Nas entrelinhas: Entre Doria e Tebet, terceira via definha
Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas / Correio Braziliense
É cada vez mais difícil uma chapa que reúna o ex-governador de São Paulo João Doria (PSDB) e a senadora Simone Tebet (MDB-MS). Nenhum dos dois aceita ser vice nem se apresenta como candidato competitivo o suficiente para atrair outros aliados. Ambos estão sendo pressionados pela maioria dos deputados e senadores de seus respectivos partidos a desistirem da disputa e resistem, com a diferença de que o presidente do MDB, deputado Baleia Rossi (SP), pretende manter a candidatura de Tebet, enquanto seu colega do PSDB, Bruno Araujo (PE), já foi até destituído da coordenação de campanha pelo candidato tucano.
Hoje, haveria uma reunião da Executiva do PSDB para dar um xeque-mate em Doria. Fora tudo combinado num encontro de cúpula na semana passada, promovido pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), do qual também participou Araújo. Foi tiro pela culatra. Doria agendou um jantar na noite de ontem com a bancada federal e esvaziou a reunião, que foi adiada. Advertido pelos aliados de que a maioria da bancada prefere não ter candidato, para utilizar os recursos do fundo eleitoral na própria campanha, o ex-governador pagou para ver. Tanto a ala que apoia Doria quanto a que desejava o ex-governador gaúcho Eduardo Leite, que declarou apoio ao colega paulista, mesmo juntas, são minoritárias.
É um jogo de faz de conta, no qual os deputados tucanos de São Paulo pontificam. Gostariam de se livrar de Doria, a pretexto de que isso possibilitaria mais espaço para a reeleição do governador Rodrigo Garcia (PSDB), que o sucedeu. Mas nenhum parlamentar paulista tem coragem de assumir essa posição — por que os outros o fariam? As inserções do PSDB na tevê e as viagens de Doria pelo país esvaziaram a conspiração. Todas esperam as próximas pesquisas para saber se o tucano conseguirá sair da margem de erro nas e ultrapassar os cinco dígitos. Doria aproveita para jogar com o tempo a seu favor. Se a terceira via se inviabilizar de vez, cogita montar uma chapa da federação PSDB-Cidadania tendo a senadora Eliziane Gama (MA) como vice.
No MDB, a situação não é muito diferente. Uma ala do partido está engajada na campanha do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sobretudo no Nordeste. O pessoal do Sul do país é Bolsonaro de carteirinha. O presidente da legenda, Baleia Rossi, porém, tem o controle da maioria dos diretórios regionais. As pesquisas qualitativas valorizam o perfil de Simone Tebet, cuja rejeição é baixíssima, e fortalecem sua posição. Além disso, sem uma candidatura própria, a maioria da legenda migraria sem constrangimentos para a candidatura do presidente da República. Manter a candidatura da senadora passou a ser uma questão de sobrevivência.
Lula e Bolsonaro
O ex-presidente comete um “sincericídio” atrás do outro, que os aliados começam a apontar como uma das causas do crescimento de Bolsonaro nas pesquisas eleitorais. O último foi seu posicionamento sobre a guerra da Ucrânia, na entrevista que concedeu à revista Time. Lula deu uma grande demonstração de prestígio internacional, mas as declarações sobre o presidente da Ucrânia foram considerados dribles a mais: “Às vezes, fico vendo o presidente da Ucrânia na televisão como se estivesse festejando, sendo aplaudido em pé por todos os parlamentos, sabe? Esse cara é tão responsável quanto o Putin”, disse.
O petista também criticou Putin por ter invadido a Ucrânia, e o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, pela expansão da Otan. Mas o comentário sobre o líder ucraniano, que hoje é a grande estrela política da Europa, provocou uma enxurrada de críticas, que ofuscaram a entrevista na opinião pública brasileira. Externamente, a repercussão foi enorme. A Time reposicionou o petista como grande protagonista na política internacional.
Bolsonaro está vivendo um bom momento em termos eleitorais. As medidas que o governo vem adotando para transferir renda para população mais pobre e oferecer microcrédito aos empreendedores começam a influenciar as pesquisas eleitorais a seu favor. Ao mesmo tempo, o confronto dele com o Supremo Tribunal Federal (STF), no caso do deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), emulou o bolsonarismo raiz, que defende intervenção militar e fechamento da Corte. Essas medidas, porém, estão sendo mitigadas pela inflação e a alta dos juros, que ontem foi a 12,75% (Selic). O mercado projeta um novo aumento de juros para conter a inflação, que foi de 1,73% (IPCA-15) somente em abril.
A resultante desse processo, até as eleições, é uma incógnita. A situação da economia pode decidir o pleito. No momento, criar mais dificuldades para uma candidatura de terceira via. Ciro estanca o crescimento de Lula, mas não extrapola setores de centro-esquerda. Há sinais de deriva do centro político em direção a Bolsonaro, o que explica o posicionamento do PSD, que não lança candidato nem apoia ninguém, e do União Brasil, que lançou o deputado Luciano Bivar (PE) no lugar Sergio Moro.
Nas entrelinhas: Silêncio de Fux desanuvia a crise
Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas / Correio Braziliense
O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, reuniu-se ontem com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), e com o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira. Os encontros tiveram o claro propósito de desanuviar o clima de tensão existente entre a Corte e os demais Poderes, em razão do caso do deputado Daniel Silveira, cuja condenação à prisão foi perdoada (graça) pelo presidente Jair Bolsonaro e, também, das declarações do ministro Luís Barroso sobre o posicionamento das Forças Armadas em relação à segurança das urnas eletrônicas.
O discreto posicionamento de Fux durante o recrudescimento dos ataques de Bolsonaro ao Supremo foi muito questionado pelos próprios pares, nos bastidores da Corte, mas ajudou a distensionar o ambiente político, ao menos por enquanto. Após o encontro com Pacheco, o STF distribuiu nota na qual afirma que ambos estão comprometidos com “a harmonia entre os Poderes, com o devido respeito às regras constitucionais”. Ao sair do encontro, Pacheco falou:
“O que nós não podemos é permitir que o acirramento eleitoral — que é natural do processo eleitoral e das eleições — possa descambar para aquilo que eu reputei como anomalias graves e se permitir falar sobre intervenção militar, sobre atos institucionais, sobre frustração de eleições, sobre fechamento do Supremo Tribunal Federal. Essas são anomalias graves que precisam ser contidas, rebatidas com a mesma proporção a cada instante porque todos nós, todas as instituições, têm obrigações com a democracia, com o estado de direito, com a Constituição”, disse o presidente do Senado, conciliador.
A conversa do ministro da Defesa com o presidente do Supremo, porém, foi antecedida por uma ostensiva demonstração de alinhamento do Exército com o presidente Bolsonaro, que participou da reunião com o Alto Comando da Força pela manhã, ao lado do general Paulo Sérgio. Depois, ambos foram para o Ministério da Defesa. Os dois eventos não constavam da agenda oficial de Bolsonaro, que explora o esgarçamento das relações da cúpula militar com o Supremo, agravadas pelas declarações de Barroso, na semana passada.
“Durante o encontro, o ministro da Defesa afirmou que as Forças Armadas estão comprometidas com a democracia brasileira e que os militares atuarão, no âmbito de suas competências, para que o processo eleitoral transcorra normalmente e sem incidentes”, registrou Fux, por meio de nota distribuída pelo Supremo. O general Paulo Sérgio saiu do encontro sem dar declarações.
Bolsonaro coloca em dúvida a segurança das urnas eletrônicas e propõe uma contagem paralela dos votos pelos militares, o que é um absurdo institucional. Essa questão é tratada por Bolsonaro como se fosse um posicionamento estratégico, para não reconhecer o resultado das urnas, caso perca as eleições. O favoritismo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas pesquisas alimenta a insatisfação dos militares e de parte da opinião pública com a anulação de sua condenação pelo Supremo, com base no princípio do juiz natural.
Caso Silveira
A tensão política foi momentaneamente desanuviada, mas o caso Daniel Silveira é uma espécie de bomba relógio. O Supremo ainda não concluiu o julgamento e há muitas dúvidas no ar, ainda. Os advogados do parlamentar querem que o inquérito seja simplesmente arquivado, em razão da graça concedida por Bolsonaro, com o argumento de perda de objeto da ação. Dificilmente a maioria dos ministros da Corte acolherá esse pedido, até porque o parlamentar mantém sua postura desafiadora, participando de atos contra o Supremo. Isso pareceria uma rendição.
A tendência é a Corte aceitar o perdão de Bolsonaro, mas não livrar o parlamentar da ilegibilidade, com base na lei da Ficha Limpa, porque a graça não anula a condenação, apenas o livra do cumprimento da pena de prisão. Sem os direitos políticos, a candidatura de Silveira ao Senado, pelo Rio de Janeiro, estaria liquidada. O parlamentar se tornaria um zumbi nos corredores da Câmara, contando os dias que faltam para concluir seu atual mandato.
Entretanto, enquanto isso não acontece, Daniel Silveira circula pelo plenário como uma estrela política ascendente no campo bolsonarista, a encarnar o descontentamento dos seus pares com o Supremo, no lusco fusco da posição ambígua do presidente da Casa, deputado Arthur Lira (PP-AL). O parlamentar se tornou um personagem mais proeminente do que qualquer um dos líderes da situação ou da oposição.
A volta às sessões presidenciais da Câmara, por outro lado, revelou um parlamento dócil e omisso diante de assuntos relevantes, como o desaparecimento de uma aldeia inteira de ianomâmis, atacados por garimpeiros, denunciado ontem da tribuna pela deputada Perpétua Almeida (PcdoB-AC) e outros parlamentares. Após denúncias de estupro e morte de uma menina de 12 anos e do desaparecimento de uma criança de 3 anos, a comunidade Aracaçá, no Norte de Roraima, sumiu da aldeia e suas casas foram queimadas. Em outras circunstâncias, o assunto seria uma comoção na Câmara, mas não é o que acontece. Arthur Lira trata o caso como uma trivialidade.
Nas entrelinhas: Quando a liberdade de expressão é um subterfúgio
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
O pensamento liberal no Brasil muitas vezes é traduzido com segundas intenções. Por exemplo, na Constituição de 1824, outorgada por D. Pedro I, o direito à propriedade privada não foi adotado para favorecer o florescimento de uma economia capitalista como as que se desenvolviam na Europa e nos Estados Unidos, mas para proteger o regime escravocrata.
O dogma liberal era invocado sempre que se falava de abolição, pois os escravos eram considerados propriedade inalienável. Ou seja, um fundamento das revoluções burguesas serviu a três gerações de escravocratas, até 1888. Hoje, o racismo estrutural, a causa de muitas das nossas desigualdades, é um mal invisível, que ninguém confessa, como a inveja.
De igual maneira, a nossa legislação trabalhista surgiu durante a Carta Magna de 1937, a constituição fascista do Estado Novo. Nem todos os seus dispositivos estavam a serviço do regime autoritário, mas toda a parte que envolvia os direitos coletivos, como greves, sindicatos, convenção coletiva e mesmo a Justiça do Trabalho, serviam ao corporativismo estatal inspirado na Carta del Lavoro, fascista. Entretanto, o engessamento da legislação trabalhista e sindical não impediu o posterior desenvolvimento dos direitos dos trabalhadores nem o avanço nas relações sociais.
Não é de se estranhar que o presidente Jair Bolsonaro e seus aliados, no confronto com o Supremo Tribunal Federal (STF), a propósito do chamado inquérito das fake news, esgrimam o princípio da liberdade de expressão contra o Estado democrático de direito. No caso do deputado Daniel Silveira (PTB-RJ), que desafia o STF, se invoca o princípio da liberdade de expressão com a mesma esperteza que os senhores de escravos defendiam o direito à propriedade privada.
A liberdade de expressão é uma conquista de toda a humanidade, faz parte dos direitos fundamentais das pessoas, nas legislações da ONU, convenções internacionais e países democráticos. No Brasil, esse conceito dá suporte à democracia, pois afasta a ideia de censura que marca os governos autoritários. Soberania, cidadania, dignidade humana, valores do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político estão associados à liberdade individual. A filósofa Hanna Arendt dizia que o pensar e o agir politicamente são o fundamento da condição humana, que não pode ser dissociada da liberdade de opinião.
Obama e Rússia
O Art. 5º, IV da Constituição Federal diz: “É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. Entretanto, é assegurado o direito de resposta aos prejudicados, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem (inciso V). No Art. 200, a lei diz: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.
Porém, há limites para esse direito, em especial quando é utilizado para violar ou negar garantias fundamentais estabelecidas pela Constituição. Por exemplo, são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
No Brasil, a lei não admite censura, mas há responsabilização, inclusive punitiva. O Estado democrático não restringe informações e ideias, mas deve responsabilizar o cidadão que não respeite o direito dos demais. Nos Estados Unidos, por exemplo, o ex-presidente Barack Obama faz autocrítica de não ter se preocupado com as fakes news como deveria.
Agora, promove um debate sobre o funcionamento das redes sociais e sua utilização para influenciar o resultado das eleições. Acusa a Rússia de favorecer a eleição de Donald Trump “trolando” as redes sociais norte-americanas. O The Washington Post, recentemente, dedicou um editorial ao tema, a propósito dos questionamentos de Obama, que fez um apelo para que as empresas de tecnologia se “redesenhem” para proteger o público da polarização de falsidades on-line. Em um longo discurso na Universidade de Stanford, localizada no coração do Vale do Silício, Obama falou sobre as maneiras pelas quais as plataformas de tecnologia ajudaram a dividir o público, espalhar desinformação e corroer a confiança nas instituições democráticas, levando à ascensão de autocratas e mortes desnecessárias pelo coronavírus.
“As pessoas estão morrendo” por causa da desinformação nos serviços de mídia social, disse ele. As empresas não estão sendo transparentes com o público sobre como seus algoritmos — o software que usam para espalhar conteúdo em seus serviços — funcionam.
Obama afirmou que, quando era presidente, não percebeu “como nos tornamos suscetíveis a mentiras e teorias da conspiração, apesar de ter passado anos sendo alvo de desinformação”, dizendo que ainda guarda arrependimentos até hoje. A desinformação refere-se a uma campanha coordenada por líderes políticos, corporações ou outras figuras para espalhar falsidades prejudiciais e narrativas enganosas.
Arsenal mítico é destaque na Semana de Arte Moderna de 1922, segundo professor
Luciara Ferreira e João Vitor*, com edição do coordenador de Publicações da FAP, Cleomar Almeida
Um “arsenal mítico” com simbolismo, lendas e cultura indígena fez a Amazônia protagonizar o modernismo para além das divisas de São Paulo. O doutor em história Aldrin Figueiredo, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), destaca a importância dos mitos na década de 1920, que, segundo ele, tentavam romper o “cordão umbilical” responsável por ligar o Brasil à Europa.
O “cordão umbilical” está relacionado às tradições europeias descritas pelo professor de artes da Universidade de São Paulo (USP) Tadeu Chiarelli. “As ligações com a Europa são desejadas. Você pinta o tema brasileiro, mas a visualidade e a tradição são europeias”.
Figueiredo dá ênfase ao mito de Macunaíma e ao da Cobra Norato. Ele confirmou presença no evento virtual sobre identidade e diferenças da Semana de Arte Moderna de 1922, organizado pelo jornalista Sergio Leo. O webinar será transmitido, na quarta-feira (4/5), a partir das 18 horas, nas redes sociais e no portal da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília.
Também confirmou participação na live o artista visual Luis Quesada. Ele ressaltou a importância das apropriações culturais indígenas, que, conforme acrescentou, foram vitais para o modernismo brasileiro. “Nelas encontramos o que há de mais revolucionário dentro da Arte moderna brasileira”, disse.
Mitos
Escrito por Mário de Andrade, Macunaíma conta a história de um índio que viaja até São Paulo para recuperar sua muiraquitã, nome dado pelos índios a pequenos amuletos trabalhados em forma de animal, geralmente representando sapos.
Já o mito Cobra Norato é a lenda amazônica que inspirou o poema de Raul Bopp, publicado em 1931. Trata-se de uma gigantesca serpente que habitava os rios caudalosos da Amazônia. Ligada à criação do mundo, a Boiuna podia mudar o curso das águas e dar origem a muitos animais.
Identidade nacional
Figueiredo diz que a Amazônia é considerada um lugar de destaque na construção da identidade nacional a partir de uma concepção moderna. Porém, de acordo com ele, não como um polo destacado de debate, mas como um repertório da tradição das lendas e dos mitos. Um lugar fora da história.
A Semana de Arte Moderna, realizada entre 11 e 18 de fevereiro de 1922, foi um dos marcos do modernismo no Brasil. A Fundação Astrojildo Pereira tem realizado atividades desde o ano passado para celebrar o centenário.
Confira aqui matérias e artigos do organizador do evento
Serviço
Webinário sobre Semana de Arte Moderna - Identidade e Diferenças.
Dia: 4/5/2022
Transmissão: a partir das 18h
Onde: Redes sociais (Facebook e Youtube) e portal da Fundação Astrojildo Pereira
Realização: Fundação Astrojildo Pereira
*Integrantes do programa de estágio da FAP, sob supervisão do jornalista, editor de conteúdo e coordenador de Publicações da FAP, Cleomar Almeida
Nas entrelinhas: CB 61 + 1, quando os fatos mudam
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
A exposição comemorativa do Correio Braziliense sobre os 62 anos de Brasília, no Centro Cultural Banco do Brasil, reúne as capas deste jornal desde a inauguração da nova capital do país, em 1960, quando circulamos pela primeira vez. É um mosaico da trajetória histórica das estruturas do poder central e suas ações, para os quais a cidade foi projetada e construída, graças à audácia de Juscelino Kubitschek e à genialidade de Lucio Costa e Oscar Niemeyer.
CB 61 1 mostra um ciclo completo da vida política, econômica e cultural do Brasil, a partir de seus protagonistas no planalto central, que se tornou o polo dinâmico do Centro-Oeste, mas também a evolução e o comportamento de uma sociedade inicialmente formada por peões e funcionários públicos, que, pouco a pouco, se tornou muito mais complexa, até se transformar na grande metrópole cosmopolita atual e um fator da integração territorial nacional. Duas gerações de candangos, compreendidos como os cidadãos naturais de Brasília, produziram uma espécie de síntese do nosso processo civilizatório, mais ou menos como imaginava o fundador da Universidade de Brasília (UnB), Darcy Ribeiro.
Os fatos políticos ao longo desses 62 anos foram todos devidamente registrados pelo Correio Braziliense, que acompanhou os bastidores do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, bem como a reação da sociedade às decisões dos poderosos, ao longo da história. As manchetes e fotografias publicadas nesse período são flagrantes da História do Brasil, revisitada a cada aniversário da cidade ou fato político relevante do presente, para os quais o fio da história nos permite melhor compreendê-los.
O falecido historiador britânico Tony Judt, que lecionou em Cambridge, Oxford, Berkeley e New York University, inspirou-se em John Maynard Keynes para escrever a coletânea de ensaios Quando os fatos mudam, cujo título tomamos emprestado para a coluna. A frase completa é: “Quando os fatos mudam, eu mudo de opinião. E o senhor, o que faz?”
Os textos oriundos de suas intervenções públicas na imprensa foram compilados por sua viúva, a historiadora Jennifer Homans, e publicadas postumamente nessa obra. Embora datadas, as preocupações por ele levantadas se atualizam e permanecem como espécie de fios condutores a auxiliarem a compreensão de um mundo que parece, a cada dia, se desfazer em pedaços. Judt faleceu em 2010, aos 62 anos, como um dos maiores intérpretes do século XX, com destaque para o monumental pós-guerra. Uma História da Europa desde 1945. Quase todos os assuntos que abordou, de alguma maneira, influenciaram a trajetória do nosso país.
Novo olhar
A exposição do Correio Braziliense cobre duas gerações, pelas quais passaram a renúncia de Jânio Quadros, o golpe militar que destituiu João Goulart em 1964, a implantação do regime militar, o chamado milagre econômico, a liquidação da oposição armada, o avanço da oposição democrática, a crise do modelo de capitalismo de Estado, a campanha das Diretas Já, a eleição de Tancredo Neves, a transição à democracia com Sarney, a hiperinflação, o esgotamento do modelo de substituição de importações, a abertura comercial e o impeachment de Collor, o combate à inflação e as privatizações do governo de Fernando Henrique Cardoso, o esgotamento das políticas liberais e a ascensão de Lula, a derrocada de Dilma Rousseff e a reforma trabalhista de Michel Temer, a eleição de Jair Bolsonaro e a volta dos militares ao poder.
Esse um resumo brevíssimo, mas que lições podemos tirar desses fatos para que os erros não se repitam e o legado positivo desse ciclo histórico sirva de ponte para o futuro? Essa é a reflexão que um olhar atento à exposição das capas de Correio pode provocar. As notícias do Correio, ao longo desses 62 anos, são revisitadas porque marcam o nosso presente, porém, a interpretação dos fatos ocorridos não deve ser a mesma de quando aconteceram.
Judt nos mostra que, em muitos momentos da história, fatos singulares foram decisivos para mudanças inimaginadas por seus protagonistas. A Segunda Guerra Mundial, por exemplo, representou uma ruptura com toda a ordem mundial anterior, com desdobramentos duradouros. Agora, estamos diante de uma nova ruptura global, cujos desdobramentos são imprevisíveis, tanto quando era a Guerra da Ucrânia quando a antiga União Soviética foi dissolvida. A ordem econômica global, por exemplo, passa por mudanças que podem resultar em duas institucionalidades econômicas distintas, uma liderada pelos Estados Unidos, outra pela China, com as quais o Brasil objetivamente terá de se relacionar. Somente isso mudará nossa inserção nas cadeias de comércio e na economia mundial.
Nesse período de 62 anos, no plano político, o evento mais marcante foi o ciclo de 20 anos do regime militar, cuja herança ainda está viva na memória daqueles que viveram sob o autoritarismo. Quem imaginaria os desdobramentos da eleição de Jânio Quadros, em 1960, quando Brasília foi inaugurada? Em alguns momentos da atual conjuntura, temos a sensação de que a história se repete. Entretanto, para que isso ocorra, seria preciso que nada houvesse mudado; por exemplo, que Brasília — não somente suas estruturas de poder — não tivesse se transformado numa metrópole complexa, com uma sociedade vibrante e democrática, em sintonia com o futuro.
Revista online | Veja lista de autores da edição 42 (Abril/2022)
*Marco Antonio Villa é o entrevistado especial da edição 42 da Revista Política Democrática online. é historiador, escritor e comentarista político brasileiro. Villa é bacharel e licenciado em história, mestre em sociologia e doutor em história social pela Universidade de São Paulo. É professor aposentado da Universidade Federal de São Carlos.
*Luiz Sérgio Henrique é autor do artigo A frente democrática, aqui e agora. É tradutor e ensaísta.
*Vinicius Müller é autor do artigo Lições da Itália ao Brasil de 2022. É Doutor em História Econômica e membro do Conselho Curador da FAP.
*Lilia Lustosa é autora do artigo Oscar e a tentação das majors. É crítica de cinema e doutora em História e Estética do Cinema pela Universidad de Lausanne (UNIL), Suíça.
*Ivan Alves Filho é autor do artigo Com Claude Lévi-Strauss: a arte plumária dos índios. É historiador e documentarista.
*Luiz Ricardo Cavalcante é autor do artigo Políticas de desenvolvimento regional no Brasil: entre a fragmentação e a resiliência das desigualdades. É consultor legislativo do Senado Federal e professor do Mestrado em Administração Pública do IDP.
*Arlindo Fernandes de Oliveira é autor do artigo Balanço do mês da janela partidária. É consultor do Senado e especialista em Direito Eleitoral.
*Henrique Brandão é autor do artigo 50 anos de alguns discos maravilhosos. É jornalista e escritor.
*Julia de Medeiros Braga é autora do artigo Política fiscal para a expansão energética. É economista e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF).
*André Amado é autor do artigo Sherlock Holmes redivivo. É escritor, pesquisador, embaixador aposentado. É autor de diversos livros, entre eles, A História de Detetives e a Ficção de Luiz Alfredo Garcia-Roza.
*Cleomar Almeida é autor da reportagem especial Guerra na Ucrânia coloca refugiados na via-crúcis pela vida. É graduado em jornalismo, produziu conteúdo para Folha de S. Paulo, El País, Estadão e Revista Ensino Superior, como colaborador, além de ter sido repórter e colunista do O Popular (Goiânia). Recebeu menção honrosa do 34° Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e venceu prêmios de jornalismo de instituições como TRT, OAB, Detran e UFG. Atualmente, é coordenador de publicações da FAP.
Nas entrelinhas: Mitos e heróis na cena eleitoral brasileira
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
O mito de que o brasileiro é um “homem cordial” vem de um senso comum, desconstruído por Sérgio Buarque de Holanda em sua obra seminal Raízes do Brasil. A expressão cordial é um “tipo ideal” que não indica apenas bons modos e gentileza, vem da palavra latina “cordis”, que significa coração. Segundo Buarque, o brasileiro precisa viver nos outros, um artificio psicológico incorporado ao nosso processo civilizatório. A cordialidade muitas vezes é mera aparência, “detém-se na parte exterior, epidérmica, do indivíduo, podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de resistência.” Mais atual impossível.
A apropriação afetiva do outro apontada por Buarque, em grande parte, é responsável pela “fulanização” da política brasileira, apesar de termos instituições seculares bastante consolidadas, alguma das quais com origem na chegada de D. João VI e sua Corte ao Brasil, como o Supremo Tribunal Federal (STF). O exercício efetivo do poder central em todo o território nacional, por exemplo, deve-se ao Judiciário, muito mais do que às Forças Armadas, cujo protagonismo político, na República, por duas vezes, se deu em duradoura contraposição ao Estado democrático de direito, na Revolução de 1930 e no golpe militar de 1964.
Não por acaso, graças à política de conciliação da segunda metade do Império, também temos um Congresso forte, embora nossos partidos políticos, contraditoriamente, sejam fracos, por causa da “fulanização” da política e da construção de acordos interpessoais de natureza fisiológica, corporativa e/ou patrimonialista. De certa maneira, as redes sociais potencializaram essa “fulanização” da política e desnudaram a outra face do “homem cordial”, que agora protagoniza a radicalização política.
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro exacerbam essa característica da política brasileira. Ambos têm um viés populista; constroem suas alianças a partir de relações afetivas e, ao mesmo tempo, pragmáticas. Não é outro o sentido da aliança de Bolsonaro com Valdemar Costa Neto, presidente do PL; a escolha do ex-governador Geraldo Alckmin como vice por Lula tem o mesmo significado.
No conceito de Buarque, o “homem cordial” é sinônimo de passionalismo, personalismo e irreverência, um transgressor das normas institucionais. Age mais pela emoção do que pela razão, sua cordialidade está associada ao domínio da esfera privada na vida brasileira. O Estado é sua segunda casa, povoada por familiares e amigos. Não é preciso um grande esforço retrospectivo para constatar esse fenômeno na vida política brasileira, muito menos revisitar as páginas de Raízes do Brasil, quase centenárias, e resgatar a nossa herança colonial lusitana.
Terceira via
O semideus grego da Ilíada de Homero tinha uma existência verdadeira, voltava para casa, tinha uma vida normal, até que a situação exigisse outro gesto glorioso e individual. A filósofa judia alemã Hanna Arendt associava-o ao que hoje muitos chamariam de “lugar de fala”. Sua disposição de agir e falar pode mudar o curso na história. O herói pode ser um indivíduo comum que se insere e se destaca no mundo por meio do discurso, se move quando os outros estão paralisados. Precisa fazer aquilo que outro poderia ter feito, mas não fez; ou melhor, o que deixaram de fazer.
O “homem cordial”, na atual cena eleitoral, se apresenta como o herói semideus da Ilíada de Homero, cujos pilares são a grandiosidade e a singularidade, além da aspiração à imortalidade. Em 2018, Bolsonaro saiu do leito da morte para o Palácio do Planalto sem fazer campanha; nestas eleições, Lula deixou a cadeia e pavimentou a estrada para voltar ao poder sem deixar os ambientes fechados. Agora, outro candidato a semideus prepara sua volta à cena eleitoral: o ex-juiz Sergio Moro, personagem central da ascensão e queda da Operação Lava-Jato.
Moro se tornou uma personalidade nacional graças à Lava-Jato, na qual só se pronunciava nos autos. Mas era aplaudido e cumprimentado nas ruas. Representava os órgãos de controle do Estado e a ética da responsabilidade, que zelam pela legitimidade dos meios empregados na ação política. Cumpriu um papel estratégico na luta em defesa da ética na política, vetor decisivo para o resultado das eleições passadas. Contra Moro, Lula não teve a menor chance; seria preso, como foi, pelo juiz durão.
Depois das eleições, convidado por Bolsonaro para ser ministro da Justiça, Moro deixou de ser o juiz “imparcial”. Esse atributo foi posto em xeque pela revelação das mensagens que trocou com os procuradores da Lava-Jato em Curitiba. O cristal foi trincado por conversas banais nas redes sociais. Moro virou um político, sujeito a todos os ritos da luta política e do jogo democrático. Filiou-se ao Podemos, trocou-o pelo União Brasil, sem garantia de legenda. Agora ensaia uma volta à ribalta, como um herói noir, em disputa pela Presidência. Moro pode recuperar o espaço que ocupava no campo da chamada terceira via.
Revista online | Guerra na Ucrânia coloca refugiados na via-crúcis pela vida
Cleomar Almeida*, especial para a revista Política Democrática online
Corpos ensanguentados pelas ruas da Ucrânia, cidades destruídas por incessantes bombardeios russos e falta de acordo para o fim da guerra aumentam o número de ucranianos que estão deixando tudo para trás. Todos os dias, milhares de pessoas são obrigadas a tomar a dolorosa decisão de ir embora por pavor do que vem pela frente.
A guerra na Ucrânia desencadeou uma das crises humanitárias e de deslocamento de mais rápido crescimento da história. Na via-crúcis pela vida, a população precisa superar o pesadelo que aterroriza o país. De repente, tudo o que é conhecido fica para trás. Perdem-se familiares, amigos, animais de estimação e a perspectiva do amanhã.
Mais de 4,2 milhões de refugiados fugiram do país, enquanto outros 13 milhões de moradores estão deslocados internamente, impedidos de sair de áreas afetadas pelos ataques por causa da destruição das rodovias e outras passagens. Sofrem, ainda, com a falta de itens básicos, como alimentos, água, gás e eletricidade.
Em abrigos dentro e fora do país, ucranianos também lutam para conseguir cobertores, kits de higiene, alimentos infantis e lonas para fazerem barracas. A estimativa de pessoas deslocadas é do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) e, no total, equivale a cerca de um terço da população.
Terra arrasada
“A velocidade do deslocamento, juntamente com o enorme número de pessoas afetadas, é sem precedentes na memória recente da Europa”, disse o Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados, Filippo Grandi. No final do mês de março, ele visitou a Ucrânia, onde 2.072 civis morreram ao longo da guerra na Ucrânia, dos quais 169 eram crianças. Também já foram registrados 2.818 feridos entre a população civil.
Na Ucrânia, as pessoas percorrem o trecho de fuga desesperadas de carro, de ônibus e, muitas vezes, a pé, no ar gelado do inverno europeu. O êxodo ocorre na rica e civilizada Europa, em meio a uma guerra entre dois países do continente, deflagrada por invasão ordenada pelo presidente russo, Vladimir Putin, no país governado por Volodymyr Zelenskyi, em 24 de fevereiro último.
Assim como as lideranças europeias e de outros continentes, Grandi tem reforçado seu apelo para o fim da guerra. Ele também convocou a comunidade internacional para fornecer mais apoio, a partir deste mês, aos milhões de civis atingidos pelo conflito.
“Falei com mulheres e crianças, que foram gravemente afetadas por esta guerra. Forçadas a fugir de níveis extraordinários de violência, abandonaram suas casas e, muitas vezes, suas famílias, o que as deixou chocadas e traumatizadas. As necessidades de proteção humanitária são enormes e continuam crescendo”, afirmou o representante do Acnur.
A Organização Internacional para as Migrações (OIM, na sigla em inglês) estima que mais da metade das pessoas desalojadas internamente sejam mulheres, e muitas são consideradas particularmente vulneráveis porque estão grávidas, têm alguma deficiência ou têm sido vítimas de violência.
Novo foco
A região de Donbas, no leste ucraniano, é apontada como o foco atual das operações militares russas, à medida que as tropas de Putin recuam da região norte. Neste mês, cidades da região foram alvo de fortes bombardeios, forçando moradores a se abrigar em porões.
A vice-primeira-ministra da Ucrânia, Iryna Vereshchuk, alertou a população em grande parte do leste do país para se retirar enquanto ainda é possível. Segundo ela, quem vive nas cidades de Kharkiv, Donetsk e Luhansk deve tentar sair rapidamente do país ou arriscar sua vida.
O medo e a preocupação estão nas praças, estações de trem, escolas, ginásios e outros espaços adaptados para acolher multidões de ucranianos que chegam todos os dias com o objetivo de cruzar a fronteira. A Polônia é a principal rota de escape do terror produzido pelo conflito que provoca destruição e morte.
De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), até o momento, outros países que também mais receberam ucranianos refugiados após o início da guerra são: Romênia, Moldávia, Hungria, Eslováquia e Belarus.
Brasil recebe refugiados ucranianos
A Polícia Federal informou que 52 ucranianos, com idades entre 5 e 74 anos, estão no Brasil na condição de refugiados, depois que deixaram o país de origem por causa da invasão de tropas russas. No entanto, o número de refugiados na condição de apátrida é muito maior, já que o governo brasileiro autorizou a permanência de ucranianos por até 90 dias no território nacional sem a necessidade de visto.
No total, segundo o mais recente levantamento da Polícia Federal, havia 39 registros temporários; 8 residentes e 5 provisórios de ucranianos no Brasil até o início de abril. Eles estão em 12 estados. A maior parte deles fica no Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia. Não há dados oficiais de apátridas relacionados à guerra na Ucrânia.
O Ministério das Relações Exteriores informou que os ucranianos têm sido apoiados pela força-tarefa promovida com a ajuda da Embaixada do Brasil em Varsóvia, capital da Polônia. De acordo com informações oficiais, lá são providenciados os documentos de viagem e notas dirigidas às autoridades migratórias, sanitárias e aeroportuárias polonesas.
A organização Global Kingdom Partnership Network, que reúne pastores e líderes cristãos em diversos países, integra a rede de acolhimento aos ucranianos no Brasil. O grupo conta com seis bases espalhadas pela Ucrânia.
Segundo a organização, quando confirmado o desejo de sair do país do leste europeu, os refugiados são encaminhados primeiro para Lviv, cidade ucraniana próxima da fronteira com a Polônia, para depois seguirem para Varsóvia.
Diversas entidades ajudam os refugiados com comida, vestimentas, escola para as crianças e auxílio para trabalhar. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) realiza campanha de doação, em seu site oficial, para juntar fundos destinados às pessoas que estão nesta situação.
De acordo com o Acnur, o apoio e a solidariedade demonstrados até agora por doadores, países vizinhos e indivíduos de todo o mundo têm sido notáveis. No entanto, as necessidades aqui na Ucrânia estão crescendo, e a comunidade internacional deve continuar apoiando as pessoas refugiadas.
Saiba mais sobre o autor
* Cleomar Almeida é graduado em jornalismo, produziu conteúdo para Folha de S. Paulo, El País, Estadão e Revista Ensino Superior, como colaborador, além de ter sido repórter e colunista do O Popular (Goiânia). Recebeu menção honrosa do 34° Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos e venceu prêmios de jornalismo de instituições como TRT, OAB, Detran e UFG. Atualmente, é coordenador de publicações da FAP.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática online de abril de 2022 (42ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Os desconhecidos casos de crianças e bebês sequestrados na ditadura brasileira
Eduardo Reina*, da BBC Brasil
Há pelo menos uma década, Rosângela Serra Paraná está à procura dos pais biológicos.
Ela é vítima de um crime de Estado pouco conhecido dos brasileiros: o sequestro de bebês e crianças filhos de militantes que faziam oposição ao regime militar nas décadas de 1960, 1970 e 1980.
Rosângela foi apropriada ilegalmente por uma família de militares na década de 1960 e só descobriu sua condição décadas depois, durante uma discussão com familiares.
Onze dos 19 casos conhecidos de sequestros de crianças na ditadura estão ligados à guerrilha do Araguaia, um movimento guerrilheiro de oposição que ocorreu entre o final da década de 1960 e o ano de 1974 na região amazônica, na confluência dos estados do Pará e do atual Tocantins.
Essas 11 vítimas são filhos de guerrilheiros e de camponeses que deram guarida ao movimento.
Os sequestros de crianças foram realizados na primeira metade da década de 1970, durante as gestões dos generais-presidentes Emílio Garrastazu Médici - quando o ministro do Exército era Orlando Geisel, irmão do sucessor de Médici - e de Ernesto Geisel. Era a fase mais grave de repressão da guerrilha do Araguaia.
Os 19 casos são listados no livro reportagem "Cativeiro sem fim", escrito por mim, Eduardo Reina.
Procurados na época da produção do livro, o Ministério da Defesa e os comandos do Exército e da Aeronáutica não responderam os questionamentos. Em entrevista a um livro publicado no ano passado, o general Eduardo Villas Bôas disse que relatos sobre o sequestro de bebês na ditadura "carecem de verossimilhança" (leia mais abaixo).
Em busca dos pais biológicos
"Vivo num pesadelo todo dia, ao pensar que minha mãe pode estar viva, precisando de mim", diz Rosângela Serra Paraná.
"Hoje vivo na angústia de não saber quem eu sou, quantos anos eu tenho, e sequer saber quem foram ou quem são os meus pais", afirma.
Ela foi apropriada por Odyr de Paiva Paraná, integrante de uma família tradicional de militares no Rio de Janeiro.
Os pais apropriadores de Rosângela Serra Paraná eram Odyr de Paiva Paraná e Nilza da Silva Serra. A família diz que a bebê fora adotada em 1963.
Uma certidão de nascimento dá como dia do nascimento 1º de outubro de 1963. Mas o registro só foi feito em cartório em 22 de setembro de 1967.
No documento elaborado no cartório do Catete, Rio de Janeiro, está registrado que Rosângela é filha ilegítima de Odyr e Nilza. O documento não fornece o nome dos pais biológicos. Nilza, segundo a família, não podia gerar filhos.
Odyr é motorista de profissão. Segundo Rosângela, o pai adotivo trabalhava como motorista para o general Ernesto Geisel. "Ele ficava com um carro preto, grande, que estava sempre limpando", recorda. Ambos frequentavam o sítio do general na cidade de Teresópolis, segundo Rosângela.
A certidão de nascimento de Rosângela dá como local de seu nascimento um imóvel na rua Marquês de Abrantes, 160, Flamengo, Rio de Janeiro. O imóvel pertence à Rio Previdência, entidade dos servidores estaduais, que o comprou em 1958, de acordo com a certidão do imóvel.
A mesma certidão de nascimento possui duas testemunhas. Uma é Alcindo Quintino Ribeiro, proprietário de um prédio onde a família Serra Paraná morou.
A outra é Paulo Cardoso de Oliveira, motorista de profissão, como Odyr. O endereço de residência dessa testemunha, porém, não existe.
O pai de Odyr, Arcy Paraná, era militar. De acordo com o Diário Oficial, ele chegou ao posto de sargento. Na década de 50, foi promovido e começou a trabalhar no setor administrativo do Exército.
Os casos de Juracy e Miracy
Na região da guerrilha do Araguaia, no início da década de 1970, os militares sequestraram dois meninos de uma mesma família.
O primeiro, Juracy Bezerra de Oliveira, é protagonista de um equívoco das forças militares. O alvo seria Giovani, filho de um dos líderes da guerrilha, Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, com uma mulher de nome Maria.
Em 1972 ou 1973, Juracy tinha cerca de sete anos de idade. As forças militares pensavam que ele era o verdadeiro filho do guerrilheiro Osvaldão com Maria Viana da Conceição. Mas a mãe de Juracy era Maria Bezerra de Oliveira, e o pai, Raimundo Mourão de Lira.
A confusão no sequestro teria ocorrido porque os soldados estavam à procura de um menino de pele escura, com idade entre seis e oito anos, filho de uma mulher branca, de corpo grande e olhos claros, cujo nome era Maria. Encontraram a mãe de Juracy com as mesmas características e levaram o menino.
Seu destino foi Fortaleza, depois de ter sido torturado e queimado numa fogueira num acampamento militar dentro da selva, após um militar ter sido alvejado durante troca de tiros com os guerrilheiros.
Acabou sendo apropriado pelo tenente do Exército Antônio Essílio Azevedo Costa, que o registrou em cartório como se fosse seu filho legítimo, e conviveu com a família do tenente por muitos anos.
"Um dia chegaram e me levaram. Minha mãe, nem lembro o que ela fez. Eu era um menininho quando Exército me levou. Fiquei 15 dias no meio do mato. Me deram muita peia. Bateram, machucaram", diz a vítima.
O sequestrado ficou com uma das mãos deformada devido às queimaduras que sofreu. Ele conta que os soldados resolveram puni-lo por achar que seu pai havia matado um militar.
Depois, na cidade de Fortaleza, Juracy foi criado pela mãe do tenente Antônio Essílio.
No início dos anos 2000, resolveu retornar à região do Araguaia, ainda pensando que fosse filho de Osvaldão.
Ao chegar, encontrou Antônio Viana da Conceição e descobriu sua verdadeira história. Reencontrou a mãe biológica, Maria Bezerra de Oliveira, quando descobriu que um irmão seu, Miracy, também havia sido levado pelos militares.
Hoje ele vive numa ilha no meio do rio Araguaia.
Irmão de Juracy, Miracy tinha a pele clara e olhos claros, ao contrário do irmão. Foi levado pelo sargento João Lima Filho para a cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, também em 1972 ou 1973.
Anos mais tarde, Juracy e a mãe, Maria Bezerra de Oliveira, foram à procura de Miracy. Mas não encontraram nenhuma pista do sargento que o levou; nem conseguiram informações em quarteis do Exército em Natal sobre o paradeiro do militar.
Giovani
Depois do sequestro equivocado de Juracy, os militares encontraram Giovani, filho de Osvaldão e Maria Viana da Conceição. O garoto tinha entre quatro e cinco anos de idade quando foi levado, segundo conta outro filho de Maria, Antônio Viana da Conceição.
O sequestro ocorreu em 1973, na cidade de Araguaína, atual Tocantins. A existência desse filho do guerrilheiro no Araguaia é revelada também por Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió, hoje militar da reserva do Exército e responsável pela caçada aos guerrilheiros do PCdoB a partir de 1973 no Araguaia.
O paradeiro de Giovani é desconhecido.
Ainda no Araguaia foi sequestrada Lia Cecília da Silva Martins, filha do guerrilheiro Antônio Teodoro de Castro, o Raul.
Lia foi levada para um orfanato que pertencia a um tenente da Aeronáutica, em Belém do Pará. Foi adotada por um casal que trabalhava na entidade.
Seis filhos de camponeses também foram tirados de suas famílias biológicas e levados para quarteis do Exército, de onde teriam sido liberados tempos depois. José Vieira; Antônio José da Silva, Antoninho; José Wilson de Brito Feitosa, Zé Wilson; José de Ribamar, Zé Ribamar; Osniel Ferreira da Cruz, Osnil; e Sebastião de Santana, Sebastiãozinho.
Somente José Vieira foi localizado. Ele é filho de Luiz Vieira, um agricultor de subsistência e morador na região de São Domingos do Araguaia. Luiz foi morto pelas forças militares.
"Aquelas pessoas que conheciam o povo da mata (como os guerrilheiros eram chamados) foram atacados pelas tropas. O pessoal que tava no mato foi atacado. Depois me prenderam. Aí, quando eu saí, já fiquei toda vida dentro do Exército", conta José Vieira.
Houve ainda casos de sequestro de bebês e crianças no Paraná, Pernambuco e Mato Grosso.
Respostas militares
Procurados em 2018, quando o livro "Cativeiro sem fim" estava sendo produzido, o Ministério da Defesa, o Exército e a Aeronáutica não responderam aos questionamentos enviados.
O Ministério da Defesa sugeriu que novas solicitações fossem enviadas aos comandos do Exército, da Aeronáutica e da Marinha, alegando que as informações solicitadas estariam custodiadas sob o comando desses órgãos militares.
O Exército respondeu que "a Instituição esclarece que nada tem a informar sobre o assunto".
A Aeronáutica alegou que "em 16 de novembro de 2009, a Procuradoria-Geral de Justiça Militar manifestou interesse na análise dos documentos produzidos e acumulados pelo Comando da Aeronáutica, do período de 1964 a 1985. Nesse sentido, em 3 de fevereiro de 2010, o acervo, contendo 212 caixas com 49.867 documentos, foi recolhido à Coordenação Regional do Arquivo Nacional do Distrito Federal (COREG), onde são de domínio público, onde talvez possa realizar sua pesquisa".
No ano passado, em entrevista publicada no livro "General Villas Bôas - conversa com o comandante", de autoria de Celso Castro, da Fundação Getúlio Vargas, o militar questionou a ocorrência de sequestros de crianças na ditadura.
"Recentemente, alguém ligado aos direitos humanos trouxe à tona um tópico sobre o qual nunca ouvi falar, de que cento e tantas crianças teriam sido sequestradas e afastadas dos pais. Essa e outras narrativas, a exemplo de um suposto massacre de índios, na abertura da BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, carecem de verossimilhança e contribuem para a falta de isenção na conclusão das apurações", afirmou Villas Bôas.
*Texto publicado originalmente na BBC Brasil
Enem mais negro: por que número de candidatos pretos e pardos cresceu ao longo dos anos
Thais Carrança*, Da BBC News Brasil em São Paulo
Entre 2010 e 2016, a proporção de pretos e pardos — grupos que juntos formam a população negra brasileira — entre os candidatos saltou de 51% para 60%, enquanto a parcela de brancos diminuiu de 43% para 35%.
Intrigado com a mudança, num período marcado pela adoção das cotas sociais e raciais nas universidades públicas, mas também pelo avanço do orgulho de ser negro no país, o pesquisador Adriano Senkevics decidiu investigar os motivos por trás dessa tendência.
Seria o forte aumento no número de candidatos — que saltou de 4,6 milhões para 8,6 milhões em apenas seis anos — que estaria ampliando o acesso de grupos antes excluídos?
Ou, diante da alta concorrência, candidatos negros teriam de fazer a prova mais vezes até serem aprovados?
Fim do Talvez também te interesse
E qual o peso nessa mudança de pessoas que antes se consideravam brancas mas, ao tentar a prova mais de uma vez, passavam a se autodefinir como pardas?
Ou então, que passavam de pardas a pretas, num processo de "escurecimento" da população também identificado em outras pesquisas demográficas, como a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e o Censo do IBGE, que nenhuma relação têm com o acesso ao ensino superior.
Doutor em educação pela USP (Universidade de São Paulo) e pesquisador do Inep, órgão responsável pela realização do Enem, Senkevics descobriu que cada um desses três fatores contribuíram para a mudança, ainda que com pesos distintos.
Em artigo publicado neste mês pela Dados Revista de Ciências Sociais, periódico científico mantido pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), o pesquisador se debruçou sobre o tema.
A BBC News Brasil conversou com ele para entender melhor os principais resultados desse estudo, que é o primeiro a investigar o fenômeno da "reclassificação racial" — isto é, das pessoas que mudam sua autodefinição de raça ou cor — no Enem.
Uma mudança cultural no Brasil
Senkevics conta que muita gente pensa que ele decidiu olhar para o aumento da proporção de negros no Enem e o fenômeno da reclassificação racial dos candidatos pensando em captar fraudes nas cotas, mas ele deixa bem claro que essa não é a intenção do estudo.
"O que me motivou foi uma curiosidade científica com relação a esse movimento de as pessoas se classificarem cada vez mais como negras", diz o pesquisador.
"Trata-se de um fenômeno cultural brasileiro, que é a assunção cada vez maior da identidade e do pertencimento negro, num país historicamente racista e cujo racismo foi apoiado num processo de 'embraquecimento' histórico, de negação de identidades raciais negras e indígenas e desvalorização da história e cultura dessas parcelas da população", acrescenta.
O estudo é dividido em três partes.
Na primeira delas, o pesquisador do Inep olha para os novos inscritos, ou seja, as pessoas que estão prestando o Enem pela primeira vez. Nesse grupo, o percentual de negros passou de 51,5% para 57% nos seis anos analisados.
Para Senkevics, a mudança no perfil racial aqui reflete alterações no cenário educacional brasileiro. A primeira dessas mudanças é o aumento na proporção de jovens que concluem o ensino médio, com redução da repetência e da evasão escolar nessa fase do ensino.
Como resultado desse processo, mais jovens de baixa renda, negros e estudantes vindos de famílias menos privilegiadas se tornaram aptos a tentar uma vaga no ensino superior.
"O perfil de quem termina o ensino médio foi se tornando cada vez mais heterogêneo e representativo da população", observa o especialista em educação. "O jovem de classe alta, de família mais escolarizada, já fazia o Enem. A novidade é que vai entrando um perfil novo, que vai aumentando sua presença cada vez mais nesse período."
Além disso, políticas de ampliação do acesso às universidades geraram um incentivo para estudantes que antes talvez não acreditassem na possibilidade de ingressar numa faculdade passarem a ter mais esperança com relação ao processo seletivo.
Entre essas políticas, o pesquisador cita o programa de bolsas de estudo Prouni, o programa de financiamento estudantil Fies, o sistema único de oferta de vagas Sisu e a lei de cotas.
Por fim, Senkevics destaca que esses novos inscritos estão sujeitos às mesmas mudanças culturais e demográficas identificadas na população brasileira em geral e, portanto, mais jovens talvez estejam se percebendo como negros mesmo antes de se inscreverem no Enem, contribuindo para a mudança no perfil racial dos novos inscritos.
Negros são maioria entre inscritos reincidentes
Na segunda parte do estudo, o pesquisador olha para os estudantes que prestam o Enem mais de uma vez. Em 2011, os inscritos reincidentes eram 36% do total, chegando a 65% em 2016.
Entre os estudantes que prestam o Enem uma ou duas vezes, há pouca diferença no perfil racial, com brancos superando pardos em cerca de 1 ponto percentual.
Mas, a partir da terceira tentativa, a parcela de pardos passa a superar a de brancos, chegando a 48% de pardos para 30% de brancos entre aqueles que se inscreveram sete vezes, uma diferença significativa, de 18 pontos percentuais.
"A pessoa pode fazer o Enem quantas vezes ela quiser; como o ensino superior é muito disputado e o processo seletivo é muito afunilado, uma pequena parte dos inscritos vai ter sucesso", observa Senkevics. "Candidatos menos preparados, com origens menos privilegiadas, como boa parte da população negra, podem ser obrigados a fazer o exame mais de uma vez."
O pesquisador destaca alguns indicadores que mostram as dificuldades dos candidatos negros no Enem: pretos e pardos têm taxas de abstenção maiores nos dias de provas (quando a pessoa se inscreve mas não consegue comparecer no dia do exame) e médias de desempenho menores, em relação aos brancos.
Essas dificuldades podem levar um candidato a se inscrever novamente na prova. Quando isso acontece, surge a possibilidade de reclassificação racial, que ocupa a terceira parte do estudo.
Os candidatos que 'mudam de raça'
Na pesquisa, Senkevics buscou analisar como se dão esses movimentos de reclassificação entre brancos, pardos e pretos.
E o que ele encontra é que, apesar de as alterações acontecerem em todas as direções, o saldo líquido das mudanças resulta em uma redução de 5% no número de brancos, aumento de 1% no de pardos e ganho de 13,7% na quantidade de pretos.
O pesquisador observa que vários dados sugerem que essa reclassificação tem pouca relação com possíveis tentativas de fraude.
Uma evidência disso, segundo Senkevics, é o fato de que mudanças semelhantes acontecem em diversas outras bases de dados que não têm qualquer incentivo para que as pessoas "se escureçam", como a Pnad, o Censo e a antiga Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE.
Outro ponto é a reclassificação de pardos para pretos, uma mudança que não dá vantagem nenhuma na política de cotas, que é voltada para negros de maneira geral.
"A pessoa que é parda já é beneficiária da política afirmativa racial", observa Senkevics.
"Então o que eu entendo que explica essa grande migração de pardos para pretos é que não há outra motivação que não a questão cultural, porque a categoria 'preto' é muito mais alvo do processo de ressignificação do que 'pardo'", acrescenta o pesquisador.
"O pardo não é sequer uma categoria nativa, não é usada pelas pessoas nos seus processos de autoidentificação, é uma categoria mais demográfica do que exatamente sociológica", observa o analista.
"Enquanto isso, toda a questão da valorização da negritude vem muito em cima da ideia de ser preto. Então é uma categoria que tem uma militância maior, em torno da qual a conscientização racial se construiu e que marca mais uma diferença com relação ao branco."
O especialista destaca ainda estudos do pesquisador David De Micheli que mostram que a autoidentificação como preto é maior entre os mais escolarizados, o que estaria ligado à maior exposição dessa parcela da população ao debate antirracista, ao resgate da história afro-brasileira e de seus elementos culturais e à militância negra por direitos.
Queda no percentual de negros no Enem de 2021
Apesar do processo social de empoderamento da população negra em curso, o Enem mudou bastante desde o período estudado por Senkevics.
Desde 2016, o número de inscritos na prova tem caído ano após ano, recuando de 8,6 milhões naquele ano, para apenas 3,4 milhões em 2021.
A proporção de pessoas pretas, pardas e indígenas também diminuiu no ano passado, de 62,3% em 2020, para 55,7% em 2021.
Segundo analistas, diversos fatores explicam a redução no interesse pelo Enem. Um deles é que, desde 2017, a prova deixou de servir como certificação para o Ensino Médio.
O que explica menor número de inscritos no Enem em mais de uma década
A partir daquele ano, candidatos que não se formaram na idade usual e buscavam o diploma passaram a prestar o Encceja (Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos), que havia deixado de ser aplicado em 2009.
Os especialistas também apontam uma piora nas perspectivas de acesso ao ensino superior, com redução nas bolsas oferecidas pelo Prouni, queda acentuada nos contratos de financiamento firmados através do Fies e estagnação no processo de ampliação das vagas em universidades públicas.
A esse cenário, somou-se a pandemia, que afetou de forma muito desigual ricos e pobres, reduzindo a taxa de conclusão do ensino médio e fazendo com que muitos estudantes negros e de baixa renda não se sentissem preparados para tentar uma vaga no ensino superior.
Será preciso acompanhar nos próximos anos se o Brasil vai retomar sua trajetória de gradual inclusão de negros e filhos de famílias pobres nas universidades ou se serão duradouros os impactos causados pela pandemia e pelo desmonte das políticas públicas de educação apontado por especialistas.
*Texto publicado originalmente na BBC Brasil
Nas entrelinhas: Candidato de centro ainda tem um papel a cumprir
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
O presidente do MDB, deputado Baleia Rossi (SP), pretende cobrar uma definição dos demais partidos da chamada terceira via — PSDB-Cidadania e União Brasil — na próxima reunião de cúpula do grupo, marcada para 18 de maio, com objetivo de escolher um candidato único. “Não dá para adiar, ninguém aguenta mais essa indefinição”, desabafou, ontem, em conversa no cafezinho da Câmara. Segundo ele, há três candidaturas na mesa de negociação: Simone Tebet (MDB), João Doria (PSDB) e Luciano Bivar (União Brasil). “Uma delas deve ser escolhida”, afirmou.
Rossi descartou o ex-governador gaúcho Eduardo Leite, que trabalha para ser candidato de união: “O candidato indicado pelo PSDB é o Doria”. Faz sentido, para além da formalidade, porque o propósito do MDB é consolidar o nome de Tebet. A senadora por Mato Grosso do Sul se destacou na CPI da Covid e é respeitada pelos pares por sua atuação à frente da Comissão de Constituição e Justiça da Casa. Ela é formada em direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestre em direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Simone Tebet, natural de Três Lagoas (MS), não é uma cristã nova na política. Aprendeu o jogo do poder com o pai, Ramez Tebet, que foi governador do Mato Grosso do Sul, prefeito de Três Lagoas e senador da República. Atuou por 12 anos como professora universitária e foi consultora e diretora legislativa da Assembleia Legislativa do estado. Foi deputada estadual, prefeita de Três Lagoas por dois mandatos e vice-governadora no governo Puccinelli, cargo no qual permaneceu até 2015, quando assumir o mandato de senadora. Aos 52 anos, tem cancha de político profissional.
Essa experiência está fazendo a diferença no jogo de bastidores da terceira via, pela forma firme e suave com que lida com as disputas políticas, como aconteceu no episódio do jantar dos setores do MDB do Nordeste com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Tratada como a noiva desejada pelos outros candidatos, já disse que não pretende ser vice de ninguém; caso não seja candidata à Presidência, pretende disputar a renovação de seu mandato de senadora. Pela conversa de Baleia Rossi, a maioria dos diretórios do MDB deseja a candidatura de Tebet.
Bombeiros no ninho
O tucano Eduardo Leite, que se movimenta pelo país em busca de apoio para ser candidato, mesmo após perder as prévias do PSDB, farejou o perigo em razão do famoso áudio da conversa privada do presidente do PSDB, Bruno Araújo (PSDB), no qual o então coordenado da campanha de João Doria admitiu as articulações para unificar a terceira via em torno de Tebet e não, como se esperava, do ex-governador gaúcho. Araújo acabou afastado do comando da campanha por Doria e viajou para os Estados Unidos, onde a filha vai estudar, para deixar a poeira baixar. Leite resolveu procurar Doria para apagar o fogaréu no ninho tucano. A conversa entre os dois foi ontem, em São Paulo.
Nos bastidores do PSDB, a avaliação é de que a movimentação de Leite contra Doria e as inconfidências de Araújo criaram uma situação implosiva para a legenda. O ex-governador paulista mandou recado de que não vai retirar a candidatura nem aceita que as prévias da sigla, que venceu, sejam desrespeitadas. Caso seja removido a fórceps pela cúpula da federação PSDB-Cidadania, Doria recorrerá à Justiça. Judicialização da campanha é tudo o que os defensores da terceira via, que apostam na racionalidade de Doria, não querem. A desistência do ex-gestor paulista seria uma construção política, que o próprio candidato protagonizaria, e não uma humilhante derrota por antecipação.
O tempo é curto para a unificação da terceira via, porque as pesquisas estão mostrando que o espaço para uma candidatura nem Lula nem Bolsonaro está se reduzindo. Essa candidatura, mesmo não rompendo a polarização, cumpriria o papel de atrair uma parcela de eleitores que poderá decidir o pleito no segundo turno. Além disso, também garantiria a eleição de uma parcela expressiva de cadeiras na Câmara e no Senado. O problema é que essa avaliação, tipo o importante é competir, favorece a manutenção das candidaturas de Doria e Tebet.
Livro destaca visibilidade, presença e atenção para autoras negras
João Vítor*, com edição do coordenador de Publicações da FAP, Cleomar Almeida
Fortalecimento de identidade e empoderamento pela diversidade compõem o livro Água Doce (2018), de Akwaeke Emezi, da Nigéria, além da descoberta sexual e do diálogo entre o tradicional e o inovador. O assunto será abordado no Clube de Leitura Eneida de Moraes, realizado pela Biblioteca Salomão Malina, na terça-feira (26/4), a partir das 19 horas, em evento online.
Na obra, Akwaeke explora a espiritualidade e o gênero de sua herança Igbo, um dos maiores grupos étnicos africanos, junto da construção ocidental. O encontro virtual será transmitido pela página do Facebook da biblioteca, assim como no site e canal da FAP no Youtube.
O livro foi o mais votado para webinar do mês de abril. Baseada em obras de autoras negras, a votação ocorreu entre os participantes do clube de leitura no grupo de WhatsApp e foi aberta ao público nas redes sociais (Instagram e Facebook) da biblioteca, mantida pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília.
Para a ativista social e gestora pública Raquel Nascimento Dias, de 38 anos, a visibilidade, a presença e a atenção para as autoras negras ajudam a construir uma sociedade a partir de múltiplos olhares.
“Eu sou mãe de uma menina negra. Ela vê a vida sob uma perspectiva de ser filha de uma ativista social, mas, se eu entrar agora em uma livraria, teria ainda hoje pouquíssimas histórias de meninas negras para compartilhar com ela”, diz Raquel.
A gestora aponta a sugestão para fortalecer, viabilizar e construir escritoras negras e, com isso, permitir, fomentar e incentivar o sonho delas. “Quanto mais a sociedade questiona essa ausência, mais o mercado entende que precisa abrir espaço para diferentes perspectivas”, afirma.
Sobre o Clube de Leitura Eneida de Moraes
Com o encontro mensal, a roda de conversa existe desde junho de 2019 e leva o nome da jornalista e escritora Eneida de Moraes, que morreu, em 2003, aos 92 anos.
Para participar do clube, basta entrar em contato com a coordenação da biblioteca pelo WhatsApp oficial (61) 98401-5561. Todos os participantes são reunidos em um grupo no próprio aplicativo em que são divulgadas as informações sobre encontros e assuntos de literatura em geral.
Sobre Akwaeke Emezi
Akwaeke Emezi nasceu em 1987, na Nigéria, atualmente vive nos Estados Unidos. Escreveu obras como Bitter, Content Warning: Everything, You made a fool of death with your beauty, Pet… Por sua realidade espiritual, identifica-se como não-binário/trans e em inglês usa pronomes neutros. No Português, pede que seja referido no masculino, lido como neutro.
SERVIÇO
Clube de Leitura Eneida de Moraes
Dia: 26/04/2022
Horário da transmissão: 19h
Onde: Perfil da Biblioteca Salomão Malina no Facebook e no portal da FAP e redes sociais (Facebook e Youtube) da entidade
Realização: Biblioteca Salomão Malina e Fundação Astrojildo Pereira (FAP)
*Integrante do programa de estágio da FAP, sob supervisão do jornalista, editor de conteúdo e coordenador de Publicações da FAP, Cleomar Almeida