Livro Úrsula será discutido no Clube de Leitura Eneida de Moraes, na Biblioteca Salomão Malina

Primeiro romance escrito por negra, no Brasil, aborda o abolicionismo

João Vítor*, com edição do coordenador de Publicações da FAP, Cleomar Almeida

Em meio à escravidão, nasce um romance entre dois jovens, a pura e simples Úrsula e o nobre bacharel Tancredo. A narrativa escrita por Maria Firmina dos Reis aborda a cultura afrodescendente em um contexto anterior à Lei Áurea. O livro Úrsula é considerado o primeiro romance escrito por negra no Brasil.

Para o escritor Luiz Gusmão, a obra de Maria Firmina, publicada em 1859, combate a herança deixada pela a “desumanidade da escravidão”. “Devemos conhecê-la e divulgá-la para combater um legado nocivo e compreender a história da luta contra o racismo em nosso país”, diz Gusmão sobre Úrsula.

Todo o enredo e críticas retratadas no livro serão discutidas na terça-feira (24/05), a partir das 19 horas, de forma online, no Clube de Leitura Eneida de Moraes, organizado pela Biblioteca Salomão Malina, mantida pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília. O encontro virtual será transmitido pela página da biblioteca no Facebook, assim como no site e canal da FAP no YouTube.

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O escritor recifense Luiz Gusmão confirmou participação para mediar o debate da roda de conversa. Ele diz que Úrsula destaca a voz de personagens escravizados e oprimidos. “Chagas históricas de nossa sociedade que afetaram, e ainda afetam, profundamente a vida no Brasil”, analisa.

Obra inaugural da literatura afro-brasileira, Úrsula foi a segunda mais votada para o webinar no quesito “autoras negras”. A enquete ocorreu entre os participantes do clube de leitura no grupo de WhatsApp e foi aberta ao público nas redes sociais (Instagram e Facebook) da biblioteca.

Abolicionismo

133 anos da lei Áurea. No dia 13 maio, o documento que extinguia a escravidão no Brasil, assinado pela princesa Isabel, em 1888, completou mais um ano de existência. O livro temático deste mês do clube de leitura retrata o período anterior a essa lei. À época, a princesa ocupava a Regência do Império do Brasil, em virtude de um tratamento de saúde que seu pai, o imperador dom Pedro 2º, realizava na Europa.

Autora

Negra, filha de mãe branca e pai negro nascida na Ilha de São Luís, no Maranhão, Maria Firmina dos Reis (1822 - 1917) fez de seu primeiro romance, Úrsula (1859), um instrumento de crítica à escravidão por meio da humanização de personagens escravizados.

Maria Firmina morreu cega e pobre, aos 95 anos, na casa da ex-escrava Mariazinha, mãe de um dos seus filhos de criação. É a única mulher dentre os bustos da Praça do Pantheon, que homenageiam importantes escritores maranhenses, em São Luís.

Clube de Leitura Eneida de Moraes

Com o encontro mensal, a roda de conversa existe desde junho de 2019 e leva o nome da jornalista e escritora Eneida de Moraes, que morreu, em 2003, aos 92 anos.

Para participar do clube, basta entrar em contato com a coordenação da biblioteca pelo WhatsApp oficial (61) 98401-5561. Todos os participantes estão reunidos em um grupo no próprio aplicativo em que são divulgadas as informações sobre encontros e assuntos de literatura em geral.

Mediador

Luiz Antônio Gusmão, de 40, ou Kuzman, como prefere ser chamado, nasceu em Recife, mas mora no Distrito Federal desde 1992. Ele começou a participar do clube de leitura em 2021 e é autor do livro Azul-Planalto: haicais candangos. É uma coleção de poesias de formato tradicional japonês sobre a paisagem e a vida no Planalto Central do Brasil.

Dentre a coletânea, ele afirma ter um carinho maior pelo haicai sobre o reflexo do céu no lago Paranoá. “Ele ainda hoje evoca em mim o sentimento de completude. Um momento de plena consciência da integração entre os elementos do ar (céu), água (lago) e terra (chão), num espaço aberto”, diz, para acrescentar: “Acho que ele registra o momento em que meu olho de haicai se abriu pela primeira vez”.

Serviço

Clube de Leitura Eneida de Moraes

Dia: 24/05/2022

Horário da transmissão: 19h

Onde: Perfil da Biblioteca Salomão Malina no Facebook e no portal da FAP e redes sociais (Facebook e Youtube) da entidade

Realização: Biblioteca Salomão Malina e Fundação Astrojildo Pereira (FAP)

*Integrante do programa de estágio da FAP, sob supervisão do jornalista, editor de conteúdo e coordenador de Publicações da FAP, Cleomar Almeida


Piloto no garimpo do urariquera tenta fugir do exército brasileiro | Imagem: reprodução/BBC news Brasil

Garimpeiro ilegal mostra fugas e dribles à fiscalização em terra yanomami

João Fellet, BBC News Brasil*

"É três 'blackhawkzão', três!", prossegue o narrador, referindo-se ao modelo da aeronave militar. "Todo mundo, vamos se esconder, agora o bicho pega", ele diz.

Cenas como essa, que mostram garimpeiros fugindo de forças de segurança, são comuns num canal no YouTube criado por um garimpeiro que atua ilegalmente dentro do território yanomami, em Roraima.

Os vídeos do canal, 120 ao todo, foram postados nos últimos três anos, período de forte crescimento da mineração ilegal em terras indígenas, apesar de operações policiais pontuais.

No território yanomami, onde se estima que haja até 20 mil garimpeiros, a atividade ganhou visibilidade nas últimas semanas após denúncias de violência sexual contra mulheres e meninas indígenas.

O garimpo também está associado à presença de facções criminosas no território e à contaminação de indígenas por mercúrio (leia mais abaixo).

Página do YouTube com vídeos em miniatura
Canal que expõe rotina de garimpeiros no território yanomami foi criado em 2018 e tem 120 vídeos publicados

Rotina do garimpo

Os vídeos do canal "Fabio garimpo Junior" mostram garimpeiros à vontade diante das câmeras durante seus trabalhos, ainda que garimpar em terras indígenas seja crime passível de prisão.

Sem esconder o rosto, eles discursam em defesa do garimpo e criticam a repressão à atividade, muitas vezes ecoando posições do presidente Jair Bolsonaro.

Os vídeos mostram ainda como o garimpo na terra yanomami ganhou uma escala industrial nos últimos anos.

Mapa da Terra Indígena Yanomami
Maior terra indígena do Brasil, território yanomami ocupa porções dos Estados de Roraima e Amazonas

As gravações mostram helicópteros e aviões privados transportando os garimpeiros até as minas ilegais (não há acesso terrestre ao território).

Nos garimpos, máquinas pesadas abrem grandes clareiras na Floresta Amazônica e rios são desviados na busca por ouro e cassiterita. Alguns acampamentos parecem minicidades, com eletricidade e internet.

Segundo a Hutukara Associação Yanomami, a área desmatada por garimpeiros dentro do território indígena cresceu 46% em 2021 em comparação com o ano anterior.

A atividade, porém, implica sérios riscos para os garimpeiros. Dois vídeos mostram helicópteros a serviço do garimpo em destroços após caírem na floresta.

Outras filmagens mostram manobras arriscadas de barcos com garimpeiros subindo corredeiras, helicópteros descendo em pequenas clareiras e aviões pousando sob forte chuva.

As cenas são exaltadas no canal como exemplos da coragem e perícia dos envolvidos.

Agente armado de costas, diante de caminhonete em chamas
Agente observa caminhonete em chamas durante operação contra o garimpo na Terra Indígena Yanomami, em 2021

Perseguições com tiros

A rotina nos garimpos no território yanomami também abarca perseguições com tiros.

Um vídeo publicado em janeiro de 2020 tem como título "Piloto no garimpo do Uraricoera tenta fugir do Exército brasileiro".

As imagens mostram um piloto que navegava em alta velocidade enquanto era perseguido por um barco com quatro soldados no Uraricoera, principal rio do território yanomami.

Após quatro disparos, um homem na margem do rio grita: "Pegou, pegou". Ouvem-se então outros dois tiros, mas o vídeo termina sem que seja possível ver se o piloto foi realmente atingido nem qual foi o desfecho da perseguição.

Outra versão dessa cena, publicada em fevereiro de 2022, envolveu um carro da Polícia Militar de Roraima que perseguia em alta velocidade um pequeno avião num aeroporto não identificado.

Segundos após a decolagem, ouve-se um disparo, mas a aeronave prossegue o voo, aparentemente ilesa.

Garimpeiro youtuber

O canal no YouTube que exibe os vídeos existe desde janeiro de 2018 e tem 324 inscritos. A última gravação foi publicada em 28 de abril de 2022.

Em vídeo de agosto de 2021, o dono do canal se apresenta como Fábio Júnior Rodrigues Faria e se define como garimpeiro, mas diz ter a ambição de viver como youtuber.

"Se um dia futuramente der, vou viver disso, mostrando a realidade do garimpo, mostrando a dificuldade que os garimpeiros passam", ele afirma no vídeo.

Homem sem camisa à beira de rio
Responsável pelo canal diz ter a ambição de trabalhar como youtuber, "mostrando a realidade do garimpo"

Faria aparece em vários vídeos num dos maiores garimpos no território yanomami, conhecido como garimpo do capixaba. O local foi alvo de sucessivas operações nas últimas décadas - a última delas, em março de 2021, quando o Exército destruiu uma pista de pouso usada por garimpeiros.

Mas as operações não foram capazes de paralisar os trabalhos. Os vídeos mostram que, assim que as forças de segurança deixam os acampamentos, os garimpeiros saem dos esconderijos nas matas para retomar as atividades.

Ao se esconder, costumam levar consigo o ouro extraído e motores que usam para garimpar. Os equipamentos que ficam para trás costumam ser queimados pelos agentes.

Um vídeo de outubro de 2021 mostra uma distribuição gratuita de cerveja a garimpeiros logo após forças de segurança deixarem um acampamento, quando parte do local ainda estava em chamas.

"Pode pegar que tá liberado", diz um homem, ele próprio com duas latas na mão. "Aqui é por conta da (Polícia) Federal", ironiza.

Helicóptero sobrevoando acampamento em vídeo no YouTube
Apesar de operações pontuais contra o garimpo no território yanomami, atividade está em alta

Outras gravações mostram acampamentos de garimpeiros em outras áreas do território yanomami, como nos rios Catrimani e Uraricoera.

Procurado por meio de seu canal no YouTube, Faria não respondeu as perguntas da BBC.

Na última tentativa de contato, na última quarta-feira (11/05), a BBC postou no canal uma mensagem questionando se Faria estava ciente das penas para o garimpo ilegal em terras indígenas.

No dia seguinte, porém, a mensagem tinha sido deletada.

Problema histórico

Com área equivalente à de Portugal, a Terra Indígena Yanomami abriga cerca de 27 mil membros dos povos yanomami e ye'kwana, que vivem em 331 aldeias.

O território ocupa porções do Amazonas e de Roraima e se estende por boa parte da fronteira do Brasil com a Venezuela. A região é alvo de garimpeiros desde ao menos a década de 1980.

A atividade viveu um declínio com a demarcação da terra indígena, em 1992, mas voltou a crescer nos últimos anos.

Vista aéra de rio impactado por garimpo em meio à floresta amazônica
Destruição causada por frente de garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami

Eleitor de Bolsonaro

No vídeo em que se apresenta, Faria se declara eleitor do presidente Jair Bolsonaro. "Em 2022, é Bolsonaro na cabeça, vai arrebentar de novo", afirma.

Em outro vídeo, quando se escondia na mata durante uma operação policial, o garimpeiro critica as forças de segurança e torce para que o presidente tome providências. "Espero que nosso presidente Bolsonaro veja isso", afirma.

Em várias ocasiões, Bolsonaro defendeu a aprovação de um projeto de lei - atualmente em debate no Congresso - que regulamentaria a mineração em terras indígenas.

O presidente também costuma criticar órgãos de fiscalização ambiental e afirmar que garimpeiros "não são bandidos", mas sim trabalhadores em busca de melhores condições de vida.

Discurso semelhante é ecoado pela categoria. Nos vídeos do canal, Faria e colegas dizem que os garimpeiros são perseguidos injustamente.

"Muita gente crucifica o garimpeiro, (diz) que o garimpeiro é sem vergonha, mas em nenhum momento você vê que a Bíblia condena o garimpo", diz Faria.

"Pelo contrário, Deus ama o ouro e deixou isso aqui que é pra tirar mesmo", defende.

A BBC questionou a Presidência da República sobre o conteúdo do canal e as menções dos garimpeiros a Bolsonaro, mas não houve resposta.

Helicóptero caído na margem de rio
Vídeos mostram helicópteros a serviço do garimpo acidentados na Terra Indígena Yanomami

Interação com indígenas

Embora os vídeos tenham sido gravados dentro do território yanomami, são raros os momentos em que indígenas aparecem nas gravações.

Numa dessas ocasiões, Faria e colegas se depararam com uma mulher e três crianças yanomami enquanto atravessavam um riacho numa pinguela.

"Ó os índios da tribo aí", disse o garimpeiro. "Uma fome, miséria", afirmou.

Os indígenas aguardavam a travessia dos garimpeiros, esperando por sua vez para cruzar o rio.

Bem mais comuns que os encontros são as menções a indígenas nos discursos de Faria.

No vídeo em que se apresenta, o garimpeiro se refere aos indígenas como "uma raça de gente imunda" e os acusa de "roubar" os garimpeiros.

"É uma raça de gente que não merece você nem dar um prato de comida para eles", afirma. "São bandidos".

Cratera com acampamento de garimpeiros ao fundo
Cratera aberta por garimpeiros ilegais no território yanomami

Um líder indígena yanomami ouvido pela BBC comentou a declaração.

"A população indígena yanomami não é bandida, não estamos colocando em risco a vida de ninguém, não estamos invadindo a terra de ninguém. Quem está invadindo são os garimpeiros", afirmou o indígena, que preferiu não ter o nome revelado por motivos de segurança.

Ele afirmou ainda que a existência do canal mostra que os garimpeiros "não têm medo de ninguém".

Homem ao lado de mulheres e crianças indígenas à beira de rio
Garimpeiro cruza com mulher e crianças yanomami em região de garimpo ilegal no território indígena

"Eles não têm medo da PF (Polícia Federal), não têm medo de mostrar os rostos. Eles sabem que não vão responder absolutamente (por crimes), que não vão ser presos", diz o indígena.

Questionado pela BBC, o YouTube disse que "conteúdos que incentivem a violência ou ódio contra pessoas" com base em características como etnia ou religião não são permitidos na plataforma, mas não comentou a exposição de cenas de garimpo ilegal no canal.

"Quando não há violação à política de uso do YouTube, a análise final sobre a remoção de conteúdo cabe ao Poder Judiciário, nos termos do Marco Civil da Internet", afirmou a empresa.

O YouTube disse ainda que o canal do garimpeiro está "sob análise".

Penas para o garimpo ilegal

A Constituição de 1988 determina que a exploração mineral em terras indígenas só pode ocorrer se for regulamentada por leis específicas. Como as leis jamais foram aprovadas, a atividade é ilegal.

A exceção é quando o garimpo é realizado pelas próprias comunidades indígenas, em escala artesanal.

homens trabalhando em cratera de garimpo com jatos de água
Garimpo ilegal é problema antigo no território yanomami, mas ganhou escala industrial nos últimos anos

Segundo a Lei 9.605/98, extrair recursos minerais sem autorização é crime com pena de seis meses a um ano de prisão, além de multa. Como terras indígenas pertencem à União, garimpar nessas áreas também pode ser enquadrado como crime contra o patrimônio da União (lei 8.176/91), com pena de um a cinco anos de prisão e multa.

Porém, mesmo quando condenados na Justiça, garimpeiros raramente cumprem pena na cadeia.

Em audiência no Senado em abril, o procurador da República Alisson Marugal, que atua no combate ao garimpo no território yanomami, disse que as condenações de garimpeiros não costumam ultrapassar 4 anos de prisão e são normalmente substituídas pela prestação de serviços.

Segundo Marugal, hoje o Ministério Público Federal tem como foco investigar o garimpo enquanto organização criminosa que promove lavagem de dinheiro, crimes que geram penas maiores para os líderes dos grupos.

O procurador citou denúncias de que o "narcogarimpo" esteja presente no território yanomami, conforme facções criminosas como o Primeiro Comando da Capital (PCC) passam a se envolver com a atividade.

Para coibir os crimes na região, o procurador cobrou o fortalecimento da fiscalização, o bloqueio dos rios usados por garimpeiros e um maior controle da cadeia de venda e processamento do ouro.

Outro impacto do garimpo ilegal no território se dá pela contaminação de indígenas por mercúrio, usado pelos garimpeiros para aglutinar o ouro.

Em 2016, um estudo do Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com a Fiocruz e a Fundação Getúlio Vargas (FGV) revelou que 92% dos moradores de uma aldeia yanomami vizinha a uma frente de garimpo tinham altos níveis de mercúrio no sangue.

Homens com pinturas e adornos corporais
Anciãos yanomami na aldeia de Maturacá

Acusações contra o Exército

O Exército também é alvo de acusações constantes nos vídeos dos garimpeiros.

"O governo manda o Exército aqui para dentro, e o Exército, quando vem, vem morrendo de fome", afirmou Faria num vídeo publicado em junho de 2019.

"Eles não querem tirar os garimpeiros, eles querem roubar o que o garimpeiro tem. Eles roubam celular, comida, qualquer coisa que beneficie eles", disse.

Contatado pela BBC desde a última terça-feira (10/05), o Exército não se posicionou sobre as acusações nem sobre os demais conteúdos do canal.

A corporação não tem como atribuição principal combater crimes ambientais, embora costume dar apoio logístico a operações em terras indígenas na Amazônia.

Desde 2019, porém, vários decretos de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) determinados pelo presidente Jair Bolsonaro deram às Forças Armadas o papel de coordenar o combate ao garimpo ilegal nesses territórios.

Acampamento de garimpeiros em chama
Garimpeiros ilegais se queixam da repressão à atividade em canal no YouTube

A estratégia foi abandonada em outubro de 2021, decisão que analistas atribuem a seus fracos resultados e aos altos custos das operações lideradas pelos militares.

Desde então, o Ministério da Justiça (MJ) passou a coordenar a ação da Polícia Federal, do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais) e da Funai (Fundação Nacional do Índio) no combate ao garimpo em terras indígenas.

Sob a coordenação do MJ, o ritmo das operações no território yanomami diminuiu.

Diretor-adjunto da Associação Nacional dos Servidores Ambientais (Ascema), o agente ambiental Wallace Lopes afirmou em 9 de maio no Twitter que o Ibama não é convocado a atuar na Terra Indígena Yanomami desde dezembro de 2021.

"Sem fiscalização, as atividades criminosas ganharam espaço para se desenvolver livremente, colocando sob risco não apenas os povos originários do Brasil, mas também toda a população, as futuras gerações, bem como a nossa megabiodiversidade", afirmou.

A BBC questionou o Ministério da Justiça sobre os vídeos dos garimpeiros e o crescimento da atividade na terra yanomami.

Em nota, o órgão afirmou que a Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do Ministério da Justiça está finalizando "um novo calendário de ações operacionais" no território.

"Tão logo esteja pronto poderá ser apresentado à mídia e à sociedade", disse o ministério.

Questionada se tinha conhecimento do canal no YouTube, a Polícia Federal disse que "não comenta eventuais investigações em andamento".

A corporação disse ainda que realizou 31 operações policiais contra crimes ambientais em terras indígenas em Roraima em 2021, e que há mais de 200 procedimentos investigativos em andamento, com mais de 170 indiciados por crimes ligados ao garimpo ilegal.

A Funai disse em nota que mantém bases para coibir crimes e controlar o acesso ao território yanomami.

"Cabe lembrar que a mineração ilegal na Terra Indígena Yanomami é um problema crônico, sendo que a atual gestão da Funai tem trabalhado firmemente para resolvê-lo, bem como outros problemas que são fruto de décadas de fracasso da política indigenista brasileira que, no passado, era guiada por interesses escusos, falta de transparência e forte presença de organizações não-governamentais", afirmou a fundação.

Em entrevista à Jovem Pan News em 12 de abril, o presidente da Funai, Marcelo Xavier, disse que o garimpo no território yanomami "tem duas vítimas: tanto o indígena quanto o garimpeiro".

Ele defendeu a aprovação de uma lei para regulamentar a atividade "para trazer transparência ao processo e, quem sabe, garantir uma solução de vida mais digna para esses indígenas".

*Texto publicado originalmente no BBC news Brasil (Título editado)


Urna eletrônica | Foto: reprodução/BBC news

Eleições 2022: o papel e as polêmicas dos militares na votação para a Presidência

Leandro Prazeres, BBC News Brasil*

O tema voltou a ser discutido, principalmente, depois que o presidente Jair Bolsonaro (PL) passou a levantar dúvidas sobre a segurança das urnas eletrônicas, criticar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e acusá-lo de recusar sugestões feitas pelo Exército sobre o funcionamento do sistema eleitoral.

Em uma live, Bolsonaro chegou a afirmar que as Forças Armadas não se limitariam a "participar como espectadoras" das eleições deste ano.

Mas afinal: qual é o papel definido, até agora, para as Forças Armadas durante as eleições deste ano? Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que, apesar das afirmações do presidente, o papel dos militares nas eleições deverá se limitar ao transporte de urnas eletrônicas para locais de difícil acesso, garantir a segurança da votação em municípios onde haja possibilidade de conflitos e participar do processo de fiscalização do processo eleitoral.

Os especialistas, no entanto, são unânimes: não cabe às Forças Armadas o papel de "revisora" das eleições.

Forças Armadas x TSE

A tensão em torno de qual o papel a ser desempenhado pelas Forças Armadas neste ano começou há pelo menos um ano quando o presidente Bolsonaro e alguns de seus aliados intensificaram suas críticas ao sistema eleitoral. Sem apresentar provas, Bolsonaro levantou dúvidas sobre a integridade das urnas eletrônicas.

Alegando supostas falhas no sistema de urnas eletrônicas, Bolsonaro defendeu a implantação de um sistema de contabilização de votos impresso, em que os números digitados por cada eleitor nas urnas sejam impressos e depositados em uma urna de acrílico como forma de garantir segurança em caso de acusações de fraude.

Em julho, o então ministro da Defesa e atualmente cotado para ser vice na chapa de Bolsonaro, general Braga Netto, defendeu o debate sobre o chamado voto impresso e disse que a discussão era "legítima".

Uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) chegou a tramitar no Congresso Nacional, mas ela não obteve os votos necessários e foi derrotada, em agosto de 2021.

Todo esse debate se acentuou ao mesmo tempo em que as principais pesquisas de intenção de voto passaram a mostrar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a frente de Bolsonaro na disputa pela Presidência da República.

Logo após a derrota da PEC do voto impresso, os militares voltaram à cena. Eles foram convidados pelo TSE para fazer parte da Comissão de Transparência das Eleições (CTE), criada em setembro de 2021 pelo então presidente do tribunal, Luiz Roberto Barroso.

A comissão tinha o objetivo de receber sugestões de diversas entidades da sociedade para ampliar a segurança do processo eleitoral. Entre os órgãos convidados estavam a Polícia Federal e as Forças Armadas.

Jair Bolsonaro
Para especialistas, Forças Armadas incorporaram discurso do presidente Bolsonaro sobre as urnas eletrônicas

E é justamente a participação dos militares nessa comissão que deu ainda mais munição para o debate sobre a atuação das Forças Armadas durante as eleições.

Isso porque os militares enviaram um conjunto de 88 questões ao TSE sobre quais medidas seriam tomadas diante de supostas fragilidades no sistema encontradas por eles.

A lista de perguntas feitas pelos militares é dividida em cinco grandes grupos: dúvidas sobre o teste de integridade das urnas eletrônicas; nível de confiança nos sistemas de votação e apuração dos votos; solicitação de documentos, listas, relatórios e informações sobre as políticas do TSE; funcionamento das urnas; e propostas de aperfeiçoamento da transparência do tribunal.

Em suas respostas, o TSE voltou a defender que o sistema eleitoral do país é seguro e rejeitou a maior parte das propostas feitas pelos militares.

Analistas avaliam que as perguntas feitas pelo Exército desconsideram o histórico de segurança apresentado pelas urnas eletrônicas, em uso desde 1996, e incorporam elementos do discurso de Bolsonaro que coloca em xeque o sistema eleitoral.

A temperatura ficou ainda mais alta depois que o ex-presidente do TSE e ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Roberto Barroso, disse que as Forças Armadas estariam sendo "orientadas" a atacar o processo eleitoral.

"Desde 1996 não tem nenhum episódio de fraude. Eleições totalmente limpas, seguras. E agora se vai pretender usar as Forças Armadas para atacar. Gentilmente convidadas para participar do processo, estão sendo orientadas para atacar o processo e tentar desacreditá-lo", afirmou Barroso.

Em resposta, o Ministério da Defesa rechaçou a declaração do ministro e a classificou como "irresponsável".

E em meio a esse cenário, Bolsonaro voltou a levantar dúvidas sobre a segurança das eleições.

Em um evento no dia 27 de abril, ele chegou a dizer que os militares teriam sugerido uma apuração paralela dos votos feita pelas Forças Armadas.

Para isso, segundo ele, bastaria a instalação de um "cabo" para que os dados da votação fossem enviados a um computador dos militares.

"Uma das sugestões é que, [com] esse mesmo duto que alimenta na sala secreta os computadores, seja feita uma ramificação um pouquinho à direita para que tenhamos do lado um computador também das Forças Armadas para contar os votos no Brasil", disse.

Na semana seguinte, no dia 27 de abril, o presidente disse, em uma transmissão em suas redes sociais, que os militares não teriam um papel passivo durante as eleições.

"Convidaram as Forças Armadas. Repito, as Forças Armadas não vão fazer papel de chancelar apenas o processo eleitoral, participar como espectadores do mesmo. Não vão fazer isso", disse.

Dois dias depois, o presidente do TSE, Edson Fachin, disse que não há "poder moderador" para intervir na Justiça Eleitoral.

"Não há poder moderador para intervir na Justiça Eleitoral", disse Fachin, em uma entrevista.

"Colaboração, cooperação e, portanto, parcerias proativas para aprimoramento, a Justiça Eleitoral está inteiramente à disposição. Intervenção, jamais.", afirmou o ministro.

Transporte, fiscalização e acesso a sala-cofre

O ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Ayres Britto, que comandou o tribunal entre 2008 e 2010, disse à BBC News Brasil que, desde a redemocratização, o papel exercido pelas Forças Armadas nas eleições têm se resumido a transportar urnas para regiões de difícil acesso e garantir a segurança da votação em municípios ou localidades onde haja possibilidade de conflito.

O ex-ministro ressaltou que isso só acontece quando a Justiça Eleitoral requer a ação dos militares e que, neste ano, esse papel não deverá ser diferente. Ele diz ainda que não cabe aos militares o papel de "revisor" das eleições.

"Desde a volta da democracia, os militares só atuam nas eleições por determinação da Justiça Eleitoral. Em geral, a atuação deles se limita a distribuir urnas e garantir a segurança em alguns locais de votação sempre que solicitado", afirmou o ex-ministro.

Procurado pela BBC News Brasil, o TSE informou que, desde 2019, as Forças Armadas também estão habilitadas a atuar como fiscalizadoras do processo eleitoral.

Entre as instituições que podem exercer este papel estão os partidos políticos, polícia federal e entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Segundo o TSE, as Forças Armadas podem participar de todas as fases do processo de fiscalização das eleições, inclusive da contabilização dos votos.

"Os integrantes da CTE (Comissão de Transparência Eleitoral) poderão participar de todas as etapas do processo eleitoral, inclusive com acesso à sala-cofre", disse o TSE em nota enviada à BBC News Brasil. Sala-cofre é onde são armazenadas cópias físicas dos programas que serão usados durante as eleições.

Ayres Britto, ex-presidente do TSE
Ex-presidente do TSE, diz que as Forças Armadas nas últimas eleições tem se resumido a transportar urnas

Ayres Britto, faz uma ressalva, porém. Segundo ele, os militares não podem atuar como "mentores" do processo eleitoral.

"As Forças Armadas não são um poder e nem um ministério. Elas não podem atuar como mentores do processo eleitoral, determinando o que pode ou não pode ser feito. Elas atuam apenas como colaboradores", diz o ex-ministro.

Outro ex-ministro do TSE e advogado especializado em direito eleitoral, Henrique Neves, diz que ainda que as Forças Armadas participem como fiscalizadoras das eleições e integrantes da comissão de transparência, o TSE não é obrigado a acatar as recomendações.

"As Forças Armadas não podem atuar como revisoras das eleições. Os militares podem fiscalizar e fazer parte da comissão de transparência, mas por lei, não há nada que obrigue o tribunal a acatar essas sugestões", disse o ex-ministro.

Preocupação e alerta

Para a pesquisadora do Laboratório de Estudos Eleitorais, de Comunicação Política e de Opinião Pública da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Carolina Botelho, as manifestações dos militares até o momento devem ser vistas como uma tentativa de intervenção no processo eleitoral.

Segundo ela, desde a redemocratização, em 1985, as Forças Armadas vinham atuando dentro de suas atribuições sem fazer interferências na esfera política.

Ela afirma, no entanto, que esse histórico muda em abril de 2018, quando o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas fez uma postagem no Twitter às vésperas do julgamento de uma ação sobre a prisão do ex-presidente Lula que foi interpretada por alguns analistas como uma ameaça aos ministros do STF.

Para a pesquisadora, o teor dos questionamentos sobre o funcionamento do sistema eleitoral feitos pelo Exército deve ser visto como uma "intervenção" dos militares no processo das eleições.

Ela ressalta, porém, que não é possível afirmar o tamanho do apoio que essa corrente tem dentro do meio militar.

"Esses questionamentos devem, sim, ser vistos como uma intervenção indevida dos militares no processo eleitoral. O que não sabemos, no entanto, é qual é a dimensão da parcela de militares envolvidos nessa tentativa de intervir. Há uma opacidade na instituição que nos impede de ver isso na sua totalidade", afirma Carolina Botelho.

Para o professor de Teoria Política da Universidade Federal do Tocantins (UFT) e doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB), Hesaú Rômulo, o grande número de militares na gestão do presidente Jair Bolsonaro torna mais difícil indicar onde termina o governo e onde começam as Forças Armadas.

Por conta dessa particularidade, ele avalia que o comportamento dos militares às vésperas das eleições deste ano é atípico.

"O simples fato de estarmos tendo esse tipo de debate mais de 30 anos depois da redemocratização mostra que a atuação dos militares nos últimos anos mudou. De certa forma, os militares tomaram pra si a função de revisores do processo eleitoral, ainda que isso não exista na nossa legislação", afirma o professor.

Na avaliação do ex-ministro Ayres Britto, porém, apesar do clima tenso, a atuação dos militares nas eleições deste ano não ultrapassou as regras institucionais.

"Até agora, as Forças Armadas têm atuado somente no campo da colaboração, inclusive enviando suas sugestões. Não avalio que houve avanço de nenhum sinal. Agora, se o presidente está fazendo uso político disso, isto é um outro problema", avalia o ex-ministro

*Texto publicado originalmente no BBC news Brasil


Lembraivos de 1964 Não custa nada | Imagem: reprodução/Correio Braziliense

Nas entrelinhas: Lembrai-vos de 1964! Não custa nada

Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas / Correio Braziliense

O título da coluna é um trocadilho com o título do livro de Ferdinando Carvalho sobre a atuação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), publicado pela Biblioteca do Exército, em 1981. Antes, o general havia escrito duas obras sobre o mesmo tema, porém ficcionais: Os Sete Matizes do Rosa e Os Sete Matizes do Vermelho, ambos em 1977.

Àquela altura, a luta armada contra o regime militar havia sido dizimada, com seus lideres mortos, presos ou no exílio. O PCB estava quase completamente desbaratado e os remanescentes de seu Comitê Central, entre os quais Luiz Carlos Prestes e Giocondo Dias, viviam no exílio. Embora defendesse a via eleitoral como forma de luta principal pela redemocratização, um terço dos seus dirigentes fora assassinado e apenas meia dúzia permanecera no país, na mais profunda clandestinidade.

Entretanto, o que estava em curso era a abertura política, alargada e acelerada pelas sucessivas derrotas eleitorais do regime, cujo projeto de institucionalização como “democracia relativa” já havia fracassado. Batido nas eleições de 1974 e 1978, seria derrotado novamente em 1982, depois da anistia política que trouxera de volta os exilados e às ruas os prisioneiros políticos.

O general João Batista Figueiredo, cada vez mais enfraquecido na Presidência, era desafiado pelos porões do regime, em atentados terroristas cujo desfecho foi a bomba do Riocentro, que explodiu no colo de um sargento e feriu um capitão do Exército ao seu lado. O artefato seria detonado no local onde se realizava um grande show artístico comemorativo do 1º de Maio, com milhares de estudantes e sindicalistas.

Ferdinando de Carvalho fez a cabeça de muitos militares hoje reformados e alguns jovens cadetes e oficiais que voltariam ao poder com a eleição do presidente Jair Bolsonaro (PL) — entre eles o ex-ajudante de ordens do general Silvio Frota, o hoje general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência.

A matéria prima dos livros é o Inquérito Policial Militar (IPM) nº 7.098 (1964-1966), responsável por apurar as atividades do PCB no território nacional, que coordenou. Muito do que os militares e a direita ideológica brasileira, hoje, falam sobre a esquerda no Brasil são uma reprodução de suas teses, lançadas no começo dos anos 1980 como uma tentativa desesperada de impedir a redemocratização do país.

Memória

Domingo, recebi uma ligação do ex-deputado Marcelo Cerqueira, um dos líderes da campanha pela anistia, preocupado com a conjuntura política: “Estou me sentindo em 1963”. Diretor da UNE à época, Marcelo viveu intensamente o processo político que antecedeu o golpe militar de 1964. Emoldurada pela guerra fria, a vitória de João Goulart no plebiscito para restabelecer o presidencialismo derivou para a radicalização, cujo desfecho foi a destituição do presidente da República.

O comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, no qual Jango anunciou a decretação das reformas de base — que o Congresso havia rejeitado —, serviu apenas para acirrar ainda mais a crise, que desaguaria na sua destituição, em 31 de março daquele ano, com três navios da Marinha norte-americana ao largo do Espírito Santo, prontos para intervir.

Marcelo e o então presidente da UNE, José Serra, hoje senador do PSDB por São Paulo, estavam entre aqueles que tentaram jogar água fria na fogueira, como San Thiago Dantas. Os líderes estudantis chegaram a procurar o marechal Castelo Branco, que até então dizia defender a legalidade, nos esforços de apaziguamento. Mas a rota de colisão entre os militares e Jango já era irreversível. E a maioria da opinião pública acreditava que o país caminhava para o comunismo, o que não era verdade.

O problema era outro. O principal líder do PTB, o partido de Jango, o ex-governador gaúcho e deputado federal Leonel Brizola, queria ser candidato a presidente nas eleições convocadas para 1965, mas era inelegível por ser cunhado do presidente da República. Os candidatos favoritos eram o ex-presidente Juscelino Kubitschek (PSD) e o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda (UDN). JK era o candidato da conciliação, Lacerda o do confronto.

O líder comunista Luiz Carlos Prestes articulava a reeleição de Jango, em aliança com o PTB, o que provocou a ruptura da aliança com o PSD, que levara Juscelino ao poder em 1955.

Jango era um estancieiro gaúcho, de viés populista, formado no trabalhismo de Alberto Pasqualini e San Thiago Dantas. Não tinha nada de comunista. Se decidisse apoiar JK, mantendo a aliança de 1955, muito provavelmente não teria ocorrido o golpe militar. Considerado imbatível, Juscelino era visto como um retrocesso pela esquerda, o que foi um grave equívoco. O retrocesso era o golpe militar.

Com sinal trocado, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que lidera as pesquisas para a Presidência, também é visto como um retrocesso por amplos setores da sociedade. Bolsonaro tenta se aproveitar da situação para se manter no poder, mesmo que perca a reeleição, com uma narrativa que nos remete ao ambiente pré-golpe militar de 1964, na percepção daqueles que viveram aqueles momentos. Entretanto, os tempos são outros.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-lembrai-vos-de-1964-nao-custa-nada/

LGBTfobia | Arte: FAP

Revista online | Conquistas e desafios na luta contra a LGBTfobia no Brasil

Mariana Valentim*, especial para a revista Política Democrática online (43ª edição: maio de 2022)

Em 1990, a homossexualidade foi retirada da Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS). Essa data histórica foi utilizada para que, em 2004, fosse criada uma campanha que culminou no primeiro dia internacional contra a homofobia, em 17 de maio de 2005.

A transfobia (violência e discriminação contra pessoas transgêneras) tornou-se parte da campanha, em 2009, depois de uma intensa movimentação com mais de 300 organizações não governamentais (ONGs) de 75 países, que culminou na retirada da transgeneridade da lista de doenças mentais na França. A bifobia (violência e discriminação contra pessoais bissexuais) entrou na campanha, em 2015.

No Brasil, nos últimos 20 anos, houve diversos avanços na luta de garantias de direitos fundamentais e proteções da população lésbica, gays, bissexuais, transexuais, travestis e intersexuais (LGBTQIA+), como listadas a seguir:

O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, em 2011, as uniões homoafetivas como entidades familiares, abrindo caminho a uma década de avanços para a população LGBTQIA+.

Sete anos depois, o STF confirmou entendimento que autoriza transexuais e transgêneros a alterarem o nome no registro civil sem a necessidade de cirurgia de redesignação sexual e a autorização de um juiz, podendo ser realizada diretamente no cartório.

Em 2018, depois de forte atuação do Cidadania, resolução do Ministério da Educação (MEC) foi homologada, autorizando o uso do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares de educação básica. O nome social é aquele pelo qual as travestis, mulheres trans ou os homens trans optam por ser chamados, de acordo com sua identidade de gênero.

Em 2019, também após atuação do Cidadania, houve a criminalização da LGBTfobia, via STF, que equiparou o crime de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero ao de racismo.

Poderíamos citar outras Leis e resoluções que ampliaram as garantias e direitos da comunidade LGBTQIA+, mas os exemplos acima dão um panorama desses avanços e colocam o Brasil como um dos países com a legislação mais robusta no mundo ocidental.

Na teoria, nós somos um dos cinco primeiros países do mundo onde é melhor para se viver enquanto LGBT. Na prática, porém, sabemos que não é bem assim.

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Mesmo com todo esse panorama, seguimos sendo um dos países que mais matam pessoas trans e travestis no mundo. Segundo levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra), pelo menos 140 pessoas foram assassinadas, em 2021, o que corresponde a 38% dos assassinatos no mundo.

E, ainda, segundo o Observatório de Mortes e violências LGBTI+, só em 2021, foram 316 mortes de pessoas da comunidade. Representa um aumento de 33,33%, em comparação com o ano de 2020, quando morreram 217 pessoas.

Para muitos, há subnotificações nesses dados, e é algo mesmo a ser questionado, tendo em vista que não há dados oficiais.

Um dos grandes problemas para a nossa comunidade é justamente este: a falta de, digamos na “melhor” das hipóteses, boa vontade do governo nesses levantamentos que podem munir as políticas públicas para a comunidade LGBT.

Por que os dados oficiais são importantes? Porque não dá para combater algo que não podemos mensurar.

Com dados, podemos investir também na empregabilidade, que é um dos pontos mais preocupantes. Um LGBT precisa, como qualquer pessoa, ser inserido no mercado formal de trabalho e sair do subemprego que muitas vezes lhe resta.

Uma forma de fazer isso é incentivar a responsabilidade social das empresas. A capacitação não só dos empresários, mas de seus funcionários para que possam receber essas pessoas de forma inclusiva.

O que falta para muitos LGBT é uma oportunidade. E, para muitas pessoas heterossexuais cisgêneros, é a instrução no combate à LGBTfobia.

Chegamos ao ponto central deste artigo: Com todas essas conquistas civilizatórias dos últimos anos, qual o motivo de existir ainda tanta violência e repressão contra a comunidade LGBTQIA+?

Deve-se observar vários fatores para se chegar à resposta. Um deles é o crescente avanço da extrema direita mundial, grupos que historicamente sempre foram contra a diversidade e a pluralidade de gênero, raça, etnia e sexual.

Outro aspecto é o fortalecimento desses grupos no Brasil, com a eleição do presidente Bolsonaro, que legitima o discurso extremista de subjugamento e eliminação de direitos das minorias.

Tudo isso se soma à insegurança de termos nossas principais conquistas sendo garantidas, judicialmente, pelo STF.

No entanto, devemos buscar, junto ao Congresso Nacional, a garantia desses direitos em forma de lei, para que não haja retrocessos se torne mais difícil o recuo em relação a essas conquistas da comunidade.

Não esperamos um Congresso “mais progressista” na próxima legislatura, mas chegou ao momento de cada LGBT não contar apenas com os nossos “aliados” da causa lá.

Chegou a hora de sermos os protagonistas de nosso destino. Nós, por nós e através de nós, podemos lutar com mais afinco pela garantia desses direitos. Desde a articulação com convencimento ao voto. Por isso, é importante entender que, para se combater a LGBTfobia, também precisamos eleger mais parlamentares LGBT.

Sobre a autora

Mariana Valentim | Arquivo pessoal

* Mariana Valentim é arquiteta, urbanista e empresária. Ativista trans, ocupa o cargo de vice-diretora executiva do Lola (Ladies of Liberty Association) Brasil e de conselheira do Movimento Livres. 

** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de maio de 2022 (43ª edição), editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

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A ucrânia se tronou um novo vietnã | Imagem: reprodução/Correio Braziliense

Nas entrelinhas: A Ucrânia se tornou um novo Vietnã

Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas / Correio Braziliense

A guerra da Ucrânia está sendo para a Rússia de Vladimir Putin o que o Vietnã representou para os Estados Unidos. É uma guerra por procuração, na qual o que existe de mais moderno em termos de guerra híbrida está sendo empregado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), liderada pelos Estados Unidos e pela Inglaterra, contra as tropas russas invasoras. Se havia alguma dúvida quanto a isso, dois vazamentos de informações foram esclarecedores:

No primeiro, o Times revelou que “os EUA forneceram informações de inteligência a respeito de unidades russas que permitiram aos ucranianos localizar e matar muitos dos generais russos que morreram em ação na guerra da Ucrânia, de acordo com graduadas autoridades americanas”. No segundo, após uma reportagem da NBC News, o Times noticiou que os EUA “forneceram informações de inteligência que ajudaram as forças ucranianas a localizar e atacar” o Moskva, o principal navio de guerra da esquadra russa no Mar Negro, que, depois, naufragou.

Na época da guerra fria, o equilíbrio estratégico militar entre os Estados Unidos e a antiga União Soviética permitia que direita e esquerda disputassem o poder nos seus respectivos países, sobretudo na Europa, por uma via democrática, exceto nas áreas de influência das duas potências. Na zona do agrião, como diria o comentarista de futebol João Saldanha, as duas potências entravam de sola: foi assim na Hungria e antiga Checoslováquia, invadidas pelas tropas do Pacto de Varsóvia; e na América Latina, onde as intervenções diretas e os golpes militares apoiados pelos Estados Unidos barraram a ascensão da esquerda durante quase toda a guerra fria. A “crise dos mísseis” em Cuba, a exceção, em 1962, quase levou o mundo à guerra nuclear.

A derrota americana no Vietnã foi o primeiro de uma série de eventos nos quais os Estados Unidos fracassaram, como na Revolução Iraniana e no Afeganistão. A derrota soviética nesse país pode ser considerada o sinal de que a desintegração da União Soviética estava mais próxima do que se imaginava, antes mesmo que a queda do Muro de Berlim. O colapso do chamado “socialismo real” deu aos Estados Unidos a hegemonia nesse novo mundo unipolar, no qual a globalização avançou protagonizada por políticas neoliberais e a Otan demonstrou seu poder de intervenção na Sérvia, no Iraque, na Líbia e no Afeganistão. A emergência da China como potência econômica, nas últimas duas décadas, porém, colocou essa hegemonia em xeque no plano econômico.

Derrota anunciada

A Rússia já está derrotada, moralmente e financeiramente. Ao afrontar a Organização do Tratado do Atlântico Norte, Putin pavimentou o caminho para sua expansão, inclusive para países tradicionalmente neutros, como a vizinha Finlândia e a Suécia. Os dois países participaram da reunião da Otan realizada ontem, na qual a Turquia retirou suas objeções à expansão do organismo. Com isso, a Rússia fica extremamente isolada no Mar Báltico. O problema é que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, está ficando sem opções que não sejam humilhantes. A guerra pode lhe custar o poder, a grande aposta de Biden e dos líderes europeus.

Biden mantém uma posição firme, mas também não sabe como sair da confrontação com a Rússia. O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenski, trabalha para tornar a Ucrânia membro da Otan ou obter um pacto militar bilateral com os Estados Unidos. Ambos acreditam que a Ucrânia pode pôr os russos para correr. Putin fracassou no seu objetivo original: tomar Kiev e mudar o regime ucraniano; agora, corre o risco de fracassar na tentativa de controlar o antigo centro industrial da Ucrânia, a região do Donbass, cuja população tem origem russa em sua maioria, numa guerra mais longa e muito desgastante.

A distância entre Washington e Hanói é de 13.336 km; entre Kiev e Moscou, são apenas 775 km. A doutrina militar russa se baseia na profundidade do território e na guerra aeroespacial. Uma derrota na Ucrânia nem se compara à dos Estados Unidos no Vietnã. Putin tem duas possibilidades: jogar a toalha e bater em retirada, diante da resistência crescente do Exército ucraniano, armado e assessorado pelos serviços de inteligência dos Estados Unidos, ou escalar a guerra convencional e destruir a Ucrânia, com consequências imprevisíveis, porque isso pode resultar numa intervenção direta da Otan, como aconteceu com a Sérvia. A diferença é que a Rússia tem um arsenal nuclear.

Em termos globais, há outros aspectos a serem considerados: (1) As sanções econômicas adotadas contra a Rússia utilizam com êxito toda a institucionalidade da economia mundial; (2) o Reino Unido pós-Brexit, fora da União Europeia, em aliança com os Estados Unidos, reafirmou sua hegemonia político-militar na Europa; (3) a Alemanha e a França perderam o protagonismo;(4) a guerra da Ucrânia também serve de advertência à China, em relação a Taiwan; (5) o pacto militar entre Estados Unidos, Reino Unido e Austrália e os acordos bilaterais da Austrália com o Japão e a Índia representam a expansão da Otan para o Indo-Pacífico, principal eixo do comercio mundial hegemonizado pela China.

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Nas entrelinhas Bolsonaro perdeu o rumo | Imagem: reprodução/Correio Braziliense

Nas entrelinhas: Bolsonaro perdeu o rumo e passa a improvisar

Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas / Correio Braziliense

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é um candidato calejado e com sangue nos olhos, que se movimenta estrategicamente para voltar ao poder. Se as eleições fossem hoje, poderia até vencer no primeiro turno, conforme nos revelam as pesquisas. Bastaria que os votos do ex-ministro Ciro Gomes (PDT) fossem lipoaspirados pela polarização do petista com o presidente Jair Bolsonaro (PL), e que a chamada terceira via mantivesse a atual dispersão de forças.

As pesquisas mais recentes mostram que Bolsonaro continua com uma rejeição acima de 60% e não consegue ultrapassar os 30% de intenções de voto. Nos cenários de segundo turno, Lula venceria o presidente com uma vantagem em torno dos 20%. O desgaste de Bolsonaro no confronto com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Supremo Tribunal Federal (STF) barrou seu crescimento, somando-se à mitigação, pela inflação, dos efeitos do seu pacote de bondades econômicas e sociais junto aos eleitores de baixa renda.

Um parêntese para Nicolau Maquiavel, o fundador da ciência política moderna, que viveu o esplendor da República Florentina (fundada em 1115), durante o governo de Lorenzo de Médici (1449 1492): segundo seu texto mais lido pelos políticos, O Príncipe, que trata da conquista e da preservação do poder, os governantes que chegam ao poder mais pela sorte (Fortuna) do que por suas virtudes (Virtù) têm mais dificuldade para manter seus domínios quando mudam as circunstâncias.

Bolsonaro fez um longo percurso para chegar à Presidência, no qual construiu anos a fio uma base resiliente e combativa, formada por corporações e grupos de interesse com os quais se identifica: militares, policiais, agentes de segurança, milicianos, grileiros e madeireiros, além de ruralistas. Entretanto, isso não bastava, nem basta, agora, para vencer as eleições.

Em 2018, foi fundamental também o apoio das igrejas evangélicas, capturando o sentimento de preservação da família unicelular patriarcal ameaçada pela renovação dos costumes, e o apoio de setores reacionários e conservadores da classe média tradicional, insatisfeita com a insegurança e perda de poder aquisitivo. Um episódio imprevisto, de grande efeito catalisador, fez de Bolsonaro um candidato imbatível: a facada que levou em Juiz de Fora (MG), que neutralizou a rejeição que sofria e reforçou a narrativa messiânica salvacionista de sua campanha.

Hoje, a situação é completamente diferente. Sua agenda em relação aos costumes, que tinha amplo apoio popular, resultou num enorme retrocesso cultural e pedagógico, que gerou grande ojeriza no mundo artístico e na intelectualidade. O negacionismo durante a pandemia e o fracasso da política econômica alavancaram sua rejeição na maioria da sociedade. No plano político, a aliança com o Centrão garantiu sua governabilidade, mas não resolveu o problema da qualidade de governança. O resultado é um governo pessimamente avaliado.

Carrinho de compras

O cenário internacional muito favorável à sua eleição, com Donald Trump na Presidência dos Estados Unidos, e outros líderes de direita em países importantes da América Latina e da Europa, também mudou completamente. Trump perdeu a reeleição para o democrata Joe Biden, outras lideranças conservadoras se reposicionaram em relação à crise sanitária e às políticas econômicas ultraliberais. A guerra na Ucrânia coesiona o Ocidente contra a Rússia e cria um ponto de interrogação em relação à China, países sem os quais o agronegócio brasileiro entraria numa crise sem precedentes.

O fim da pandemia ainda não resultou num cenário favorável à reeleição de Bolsonaro por causa do desemprego, da carestia de vida e da falta de oportunidades, sobretudo para os jovens, agravadas pela recessão e alta de preços no mercado mundial, em consequência da guerra. As mesmas desigualdades que favorecerem Bolsonaro, em 2018, agora embalam a candidatura de Lula, cujos pontos fracos, principalmente os escândalos de corrupção envolvendo o PT, não estão tendo mais peso do que as promessas de retomada de seus programas de governo e a memória popular de suas políticas sociais.

Afora as pesquisas, o melhor termômetro eleitoral não está nas redes sociais, mas no carrinho de compra do supermercado. A economia é o ponto fraco de Bolsonaro, que perdeu o rumo com a inflação e, agora, improvisa. Seus factoides eleitorais podem virar um tiro no próprio pé, como essa história de vender a Petrobras, que surgiu de uma hora para outra para agradar o mercado financeiro e servir de cortina de fumaça em relação à alta dos preços dos combustíveis e uma maracutaia à vista: o megagasoduto interligando oito estados do Norte, Nordeste e Centro Oeste, um monopólio do empresário Carlos Suarez, que Bolsonaro e seus aliados do Centrão pretendem aprovar no Congresso.

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Astrojildo Pereira e Luiz Carlos Prestes: admiração e respeito mútuos

*Anita Leocadia Prestes, Blog da Boi Tempo

A nova edição de toda a obra de Astrojildo Pereira, revista e ampliada, e a reedição da sua biografia, escrita por Martin Cezar Feijó, pela editora Boitempo em comemoração aos 100 anos do PCB,1 constituem um ensejo propício ao resgate de alguns momentos do relacionamento estabelecido entre este fundador do partido, reconhecido intelectual brasileiro, e Luiz Carlos Prestes, conhecido como o “Cavaleiro da Esperança” e secretário-geral do Partido Comunista por cerca de 40 anos.

O primeiro contato entre Astrojildo e Prestes aconteceu na cidade boliviana de Puerto Suarez, na segunda quinzena de dezembro de 1927. Desde fevereiro desse ano, Prestes encontrava-se na Bolívia trabalhando numa empresa inglesa de terraplenagem junto com os combatentes da Marcha da Coluna, que haviam se exilado nesse país. Astrojildo, secretário-geral do PCB, viajara com a tarefa de tentar uma aproximação política com o líder dos “tenentes” – vistos pelos comunistas como a representação da “pequena burguesia revolucionária” – e, ao mesmo tempo, levava uma certa quantidade de livros de autores marxistas para lhe oferecer. Nas palavras do próprio Astrojildo:

Entreguei-os a Prestes dizendo-lhe que era nosso desejo que ele estudasse por si mesmo a teoria e a prática da política pelas quais buscávamos orientar o Partido Comunista, inteirando-se assim, não só dos princípios e fins da nossa atividade prática, mas também das soluções que a ciência marxista apresentava para os problemas sociais do nosso tempo. Devo hoje acrescentar que, ao dizer-lhe estas coisas, eu guardava a esperança de que Prestes, ao tomar conhecimento direto das ideias marxistas, não demoraria em compreender que elas exprimiam a verdade do presente e do futuro. Sua inteligência, sua honradez, sua experiência pessoal no contato com a gente e as coisas brasileiras fariam o resto. Os fatos demonstraram que eu não me enganava.2

Palavras estas que foram escritas 35 anos depois do encontro com Prestes; reveladoras, portanto, da permanência da admiração e do respeito de Astrojildo pelo seu interlocutor de então. No início de 1928, de volta ao Rio de Janeiro, o dirigente comunista publicou longa entrevista com Prestes, em três números consecutivos do jornal tenentista A Esquerda, dirigido por Pedro Mota Lima.

Consequência da virada na política da Internacional Comunista com a realização em 1928 do seu VI Congresso e da sua repercussão no PCB, Astrojildo Pereira foi expulso das fileiras comunistas em 1930.3 Afastado do partido, ao qual até então dedicara todos seus esforços, nunca o criticou de público, mantendo-se fiel às ideias marxistas e aos ideais revolucionários que abraçara ainda na juventude; dedicou-se especialmente à atividade literária e à manutenção de sua própria sobrevivência.

Ao final do período do Estado Novo, nos anos 1944/45, Astrojildo se uniria às forças democráticas que se mobilizavam na luta contra o nazifascismo e pela democratização do país. Foi um participante ativo e destacado do I Congresso Nacional de Escritores realizado no início de 1945, que desempenhou papel importante nesse processo.

Sob a influência do ambiente reinante nos meios intelectuais daquele momento, empolgados com o lançamento da candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes à presidência da República, considerado herói dos “18 do Forte” de Copacabana e das revoltas tenentistas dos anos 1920, Astrojildo – nas palavras de Nelson Werneck Sodré – “acompanhou, de início, esta candidatura. E não foi ele, somente, mas muitos democratas sinceros e até pessoas de formação política de esquerda.”4

Astrojildo foi dos primeiros a visitar Prestes na prisão, quando isso lhe foi permitido, em março de 1945. Nessa ocasião comunicou a Prestes que acabara de assinar manifesto de apoio à candidatura do Brigadeiro. Advertido por Prestes ser esse o candidato do imperialismo e dos setores de direita empenhados na preparação de um golpe para deter o avanço das medidas de democratização do país que estavam sendo realizadas com a permanência de Getúlio Vargas no poder, Astrojildo imediatamente retirou sua assinatura do manifesto, revelando respeito e admiração pelo líder comunista, que se mostrara atencioso e compreensivo com ele.5

Com a legalização do PCB no final de 1945, Astrojildo solicitou sua reintegração no partido, cujo secretário-geral, eleito em 1943 na Conferência da Mantiqueira, era Luiz Carlos Prestes, dirigente comunista que nutria consideração e admiração pelo fundador do PCB. O velho militante dispôs-se a realizar uma autocrítica de suas atividades políticas, de acordo com a prática então em vigor entre os comunistas. Voltou a militar nas fileiras partidárias, concentrando seus esforços principais no trabalho intelectual na redação de revistas ligadas ao PCB, passando a dirigir, por exemplo, a revista Literatura, cujo conselho de redação revelava o caráter amplo que lhe foi atribuído, contando com a participação de intelectuais como Álvaro Moreyra, Aníbal Machado, Artur Ramos, Graciliano Ramos, Orígenes Lessa e Manuel Bandeira.6 

Poucos meses depois, em julho de 1946, por ocasião da Terceira Conferência Nacional do PCB, foi eleito um Comitê Central, renovado e ampliado, sendo Astrojildo incluído entre seus novos suplentes,7 o que confirmava sua aceitação por parte de Prestes e do novo núcleo dirigente do partido.

No IV Congresso do PCB, realizado na clandestinidade em novembro de 1954, Astrojildo foi escolhido para fazer o discurso de abertura do conclave, honraria especial prestada ao fundador do partido.8 Posteriormente, no V Congresso, em 1960, Astrojildo foi eleito membro efetivo do Comitê Central,9 posição em que seria mantido após o golpe civil-militar de 1964, segundo dados apresentados por Ronald H. Chilcote, tendo por base fontes aparentemente confiáveis.10

Na condição de membro da direção do PCB, Astrojildo dirigiu várias revistas do PCB ou próximas ao partido. Foi diretor e redator-chefe de Problemas da Paz e do Socialismo, revista dedicada aos temas do movimento comunista internacional. Em 1958, fundou e dirigiu Estudos Sociais, revista teórica vinculada ao PCB, que circulou até 1964. Colaborou nos jornais do PCB, Imprensa Popular (1948-1958) e Novos Rumos (1958-1964).

Em 1962, a editora Vitória, pertencente ao PCB publicou o livro Formação do PCB (1922/1928): notas e documentos de autoria de Astrojildo Pereira.11 Seu lançamento oficial, durante as comemorações do 40° aniversário da fundação do PCB, teve caráter festivo com a presença de Luiz Carlos Prestes e de vários dirigentes do partido. Nesses anos, de 1958 a 1964, durante os quais, embora o PCB não tivesse a legalidade reconhecida, sua atuação na prática era quase legal, Prestes, então seu secretário-geral, procurou prestigiar a figura do fundador do partido. Apoiou a publicação do seu livro sobre a história da formação do PCB e, sempre que possível, comparecia às homenagens que lhe eram prestadas.

Nas fotos abaixo estão registrados momentos do banquete oferecido a Astrojildo por um número expressivo de representantes da intelectualidade carioca, em 12 de maio de 1962, por ocasião dos 50 anos de sua atividade jornalística. Em lugar de honra, à sua esquerda, encontro-me eu, filha de Luiz Carlos Prestes, que me pedira para representá-lo, uma vez que, devido às suas atividades partidárias, estava fora do Rio; Novos Rumos, o jornal legal do PCB, publicou uma página inteira dedicada à efeméride,12 revelando a admiração e o respeito que Prestes e a direção do PCB tinham pela personalidade de Astrojildo Pereira.13

Da direita para a esquerda: Anita L. Prestes, Astrojildo Pereira, Sra. Embaixador Álvaro Lins e o pintor Di Cavalcanti em evento em homenagem aos 50 anos da atividade jornalística de Astrojildo, em 1962. (Foto: Acervo UH/Folhapress)
Da esquerda para a direita: Sra. Embaixador Álvaro Lins, Astrojildo Pereira e Anita L. Prestes, em evento em homenagem aos 50 anos da atividade jornalística de Astrojildo, em 1962.
Página inteira dedicada à efeméride dos 50 anos da atividade jornalística de Astrojildo Pereira no jornal Novos Rumos, do PCB.

No início de 1965, com a saúde seriamente abalada, Astrojildo, por força de um habeas corpus, saiu da prisão, em que estivera detido pelos militares que governavam o Brasil naquele período de ditadura militar. A pedido de Prestes, forçado a viver clandestino devido à intensa repressão policial, eu e minha tia Lygia Prestes visitamos Astrojildo em sua modesta residência situada na Rua do Bispo, na cidade do Rio de Janeiro.  Muito debilitado devido a problemas cardíacos, agravados durante os meses de prisão, Astrojildo faleceu aos 75 anos em 20 de novembro daquele ano. Novamente, a pedido do meu pai, eu e a tia Lygia o representamos no enterro, realizado em cemitério de Niterói, no Rio de Janeiro.

Ao destacar a atitude de admiração e respeito de Luiz Carlos Prestes por Astrojildo Pereira, vale a pena lembrar o empenho do então secretário-geral do PCB, durante seu exílio na União Soviética nos anos 1970, pela preservação do arquivo do fundador do partido, que corria o risco de ser apreendido pela polícia no Brasil. José Luiz Del Roio, escritor e então militante do PCB, ex-senador na Itália, conta em vídeo-entrevista que Prestes, preocupado, se dirigiu a ele, em busca de uma instituição na Europa para onde a documentação reunida por Astrojildo – uma coletânea valiosa de documentos e jornais do movimento operário brasileiro – pudesse ser transferida e abrigada com segurança.14 Segundo Del Roio, Prestes não desejava que o referido arquivo fosse encaminhado para um país socialista, pois dizia que, uma vez entregue, não sairia mais desse local. Del Roio conseguiu a guarda dessa documentação pela Fundação Feltrinelli, situada em Milão (Itália), de onde mais tarde foi transferida para a Universidade Estadual Paulista (Unesp), na cidade de São Paulo.

Em outro depoimento, José Luiz Del Roio afirma:

Apesar da repressão tinha gente muito interessada em estudar o movimento operário, todo mundo falava deste misterioso e fundamental arquivo. Isso tudo passou por uma discussão e eu perguntei ao Luiz Carlos Prestes se ele sabia onde estava, como estava e se era possível retirá-lo do Brasil. Ele pessoalmente apoiou a ideia e nos incentivou muito, nos deu muito apoio.15

Ao concluir estas notas despretensiosas sobre Astrojildo Pereira, na ocasião da reedição de todos os seus livros pela Editora Boitempo, no ano do centenário do PCB, tentei revelar aspectos até hoje pouco conhecidos ou inéditos das relações que efetivamente existiram entre Luiz Carlos Prestes e o fundador do PCB, relações por vezes ignoradas, subestimadas ou deturpadas por diversos intérpretes da história do movimento operário e dos comunistas brasileiros.

*Texto publicado originalmente em Blog da Boi Tempo


A necessária liderança do SUS na revolução digital | Imagem: reprodução/Outras Palavras

Luiz Vianna: a necessária liderança do SUS na revolução digital

*Redação do Outras Palavras

Luiz Vianna Sobrinho em entrevista a Gabriela Leite

Em que bases será construído o SUS de que a sociedade brasileira precisa? Luiz Vianna Sobrinho, médico e doutor em bioética, tem uma hipótese contundente no que diz respeito à ciência médica e à medicina de dados – que, de alguma maneira, pensa, são vistas de esguelha pela Reforma Sanitária desde os anos 1980. Ele argumenta que é a hora de o SUS entrar com força na disputa pelo desenvolvimento das tecnologias médicas e hospitalares, e utilizá-las de acordo com seus princípios coletivos de saúde. Do contrário, perderá espaço para a abordagem mercadológica que tanto tenta combater.

A obra em que Vianna expõe essas ideias essenciais será relançada hoje, a partir das 18h, na livraria da Travessa de Niterói (RJ). O ocaso da clínica veio ao mundo em 2021, e a prova de sua relevância é que o debate torna-se cada vez mais atual. A última investida daqueles que enriquecem com a lógica da saúde como mercadoria foi feita pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. Alinhado com o mercado, ele sustenta a criação do chamado open health, sistema que compartilha dados de saúde dos brasileiros com empresas de planos de saúde, hospitais, farmácias, organizações sociais e laboratórios. A proposta é considerada inconstitucional e ilegal por juristas, mas festejada por capitalistas da saúde.

Em entrevista ao Outra Saúde, Vianna aborda o tema do open health e como ele se encaixa no contexto histórico em que a medicina de dados vem ganhando cada vez mais força – tema central de seu livro. Faz críticas contundentes ao ministro Queiroga e à gestão da pandemia no Brasil. Mas vê um futuro possível em que a tecnologia seja incorporada pelo SUS e esteja disponível de forma justa a todos os brasileiros: “É esse modelo de política de Estado que tem de liderar a revolução digital da saúde. Não será fácil, mas é o futuro bem próximo que está nas mãos do SUS”.

Seu livro O ocaso da clínica, que está sendo relançado hoje, causou impacto. Mas nos últimos meses surgiram novos sinais de que o uso da medicina de dados está se alastrando. Como você vê o programa “open health”, que o ministério da Saúde pretende promover?

Bem, primeiramente, eu penso que esses sinais estão presentes já desde a década passada; mesmo antes do desenvolvimento de algoritmos mais complexos baseados em machine-learn, no próprio modelo em que as metas e práticas de gestão passaram a ter um peso mais decisivo nas decisões clínicas. Reduzir toda a possibilidade de conhecimento da questão médica à objetividade de dados possibilitou que se aplicasse a extração e gestão desses dados em proporções populacionais, como nunca visto antes… Então, o que estamos vendo agora, é a aplicação plena por corporações e mesmo por sistemas de gestão estatal da saúde, como o chinês.

No Brasil, surgiu a ideia do “Open Health” nos últimos meses. Ela vem sendo apresentada como proposta de política sanitária, declaradamente inspirada em modelo praticado pelo mundo financeiro; notadamente pelos grandes bancos, que nadaram em lucros vultuosos nos últimos anos, destacando-se em plena crise. Mas, no cuidadoso e bem trabalhado artigo distribuído para a apresentação pública desta proposta na grande mídia, o aprimoramento e melhoria da dinâmica de concorrência no mercado de planos de saúde demonstra, com clareza, que a tônica está na oportunidade de crescimento para melhores negócios. E está totalmente inserida nessa dinâmica da medicina de dados.

O próprio ministro da Saúde diz que criou o termo “open health” e analogia a “open banking”. O que este paralelo sugere sobre a tendência hoje hegemônica na medicina de dados?

Não podemos deixar de destacar, que a mensagem publicada em jornais de distribuição em todo o país foi a de um Ministro dos Negócios, não de um Ministro da Saúde. (FSP/6/3/22). Nos provoca desde a apresentação do problema em seu contexto, quando relata no primeiro parágrafo que “a pandemia de Covid-19 deixou clara a necessidade de fortalecer a capacidade de resposta dos sistemas de saúde”. Pois, tudo o que vimos nas suas atitudes, à frente da pasta durante a pandemia, foi a total ausência de organização de um sistema, onde governos estaduais e municipais se sobressaíram no comando das melhores condutas sanitárias; e coube ao seu comando federal uma defesa insana, do ponto de vista das evidências científicas utilizadas em todo o mundo, de medidas que seguiam apenas a orientação de sua política. Surpreende, então, que ainda no mesmo parágrafo ele clame pela “transparência na adoção de políticas públicas”. O que assistimos foi um escárnio. Uma situação da qual nos envergonhamos frente às entidades sanitárias e acadêmicas do exterior.

Assim, o que temos: um projeto incostitucional e ilegal, como já vem sinalizado, pois viola as garantias fundamentais da proteção de dados da intimidade e vida privada dos cidadãos, já que a Lei Geral de Proteção de Dados é clara ao proibir expressamente este uso pelas operadoras de planos de saúde “para a prática de seleção de riscos na contratação de qualquer modalidade, assim como na contratação e exclusão de beneciários” (Art. 11,parágrafo 5º). No interesse de que não haja “discriminação: impossibilidade de realização do tratamento para fins discriminatórios ilícitos ou abusivos” (Art. 6º, inciso IX).

Além disso, não há preocupação com os mais de 75% da população que estão fora do segmento de saúde suplementar. Não há crítica à renúncia fiscal que desidrata o erário e subsidia a assistência mais onerosa ao quarto da população que conta com a saúde suplementar. Não há, definitivamente, uma proposta que inspire a confiança de que estejamos caminhando para a organização e fortalecimento do que o início do artigo se propõe, um sistema – o SUS. E o que esperamos de um ministro da saúde, em seu papel constitucional, é que defenda, lute e fortaleça esse Sistema Único, que mostrou sua potência justamente na crise sanitária mais difícil das últimas décadas.

Por outro lado, você tem chamado, insistentemente, a atenção dos movimentos pela Reforma Sanitária para que se envolvam ativamente na disputa pelos sentidos da medicina de dados. Qual a importância de fazê-lo, hoje?

Nós começamos a falar isso na ENSP (Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fiocruz) por volta de 2018, quando criamos o Observatório da Medicina, enquanto fui desenvolvendo minha tese, que está nesse livro. Em 2019, nosso grupo realizou um seminário onde apresentamos esse conceito de ‘medicina de dados‘, reunindo algumas características que a literatura mundial vem discutindo nas novas formas e formatos do capitalismo na atualidade – noções como Capitalismo de Vigilância, Capitalismo de Plataforma etc. O que nós já chamávamos a atenção naquele debate era a necessidade do pensamento sanitário brasileiro não deixar passar esse momento, essa grande transformação…. que é inexorável.

Aos poucos, transparece uma possível estratégia dos planos de Saúde para se beneficiar da medicina de dados. Implica reduzir custos, por meio da telemedicina e do uso de algoritmos para manejar a relação custo-benefício em seu favor; e contar com o atraso do SUS no uso destas ferramentas. Como reagir a esta estratégia?

Na disputa com os interesses de mercado das corporações tem de surgir uma política de Estado que fomente o desenvolvimento e domínio dessa nova tecnologia, mas que a aplique com os propósitos que norteiam a proposta de coletividade do SUS. Temos de escapar tanto dos interesses de exploração mercantil da saúde, quanto de um Estado que utilize esses dados para vigilância coercitiva dos cidadãos ou de grupos específicos, que diminua as iniquidades do sistema. E é esse modelo de política de Estado que tem de liderar a revolução digital da saúde. Não será fácil, mas é o futuro bem próximo que está nas mãos do SUS.

*Texto publicado originalmente em Outras Palavras


Foto: Day Of Victory Studio/Shutterstock

Revista online | O caminho da América Latina é a democracia 

Alberto Aggio*, especial para a revista Política Democrática online (43ª edição: maio/2022)

A América Latina nasceu com o advento da modernidade e sempre esteve vinculada à sua dinâmica histórica, suas crises e destino. É a experiência do “moderno” como um paradigma que nos faz pensar sobre nossas identidades e nossas relações com o mundo. Diversas formulações fizeram-nos cultivar a utopia de uma unidade latino-americana construída pelo antagonismo a um inimigo externo. Essa visão empobrecida e envelhecida não contempla as diversas experiências históricas do continente bem como o conjunto de problemas comuns determinados quer pelo desenvolvimento da formação econômica mundial, que dá sentido unitário a uma época, quer pelas diferenciações internas e conexões que se estabelecem em diversas dimensões da vida. 

Esse debate intelectual é permanente, embora tenha estado mais vivo no momento da transição do autoritarismo para a democracia que abarcou a maioria dos países latino-americanos a partir da década de 1980. Hoje, imersos na complexidade da vida democrática, temos boas razões para retomá-lo. Isso coincidiu com o fim da URSS bem como da Guerra Fria. Buscar um caminho exclusivo tendo como perspectiva o “sul do mundo”, como foi praticado pelo chavismo e outras correntes similares, mostrou-se uma tentativa limitada e, por fim, pouco exitosa. É preciso continuar a pensar em termos globais. 

Em comparação com aquele período, o cenário atual não é de otimismo, e há fortes reminiscências. Condenada à “tradutibilidade” do que não lhe é original, a América Latina sempre foi pensada a partir de alguns modelos. O primeiro deles foi o europeu, visto como algo a ser atingido e, paradoxalmente, como responsável pelos históricos problemas que assolam a região. A partir do século XX, essa referência ganhou a companhia e a concorrência do paradigma norte-americano, que passou a cumprir até com maior rigor a sina de adesão calorosa e repugnante rechaço. Recentemente, o modelo oriental alcançou um inaudito prestígio. Com o deslocamento do eixo econômico para o Pacífico, a China passou a ser o novo Graal, sendo cotidianamente mobilizada como modelo diante dos dilemas de inserção competitiva enfrentados pelas economias latino-americanas. 

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Haveria também formulações alternativas, autoproclamadas antagônicas ou de resistência. No coração delas assenta-se a ideia de uma “segunda independência” para o continente. Com maior ou menor profundidade, isso fez emergir um mosaico de nacionalismos, em geral, débeis e breves. A Revolução Cubana de 1959 avançou por esse sendero, e seu regime tornou-se, na América Latina, o epicentro de um nebuloso projeto de ruptura com a modernidade.  

Tal fabulação alimentou a reiteração de estratégias terceiro-mundistas de resultados cada vez menos auspiciosos e hoje francamente obsoletos diante de uma realidade marcada pela mundialização e por uma mudança tecnológica acelerada. O fracasso das guerrilhas inspiradas em Cuba, os pífios resultados econômicos, além de um autoritarismo cada vez mais abjeto, acabaram por ensejar a abertura de uma reflexão crítica sobre o regime cubano, até então identificado como o paradigma consagrado dessas perspectivas alternativas. Nesse novo cenário, o imaginário da revolução perdeu energia e vitalidade, mesmo na roupagem do bolivarianismo ou do “socialismo del buen vivir”. 

Galvanizando enormes esperanças, o recente processo político chileno que se inicia em 2019 produziu a vitória da esquerda, com Gabriel Boric, e o estabelecimento de uma Convenção Constituinte, autônoma e paritária, que em breve apresentará ao país um novo texto constitucional para ir a plebiscito, em setembro. As notícias não são animadoras em relação à aprovação do novo texto. De qualquer forma, o Chile mostra-se, no conjunto da América Latina, como um ponto avançado, mas também limite, no processo de democratização latino-americano. Há muita expectativa, muita esperança, mas também muita crítica e até frustração frente ao percurso e aos resultados parciais já definidos pela Constituinte chilena. 

De qualquer forma, a conquista da democracia, das liberdades e do pluralismo facultou as condições para que os latino-americanos pudessem pensar em construir coletivamente o seu futuro. Na quadra em que estamos, trata-se de retomar o debate em novos termos, compreendendo a identidade latino-americana como uma construção em aberto, sustentada em diferenciações específicas e em cinco séculos de diálogo com o mundo. A recente experiência democrática torna-se assim o principal ativo da América Latina para que postule um lugar neste mundo que se transforma aceleradamente. Ela não pode perder esse ativo e não pode se deixar perder por visões anacrônicas, próprias ou externas, que não respondem mais à contemporaneidade e ao futuro. 

Sobre o autor

*Alberto Aggio é mestre e doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP). Professor titular em História da América pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), com pós-doutorado nas universidades de Valência (Espanha) e Roma3 (Itália). Dedica-se à história política da América Latina Contemporânea, em especial à história política do Chile. É o diretor do Blog Horizontes Democráticos. É autor de Democracia e socialismo: a experiência chilena (São Paulo: Unesp, 1993; Annablume, 2002, Appris, 2021 – no prelo); Frente Popular, Radicalismo e Revolução Passiva no Chile (São Paulo: Annablume/Fapesp, 1999); Uma nova cultura política (Brasília: Fap, 2008); Um lugar no mundo – estudos de história política latino-americana (Brasília/ Rio de Janeiro: Fap/Contraponto, 2015) e Itinerários para uma esquerda democrática (Brasília: Fap, 2018). É autor e organizador de Gramsci: a vitalidade de um pensamento (São Paulo: Unesp, 1998), e coorganizador de Pensar o Século XX – problemas políticos e história nacional na América Latina (São Paulo: Editora Unesp, 2003) e Gramsci no seu tempo (Brasília/Rio de Janeiro: Fap/Contraponto, 2010).

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática online de maio de 2022 (43ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

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Nas entrelinhas - Almirante Bento vira homem ao mar | Imagem: reprodução/Correio Braziliense

Nas entrelinhas: Almirante Bento vira homem ao mar

Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas / Correio Braziliense

O almirante de esquadra Bento Albuquerque foi demitido, ontem, do cargo de ministro de Minas e Energia, inesperadamente, pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), a pretexto de que teria se omitido em relação aos aumentos dos combustíveis, sobre os quais não tem nenhuma responsabilidade direta, porque a decisão é da Petrobras. O real motivo da demissão, porém, foi sua discordância com o chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, e os partidos do Centrão, quanto à aprovação de um projeto bilionário de construção de uma rede de gasodutos interligando oito estados do Centro-Oeste, Norte e Nordeste do Brasil, para o qual pretende se destinar cerca de R$ 100 bilhões do lucro do pré-sal. O projeto beneficia diretamente o empresário Carlos Suarez, ex-sócio-fundador da empreiteira OAS, que tem o monopólio de distribuição de gás nos estados beneficiados.

Bento é mais um oficial-general de quatro estrelas de grande prestígio nas Forças Armadas defenestrado por Bolsonaro de forma humilhante, por discordância com o Centrão e o presidente da República. Soube da demissão pelo Diário Oficial. Fez uma carreira militar considerada exemplar: foi observador militar nas Forças de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) nos setores de Sarajevo, Bósnia e Herzegovina e Dubrovnik, na ex-Iugoslávia; comandante da Base de Submarinos Almirante Castro e Silva; comandante em chefe da Esquadra e secretário de Ciência Tecnologia e Inovação da Marinha.

É considerado um dos pais do submarino nuclear brasileiro, pois foi um dos negociadores dos acordos de parceria estratégica do Programa de Desenvolvimento de Submarinos (Prosub) entre a França e o Brasil. Posteriormente, foi comandante da Força de Submarinos e chefe do Gabinete do comandante da Marinha. Em 2016, assumiu a Secretaria de Ciência e Tecnologia e Inovação da Marinha e, posteriormente, a Diretoria-Geral de Desenvolvimento Nuclear e Tecnológico da Marinha (DGDNTM). Agora, é o 20º ministro demitido por Bolsonaro.

Sua oposição ao Brasoduto custou sua cabeça. O projeto é um velho conhecido do Congresso, que já rechaçou a proposta 10 vezes, pela maioria dos parlamentares e pelo próprio governo. Agora, com apoio do Centrão e do novo ministro, as possibilidades de aprovação são maiores e vão ao encontro dos interesses eleitorais de Bolsonaro e seus aliados.

Grande beneficiário do projeto, Carlos Suarez tem oito distribuidoras de gás no Norte, Nordeste e Centro-Oeste e quatro autorizações para a construção desses gasodutos. Mas não tem recursos próprios para pô-los de pé. O projeto de financiamento com recursos do pré-sal, que seriam destinados ao reaparelhamento da Marinha, faz renascer das cinzas o velho lobby das empreiteiras no Congresso. Suarez é o S da construtora OAS, que fez acordo de delação premiada com a Operação Lava-Jato.

Resistência

A Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e Consumidores Livres (Abrace) faz forte oposição ao projeto, que chama de “Centrãoduto”. Segundo a entidade, o Brasoduto cria privilégios e não respeita critérios de planejamento, de contratações baseadas em eficiência e de modernização do mercado. A Abrace reúne mais de 50 empresas, responsáveis por 40% do consumo industrial de energia elétrica e 42% do de gás natural, entre as quais os grupos Gerdau, Nestlé e Votorantim. O Fórum das Associações do Setor Elétrico (Fase), que abarca 27 associações do mercado, também se opõe ao projeto.

O deputado Fernando Coelho Filho (União-PE), ex-ministro de Minas e Energia, é o relator do Projeto de Lei 414, que trata da modernização do setor elétrico, no qual o Centrão pretende embarcar o jabuti de R$ 100 bilhões. Segundo revelou ao blog do jornalista Tales Faria (UOL), o parlamentar não pretende incluir a proposta no seu relatório. Porém, mesmo contra a vontade, o projeto pode ser aprovado por meio de uma emenda.

Com a demissão de Bento Albuquerque, Coelho tentou voltar ao cargo de ministro de Minas e Energia, mas foi preterido por se opor ao projeto. O cargo caiu no colo do ex-secretário de Política Econômica da Economia, Adolfo Sachsida, servidor concursado do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), que integra a equipe econômica desde o início. O novo ministro é mais ligado a Bolsonaro do que ao ministro da Economia, Paulo Guedes, antes mesmo de este se incorporar à campanha eleitoral de 2018.

Ao jogar ao mar o almirante, Bolsonaro fez do limão uma limonada, dois dias depois de a Petrobras anunciar reajuste de 8,87% no preço do diesel nas refinarias, que passou de R$ 4,51 para R$ 4,91 o litro. Na semana passada, a estatal anunciou lucro de R$ 44,5 bilhões no primeiro trimestre de 2022, o que o presidente classificou como um “estupro”. Em 2021, o lucro foi de R$ 106 bilhões.

O almirante está sendo responsabilizado pelos políticos do Centrão pelos aumentos de combustíveis e da inflação, o que não passa de uma cortina de fumaça para o lobby bilionário dos gasodutos. Sachsida assume com a bandeira de privatizar a Petrobras e resolver o problema da alta dos combustíveis

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-almirante-bento-vira-homem-ao-mar/

Ensino das línguas indígenas nas aldeias esbarra na falta de infraestrutura | Imagem: reprodução/Brasil de Fato

Educação escolar indígena fortalece culturas originárias e ajuda a combater o racismo

Murilo Pajolla*, Brasil de Fato

O idioma do brasileiro não é só o português. O país tem mais de 270 línguas faladas por mais de 300 povos diferentes. Para os indígenas, o direito de aprender a língua materna é uma forma de manter viva a cultura e combater o racismo. 

Esse direito, inclusive, está na Constituição, que determina uma educação escolar indígena intercultural, bilíngue e diferenciada. Essa proposta surgiu na década de 70, das reivindicações do movimento indígena, como um contraponto ao projeto de apagamento das suas culturas.

No sul do Amazonas, Fredeilton Carvalho, do povo Apurinã, é um dos educadores indígenas da cidade de Lábrea. Ele explica que, nas aldeias mais isoladas, o professor tem que assumir um papel indispensável na vida da comunidade. 

"O professor indígena é professor, é zelador, é merendeiro e muitas vezes médico. Às vezes você se sente até num papel de pai, porque você tem aquele amor, aquele carinho pela criança, pelos seus alunos", afirma.

Reprodução: Facebook
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O salário pago pelo município é de no máximo R$ 2 mil e não está à altura do desafio. Para acessar as comunidades mais distantes é preciso viajar de barco durante cinco dias. E quando o professor finalmente chega, costuma se deparar com infraestrutura insuficiente.

"Muitas vezes o ambiente escolar não é adequado. A sala é pequena, você está dando aula tem e que fazer a merenda ao mesmo tempo. Acaba sendo meio complicado. Mas a gente, como professor indígena, resiste. Porque a gente é forte", garante.     

Essa região teve um pioneiro na educação escolar indígena: professor João Batista da Silva, o João Baiano, de 74 anos, também Apurinã. Ele aprendeu a língua do seu povo durante a infância. E lembra que, naquela época, muitos indígenas tinham vergonha de falar o idioma na cidade, por causa do racismo.  

"Por exemplo, quando estávamos conversando, a gente não era considerado como pessoa normal. É 'caboclo', né? 'Índio é preguiçoso, índio não fala'. Eles mandavam a gente [não falar no idioma]: ‘corta a gíria, caboclo”. Rapaz, a gente ficava todo tímido", relembra. 

Esse racismo ainda está longe de ser superado. Mas o ensino da língua materna ajudou a tornar os indígenas orgulhosos das suas culturas. Aos 17 anos, a neta de João Baiano aprendeu o Apurinã na sala de aula com o avô. 

A jovem está decidindo qual carreira seguir e se preparando para fazer o ensino superior e tem orgulho de saber um idioma que já foi tão silenciado. "Não só a língua, aprendemos muito sobre a cultura, sobre nossos territórios e sobre as leis que nos apoiam".

*Texto publicado originalmente no Brasil de Fato