importante o suficiente para os espiões do Catar lhe dedicarem um projeto inteiro: “Projeto Riverbed”. O codinome foi usado para o cartola do futebol alemão Theo Zwanziger.
Segundo documentos obtidos pela SRF, o Catar investiu US$ 10 milhões para espionar e influenciar Zwanziger. A Associated Press reportou a mesma cifra nesta primavera.
Zwanziger atuou como presidente da DFB, a Associação Alemã de Futebol, até 2012. E como membro do Comitê Executivo da FIFA até 2015 e, portanto, um executivo de futebol extremamente influente, associado a figuras poderosas na política mundial, ele era uma voz crítica e provocativa contra o Catar. A certa altura, ele chamou o Catar de “o câncer do futebol mundial”.
O Catar queria parar isso. Segundo documentos, uma rede foi construída em torno de Zwanziger, composta por pessoas que iriam influenciá-lo em benefício do Catar.
Para neutralizar Zwanziger, os espiões contaram com métodos de inteligência, como especificam os documentos.
Eles mencionam “operações ocultas”. Também em sua mira estava a “Família Riverbed” – que é a família de Zwanziger. Os atacantes do Global Risk Advisors aparentemente construíram relacionamentos com pessoas próximas a Zwanziger. Criaram uma rede de “recursos, fontes e contatos” ativos nos cinco continentes, trabalhando para influenciar Zwanziger.
Zwanziger receberia persistentemente uma mensagem: “A Copa do Mundo de 2022 no Catar é boa para o mundo”.
Para salvar a Copa do Mundo, o Catar queria calar as críticas. Os esforços da operação não deixaram de surtir efeito em Zwanziger. Ele foi enquadrado dentro da Fifa, como diz hoje. Ele liderou um grupo de trabalho que pressionou por mais direitos humanos e menos críticas ao Catar. Em entrevista à SRF, ele disse: “Várias pessoas me orientaram nessa direção. Claro, isso era do interesse do Catar. Para provocar precisamente essa mudança de pensamento.”
Mas esses esforços, de acordo com Zwanziger, não tiveram o efeito pretendido em suas opiniões. Na entrevista, ele disse: “O que eles subestimaram, porém, é que eu não abri mão da minha opinião no processo. Esta decisão [dar o mundial ao Catar] foi – como eu já disse – um câncer para o futebol mundial. A partir daí surgiram muitas correntes que prejudicaram o futebol mundial. Ainda hoje tenho essa opinião.”
No que diz respeito à operação de espionagem contra ele, Zwanziger acha que a FIFA tem a obrigação de agir. Ele disse: “Isso é um escândalo. Deve ser enfrentado por aqueles que estão no comando. O presidente da FIFA, Infantino, seria o primeiro. Mas ele não fará isso, é claro, porque é um vassalo do Catar.”
A FIFA e Gianni Infantino se recusaram a comentar.
Visando os sindicatos
A Confederação Sindical Internacional (ITUC) apresentou outro problema para o Catar. Durante anos, a federação sindical, que inclui 200 milhões de filiados, repetidamente levantou questões sobre a Copa do Mundo no Catar. E trabalhou para garantir que o sofrimento dos trabalhadores no Catar chamasse a atenção do mundo e comovesse as pessoas.
O sindicato foi vítima de um ataque cibernético no final de 2015. Alguém havia copiado o e-mail da então porta-voz de mídia para o secretário-geral. E os e-mails logo apareceram – em versão alterada, segundo o sindicato – na mídia.
O ataque trazia as impressões digitais de Global Risk Advisors. A SRF obteve um documento, no qual a Global Risk Advisors identifica o sindicato como um problema tão sério para o Catar quanto a FIFA ou o Conselho de Cooperação do Golfo – importante grupo de países em nível diplomático.
Os espiões também traçaram uma rede detalhada de relacionamentos de pessoas que trabalham para o sindicato e de que forma elas estavam ligadas à FIFA. Este documento menciona a porta-voz da mídia, que foi hackeada.
Atenção do FBI
Apesar de nunca ter disputado uma partida de futebol profissional na vida, Sunil Gulati é uma das figuras mais importantes do futebol nos EUA. Ele começou carregando as toalhas dos membros da seleção nacional de juniores, antes de avançar para o cargo de presidente da Federação de Futebol dos Estados Unidos. Por décadas, ele foi o indivíduo mais influente do futebol estadunidense. As fotos tiradas naquela época o mostram com Barack Obama, Bill Clinton ou Joe Biden.
No auge de seu poder, Gulati foi espionado, seu computador foi hackeado, aparentemente sem que isso tivesse sido notado. A evidência do ataque a Gulati parece inexpressiva a princípio: uma pasta digital comum.
No entanto, a pasta contém aproximadamente 800 arquivos, todos roubados do computador de Gulati. O hacker parece ter copiado todos os arquivos PDF, Word, PowerPoint e Excel naquele computador. E essas cópias chegaram à SRF.
Os arquivos incluem documentos confidenciais, como o contrato de trabalho do então técnico da seleção americana Bob Bradley, além de cartas de e para Gulati e outros dirigentes da FIFA. O ataque não poupou a vida privada de Gulati. Há um livro de fotos nos arquivos, por exemplo, documentando os anos de infância de Gulati, e há dados de saúde.
Gulati era concorrente direto do Catar, dois anos antes, durante o processo de definição da sede da Copa do Mundo. Ele foi presidente da candidatura estadunidense para a Copa do Mundo de 2022, período durante o qual a Global Risk Advisors se interessou por ele e preparou a seu respeito um dossiê pessoal de várias páginas.
Os metadados mostram que os últimos arquivos de Gulati foram editados na primavera de 2012. Portanto, o ataque hacker provavelmente ocorreu apenas algumas semanas após o ataque a Hargitay. Os membros da FIFA, SRF, conversaram para considerar Gulati um crítico do Catar.
Não há dúvida de que alguém cuja identidade ainda não foi esclarecida queria saber o que havia no computador de Gulati. E que eles não hesitaram em lançar um ataque cibernético contra um cidadão americano, embora o FBI investigue estritamente os crimes cibernéticos.
A inação das autoridades suíças
Agentes espionam o mundo do futebol em nome do Catar há dez anos. A SRF descobriu que o Ministério Público de Zurique sabia sobre uma suposta atividade da rede de espionagem desde o início. Eles estavam cientes do hack no computador de Peter Hargitay desde 2012 – quando os invasores iniciaram suas operações. E era óbvio que o caso Hargitay era importante.
No entanto, nada de mais aconteceu em relação às investigações do Ministério Público. Os promotores se omitiram em ações investigativas óbvias. O exemplo mais contundente disso diz respeito ao CEO da empresa indiana Appin Security, que havia sido considerado suspeito no caso. O promotor inicialmente perguntou ao CEO se ele estaria disposto a responder perguntas sobre o caso. Um advogado informou ao Ministério Público que o empresário estaria disposto a fazer isso por escrito. Mas então o promotor simplesmente não enviou nenhuma pergunta. Ainda não está claro o porquê.
Por fim, o Ministério Público encerrou o caso oito anos depois por falta de vias investigativas adequadas. O Ministério Público de Zurique disse em comunicado à SRF que, por motivos legais, não pode comentar suas próprias atividades no processo. Um porta-voz escreveu que houve esforços abrangentes para essa investigação que foi realizada dentro das disposições legais. O porta-voz disse ainda: “Não houve exercício de influência sobre nenhum membro do Ministério Público”.
O ex-CEO vive hoje na Suíça. No outono de 2020, logo após o encerramento da investigação, ele comprou uma mansão impressionante. De acordo com o cartório de registro de imóveis, ele pagou 13,5 milhões de francos suíços à filha de um oligarca ucraniano na transação. Ele agora se apresenta como um renomado investidor em startups e teve sua foto tirada para a edição francesa da revista suíça Bilanz.
O que ele teria testemunhado se tivesse sido solicitado em 2013? A história teria tomado outro rumo? Os espiões do Catar teriam reduzido seus esforços por medo de serem expostos? Não haverá resposta para tais perguntas.
Neste momento, com a Copa rolando, milhões estão de olho no Catar. Mas talvez ninguém veja as coisas da maneira que o Emir sempre desejou. Se a Copa do Mundo de 2022 for uma celebração do futebol, será manchada por agentes de inteligência, mentiras e manipulações.
*Texto publicado originalmente no site Outras Palavras
Nas entrelinhas: PEC da Transição troca o Bolsa Família pelo orçamento secreto
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
Não gosto de afirmações categóricas na política, porque ela é como uma nuvem, como dizia o governador mineiro e banqueiro Magalhães Pinto. Você olha pro céu, parece um elefante; olha novamente, já virou um jabuti; olha de novo, e desaba um aguaceiro danado. A nuvem desta semana no céu de Brasília é a PEC da Transição, que está sendo objeto de intensas negociações entre representantes da equipe de transição, sob coordenação do senador eleito Wellington Dias (PT), ex-governador do Piauí, e os caciques do Centrão, liderados pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
Ontem, o ex-ministro do Planejamento e da Fazenda Nelson Barbosa rebateu as críticas à PEC da Transição com uma comparação que soa como música para os políticos do Centrão: disse que o governo Lula em 2023, o seu primeiro ano de mandato, gastará menos do que o governo Bolsonaro em 2022, ou seja, no seu último ano. Segundo o relatório de orçamento mais recente, o atual governo deve gastar o equivalente a 19% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2022, ao passo que a proposta do novo governo é reduzir esse percentual para 17,6% do PIB.
Segundo Barbosa, haveria um espaço de até R$ 136 bilhões para elevar despesas sem interferir nessa proporção gasto/PIB. Nessa contabilidade, ocorreria uma “recomposição fiscal” e não uma “expansão do gasto”. O espaço para aumentar gastos públicos em 2023 sem aumentar as despesas, em relação a esse ano, seria de R$ 136 bilhões, o que representa quase 69% dos R$ 198 bilhões previstos na PEC da Transição (valor que ficaria fora do teto de gastos). O gasto com o Bolsa Família ficaria fora do teto de forma permanente, num total de R$ 175 bilhões anuais, além de investimentos adicionais de até R$ 23 bilhões, para o Orçamento 2023. Qual o custo de um acordo no qual o governo Lula não teria que se preocupar com a aprovação de recursos para o Bolsa Família durante todo o mandato?
O cientista político Paulo Fábio Dantas, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), pôs o dedo na ferida: a pressão dos atuais congressistas sobre o futuro governo para aprovar a exclusão do Bolsa Família do teto de gastos seria “a fixação explícita, na mesma PEC, da imperatividade da execução das emendas do relator, porta de entrada de uma constitucionalização do ‘orçamento secreto’, antes que a ministra Rosa Weber o anule”. Sua conclusão decorre de uma entrevista do líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), na sexta-feira, na qual essa raposa felpuda do Congresso afirmou que a equipe de transição teria assimilado a legitimidade das “emendas de relator”. Faz sentido, porque não foram poucos os parlamentares da oposição, inclusive do PT, que se beneficiaram dessas emendas neste ano eleitoral.
Orçamento fatiado
Voltando aos números da PEC, com o Bolsa Família fora do teto de gastos, haveria um espaço de R$ 105 bilhões no Orçamento que estavam reservados para o Auxílio Brasil e que poderão ser destinados à recomposição dos orçamentos da Saúde, da Educação e outras despesas da área social. Como esses gastos são permanentes, a reação do mercado financeiro ao acordo em curso vem sendo muita negativa, porque a conta não fecha em quatro anos. Quem entende de contas públicas afirma que 77,1% do PIB de endividamento corresponde a R$ 7,3 trilhões. Esse patamar é muito elevado para os países emergentes, cuja média é de 65% de endividamento. Isso aumentaria nossos indicadores de risco financeiro e afugentaria investimentos externos.
Tudo seria fácil, se não fossem as dificuldades, como diria Aparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, o humorista Barão de Itararé. Para viabilizar o Bolsa Família por quatro anos, antes mesmo de tomar posse, com uma oposição de extrema direita rosnando na porta dos quartéis e pedindo intervenção militar, Lula precisa contar com amplo apoio no Congresso. Sua bancada pode chegar a 139 deputados e 15 senadores. Ou seja, é impossível aprovar qualquer coisa sem os partidos de centro que o apoiaram no segundo turno e o Centrão. Além, disso, há 172 deputados da base bolsonarista que não se elegeram e são feras feridas no plenário da Câmara, que somente Arthur Lira pode controlar.
O senso comum é de que um acordo com Lira seria construído com base na sua reeleição à Presidência da Câmara, mas isso é considerado favas contadas. Ou seja, ocorreria mesmo que Lula estivesse articulando outro nome para comandar a Casa. O acordo seria outro: trocar o Bolsa Família pela manutenção do orçamento secreto durante os quatro anos. Mesmo assim, há quem duvide do acordo, como o vice-líder do PP, Doutor Luizinho (RJ): “Por que entregar quatro anos se o Orçamento da União precisa ser negociado todo ano?”
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Sobre chargista
* JCaesar é o pseudônimo do jornalista, sociólogo e cartunista Júlio César Cardoso de Barros. Foi chargista e cronista carnavalesco do Notícias Populares, checador de informação, gerente de produção editorial, secretário de redação e editor sênior da VEJA. É autor da charge publicada pela Revista Política Democrática Online.
** Charge produzida para publicação na Revista Política Democrática Online de outubro/2022 (49ª Edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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Seleções europeias não usarão braçadeira com a bandeira LGTBQIA+
Brasil de Fato*
Traduzido a partir de El Diario
Os capitães das seleções da Bélgica, Dinamarca, Alemanha, Holanda, Suíça, Inglaterra e País de Gales não usarão a braçadeira com a bandeira LGTBQIA+ durante as partidas da Copa do Mundo no Catar, conforme informaram as sete federações de futebol em comunicado nesta segunda-feira (21). As seleções nacionais tomaram essa decisão depois que a Fifa anunciou que os jogadores que usarem a pulseira One Love podem receber um cartão amarelo.
Alguns atletas, como o capitão da Inglaterra Harry Kane, anunciaram sua intenção de usar uma pulseira com a insígnia do arco-íris em protesto contra a perseguição do emirado a pessoas não heterossexuais. “Como federações nacionais, não podemos colocar nossos jogadores em uma posição em que possam enfrentar sanções esportivas, incluindo reservas”, disse o comunicado conjunto das federações.
Os jogadores, eles indicaram, estavam "preparados para pagar multas que normalmente se aplicariam a violações dos regulamentos do kit". Outra coisa diferente, eles entendem, é uma sanção esportiva que pode prejudicar o desempenho das equipes no torneio. Um cartão amarelo por usar a braçadeira colocaria "os jogadores em uma situação em que poderiam ser penalizados ou até forçados a abandonar a partida".
No futebol, um cartão amarelo significa uma sanção média (anterior ao cartão vermelho), e o acúmulo de dois cartões dessa cor implica a expulsão do jogador da partida e a proibição de participar pelo menos na próxima partida.
As federações se declararam "frustradas" com a decisão do organizador do torneio e descreveram a situação como um evento "sem precedentes". “Escrevemos à Fifa em setembro informando sobre nosso desejo de usar a braçadeira One Love para apoiar ativamente a inclusão no futebol, e não recebemos resposta. Os nossos jogadores e treinadores estão desapontados", denunciaram.
A declaração da Fifa ocorre apenas um dia depois de o presidente da entidade, Gianni Infantino, acusar os países ocidentais em entrevista coletiva por seus "duplos pesos e duas medidas" em relação ao país-sede, uma ditadura que é regida por uma interpretação dura da lei islâmica que discrimina mulheres e pune relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. "Sinto-me catariano, sinto-me árabe, sinto-me africano, gay, deficiente, trabalhador migrante", disse, respondendo às inúmeras críticas à decisão de que um torneio desta envergadura se realize num país que não cumpre os requisitos mínimos democráticos.
A vida no emirado é regida por uma legislação que pune com pena de prisão de até dez anos as relações sexuais consensuais entre pessoas do mesmo sexo. O atual código penal também prevê penas de um a três anos de prisão para quem “incitar” ou “persuadir” outras pessoas a cometerem atos de “sodomia ou imoralidade”.
*Texto publicado originalmente no site Brasil de Fato. Título editado
Consciência Negra: conheça nomes que lutaram pelo fim da escravidão no Brasil
Aline Brito*, Correio Braziliense
Neste domingo (20/11) é comemorado o Dia da Consciência Negra. A data, que surgiu como uma forma de refletir sobre o valor e contribuição da comunidade negra para o Brasil, tem o papel de jogar luz sobre a resistência do povo negro e dar maior visibilidade à busca por igualdade, por direitos, e contra o racismo. Para entender o que envolve o movimento negro da atualidade, é necessário fazer um resgate histórico e falar sobre as raízes que envolvem essa luta.
O povo negro tem uma trajetória que começou muito antes da escravização, sendo alicerçada em território africano e formada por reis, rainhas, guerreiros e guerreiras de tribos que ali viviam. No Brasil, antes da chegada dos portugueses, estudos arqueológicos mostram que os primeiros habitantes eram indígenas. A chegada dos negros em solo brasileiro se confunde com a escravidão, uma vez que eles eram traficados da África para trabalharem, de forma forçada e desumana, para o império e os poderosos coloniais.
A escravidão no país começou por volta de 1530, quando os portugueses implantaram base no Brasil e, consequentemente, surgiram demandas de mão de obra. Os primeiros escravizados foram os indígenas, mas acabaram sendo substituídos pelos negros — estima-se que cerca de 4,8 milhões de africanos foram traficados para o Brasil durante todo o período que durou a escravidão.
Desde o início, essa exploração violenta da força de trabalho foi marcada pela resistência dos negros. “Essas pessoas são apagadas da história para que seja perpetuada a história branca e todos os privilégios que ela representa na sociedade. Conhecimento é poder, imagina se a população negra, que é maioria da população, mas não em espaços de poder e decisão, começa a conhecer a verdadeira história? Com certeza terão mais reivindicações, para ocupar, cada vez mais, espaços nos quais o povo negro não chega de forma proporcional. E não chega não por falta de vontade, inteligência ou talento, e sim por causa das barreiras impostas pelo racismo estrutural”, explica Luiza Mandela, mestra em Relações Étnico-Raciais.
“Não veio do céu, nem das mãos de Isabel”
Ao longo dos mais de 300 anos de exploração dos africanos no Brasil, os escravos se organizaram, de diversas formas, para resistir à escravidão e tentar fugir das senzalas. Uma personalidade muito conhecida por lutar pela libertação do povo contra o sistema escravista é Zumbi dos Palmares, um grande exemplo da batalha travada na época.
Zumbi foi líder do Quilombo dos Palmares, uma comunidade formada por escravos negros que fugiam de fazendas, prisões e senzalas. O quilombo surgiu por volta de 1580 e, em pouco tempo, se tornou o maior do período colonial, ocupando uma área equivalente ao tamanho de Portugal e com mais de 30 mil habitantes.
Apesar do Dia da Consciência Negra ser na data que marca a morte de Zumbi, uma forma de homenagem e também de garantir que a história de resistência do povo negro não seja esquecida, antes dele outros guerreiros como Ganga Zumba, primeiro líder do Quilombo dos Palmares, foram cruciais para o percurso que resultou na abolição da escravatura. Depois dele, também tiveram outros nomes tão importantes quanto, mas que não são lembrados em livros de história ou estudados dentro de salas de aula.
“A invisibilização da história negra causa impactos na construção da identidade e da subjetividade das pessoas negras. Essas pessoas crescem não se vendo de forma positiva, acreditando que não têm uma história, se achando inferiores, incapazes. Essa narrativa, que favorece a história eurocêntrica, afeta a saúde mental da população preta. Crescemos não gostando de nós mesmos por acreditarmos que não somos potentes, não temos história, nem identidade e, com isso, somos adoecidos e precisamos recorrer a tratamentos terapêuticos, psiquiátricos. E sabemos que nem todas as pessoas negras têm acesso a esses serviços”, esclarece Mandela.
De acordo com a especialista, é necessário que a população conheça a história do povo negro, para que seja descentralizada a visão eurocêntrica do Brasil, afinal, assim como mostrou o samba-enredo da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, campeã do carnaval carioca de 2019, a liberdade dos escravos “não veio do céu, nem das mãos das mãos de Isabel”.
“Brasil, meu nego, deixa eu te contar a história que a história não conta, o avesso do mesmo lugar. Na luta é que a gente se encontra [...] Brasil, o teu nome é Dandara e a tua cara é de cariri [...] Salve os caboclos de julho, quem foi de aço nos anos de chumbo. Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês ”, diz a canção Histórias Para Ninar Gente Grande.
Em 13 de maio de 1888, a princesa imperial Isabel do Brasil assinou a Lei Áurea e decretou o fim da escravidão no Brasil. No ensino básico regular, livros de história e até no imaginário de muitos brasileiros, ela foi a “salvadora” dos escravos, mas, a verdade, é que a abolição da escravatura não foi uma benfeitoria dos regentes do país na época, e sim resultado da pressão popular e do crescimento do movimento abolicionista.
Como cantou a Mangueira na maior festa popular do Brasil, no carnaval de 2019, a “liberdade é um dragão no mar de Aracati”. Nomes como Luís Gama, Luísa Mahin, José do Patrocínio, André Rebouças, Cosme Bento, Francisco José do Nascimento, José Luis Napoleão, Quintino de Lacerda, Aqualtune, Tereza de Benguela, entre muitos outros, foram negros, escravos ou filhos de escravos que, ao longo do tempo, tiveram expressiva participação no movimento que, verdadeiramente, contribuiu para a extinção da escravidão.
“O resgate da história de Dragão do Mar, José Luís Napoleão, José do Patrocínio, Luísa Mahin, Maria Felipa entre outras personalidades é de fundamental importância para que seja trazida a narrativa da luta negra , da construção da identidade positiva das crianças negras, e respeito às diferenças e a cultura afro brasileira e africana. Romper com o epistemicídio também faz parte da luta contra o racismo” afirma a professora Luiza Mandela.
Conheça personalidades importantes na luta pela liberdade do povo negro
Aqualtune
Aqualtune é uma das mais antigas líderes negras no Brasil e um dos maiores símbolos da batalha pela liberdade negra do regime escravocrata. Não se tem muitos registros que contam a história dela, nem se sabe exatamente onde nasceu e quem são seus pais, mas indícios históricos sugerem que ela teria nascido no século XVI (por volta de 1600), no Congo, na África Central, e teria uma linhagem real, sendo, possivelmente, filha de um rei do Congo.
A princesa Aqualtune foi uma guerreira africana que liderou cerca de 10 mil homens guerreiros que lutaram na Batalha de Ambuíla, contra o reino de Portugal, em 1665. O reino do Congo perdeu a guerra e, com isso, Aqualtune foi capturada e traficada para a então América Portuguesa, onde hoje fica o nordeste brasileiro.
Ao chegar no Brasil, a princesa congolesa foi escravizada e levada para uma fazenda localizada no atual estado de Alagoas, onde foi estuprada pelos donos da terra e colocada junto aos outros escravos. No local, Aqualtune ouviu falar sobre a resistência negra que estava em curso no país, liderada por quilombos, e se junto a outros negros que, mais tarde, conseguiriam fugir da fazenda onde eram explorados.
Detentora de grandes conhecimentos políticos, organizacionais e de estratégia de guerra, Aqualtune foi fundamental para a consolidação da República de Palmares. Ela se tornou líder quilombola à frente de uma das moradias do Quilombo dos Palmares, se tornando mãe de Ganga Zumba, primeiro líder desse quilombo e mãe de Sabia, que, mais tarde, daria à luz a Zumbi dos Palmares.
Portanto, Aqualtune foi avó de Zumbi e, de acordo com alguns historiadores, teria morrido em 1677, durante um incêndio provocado por invasores do Quilombo dos Palmares. Apesar de ser pouco lembrada pelos livros e escolas brasileiras — que costumam citar apenas Zumbi dos Palmares como o principal líder negro da época —, a princesa do Congo foi uma figura muito importante para a história da população negra durante o Período Colonial e passou a ser símbolo de liderança e resistência contra a opressão da comunidade negra e uma personagem importante de luta das mulheres negras.
Tereza de Benguela
Assim como sugere seu nome, Tereza de Benguela teria nascido por volta de 1700, em Benguela, uma cidade em Angola, na África. Foi uma líder quilombola trazida como escrava para o Brasil e liderou o Quilombo do Piolho, localizado no atual estado do Mato Grosso.
Tereza, assim como outros inúmeros escravos do Brasil Colônia, fugiu da senzala onde era escravizada e, junto com o marido, José Piolho, se abrigou no quilombo que foi o maior de Mato Grosso. Historiadores acreditam que José tenha chefiado o Quilombo do Piolho até o início de 1750, quando foi assassinado.
Depois da morte do marido, até cerca de 1770, Tereza foi a rainha do quilombo e, sob seu comando, a comunidade negra da região resistiu à escravidão durante duas décadas. Do local, a chamada Rainha Tereza coordenou a comunidade que vivia do plantio e comandou a estrutura política e econômica do grupo. Ela também criou um sistema de defesa com armas, que contribuiu para a proteção do quilombo e resistência à escravidão.
Tereza morreu por volta de 1770. Em sua homenagem, foi criado o Dia Nacional de Tereza de Benguela, comemorado em 25 de julho. Essa mesma data é dedicada ao Dia da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha. A mulher escravizada que virou rainha é um ícone da resistência negra no país e heroína do movimento de mulheres negras.
Nã Agontimé
Nascida no reino do Daomé no século XVIII, onde hoje fica Benim, na África, Nã Agontimé foi uma rainha africana, esposa do rei Agonglo. Após a morte do marido, a estabilidade do reino ficou abalada e um de dos filhos dela, Adandozan, tomou o trono, mesmo que o próximo rei, de acordo com as vontade de Agonglo, deveria ser o filho de Agontimé, o Gakpe.
Tremendo reação negativa à traição que cometeu, Adandozan, conhecido por ser um homem cruel, vende a madrasta, Agontimé, como escrava. Depois disso, o paradeiro da rainha se perdeu, já que o novo rei ordenou aos compradores de escravos que ela fosse rebatizada, justamente para que ninguém a encontrasse.
Por falta de registros históricos, não se sabe ao certo onde Agontimé viveu no Brasil, nem por quanto tempo. O rastro da rainha ficou perdido durante anos, até que, em 1948, um pesquisador francês Pierre Fatumbi Verger descobre vestígios de que ela conseguiu uma carta de alforria e foi uma das fundadoras da Casa da Minas em São Luiz do Maranhão.
No Brasil, Agontimé foi rebatizada como Maria Jesuína e foi pioneira na disseminação da religião de matriz africana em território brasileiro. A rainha criou o culto de tradição Ewe-Fon no país, cultuado na Casa da Minas, que, em africano, carrega o nome de Querebentã de Zomadonu e significa “Casa grande de Zomadonu”, em referência ao vodun protetor de Maria Jesuína.
Assim, o Maranhão é o único lugar das Américas onde se encontraram cultos às divindades ancestrais da realeza do Daomé, lugar onde nasceu Agontimé. Além disso, a Casa da Minas é o primeiro templo de tambor do Maranhão e serviu de modelo para a instalação de outras no Norte e Nordeste do Brasil, bem como para a implementação de outros centros de religião africana em todo território brasileiro.
Cosme Bento
Negro Cosme, como ficou conhecido o líder quilombola Cosme Bento, liderou uma das maiores revoltas de escravos do Maranhão, a Balaiada. Nascido escravo entre 1800 e 1802, em Sobral, no Ceará, onde conseguiu alforria.
Em 1830, pouco depois de chegar ao Maranhão, foi preso por assassinato e, em 1833, conseguiu fugir da cadeira. A partir de então, passou a promover uma vasta rebelião de negros em vários pontos de trabalho escravo da região. Para não ser pego, Negro Comes se encondia em diversos quilombos e ajudava escravos a se libertarem da opressão de seus esploradores.
Negro Cosme também foi responsável por criar o maior quilombo da história do Maranhão, a fazenda Tocanguira, localizada no município de Itapecuru-Mirim, interior do estado. No local, oferecia auxílio a todos que apoiavam a luta contra o escravismo e ficou conhecido como defensor da liberdade.
O objetivo dele era criar uma outra visão de liberdade e igualdade entre os homens, buscando a insurreição contra à escravatura, em favor da liberdade. Ele foi mais que um líder entre os balaios, sendo considerado o chefe da revolta negra maranhense.
Luísa Mahin
Uma das principais responsáveis por todas as revoltas de escravos na Bahia. Luísa Mahin nasceu, provavelmente, em 1812, em Costa da Mina, na África, e foi traficada como escrava para o Brasil.
Ela comprou alforria e se tornou quituteira em Salvador, onde teve um filho, o abolicionista Luis Gama. Luísa esteve envolvida na articulação de todas as revoltas e levantes de escravos que sacudiram a então Província da Bahia nas primeiras décadas do século XIX.
Luisa ajudava com a distribuição de mensagens codificadas, em árabe, por meio dos meninos que fingiam comprar seus quitutes. Essas mensagens continham informações relevantes para a resistência dos escravos e os movimentos que contribuiam para a libertação deles. Desse modo, esteve envolvida na Revolta dos Malês e na Sabinada.
A ex-escrava transformou sua casa no quartel general das revoltas de escravos e, caso o levante dos malês tivesse sido vitorioso, Luísa teria sido reconhecida como Rainha da Bahia.
Luís Gama
Filho de Luísa Mahin, Luís Gama foi um dos principais nomes do movimento abolicionista no Brasil. Nasceu em 1830, em Salvador, e mesmo sendo filho de pai branco e mãe negra liberta, foi feito escravo aos 10 anos de idade.
Permaneceu analfabeto até os 17 anos, quando passou a estudar e, mais tarde, conquistou na justiça a própria liberdade. Depois disso, passou a advogar em defesa dos escravos e, aos 29 anos, já era considerado o maior abolicionista do Brasil e o único a ter sido feito escravo.
Toda a vida de Luís Gama foi pautada pela abolição da escravatura e fim da monarquia no Brasil. Ele escreveu também artigos para jornais da época, sempre sobre assuntos sociorraciais do Brasil Imperial.
Além de ajudar escravos libertos a conseguirem empregos e defender judicialmente escravos acusados de crimes, a principal atuação de Gama em prol da abolição da escravatura foi nos tribunais. Em 1880, em uma carta autobiográfica enviada ao amigo Lúcio de Mendonça, o abolicionista revela que já havia libertado do cativeiro mais de 500 escravos.
Gama também é conhecido pela maior ação coletiva de libertação de escravizados conhecida nas Américas, quando conseguiu a liberdade de 217 escravos. É dele a célebre frase “o escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa”, proclamada durante um júri.
André Rebouças
André Rebouças foi um engenheiro, inventor e abolicionista brasileiro. Ele é considerado um dos mais importantes articuladores do movimento abolicionista e trabalhou pelo desenvolvimento de territórios africanos.
Nascido 50 anos antes da abolição da escravatura, em 1838, ele era filho de mãe escrava e um alfaiate português. Diferente de muitos negros de sua época, Rebouças teve a oportunidade de estudar desde muito jovem e ingressou na Escola Militar do Rio de Janeiro, onde se tornou 2º tenente.
Ao lado de nomes importantes na história do Brasil, como Machado de Assis, o engenheiro foi um dos representantes da pequena classe média negra em ascensão no Segundo Reinado. Ele ajudou a criar a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, e participou também da Confederação Abolicionista.
André trabalhou também ao lado de Luís Gama no movimento em busca da liberdade da comunidade negra. Com os movimentos abolicionistas crescendo, pela atuação de nomes como Rebouças e Gama, e a pressão social contra o Império cada vez mais forte, em 1888 a escravidão é extinta no Brasil, sendo o último país das Américas a acabar com a exploração do povo negro.
Quintino de Lacerda
Ex-escravo, Quintino de Lacerda se tornou um herói abolicionista. Ele foi líder do Quilombo do Jabaquara, em São Paulo, além de ter se tornado o primeiro vereador negro do Brasil e receber a patente de Major honorário do Exército Nacional.
Lacerda foi o primeiro líder político negra de Santos, no litoral paulistano, considerado o mais atuante fomentador da abolição na região e participou ativamente de grandes eventos nacionais, como a Revolta Armada e o processo de desestruturação do sistema escravista no Brasil.
O político nasceu escravo, em 1855, em Sergipe, e se afeiçoou à família para a qual foi vendido e da qual herdou o sobrenome. Depois de oito anos de serviço, ele conquistou a carta de alforria e se juntou ao movimento contra a escravidão, se tornando, nas duas últimas décadas do século XIX no Brasil, uma figura central nos movimentos sociais e debates políticos.
Além de lutar pela extinção do sistema escravista, após a promulgação da Lei Áurea, Quintino, enquanto capitão do Exército, organizou um batalhão com o objetivo de derrubar o trono brasileiro. Sendo assim, o abolicionista foi também uma figura importante para a proclamação da República.
Francisco José do Nascimento
“Liberdade é um dragão no mar de Aracati”, assim é retratado Francisco José do Nascimento no samba-enredo da Mangueira, em 2019. Conhecido como Dragão do Mar, o líder jangadeiro nasceu em 1839, em Aracati, município do Ceará.
Antiescravista, o Dragão do Mar teve participação ativa no Movimento Abolicionista no Ceará, que foi o primeiro estado brasileiro a abolir a escravidão e, por isso, ficou conhecido como Terra da Luz.
Desde 2017 reconhecido, oficialmente, como Herói da Pátria, o líder se juntou à luta contra a escravidão em 1881 quando se recusou a transpostar escravos para os navios negreiros que saíam do litoral cearense com o objetivo de vender essas pessoas no Rio de Janeiro. Esse movimento foi chamado de Greve dos Jangadeiros e resultou na abolição da escravatura no Ceará, sendo também decisivo para que a liberdade do povo negro fosse implantada no Brasil por meio da Lei Áurea.
Em 1884, Dragão do Mar foi homenageado na capa da Revista Illustrada, importante periódico abolicionista da época. “À testa dos jangadeiros cearenses, Nascimento impede o tráfico dos escravos da província do Ceará vendidos para o sul”, noticiou a revista.
Francisco José do Nascimento é, até os dias atuais, símbolo da resistência popular cearense contra a escravidão. Ele também foi homenageado pelo governo do Ceará, com seu nome dado ao Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, pelo que ele e os outros jangadeiros realizaram em nome da liberdade da comunidade negra.
José do Patrocínio
Outra figura importante nos momentos decisivos do movimento abolicionista, que conquistou o fim da escravidão. José do Patrocínio foi um farmacêutico, jornalista, escritor, orador e ativista político brasileiro.
Em 1879, iniciou a campanha pela abolição da escravatura no Brasil e entrou para a Associação Central Emancipadora. Em em 1880, juntamente com Joaquim Nabuco, fundou a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão. Além disso, ele teve uma forte atuação como jornalista com artigos contra a escravidão em periódicos da época, Patrocínio também preparou e auxiliou a fuga de escravos e coordenou campanhas de angariação de fundos para adquirir alforrias, com a promoção de espetáculos ao vivo, comícios em teatros, manifestações em praça pública.
Patrocínio também participou da Maçonaria, atuando no processo de emancipação do trabalho escravo, defendendo o fim da escravidão a partir de discussões no Parlamento, de debates entre a elite branca e da defesa de uma abolição da escravatura, por intermédio da Sociedade Brasileira contra a Escravidão.
Os guerreiros e guerreiras da atualidade
134 anos depois da Lei Áurea e da árdua história dos negros em busca da própria emancipação, o Brasil ainda vive um desafio. Muito por conta da invisibilização histórica da comunidade negra no processo de abolição da escravatura, o povo negro ainda é muito associado à escravidão e vítima de um racismo estrutural.
“São muitos anos com essa associação da negritude à escravidão, mas outras histórias já estão sendo contadas. Para avançarmos precisamos estudar, para conhecermos mais a verdadeira história do povo negro, que não começou na escravidão”, destaca Luiza Mandela, mestra em Relações Étnico-Raciais.
Assim como antes de 1888 ou durante os anos seguinte à abolição, os negros lutaram e seguem lutando por direitos, igualdade e para que a história de resistência dos cerca de 500 anos desde a chegada dos primeiros negros africanos no Brasil não seja apagada. “Essas personalidades que resistiram e lutaram contra a escravidão pavimentaram o chão para que pudéssemos estar aqui vivos e resistindo, apesar de, infelizmente, o negro ainda ser o que mais morre diariamente no Brasil, sendo um a cada 23 minutos”, lamentou Mandela.
O movimento negro segue contando com nomes importantes e que são essenciais para toda e qualquer conquista dessa comunidade. Afinal, desde que o Brasil é Brasil, os direitos da população negra foram adquiridos a partir da luta travada com as próprias mãos.
Podemos destacar na história mais recente personalidades como Ruth de Souza, atriz e a primeira grande referência para artistas negros na televisão; Antonieta de Barros, jornalista, uma das primeiras mulheres eleitas no Brasil e a primeira negra brasileira a assumir um mandato popular; Conceição Evaristo, escritora e uma das mais influentes literatas do movimento pós-modernista no Brasil; Katiuscia Ribeiro, filósofa e um dos principais nomes da atualidade responsáveis por disseminar o conhecimento acerca da ancestralidade; e Abdias do Nascimento, ator e um dos maiores expoentes da cultura negra e dos direitos humanos no Brasil, tendo recebido o Nobel da Paz em 2010.
“Eu destaco nomes importantes que me inspiram a continuar no caminho da luta contra o racismo, como Christina Ramos (minha mãe e militante do Movimento Negro), Nilma Lino Gomes, Conceição Evaristo, Joana Oscar, Ricardo Jaheem, Bárbara Carine, Roberto Borges, Jurema Werneck, entre tantos outros nomes fundamentais, que precisamos conhecer”, destaca a mestra em Relações Étnico-Raciais.
Por mais que, ao longo dos anos, o povo negro tenha conseguido alguns avanços, como as Cotas Raciais, as leis Afonso Arinos e Caó, que proíbem a discriminação racial e tipificam o crime de racismo, ou a Lei 11645/08, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afrobrasileira e africana em todas as escolas públicas e particulares do ensino fundamental até o ensino médio, ainda há muito o que progredir.
Para isso, Luíza Mandela ressalta que é importante garantir que essas leis sejam aplicadas, principalmente a que determina o ensino da cultura afro nas escolas, “para que a história de resistência, potência e beleza da população negra e indígena seja contada nas escolas, universidades, imprensa e em todos os espaços”. “Mas, para isso, precisamos ter letramento racial e estudar para sairmos da visão eurocêntrica e reducionista que nos foi ensinada”, conclui.
*Texto publicado originalmente no Correio Braziliense
Revista online | Breve notícia da terra devastada
Luiz Sérgio Henriques*, especial para a revista Política Democrática online (49ª edição: novembro/2022)
Em Washington, mal começado o governo e já na primeira viagem internacional, o presidente Jair Bolsonaro (PL) cunhou a epígrafe definitiva da obra a que se dedicaria com afinco nos anos seguintes. Conservadores de variado coturno – ou melhor, reacionários do calibre de Olavo de Carvalho e Steve Bannon – ouviram-no proclamar o sentido da “missão divina” que se autoatribuía e que consistia em “desconstruir” e “desfazer” regras e valores, hábitos e instituições, antes de começar a pôr de pé a parte supostamente positiva da sua agenda.
Livramo-nos há pouco da promessa bolsonarista da “construção” a ser cumprida em mais um mandato, mas é forçoso admitir que só quatro anos bastaram para legar um cenário de terra devastada. Em outras palavras, a metade inicial do projeto está realizada. A celebração grosseira do “politicamente incorreto” contaminou parte das elites e infiltrou-se por toda a sociedade, criando um reacionarismo de massas agressivo e destruidor.
Juristas defenderam uma leitura golpista da Constituição – em particular, do artigo 142, simultaneamente curto e prolixo, que na aparência dá voz a quem numa democracia deve ser o “grande mudo”. Médicos militaram, e talvez militem ainda, no movimento antivacina, deixando um traço lastimável de retrocesso civilizatório. E a violência política tornou-se um recurso, quando não legítimo, ao menos aceitável para setores da sociedade contaminados pelo culto às armas e pela tentação de eliminar fisicamente o inimigo interno – se preciso for.
Confira, a seguir, galeria de imagens:
Na verdade, a contrarrevolução política e cultural a que fomos submetidos desde 2019 – e a que, em certa medida, assistimos “bestializados” – teve mais de uma vertente. Desde logo, vimo-nos arrastados pela grande crise das democracias contemporâneas, que está longe de ter se esgotado e parece renovar-se em cada eleição e em cada momento.
Uma crise estrutural, certamente, com aspectos até bizarros. Não é comum que alguém como Viktor Orban, autocrata de um país distante e pequeno (ainda que culturalmente muito relevante), torne-se uma espécie de ídolo global dos “revolucionários” da extrema-direita, inclusive no país-chave do Ocidente, os Estados Unidos. Mais do que ídolo, um modelo para o programa de corrosão das democracias aplicado em várias realidades nacionais. Pois a Viktor Orban fomos também apresentados na posse mesma do presidente Bolsonaro, sinalizando uma aliança e uma afinidade que até então inocentemente ignorávamos.
Há também uma dimensão propriamente interna – ou, mais do que isto, um emaranhado de contradições que são coisas nossas e nos levaram à beira do precipício. A exasperação do conflito político, especialmente a partir de 2013, teve efeitos desastrosos, cuja enumeração exaustiva não cabe aqui.
Veja todos os artigos da edição 48 da revista Política Democrática online
Mencionemos só um exemplo. Não soubemos lidar nada bem com o instituto do impeachment. Todos os governos não petistas, sem exceção, foram alvo de insistentes pedidos de impedimento por parte do PT ou de figuras próximas. E, no entanto, o impeachment de Dilma Rousseff, num contexto de recessão brutal e perda de apoio parlamentar, teve como contrapartida a acusação inapelável de “golpe”, como se 2016 tivesse sido o marco zero da ruptura institucional – o que, a bem da verdade, não tivemos em momento algum, sequer em 2018 e menos ainda, obviamente, em 2022. Aliás, com seus sinais de nova esperança, a data mais recente reuniu numa só trincheira todos os personagens de vocação democrática, inclusive os que antes se contrapuseram duramente.
Coisa bem diferente é postular que o segundo mandato do aspirante a autocrata teria aprofundado a ação da toupeira ou, para usar termo militar, o trabalho de sapa contra as instituições consagradas na Constituição. Uma democracia fortemente tutelada e uma sociedade conflagrada poderiam, em conjunto, somar a repressão “tradicional” dos aparelhos de Estado e a violência nascida das entranhas do corpo social, violando todas as dimensões da liberdade duramente conquistadas após a ditadura. E assim terminariam por se desenhar as linhas de um pós-fascismo, ou de um fascismo do século XXI, encerrando tragicamente, com um grau maior ou menor de coerção, o mais longo período de vida democrática que tivemos sob a República.
Há quem diga que construções intelectuais dizem pouco, quase nada, sobre as lutas cruas pelo poder a que se entregam de corpo e alma as forças políticas e que são sua razão única de ser. Afinal, o cinismo autoriza a dizer que programas convincentes sempre podem ser encomendados na primeira esquina e nunca falta gente para fornecer discursos altissonantes.
A vantagem de conjunturas críticas, como esta que ainda não deixamos para trás, é que evidenciam a conexão mais íntima entre ideias e atitudes, ideólogos e políticos – mesmo que uns sejam farsantes e os outros toscos. Uma conexão que funciona para o bem e, como acabamos de ver, vezes sem conta para o mal, o que talvez seja uma das advertências mais poderosas sobre as possibilidades de degradação social e política sempre latentes em qualquer circunstância.
Sobre o autor
*Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta
* O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de novembro de 2022 (49ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Como esperado, o segundo turno da eleição presidencial resultou na vitória do candidato do campo democrático sobre o candidato da situação, por uma margem consideravelmente inferior, contudo, à previsão inicial. Na verdade, o leque de recursos financeiros e políticos mobilizados pelo governo, de legalidade ao menos duvidosa, mostrou alguma eficácia, da liberação indiscriminada de verbas e créditos novos às operações de restrição da mobilidade dos eleitores no dia do pleito.
Em condições de normalidade democrática, a disputa estaria encerrada, e todos ficariam em situação de vencedores e vencidos, engajados, de forma aberta e cooperativa, no processo de transição. Ocorre que no último quadriênio, como sabemos, não houve normalidade democrática no país. Em consequência, o governo reconheceu sua derrota de forma ambígua e tardia, ao tempo em que encorajou a mobilização de partidários seus na frente dos quarteis, em protesto contra o resultado eleitoral, em favor de intervenção militar, com a finalidade declarada de inverter a vontade manifesta dos cidadãos e declarar a minoria como se maioria fosse.
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A permanência de militantes governistas nas ruas, com a complacência dos responsáveis pela manutenção da ordem e o apoio financeiro cotidiano de redes de empresários golpistas, constitui um desafio aberto à democracia brasileira, desafio que deverá ser enfrentado de forma permanente, por todos nós, a partir do primeiro dia do novo governo.
Hoje, contudo, a tarefa imediata dos democratas é sua articulação firme e mobilização ampla contra as manifestações golpistas, que configuram um crime contra o estado democrático de direito, assim como contra a propaganda favorável a elas, que caracteriza uma atitude de apologia a esse crime. Urge assegurar, depois da vitória eleitoral, a diplomação e a posse dos eleitos, os degraus posteriores da sequência prevista na regra eleitoral.
Apenas a partir da posse poderá ter início o processo efetivo de metamorfose da frente ampla eleitoral que se formou entre o primeiro e o segundo turno das eleições em frente ampla política e programática. Esse não será, claro está, um processo simples. Seu sucesso dependerá em boa medida da capacidade de os participantes construírem as convergências necessárias e manter, simultaneamente, a manifestação aberta e transparente de suas diferenças para informação e julgamento da opinião pública.
As tarefas não são fáceis, mas o caminho a ser trilhado está claro: contra toda tentativa de subverter o resultado das urnas; todo apoio ao processo de transição; pela diplomação e posse dos eleitos; pela constituição de um governo de ampla frente democrática, com a participação de todas as forças contrárias ao projeto autoritário e retrógrado do governo que se encerra!
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Desafios de Lula passam por garantir auxílios e aumentar salários
Gabriel Carriconde*, Brasil de Fato
Desde a eleição, o atual presidente e candidato derrotado Jair Bolsonaro sumiu e o país parece estar sem governo até 31 de dezembro. Até por isso, muito das especulações e do sobe-e-desce da economia vêm sendo atribuídos a falas do presidente eleito, Luiz inácio Lula da Silva. Numa disputa em que os chamados “mercados” e mesmo a imprensa corporativa pretendem enjaular o próximo presidente para que ele não faça mudanças na economia prometidas em campanha.
Num momento em que os truques de Bolsonaro para tentar ganhar a eleição já começam a dar com os burros n’água, com, por exemplo, alta nos preços, depois de uma deflação ocasionada pela tirada de impostos dos combustíveis dos estados. Além dos muitos furos no orçamento do ano que vem, enviado por Bolsonaro, que o novo governo vem tentando enfrentar desde já.
O discurso do presidente eleito contra a fome, no encontro com parlamentares aliados em Brasília, por exemplo, no último dia 10, foi usado nessa especulação, por conta de uma suposta flexibilidade fiscal e o rompimento do teto de gastos para garantir dinheiro para programas sociais.
“Qual é a regra de ouro deste país? É garantir que nenhuma criança vá dormir sem tomar um copo de leite e acorde sem ter um pão com manteiga para comer todo dia. Essa é a nossa regra de ouro”, disse Lula. O discurso “assustou” o mercado especulativo e fez o índice Bovespa cair 3% e o dólar subir para R$ 5,32 em um dia.
Pressão
Para a economista Juliane Furno, o sistema financeiro, que vem especulando a respeito das decisões que Lula tomará na economia, irá cumprir um papel de pressão política. “O mercado vai fazer o que já fez em outros governos Lula, que é pressionar politicamente o governo. O que provavelmente eles irão defender é uma estabilidade nos preços, com controle da inflação e pressionar para um controle dos gastos do estado”, afirma.
O presidente eleito ainda não confirmou os nomes para comandar a economia e negocia com o Congresso um Projeto de Emenda à Constituição (PEC) para garantir o pagamento de 600 reais do Auxílio Brasil em 2023. Os nomes de Pérsio Arida e André Lara Resende, mais liberais, e de Nelson Barbosa e Guilherme Mello, mais ligados ao PT, formam o grupo de trabalho econômico no governo de transição.
Com a pluralidade de visões da equipe econômica de transição, reunindo nomes históricos ligados ao PSDB, caso de Lara Resende e Pérsio Arida, Furno reflete que algumas linhas deverão ser seguidas. “Temos dois nomes mais ligadas ao PT, o Pérsio Arida, que é mais liberal, e o Lara Resende, que é um crítico do teto de gastos. O que esse grupo irá desenhar em curto prazo é uma fuga do teto de gastos, em médio prazo é uma nova regra fiscal, que possibilite uma meta de gastos, e não só de contenção”, reflete.
Com o orçamento reduzido em diversas áreas sociais, como o Farmácia Popular, Auxílio Brasil, e até para a saúde, o desafio do futuro governo será garantir promessas de campanha como o aumento do salário mínimo e a recuperação de programas sociais, com um orçamento apertado, apresentado pelo governo Bolsonaro.
Estado de tragédia
Em entrevista para uma rádio de Curitiba, o deputado federal e membro do grupo do Planejamento, Orçamento e Gestão, Ênio Verri, afirmou que o orçamento federal para 2023, elaborado pelo governo Bolsonaro, é trágico.
“O orçamento de 2023 está em estado de tragédia, teremos enormes desafios. Com o teto de gastos, está faltando, para atingirmos o mínimo necessário, 15 bilhões”, disse.
Verri ainda afirmou que a prioridade do novo governo será a manutenção do Auxílio Brasil, recuperar obras paradas e o retorno do Farmácia Popular. “O desafio que nós temos é garantir o Auxílio Brasil, garantir o aumento do salário mínimo, garantir os recursos para saúde, recuperar o Farmácia Popular e recuperar as obras paradas'', afirmou.
Entenda o que está em jogo agora
- Teto de gastos: Criado no governo Temer por uma emenda constitucional, o teto de gastos impede que o governo aumente seus gastos primários além da inflação por 20 anos desde a adoção da medida. Resumindo, não pode aumentar despesas com saúde, educação etc. É bom lembrar que a medida não impede o aumento das despesas com juros, o que beneficia os bancos e o tal “mercado”.
- Salário mínimo e auxílios: Nos últimos quatro anos, não houve aumento real do salário mínimo. Lula está tentando negociar com o Congresso medidas para voltar a dar aumento para o salário, além de garantir a continuidade do Bolsa Família e dos Auxílios Emergenciais maiores, que não têm recursos previstos no orçamento.
- Geração de empregos: Outro ponto importante, é conseguir recursos para programas como o Minha Casa Minha Vida para a geração de empregos no país. A queda na taxa de desemprego nos últimos meses está ligada principalmente ao crescimento do trabalho informal e com salários mais baixos.
*Texto publicado originalmente no site Brasil de Fato
Como as cabeçadas se tornaram uma das maiores preocupações do futebol
André Biernath*, BBC News Brasil
A primeira delas foi em 1958, quando era o capitão da Seleção Brasileira e ergueu pela primeira vez a taça da Copa do Mundo para o país.
A segunda ocorreu em 2014, quando a família decidiu doar o cérebro do ex-atleta para estudos científicos, logo após a morte dele.
No final da vida, Bellini desenvolveu sintomas típicos de demência, como esquecimentos frequentes e dificuldades de raciocínio.
A análise do órgão mostrou que, na verdade, ele foi acometido pela encefalopatia traumática crônica.
Essa condição afeta pessoas que sofreram pancadas repetidas na cabeça ao longo da vida — como é o caso de jogadores de futebol e boxeadores.
Ao lado de outros ex-esportistas, a história do capitão do primeiro título mundial brasileiro jogou luz e revelou o impacto que os esportes de contato podem ter na saúde do cérebro pelo resto da vida.
Mas, afinal, o que é a encefalopatia traumática crônica? E quais são os meios de evitar esse problema?
A questão está na frequência
A médica Roberta Diehl Rodriguez, do Departamento de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), explica que essa doença passou a ser estudada mais a fundo recentemente, nos últimos 15 anos.
"E nós só conseguimos fazer o diagnóstico definitivo da encefalopatia traumática crônica depois que o indivíduo morre, por meio da análise do cérebro", diz.
Pelo que se sabe até o momento, o quadro pode se manifestar de diferentes maneiras.
Alguns apresentam sintomas parecidos ao do Alzheimer, como perda de memória e dificuldades para completar o raciocínio.
Em outros, porém, os incômodos se aproximam mais de quadros psiquiátricos, como o transtorno bipolar, em que ocorrem alterações de humor.
Há também casos descritos em que o paciente desenvolveu vícios fortes em apostas, álcool ou outras drogas.
"Os estudos mais recentes também nos mostram que, mais importante do que a quantidade ou a força das pancadas, um aspecto fundamental da doença é o intervalo entre os traumas", informa Rodriguez.
Ou seja: se o indivíduo tem um choque de cabeça e, poucos dias depois, passa por um acidente parecido, isso representaria um sinal de alerta maior.
Possivelmente, pancadas tão próximas não dão tempo de o cérebro se recuperar bem daquele primeiro impacto, o que piora ainda mais os efeitos que isso tem ao longo da vida.
É por isso, aliás, que atletas de algumas modalidades são mais propensos a sofrer com a tal da encefalopatia traumática crônica: a própria natureza da profissão os predispõe a levar pancadas no crânio.
Os primeiros dessa lista são os lutadores, já que a meta desse esporte está justamente em acertar a cabeça do adversário com socos e chutes — no passado, inclusive, a doença era conhecida como "demência pugilística", nome que caiu em desuso recentemente.
Grandes nomes do boxe, como Muhammad Ali e Éder Jofre, por exemplo, apresentaram problemas neurológicos no final da vida.
Jogadores de rúgbi e futebol americano também são mais propensos a desenvolver o problema, já que esses esportes são marcados por muitos choques e encontrões.
Por fim, os profissionais do futebol completam o grupo. Como cruzamentos e bolas aéreas são um recurso importante do esporte, as batidas de crânio são frequentes — e, como você vai entender mais adiante, têm se tornado mais comuns nas últimas décadas.
Cérebro em desalinho
Mas o que acontece na cabeça logo após a pancada?
Para entender esse mecanismo, é preciso conhecer antes uma proteína chamada TAU.
"Ela ajuda a manter a estrutura dos neurônios e auxilia no transporte de nutrientes entre uma célula e outra", resume Rodriguez.
Só que as pancadas repetidas parecem alterar um pouco desse balanço neuronal.
Quando ocorre o choque de cabeça, essa proteína se rompe e ocorre uma inflamação.
E aí entra o aspecto crônico das batidas. "Se outra pancada acontece logo depois, o cérebro não consegue se recuperar da primeira e aquela proteína começa a se depositar ali", diz a neurologista.
"Com o passar do tempo, esses agregados anormais de proteína TAU começam a prejudicar a passagem de informações e nutrientes nos neurônios", complementa.
E isso, ao longo de várias décadas, pode culminar em grandes dificuldades para o funcionamento adequado do cérebro.
Vale mencionar que esses mesmos emaranhados de proteína TAU são observados em outras enfermidades neurológicas, como o próprio Alzheimer.
Na encefalopatia traumática crônica, porém, é possível identificar um fator que está por trás do acúmulo dessa substância: as pancadas repetidas na cabeça.
Rodriguez conta que a USP possui um grande banco de cérebros, que são conservados para pesquisas científicas.
"Num estudo, eu avaliei 1.157 desses órgãos que pertenceram a pessoas que não tinham um histórico de atleta profissional."
"Desses, só encontramos a encefalopatia traumática crônica em sete homens", continua.
"Depois, consegui conversar com a família de um deles e descobri que o indivíduo era goleiro de um time amador, pelo qual disputava jogos no final de semana", revela.
O futebol mudou
O médico Jorge Pagura, da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), avalia que o atual estilo de jogo de equipes e seleções faz com que os choques de cabeça se tornem cada vez mais comuns e perigosos.
"Antigamente, o futebol era mais disputado com os pés. Se você pegar qualquer vídeo de uma partida dos anos 1970, poderá conferir que os jogadores tinham espaço para trabalhar a jogada, com o adversário marcando a uma distância de um a três metrôs", descreve.
"Atualmente, você vê três ou quatro atletas disputando o mesmo pedaço do gramado", compara.
Segundo Pagura, o futebol "saiu da era dos grandes craques para entrar na época dos grandes atletas".
"Falamos de profissionais que são mais altos, mais fortes e que correm distâncias maiores", diz.
"Além disso, a bola aérea virou um artifício valioso. Hoje, muitos gols saem de cabeceios após cruzamentos na lateral ou na linha de escanteio", complementa.
Estamos diante, portanto, de um cenário que facilita ainda mais os encontrões de cabeça entre atletas adversários (ou até mesmo entre companheiros do mesmo time).
Prova disso são estudos realizados pela própria CBF, que monitoram as lesões mais comuns que ocorrem nas edições recentes do Campeonato Brasileiro.
Em 2019, a cabeça foi o segundo local do corpo com o maior número de machucados diagnosticados (em primeiro lugar, ficaram os músculos das coxas).
Para ter ideia, 14% de todas as lesões que ocorreram na competição afetaram o crânio dos atletas.
O que fazer?
Pagura entende que a conscientização sobre a encefalopatia traumática crônica no futebol tem aumentado.
"Hoje temos um protocolo bem definido e o atleta tem que ser substituído se o médico achar necessário após um trauma", aponta.
"Essas pancadas podem ser um verdadeiro inimigo oculto, porque em 80% das vezes não há alteração de consciência e o atleta acha que pode continuar no jogo", calcula.
Com o avanço do conhecimento sobre o quadro degenerativo, a tendência é que as próprias regras do jogo passem por mudanças.
Uma das primeiras alterações foi recentemente promovida pelo Conselho da Associação Internacional do Futebol (Ifab, na sigla em inglês).
Os representantes da entidade recomendaram que as cabeçadas intencionais na bola devem ser proibidas nas partidas que envolvam crianças com menos de 12 anos.
Nessa faixa etária, as jogadas aéreas serão paralisadas pelo juiz, que marcará uma falta para o time adversário.
Para Rodriguez, a medida faz sentido, até porque o cérebro ainda está numa fase de desenvolvimento nessa idade.
"Não se trata, claro, de demonizar o esporte ou proibir a prática do futebol, mas encontrar um meio termo para uma competição mais saudável e com menos riscos", pondera.
E, embora as cabeçadas sejam menos comuns entre atletas de final de semana e nos jogos amadores, Pagura recomenda que todos tomem os cuidados necessários para evitar traumas no crânio.
"Ao contrário das lesões que acometem os joelhos ou os tornozelos, em que muitas vezes é fácil notar o inchaço pela pele, o cérebro pode não dar muitos sinais imediatos de algum problema", compara.
"Se porventura você sofrer alguma pancada e ficar com dor de cabeça ou no pescoço, é importante procurar o pronto-socorro para ver se está tudo bem", conclui.
*Texto publicado originalmente no site BBC News Brasil
Qatar proíbe a venda de cerveja em estádios da Copa a dois dias da abertura
Alex Sabino e Luciano Trindade*, Folha de S. Paulo
A Fifa confirmou no início da tarde desta sexta-feira (18), horário do Qatar, que não será mais permitida a venda de cerveja dentro e nos arredores do estádio da Copa do Mundo. A decisão foi tomada pelo Comitê da Entrega e Legado, que organiza o Mundial. O torneio terá início neste domingo (20).
"Após discussões entre o país anfitrião e a Fifa, uma decisão foi tomada para focar a venda de bebidas alcoólicas na fan fest, outros destinos turísticos e pontos autorizados, removendo pontos de venda de cerveja dos perímetros da Copa do Mundo de 2022", disse a entidade.
Consultados sobre o impacto da medida no contrato de patrocínio e na receita da competição, Fifa e Budweiser não se pronunciaram até o momento.
A principal patrocinadora do Mundial é justamente a Budweiser, que venderia cerveja alcoólica dentro do perímetro das oito arenas, três horas antes e uma hora depois de cada jogo.
A fabricante de cerveja pagou US$ 75 milhões (R$ 405 milhões em valores atuais) para ser patrocinadora oficial do evento. A proibição da venda da bebida nos estádios representará um agravamento das tensões entre a entidade máxima do futebol e o país-sede.
Só a versão zero (sem álcool) da cerveja continuará disponível em todos os estádios
"As autoridades do país anfitrião e a FIFA continuarão a garantir que os estádios e áreas adjacentes proporcionem uma experiência agradável, respeitosa e agradável para todos os torcedores", afirmou a entidade máxima do futebol.
Ao final da nota, a Fifa fez um aceno à patrocinadora: "os organizadores do torneio agradecem a compreensão e apoio contínuo da AB InBev ao nosso compromisso conjunto de atender a todos durante a Copa do Mundo".
Desde o anúncio do Qatar como anfitrião da Copa, o tema bebida alcoólica era um problema. O contrato pelo direito de vender cervejas nos estádios é peça importante na engrenagem de milhões do Mundial. No Qatar negociar álcool não é crime, mas ser encontrado bêbado ou bebendo é, e o governo faz o possível para dificultar o consumo.
Durante a Copa, as bebidas podem ser encontradas em poucos bares, quase sempre dentro de hotéis. A reportagem da Folha encontrou um desses lugares.
Segundo o jornal The New York Times, a Budweiser recebeu ordem para posicionar suas tendas nos estádios em locais menos visíveis. A determinação teria vindo do xeque Jassim bin Hamad bin Khalifa al-Thani, irmão do emir do país.
De acordo com o site Expensivity, que calcula o valor das cervejas em diferentes nações, no Qatar está a mais cara do mundo. O governo aplica imposto de 100% na importação do produto. A medida foi apelidada de "taxa do pecado".
O único ponto de distribuição no país é controlado pela Qatar Distribution Company (QDC), uma companhia estatal que concentra todo o álcool importado no país (que não produz nada).
*Texto publicado originalmente na Folha de S. Paulo
Lula 'toma posse' no exterior em meio a vácuo deixado por Bolsonaro
Laís Alegretti*, BCC News Brasil
Mais de 40 dias antes de assumir o Palácio do Planalto e com Jair Bolsonaro recolhido, Luiz Inácio Lula da Silva é tratado, na prática, como se já fosse presidente em compromissos no exterior e consegue atenção internacional com pauta ambiental.
Após participar da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP27), Lula tem encontros em Lisboa, nesta sexta-feira (18/11), com o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, e com o primeiro-ministro, António Costa. Na manhã de sábado (19/11), Lula tem previsto encontro com a comunidade brasileira no Instituto Universitário de Lisboa
Na COP27, no Egito, Lula teve encontros com autoridades de outros países e foi aguardado por um grande público internacional - o que levou a imprensa francesa, por exemplo, a dizer que o brasileiro foi recebido "como uma estrela de rock" (jornal econômico Les Echos) e a descrever que foi "acolhido com um imenso fervor" (Le Monde).
O diplomata Rubens Ricupero avalia que Lula tem dominado a agenda "um pouco pelo acerto dele, um pouco pela omissão de Bolsonaro".
"Para todos os efeitos, é como se (Lula) já fosse presidente, até porque o outro esvaziou. Nunca vi isso antes, é como se não tivesse mais presidente, há não sei quantos dias. A agenda (de Bolsonaro) está completamente abandonada", disse o ex-embaixador e ex-ministro à BBC News Brasil ao comentar a viagem de Lula.
O silêncio de Bolsonaro e a escassez de compromissos oficiais vêm sendo destacados na imprensa brasileira. Além de poucos compromissos na agenda em Brasília e de um ritmo baixo de postagens no Twitter, Bolsonaro também não participou da cúpula do G20, na Indonésia.
'Legitimidade reforçada'
Ricupero diz que o fato de Lula ter conseguido imprimir um tratamento de presidente no exterior antes da posse "reforça a legitimidade em um momento em que aqui há um movimento muito grande de pessoas que contestam as eleições", em referência aos protestos de parte dos apoiadores de Bolsonaro.
O diplomata considera que Lula acertou no momento da viagem, no início do período de transição. Agora, ele diz, "o calendário tende a favorecer o Lula", já que há a Copa do Mundo e as festas de fim de ano até a posse.
"Com a Copa do Mundo, eu acho que boa parte desse sentimento de mobilização política (contra as eleições) vai abrandar. Terminando a Copa do Mundo, entra nas festas de Natal. Aí Ano Novo e posse, e é outra história", diz. "O momento mais crucial era agora."
Ao deixar o Brasil no início do governo de transição, Lula também se distancia, em certa medida, da disputa por espaço entre partidos aliados na formação do novo governo.
Ricupero, que já foi ministro do Meio Ambiente e da Fazenda lembra, ao mencionar viagens de Tancredo Neves e de Juscelino Kubitschek em momentos semelhantes, que "esse período de transição no Brasil é sempre muito carregado de risco, porque há muita intriga, além da chateação dos pedidos de todo tipo, porque todo mundo cai em cima do presidente".
O destaque negativo ficou para a carona que Lula pegou, para chegar ao Egito, no jato do empresário José Seripieri Filho, fundador da Qualicorp e dono da QSaúde, que chegou a ser preso em 2020 em operação que investigava supostas irregularidades na campanha de José Serra (PSDB-SP) ao Senado, em 2014.
"Eles deveriam ter calculado que cairia mal. Não creio que terá desdobramentos maiores, mas foi um descuido", diz Ricupero.
Ao lembrar que viagens de Tancredo foram feitas em aviões comerciais, Ricupero pondera que "naquela época não havia ameaça à segurança que há hoje" e diz que, no atual contexto, "também seria penoso pegar um avião comercial e ser vítima de manifestações de bolsonaristas, como essas contra os ministros do supremo em Nova York".
O diplomata Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Londres e Washington, diz que não há problema jurídico na carona de Lula no avião particular. "Há um problema ético aí, se você quiser. Um problema ético de você aceitar um oferecimento de um empresário para viajar num avião privado."
Barbosa destaca problemas de segurança em uma eventual viagem em voo comercial e diz que, idealmente, o presidente eleito teria se deslocado de carona em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) que tivesse viajado para o Egito.
Lula em Portugal
Ao noticiar a previsão de visita de Lula a Portugal, a imprensa portuguesa destacou que Bolsonaro nunca esteve no país enquanto presidente e que, no Brasil, cancelou um encontro com Marcelo Rebelo de Sousa em julho deste ano porque o português encontraria Lula.
O jornal Expresso escreveu que a visita de Lula "marca uma nova etapa das relações luso-brasileiras, que tinham sido objeto de um distanciamento institucional durante a Presidência de Jair Bolsonaro". O jornal Público disse que há "carga simbólica" na visita de Lula "por decorrer no ano do bicentenário da independência brasileira e por acontecer meses depois de Bolsonaro ter rejeitado receber o chefe de Estado português".
A visita do presidente português ao Brasil no 7 de setembro deste ano, que marcou o bicentenário, também é lembrada.
Rubens Barbosa diz que houve uma "desconsideração" com o presidente português no desfile. "Ele estava ao lado do presidente, o presidente não falava com ele, entrou o cara da Havan (Luciano Hang), ficou no meio... Isso foi uma coisa, diplomaticamente, muito ruim".
Ricupero já havia declarado que considera que o tratamento dado ao presidente de Portugal no governo Bolsonaro foi "inqualificável" e voltou a defender uma reparação.
"Os portugueses fizeram tudo o que nós pedimos, mandaram até aquela coisa do coração de Dom Pedro 1º, com aquele aspecto um pouco lúgubre... Colaboraram em tudo para que se pudesse comemorar o bicentenário, que acabou sendo um fracasso por culpa nossa, não deles".
Ricupero diz que "os portugueses foram maltratados". "Quando houve o 7 de Setembro, ele (Bolsonaro) deixou o presidente Portugal ao lado dele no palanque, mas não deu atenção nenhuma. E fez um tipo de discurso completamente fora do espírito da celebração", diz o diplomata.
E a falta de uma visita de Bolsonaro aos portugueses?
Para Rubens Barbosa, a ausência de uma visita de Bolsonaro a Portugal diz mais sobre a política externa do governo Bolsonaro em geral do que sobre a relação entre os dois países em si.
"Bolsonaro não visitou quase país nenhum, não tem nada de discriminação contra Portugal. Ele tem uma política externa muito complicada", disse. "A relação com Portugal é muito intensa e eu acho que o Lula, passando por lá, vai retomar essa tradição de contato estreito entre os dois países."
Lula na COP27: meio ambiente e a atenção internacional
A atenção internacional que Lula conseguiu logo após sua eleição também tem a ver com o tema central da viagem, já que a pauta ambiental é o maior interesse internacional no Brasil, devido principalmente à Amazônia.
"Lula foi para uma conferência que é, nesse momento, a mais importante da agenda internacional e na qual o Brasil é relevante", destaca Ricupero.
Na COP27, Lula disse que "não medirá esforços para zerar o desmatamento de nossos biomas até 2030" e afirmou que todos os crimes ambientais vão ser combatidos "sem trégua". Ele também propôs que a COP de 2025 ocorra na Amazônia.
Ricupero, que conta ter se filiado à Rede Sustentabilidade, diz que a pauta ambiental "deveria dominar grande parte da política externa" do novo governo Lula. "Tem outros aspectos da política externa do PT que são mais controversos - por exemplo, ele vai ter em algum momento que se posicionar em relação à Nicarágua, Cuba e Venezuela. No passado, sempre teve simpatia ideológica do PT (a governos desses países) e eu não sei o que ele vai fazer", disse.
"(A pauta ambiental) é um assunto que pode render enormes retornos ao Brasil a curto prazo, sem muito custo. O custo que tem é interno, de enfrentar os grileiros, mineradores, garimpeiros ou os madeireiros. De qualquer forma, ele é obrigado a enfrentar, porque são todas atividades criminosas, ilegais", diz.
*Texto publicado originalmente no site BBC News Brasil
Enem e Copa do Mundo provocam mudança no dia da Consciência Negra
Igor Carvalho*, Brasil de Fato
Por conta da abertura da Copa do Mundo e da segunda prova do Enem, que acontecem na tarde deste domingo (20), o movimento negro decidiu mudar o horário da 19ª Marcha da Consciência Negra de São Paulo. A manifestação terá início às 10h, no MASP, na Avenida Paulista. Em outros anos, o evento ocorreu às 17h.
Sob o mote "Por um Brasil e uma São Paulo com democracia e sem racismo", o movimento pretende lembrar a derrota de Jair Bolsonaro (PL) nas urnas para Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
"Importante estarmos na rua. Temos que celebrar a queda do governo de Bolsonaro, nós derrubamos Bolsonaro, a força do movimento negro impôs uma derrota ao genocida. Agora, é nos juntarmos nas ruas e nos organizarmos para o próximo período", afirmou Douglas Belchior, fundador da Uneafro. Ele acompanha a delegação da Coalizão Negra por Direitos que está no Egito participando da COP27.
Além de lembrar a vitória de Lula, o movimento negro também protestará contra a retirada de câmeras dos policiais militares, medida anunciada ainda em campanha pelo governador eleito do estado, o fluminense Tarcísio de Freitas (PL).
"Agora, em São Paulo temos um herdeiro do bolsonarismo, que é Tarcísio de Freitas, próximo governador, que já fala em tirar as câmeras dos policiais, medida que comprovadamente derruba a letalidade policial e, por consequência, garante a vida do nosso povo. Nenhum recuo agora, vamos para a rua", convocou Belchior.
Movimento negro paulista cobrará Tarcísio de Freitas por câmeras em policiais / Foto: Divulgação
*Texto publicado originalmente no site Brasil de Fato. Título editado