Nas entrelinhas: Jair Bolsonaro está em rota de colisão com a Fiesp
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
Fracassaram os esforços da cúpula da Fiesp, que articula o manifesto dos empresários em defesa da democracia e das urnas eletrônicas, para que todos os candidatos à Presidência assinassem o documento, numa espécie de pacto de respeito mútuo ao resultado das eleições. Ontem, o Palácio do Planalto anunciou que Jair Bolsonaro não subscreverá o documento, assinado por entidades empresariais e federações sindicais de trabalhadores, e cancelou a ida do presidente da República ao lançamento do documento, no dia 11 de agosto, na sede da Fiesp. Também foi cancelado o jantar com empresários que estava programado.
A ida de Bolsonaro à Fiesp fora antecipada para 11 de agosto a pedido do Palácio do Planalto. Para evitar mais constrangimentos, o recolhimento de assinaturas de apoio ao manifesto da federação ficou restrito às entidades empresariais e sindicatos de trabalhadores, para que as assinaturas dos candidatos dos presidentes fossem recolhidas antes de as pessoas físicas aderirem o documento. Ocorre que Bolsonaro não digeriu as manifestações em defesa da urna eletrônica, da Justiça Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal (STF), e torpedeou as iniciativas.
Na terça-feira, Bolsonaro atacou o documento da Fiesp, que considerou uma “carta política”. Chamou de “cara de pau” e “sem caráter” os empresários que assinassem o documento, o que provocou o cancelamento do jantar que estava marcado com eles. Também houve muita discussão entre os que já haviam aderido ao manifesto, se os empresários deveriam assinar ou não o documento como pessoa física. O texto em nenhum momento cita o presidente da República. Os candidatos Felipe D’Ávila (Novo), Ciro Gomes (PDT) e Simone Tebet (MDB), que já estiveram na Fiesp, subscreveram o documento.
Sociedade civil
O episódio tende a aprofundar o confronto de Bolsonaro com a sociedade civil, a praticamente dois meses das eleições. Em termos gerais, esse é um espaço de organização e representação que não se confunde com o Estado, a família nem o mercado, que são os ambientes específicos e mais homogêneos onde Bolsonaro atua intensamente. A sociedade civil engloba instituições de caridade, grupos de autoajuda, associações profissionais, religiosas, sindicatos, entidades empresárias, movimentos sociais etc. É um universo complexo que, no Brasil, ganhou autonomia durante o regime militar, protagonizando movimentos de resistência em defesa da democracia e dos direitos humanos.
Os ataques de Bolsonaro às urnas eletrônicas, à Justiça Eleitoral e ao Supremo Tribunal Federal (STF), principalmente depois de seu encontro com diplomatas estrangeiros para levantar suspeitas sobre a segurança das urnas eletrônicas, despertaram forte e inédita reação da sociedade civil. A defesa das urnas eletrônicas até então estava sendo feita pelos ministros do Supremo, pela grande mídia e pela oposição. Esses ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral brasileiro, reconhecido internacionalmente por sua segurança e eficiência, funcionaram como um catalisador dessa reação.
Congresso
Ontem, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), na abertura da sessão do Plenário, reiterou sua confiança no sistema eleitoral. Disse que as urnas eletrônicas são motivo de “orgulho nacional”. Segundo ele, nestes 26 anos de uso no Brasil, trouxeram transparência, confiabilidade e velocidade na apuração do resultado das eleições. “Elas têm-se constituído em ferramenta poderosa contra vícios eleitorais muito frequentes na época do voto em papel. Representam, portanto, um verdadeiro aperfeiçoamento institucional”, enfatizou.
A fala de Pacheco coincidiu como a ida de militares do Ministério da Defesa ao Tribunal Superior Eleitoral (STF) para conferir a segurança dos códigos-fonte das urnas eletrônicas, um trabalho que poderia ter sido feito nos últimos 10 meses. O ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, vem reproduzindo à frente da pasta a narrativa de Bolsonaro sobre a segurança das urnas eletrônicas. Na verdade, a postura de Bolsonaro sinaliza temor de perder as eleições e suas intenções golpistas, o que acaba fortalecendo a oposição.
Sala de leitura com publicações da FAP será inaugurada em Belém (PA)
João Vítor*, com edição do coordenador de Audiovisual, João Rodrigues
Com acervo de publicações da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília, a Sala de Leitura Eneida de Moraes será inaugurada em Belém (PA) nesta quinta-feira (4/8), a partir das 11h e 30min, na Federação das Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apaes) do estado.
O evento é organizado pela diretora executiva da FAP, professora Jane Monteiro Neves, com colaboração do partido Cidadania 23. O evento será divido em três partes. No período matutino, a sala, que leva o nome da autora de História do carnaval carioca, será aberta aos filiados do partido e ao público.
O diretor-geral da FAP, o sociólogo Caetano Araújo, diz que a importância da inauguração do espaço está em fomentar a leitura. “Terá um acervo de publicações originais da fundação que preservam a memória do Partido Comunista Brasileiro (PCB)”, afirma. O Partidão completou 100 anos em 2022.
À tarde, em Belém, a revista Política Democrática nº 58, Impactos da Pandemia no SUS, será lançada para o estado e estará presente na Sala de Leitura Eneida de Moraes. O Sistema Único de Saúde (SUS) sustentou a população no combate contra à covid-19 e pode ter papel importante no enfrentamento da varíola dos macacos”, diz Araújo.
À noite, será a vez do livro Os nove de 22, de Ivan Alves Filho, ser debatido. “O livro de Ivan mostra muito bem o peso do partido, que teve seu início na clandestinidade, na cultura. Grandes artistas foram influenciados por militantes do PCB”, analisa o diretor-geral da FAP.
Também confirmaram participação no evento Eleanor Gomes Palhano, secretária geral do Cidadania; o presidente do Cidadania no Pará, Arnaldo Jordy; o presidente municipal do Cidadania de Belém, Emanoel O’ de Almeida; o deputado estadual do partido Thiago Araújo e Rosângela Mota, ex-presidente municipal do partido municipal de Castanhal no Pará.
Serviço:
Inauguração da Sala de Leitura Eneida de Moraes
Local: Travessa Apinagés, 212. Entre Tamoios e Mundurucus, Bairro Batista Campos,
Belém/PA - CEP:66025-080
Data: 4 de agosto (quinta-feira)
Horário: 11h30
Realização: Cidadania 23 em parceria com a Fundação Astrojildo Pereira (FAP).
*Integrante do programa de estágio da FAP, sob supervisão da Coordenação de Publicações
Nas entrelinhas: Bolsonaro recupera expectativa de poder
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
A aprovação da PEC Emergencial e a redução do preço dos combustíveis alteraram o cenário eleitoral. Na pesquisa feita pelo Instituto FSB para o banco BTG Pactual, divulgada ontem, a diferença entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que lidera a corrida presidencial, e o presidente Jair Bolsonaro (PL) caiu de 13 para sete pontos. O petista está com 41% das intenções de voto, enquanto Bolsonaro tem 34% no primeiro turno. Também se alterou a avaliação do governo, que era ruim ou péssima para 47% dos eleitores e, agora, está em 44%. Entre os que acham o governo Bolsonaro ótimo ou bom, o número subiu de 31% para 33%. O ex-ministro Ciro Gomes (PDT) está com 7% dos votos; a ex-senadora Simone Tebet (MDB), com 3%; e André Janones (Avante), com 2%. José Maria Eymael (DC) e Pablo Marçal (Pros) têm 1% cada.
A pesquisa FSB/BTG Pactual explica o empenho de Lula para remover as candidaturas de Janones e Marçal e tentar atrair esse 3%. Mesmo assim, a simples soma de votos de Ciro e Simone inviabilizaria, hoje, uma vitória no primeiro turno. Vêm daí as previsões baluartistas do Palácio do Planalto, explicitadas com clareza pelo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, na entrevista publicada pelo Correio, no domingo. O presidente do PP fez duas previsões audaciosas: de que Bolsonaro chegará à frente de Lula no primeiro turno e o Centrão elegerá 350 dos 513 deputados da Câmara.
Presidente do PP, Nogueira é a raposa política por trás da estratégia de reeleição de Bolsonaro, cujo eixo é a PEC Emergencial, que permitirá farta distribuição de recursos pelo governo, a menos de 60 dias das eleições, burlando os princípios da “paridade de condições” e de “neutralidade da máquina pública” contidos na atual legislação eleitoral. Suas previsões sobre o desempenho do presidente nas eleições se baseiam, principalmente, no impacto do Auxílio Brasil na população de baixa renda, que receberá do governo, neste mês de agosto, as duas primeiras parcelas de uma só vez, no valor total de R$ 1,2 mil. Os subsídios para caminhoneiros, taxistas e do vale gás também estão sendo pagos. São aproximadamente R$ 41 bilhões em transferências de recursos para uma base eleitoral que está majoritariamente com Lula.
A outra previsão importante de Nogueira está diretamente relacionada às emendas parlamentares do chamado “orçamento secreto”, que devem somar R$ 16 bilhões neste ano. Essas emendas favorecem a reeleição dos parlamentares do Centrão, sem que a opinião pública saiba sequer quanto é que cada um está recebendo realmente. Pela projeção de Nogueira, serão eleitos 350 parlamentares governistas. Os deputados que estão manipulando esses recursos têm grande vantagem em relação aos concorrentes, inclusive dentro de seus próprios partidos. Nas contas de Nogueira, o bloco de esquerda liderado por Lula elegeria 150 deputados. São projeções muito otimistas, mas que refletem a confiança no sistema de blindagem da base de apoio do governo montada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Obviamente, entram nessa contabilidade parlamentares que estão nos partidos de oposição e votam sistematicamente com o governo.
Agenda conservadora
Nos cálculos de Nogueira, a peça chave da governabilidade é a eleição de uma ampla maioria na Câmara, no primeiro turno. Em qualquer resultado, na avaliação do ministro, o próximo presidente eleito terá uma taxa de rejeição acima de 40% e precisará de uma base parlamentar sólida, no caso o Centrão. Isso vale para Bolsonaro e dificultaria muito a vida de Lula no segundo turno, porque seu projeto político estaria em franca oposição à maioria parlamentar eleita. O candidato natural dos parlamentares do Centrão, mesmo no Nordeste, no segundo turno, será Bolsonaro. Não haveria mais adesão por conveniência eleitoral, pois os parlamentares já estarão eleitos. Vale destacar que isso também garantiria a reeleição de Lira na Câmara, o controle do Orçamento da União pelo Centrão e a aprovação de uma reforma constitucional ultra-conservadora.
É um cenários que restabelece a expectativa de poder de Bolsonaro, que havia se transferido para Lula, desde quando as pesquisas mostravam a possibilidade de o petista vencer no primeiro turno. Entretanto, como diria Mané Garrincha, é preciso antes combinar com o eleitor. Até porque existe uma contradição entre a estratégia política traçada pelas raposas do Centrão e o modo como Bolsonaro faz campanha eleitoral, com uma narrativa ideológica de cunho messiânico, ultra-conservadora, com ataques à urna eletrônica, à Justiça Eleitoral e ao Supremo Tribunal Federal (STF), com impacto negativos na sociedade civil e até mesmo na alta burocracia federal. O próprio Nogueira reconhece que isso mina a reeleição de Bolsonaro.
Brasil vive 'mistura tóxica de ódio pessoal e polarização política'
Leandro Prazeres*, BBC news Brasil
Nem mesmo a experiência de quem acompanha a política e as eleições na América Latina há mais de 30 anos foi suficiente para evitar o espanto que o professor americano Scott Mainwaring sentiu ao saber da morte de Marcelo Arruda, um membro do PT morto a tiros por um apoiador do presidente Jair Bolsonaro (PL).
"É um fato grave, não lembro de nada parecido no Brasil", disse à BBC News Brasil.
Scott Mainwaring é um dos maiores especialistas do mundo em política, democracias e ditaduras na América Latina. Ele já morou em países como a Argentina e o Brasil (onde fez pesquisa de campo para o seu doutorado) e fala português fluentemente. Nestes países, ele investigou a redemocratização na região e viu como, em alguns casos, esse processo envolveu casos de violência política.
Mainwaring foi professor na Universidade de Harvard, da qual é um membro associado. Em 2019, ele foi apontado como um dos 50 cientistas políticos mais citados em trabalhos acadêmicos do mundo. Atualmente, é professor de Ciências Políticas da Universidade de Notre Dame.
O americano é autor de dezenas de livros sobre a política da América Latina, entre eles: Decay and Collapse (Sistemas Partidários na América Latina: Institucionalização, Decadência e Colapso), Democracies and Dictatorships in Latin America: Emergence, Survival and Fall (Democracias e Ditaduras na América Latina: Surgimento, Sobrevivência e Queda), e Party Systems in Latin America: Institutionalization (Sistemas partidários na América Latina: Institucionalização).
É com essa experiência que ele analisa, com preocupação, a escalada de violência às vésperas das eleições deste ano no Brasil.
Em entrevista à BBC News Brasil, Mainwaring diz que a morte de Marcelo Arruda é resultado da "relação tóxica" entre a violência e poder político presente no país.
Segundo ele, o Brasil, assim como os Estados Unidos, vive um ambiente de "ódio pessoal e polarização política".
Para o professor, a polarização no Brasil não vai desaparecer e os principais pré-candidatos à Presidência da República, Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), precisam condenar atos de violência.
"Você não pode reduzir a zero a possibilidade de um cara desequilibrado atacar a outra pessoa. Mas a mensagem das lideranças é muito importante", disse o professor.
Confira os principais trechos da entrevista:
BBC News Brasil - Nas últimas semanas, ocorreram alguns incidentes violentos no Brasil relacionados à campanha política. O último foi o assassinato de um membro do Partido dos Trabalhadores (PT) praticado por um apoiador do presidente Jair Bolsonaro. E isso lança algum tipo de alerta sobre o que está ocorrendo no Brasil?
Scott Mainwaring - Certamente. Não pode ter espaço para esse tipo de violência política. É um ato de criminalidade comum e, além disso, é um tipo de ato que atinge a democracia.
BBC News Brasil - Que sinal a morte de alguém nessas circunstâncias manda para a comunidade internacional?
Mainwaring - Para mim, é mais um indicador de uma relação tóxica entre violência e poder político. Como fato isolado, não acho preocupante. O que é preocupante é quando você combina isso com outros incidentes de violência.
Mainwaring - Me refiro a outros incidentes de violência. Estou pensando na relação da política com as milícias, com o crime organizado, nos assassinatos de candidatos a prefeitos, vereador. Quando você combina tudo isso, aí, sim, é preocupante.
BBC News Brasil - Considerando o histórico político do Brasil, quão grave é a morte de um militante político por um oposicionista?
Mainwaring - É um fato grave. Não lembro de acontecimentos parecidos no Brasil. Isso lembra, por exemplo, os brownshirts (camisas marrons) da Alemanha nos anos 1920 e começo dos 1930. Atinge de forma profunda a democracia.
[Nota: "camisas marrons" era o nome pelo qual ficaram conhecidos os primeiros integrantes de uma organização paramilitar nazista fundada por Adolf Hitler em 1921]
BBC News Brasil - O senhor mencionou os camisas marrons. Na sua avaliação, esse episódio lembra a Alemanha pré-nazismo ou a Alemanha nazista?
Mainwaring - Não quero exagerar. Na Alemanha pré-nazista isso era comum. Tanto os nazistas como os comunistas tinham milícias muito grandes, inclusive maiores que o Exército alemão naquela época. Mas vai nesse sentido. Vai nessa direção.
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BBC News Brasil - Quais foram os fatores que levaram o Brasil a esse nível de animosidade que resultou, por exemplo, na morte desse membro do Partido dos Trabalhadores?
Mainwaring - Desde 2014, o Brasil sofre um processo muito grave de polarização política. E isso se acentua pela presença das mídias sociais, que exacerba a polarização política e cria uma animosidade. Elas levam essa polarização para um processo de animosidade, de ódio. É possível ter um processo de polarização que não se baseia em ódios pessoais. Mas no Brasil de hoje, como também nos Estados Unidos, você tem essa mistura tóxica de ódio pessoal e polarização política.
BBC News Brasil - Considerando essa escalada de violência, o Sr. acredita que o Brasil poderia ser palco de algo semelhante à invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, caso um candidato não aceite o resultado das eleições?
Mainwaring - É um risco.
BBC News Brasil - É um risco alto, médio, baixo? Como o senhor classificaria?
Mainwaring - Não acho que seja grande, mas eu diria que é médio. O fato de Bolsonaro denunciar os mecanismos eleitorais brasileiros e dar sinais de que pode não aceitar o resultado caso ele perca as eleições, é aí que reside o maior risco. Isso, para a democracia, é muito grave.
BBC News Brasil - O Brasil tem sido descrito por especialistas como um dos países da terceira onda de democratização onde os fundamentos e funcionamento da democracia iam relativamente bem. Esses episódios violentos mais recentes indicam uma deterioração da democracia brasileira?
Mainwaring - Sem dúvida. A democracia brasileira entre 1985 e 2012 ou 2014, realmente, tinha muitos aspectos altamente positivos. Acho que a degradação da democracia brasileira nos últimos cinco ou seis anos é real.
A eleição de um presidente com perfil tão autoritário como o Bolsonaro é um sinal em si mesmo.
Quando você elege um presidente iliberal, com traços muito autoritários, isso já representa um perigo para a democracia.
Os problemas antecediam a eleição de Bolsonaro, como a corrupção, os problemas econômicos, o aumento da violência e a perda de credibilidade, por um lado, do PT, e por outro do establishment ao centro e à direita.
BBC News Brasil - Considerando a quantidade de armas circulando no Brasil, o Sr. teme que o país vá na direção de uma realidade em que atos de violência política sejam mais comuns? Há ambiente para uma deterioração ainda maior?
Mainwaring - Isso é possível e acho que não devíamos subestimar o quanto isso já aconteceu. O exemplo mais famoso é o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL). Mas também já aumentou o número de assassinatos de candidatos a prefeito e vereador. Isso é grave e poderia se acentuar, mas não vejo como algo inevitável.
BBC News Brasil - O nível de polarização tende a piorar ou melhorar até as eleições?
Mainwaring - Acho que vai piorar, porque a campanha política vai ser, certamente, entre Lula e Bolsonaro. E 40% do país tem ódio do Lula e outros 40% têm ódio do Bolsonaro. A tendência provável de Lula não vai ser polarizar. Ele vai polarizar contra o Bolsonaro, mas não vai assumir posições radicais. Mas Bolsonaro sempre polariza e certamente ele vai pintar Lula como um diabo. Eu acho quase inevitável que a polarização se exacerbe nos próximos meses. Agora, depois da eleição é um momento de possível diminuição da polarização. Os dois candidatos vão ter que costurar alianças para governar o país.
BBC News Brasil - Qual é a responsabilidade de Lula nesse cenário de polarização?
Mainwaring - Acredito que o Lula poderia polarizar contra Bolsonaro, mas buscar o eleitor médio. Lula, provavelmente, vai se posicionar para ganhar o centro do Brasil. A probabilidade de ele ganhar aumenta se ele pode capturar o centro do país. Para mim, a estratégia mais óbvia do Lula seria lógico denunciar o Bolsonaro, polarizar contra ele, mas se posicionar como uma alternativa sensata, uma alternativa viável ou uma alternativa que no governo não vai ser radical, não vai polarizar.
BBC News Brasil - O presidente Bolsonaro tem sido acusado por alguns críticos de incentivar os seus apoiadores contra esquerdistas. Por outro lado, alguns dias atrás, o presidente Lula agradeceu a um membro do Partido dos Trabalhadores que atacou um manifestante antilula. Na sua avaliação, é justo dizer que Lula e Bolsonaro são igualmente responsáveis por esse ambiente de tensão que a gente vê no Brasil?
Mainwaring - Teria que estar no Brasil para fazer uma avaliação mais equilibrada sobre essa pergunta.
BBC News Brasil - O presidente Bolsonaro tem questionado, ainda que sem apresentar provas, a legitimidade do sistema eleitoral brasileiro. Os militares, que são muito próximos do presidente, têm colocado a integridade do sistema em dúvida. O senhor acredita que as Forças Armadas brasileiras vão aceitar o resultado das eleições se Bolsonaro perder?
Mainwaring - Se Lula ganha por uma vantagem razoável, acho que a tendência dos militares, neste caso, é aceitar o resultado. E se a eleição for muito apertada? Aí, digamos, teria mais espaço para os militares não aceitarem. Acho, de qualquer maneira, pouco provável que os militares não aceitem [o resultado]. Mas essa possibilidade aumenta se a eleição for extremamente apertada.
BBC News Brasil - O senhor é um dos principais especialistas em democracia, ditaduras e ditaduras militares na América Latina. Na sua avaliação, existe algum espaço para uma ruptura democrática no Brasil hoje?
Mainwaring - Para a ruptura clássica via golpe militar, acho que não há espaço. Desde o fim da Guerra Fria, a maneira mais frequente de a democracia se romper é pela via do que chamamos de "executive takeover". Seria, digamos, quando o presidente, ao longo do tempo, degrada a democracia a tal ponto que ela deixa de ser um regime democrático. Um exemplo clássico é a Venezuela pós-Hugo Chávez. Outro exemplo claro é a Nicarágua e o regime de Daniel Ortega. Mas poderíamos pegar um caso como a Hungria de Viktor Orbán. Esse risco eu acho que é real, especialmente se Bolsonaro ganhar de novo. O risco de ele procurar concentrar mais o poder... os ataques dele ao STF são um indicador nefasto. Agora, Bolsonaro não deverá ter uma maioria no Congresso e isso dificulta as coisas para ele.
BBC News Brasil - Nos últimos anos, houve um relaxamento das normas no Brasil em relação à compra de armas e alguns especialistas dizem hoje que o Brasil tem mais armas circulando hoje do que no passado. Considerando todo esse ambiente de tensão das nossas eleições, quão preocupante é termos uma eleição neste ambiente?
Mainwaring - Não sei quão preocupante isso é para a eleição. Acho que (assassinatos como o de Marcelo) são um episódio raro e que não se repetem muito. O que é mais preocupante em termos do aumento de número de armas é a prática quotidiana da democracia nas áreas pobres do Brasil como as favelas do Rio de Janeiro. É o controle que as milícias e as organizações criminosas exercem nessas áreas e na região amazônica. Eu diria que aí a democracia brasileira sofre muito e isso não é uma novidade.
BBC News Brasil - O senhor sente que há uma preocupação maior neste ano, fora do Brasil, em relação às eleições deste ano na comparação com outros anos?
Mainwaring - Certamente. A preocupação não é porque o sistema eleitoral seja frágil, mas é que um dos candidatos, Bolsonaro, poderia não aceitar o resultado.
BBC News Brasil - Existe, na sua avaliação, algum sinal de que essa tensão que existe hoje possa se dissipar depois das eleições? Ou esse nível de polarização é algo que veio para ficar e que vai demorar um tempo para desaparecer, se é que vai desaparecer?
Mainwaring - Se Lula ganhar, vai depender de como ele governará. A polarização não vai se dissipar. Não há nenhuma forma para que isso passe, mas poderia diminuir. E de quê maneira? Se o governo de Lula for exitoso, a tendência é diminuir a polarização. Por outro lado, se ele toma posições mais moderadas, isso ajudaria a diminuir a polarização. Por outro lado, se se repetem os casos de corrupção, se a economia não retomar um caminho mais positivo, se a violência não diminuir, aí a polarização provavelmente não vai diminuir.
BBC News Brasil - O Sr. mencionou que a morte de Marcelo Arruda é mais um indicador de uma relação tóxica entre violência e poder político. O que é exatamente os atores políticos podem ou deveriam fazer para que episódios como esses não acontecessem?
Mainwaring - Para os candidatos Bolsonaro e Lula, sobretudo porque são os únicos que têm uma chance viável, eles têm que denunciar essa violência. Isso é muito importante. Você não pode reduzir a zero a possibilidade de um cara desequilibrado atacar a outra pessoa. Mas a mensagem das lideranças é muito importante. Você tem que renunciar o uso da violência.
BBC News Brasil - Numa declaração, o presidente Bolsonaro disse o seguinte: "Vocês viram o que aconteceu ontem? Uma briga entre duas pessoas lá em Foz do Iguaçu? Bolsonaro isso não sei o que ela. Agora ninguém fala que o Adélio", que é a pessoa que o esfaqueou em 2018 e que foi filiado ao PSOL. Nas suas redes sociais, ele não chegou a lamentar a morte do Marcelo e acusou a esquerda de violenta. Esse tipo de declaração ajuda a acalmar os ânimos?
Mainwaring - Evidente que não. Agora, eu não sabia do incidente no qual o Lula aplaudiu a agressão de um petista contra um Bolsonaro. E isso também, no meu ver, é lamentável. Os dois têm que se pronunciar contra o uso da violência.
*Texto publicado orginalmente em BBC news Brasil. Título editado.
Nas entrelinhas: Dobradinha de mulheres na terceira via
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
A chapa Simone Tebet, candidata do MDB à Presidência da República, com Mara Gabrilli (PSDB-SP) como sua vice, é alvissareira. Abre espaço para mais mulheres na política, agora com possibilidades financeiras, porque 30% do fundo eleitoral serão destinados a candidaturas de mulheres pelos partidos, que podem ser punidos se não o fizerem. Entretanto, Simone nem de longe tem as mesmas condições oferecidas à ex-presidente Dilma Rousseff, que se elegeu com apoio do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2010, no auge de sua popularidade, e se reelegeu em 2014, embora com dificuldades e uma oposição que viria apeá-la do poder, com o impeachment.
Mesmo assim, a sobrevivência da candidatura de Simone Tebet no MDB, um partido dominado por velhos caciques políticos regionais, e a indicação de Gabrilli para vice, pelo PSDB, uma senadora de grande prestígio em São Paulo, são obras de grande engenharia política. Nessa construção, destacaram-se a própria candidata, que não esmoreceu diante dos desafios; o presidente do MDB, deputado Baleia Rossi, que bancou sua candidatura até o fim; o presidente do PSDB, Bruno Araújo, que retirou do caminho o ex-governador de São Paulo João Doria, abdicando da candidatura própria; e o presidente do Cidadania, o veterano Roberto Freire, que apostou na aliança MDB-PSDB-Cidadania, inclusive removendo a candidatura própria do senador Alessandro Vieira (SE), então no Cidadania, quando a aliança com o MDB parecia impensável.
A escolha do nome de Mara Gabrilli para vice foi uma decisão estratégica. O PSDB de São Paulo não estava nem aí para Simone Tebet, mais empenhado na reeleição do governador Rodrigo Garcia, que enfrenta dois adversários poderosos: o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad (PT) e o ex-ministro de Infraestrutura Tarcísio de Freitas (Republicanos). A decisão foi tomada na cúpula da aliança, num encontro das duas senadoras com Baleia, Araújo e Freire. Segundo Tebet, a conversa entre as duas colegas de Senado foi decisiva:
“Eu tinha dúvida, Mara, se uma chapa 100% feminina seria aceita. Que bom que as [pesquisas] qualitativas mostraram que homens e mulheres estão prontos para votar nessa chapa. E quando fiz o convite para você, esperando que você fosse dizer ‘vou pensar um pouquinho, eu tenho algumas limitações’, Mara disse, na sua generosidade, ‘Simone, que honra. Como vai ser bom falar para o Brasil da nossa causa e da nossa luta'”, relata Tebet.
São Paulo
Psicóloga e publicitária de formação, Mara Gabrilli é tetraplégica. Como mulher, é um exemplo de superação, com atuação política muito focada na inclusão social, em especial dos deficientes físicos. Destacou-se muito como parlamentar combativa e competente, inicialmente na Câmara, onde enfrentou adversários poderosos, como o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (MDB-RJ), cuja saída do comando da Casa defendeu em plenário.
A escolha de Gabrilli agrega força à candidatura de Simone Tebet em São Paulo, o maior colégio eleitoral do Brasil, o que dificulta a sua cristianização pelo PSDB paulista e pelo prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB). Gabrilli já foi testada em disputa majoritária, em 2018, nadando contra a maré. O governador Rodrigo Garcia, do PSDB, e o prefeito da capital eram vices. A consolidação da candidatura de Simone, porém, enfrenta o desafio de uma eleição muito polarizada, na qual a narrativa do “voto útil” ganha muita força. O fato novo da escolha é a possibilidade de a chapa sair do ponto de inércia em que se encontra nas pesquisas e ganhar mais fôlego com apoio entre as mulheres e no eleitorado paulista. A conferir.
Casa de louças
Em ofício classificado como “urgentíssimo”, o ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, pediu ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) acesso ao código-fonte das urnas eletrônicas até 12 de agosto, em caráter de “urgência, urgentíssima”. O ofício é mais uma forma de pressão sobre o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), passa a impressão de que a Corte nega acesso aos técnicos das Forças Armadas ao sistema de segurança das urnas eletrônicas, o que não é verdade.
O código-fonte das urnas eletrônicas está à disposição do Ministério da Defesa há um ano. Nesse período, a Controladoria Geral da União (CGU), o Ministério Público Federal (MPF), o Senado e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) já tiveram acesso ao mesmo. O PTB, de Roberto Jefferson, o está inspecionando nesta semana. Ainda neste mês está prevista a inspeção da Polícia Federal. A Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) também estão credenciadas para fazê-lo. PL e PV também.
Auxílio Brasil dá fôlego a Bolsonaro, mas Lula mantém vantagem na liderança
Redação Brasil de Fato*
A nova pesquisa Quaest, encomendada pelo Banco Genial e divulgada nesta quarta-feira (3), aponta que o governo de Jair Bolsonaro (PL) dá sinais de recuperação na opinião pública, mas segue com dificuldades na corrida pela reeleição.
A queda na rejeição da gestão do presidente, que ocorreu principalmente entre beneficiários do Auxílio Brasil, impactou pouco a disputa eleitoral. O estudo aponta que o ex-presidente Lula (PT) segue firme no topo e com chances de vitória no primeiro turno.
A retomada do Auxílio Brasil fez com que o governo Bolsonaro atingisse o menor nível de rejeição desde que a pesquisa começou a ser feita, em julho de 2021. Agora, 43% avaliam a gestão federal de forma negativa, enquanto 27% consideram positiva.
O processo de recuperação da imagem do governo aparece nos eleitores que recebem o Auxílio Brasil. Em junho, a distância entre a avaliação negativa e a avaliação positiva era de 27 pontos percentuais. Em agosto, a diferença caiu para 11 pontos.
Avaliação do governo Bolsonaro entre beneficiários do Auxílio Brasil, de acordo com a pesquisa Quaest/Genial / Reprodução
O governo também voltou a recuperar sua imagem entre os eleitores que votaram em Bolsonaro em 2018. Já são 57% dos eleitores do presidente que avaliam como ótimo ou bom o governo Bolsonaro. No começo do ano, eram apenas 45%.
O cientista político Felipe Nunes, diretor da Quaest, publicou uma análise da pesquisa no Twitter. Segundo ele, os sinais de melhora na avaliação do governo se devem a medidas do governo federal.
"A principal hipótese para explicar essa recuperação de imagem do governo e a aproximação das intenções de voto de Bolsonaro e Lula em setores importantes do eleitorado é o efeito expectativa de futuro gerado pelo presidente com as medidas adotadas nos últimos meses", escreveu.
Nunes destaca que caiu de 64% para 56% os eleitores que acreditam que a economia do Brasil no último ano piorou, e subiu de 15% para 20% os que dizem que a economia melhorou no último ano.
Ele também aponta que caiu de 25% para 21% os eleitores que acreditam que o principal responsável pelo aumento de preço dos combustíveis foi Bolsonaro.
O estudo aponta, portanto, que o atual chefe do Executivo conseguiu terceirizar a culpa da crise para os fatores externos ao país, que hoje agregam 34% dos entrevistados.
Leia a análise completa do diretor da Quaest:
Corrida eleitoral
Nas perguntas sobre eleições, o levantamento da Quaest/Genial mostra que Lula segue disparado na liderança, com 44% das intenções de voto. O presidente Jair Bolsonaro (PL) tem 32%.
O petista soma 2 pontos percentuais a mais que a soma de todos os outros candidatos, o que pode significar uma vitória no primeiro turno. A vantagem, no entanto, é igual à margem de erro, de 2 pontos percentuais para mais ou para menos.
Ciro Gomes (PDT) oscilou para 5%, enquanto André Janones (Avante) apareceu com 2%, assim como Simone Tebet (MDB). Pablo Marçal (Pros) teve 1%. Estes valores são do cenário estimulado, quando os eleitores escolhem a partir de uma lista de pré-candidatos. Os demais candidatos não pontuaram.
Em relação à última pesquisa presidencial e nacional da Quaest, Lula e Bolsonaro oscilaram dentro da margem de erro. Em julho, o petista tinha 45% e o candidato do PL aparecia com 31%.
Segundo turno
Lula segue vencendo todos os cenários no segundo turno. Em comparação com a pesquisa de julho, Lula e Bolsonaro oscilaram dentro da margem de erro. O petista tinha 53%, agora 51%. Já Bolsonaro cresceu de 34% para 37%.
Em julho, Ciro tinha 25% em um segundo turno contra Lula, que tinha 52%. Agora, o político do PDT tem 27% e o petista, 51%. Contra Tebet, Lula manteve os 55%, enquanto a senadora oscilou de 20% para 22%.
O levantamento entrevistou 2.000 pessoas face a face, entre os dias 28 de junho e 31 de julho e foi encomendada pela Genial Investimentos. O índice de confiança é de 95%. A pesquisa foi registrada no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) sob o número BR-02546/2022 e custou R$ 139.005,86.
*Texto publicado originalmente em Brasil de Fato. Título editado.
Como Brasil pode reduzir a pobreza no próximo governo
Thais Carrança*, BBC news Brasil
Em um calhamaço de 155 páginas lançado em julho, o Banco Mundial — instituição financeira internacional que faz empréstimos para países em desenvolvimento — apresenta um combo de sugestões de políticas para reduzir a pobreza e a desigualdade no Brasil.
"A ideia é gerar debates sobre as distintas reformas e mudanças de políticas que são necessárias no país, dado o contexto que o Brasil está vivendo, com os novos desafios da pandemia e os velhos desafios das desigualdades", diz Gabriel Lara Ibarra, economista sênior do Grupo de Pobreza e Equidade do Banco Mundial e responsável pelo relatório.
As sugestões vão desde programas de recuperação escolar pós-pandemia, passando por requalificação de trabalhadores, investimentos em infraestrutura e saúde, inclusão financeira e digital da população mais vulnerável, regularização fundiária, até uma otimização dos programas sociais, com a revisão de benefícios menos eficientes e adoção de uma metodologia oficial de definição de pobreza pelo país.
Segundo o Banco Mundial, o momento atual é estratégico para o Brasil, passadas duas crises — a recessão econômica de 2014-2016 e a pandemia —, e diante do novo ciclo de políticas públicas que deve ter início com o governo que começa em 2023.
A instituição lembra que o Brasil já fez isso uma vez: entre 2001 e 2011, o PIB per capita (soma de toda a riqueza produzida no país, dividida pelo número de habitantes, uma medida de desenvolvimento humano) cresceu 32%, enquanto a desigualdade diminuiu 9,4% e o percentual de pessoas vivendo na pobreza e extrema pobreza caiu pela metade.
Ibarra destaca a importância da ação do Estado para redução da pobreza e da desigualdade.
"É uma decisão inteligente para promover o desenvolvimento econômico não só do país, mas das famílias também", diz o economista mexicano, em entrevista à BBC News Brasil. "É necessário para gerar uma via sustentável de desenvolvimento econômico para as famílias que, por alguma razão, não têm tudo o que precisam para garantir um nível mínimo de bem-estar."
Confira 11 sugestões do Banco Mundial para reduzir a miséria e as iniquidades sociais no Brasil, no curto e no longo prazo.
Adotar programas de recuperação escolar
Diante do forte impacto da pandemia sobre a educação, o Banco Mundial diz que o Brasil deve adotar no curto prazo programas de recuperação escolar durante o período letivo e no contraturno (isto é, fora do horário de aulas regulares).
A instituição destaca a disparidade no acesso a atividades escolares durante a pandemia: enquanto 75,6% das crianças de lares mais ricos realizaram atividades escolares durante cinco dias da semana, somente 50% das crianças mais pobres tiveram a mesma frequência; e uma em cada cinco crianças de renda mais baixa não participaram de atividade escolar alguma nesse período.
"As perdas nas habilidades em português e matemática causadas pela pandemia já representam mais de um ano de aprendizagem perdida", observa o banco, que afirma que os professores precisam receber ferramentas para identificar o nível de aprendizagem de cada criança.
Além disso, os sistemas educacionais devem buscar ativamente os estudantes que abandonaram a escola e adotar estratégias para evitar novos abandonos.
Apoiar a reinserção das mulheres no mercado de trabalho
Apesar de a taxa de desemprego brasileira já ter voltado para níveis pré-pandemia (ela estava em 9,3% em junho, menor patamar para o trimestre desde 2015), as mulheres seguem com maior dificuldade de retornar ao mercado de trabalho, em comparação com os homens.
Em março, quando a taxa de desemprego no país estava em 11,1%, o nível de desocupação delas era 13,7%, comparado a 9,1% para eles — a diferença entre as taxas era então de 50,5%.
Neste cenário, o Banco Mundial destaca que o sistema de proteção social segue tendo papel crucial, especialmente para as mães solteiras e os lares mais vulneráveis.
Para apoiar a reinserção das mulheres no mercado de trabalho, a instituição diz que são necessárias políticas e programas que foquem especialmente nelas e nos setores onde as mulheres costumam se ocupar mais.
"Essas políticas e programas podem incluir o retreinamento de mulheres e subsídios para a recontratação, como feito, por exemplo, no Chile", diz o banco, destacando ainda a importância de assistência financeira e técnica para mulheres empreendedoras e autônomas, além de campanhas para aumentar a conscientização quanto à desigualdade no trabalho doméstico e de cuidado com dependentes, como crianças e idosos.
Reformar o sistema de apoio aos desempregados
Em 2019, antes da pandemia, apenas 17,7% dos desempregados brasileiros recebiam seguro-desemprego, bem abaixo da média de 37% dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), isso apesar de o país gastar o equivalente a 2,3% do PIB com programas voltados ao mercado de trabalho, acima do padrão internacional.
Assim, o Banco Mundial defende que é preciso reformar o atual sistema de apoio aos desempregados, estendendo a proteção aos trabalhadores autônomos e provendo serviços aos desocupados para evitar a deterioração das suas habilidades.
O banco também defende programas de incentivo à contratação de trabalhadores jovens e de baixa qualificação, como o Contrato de Trabalho Verde e Amarelo proposto pelo governo Bolsonaro.
Esse modelo de contratação, no entanto, foi muito criticado por entidades sindicais, que argumentavam à época que a proposta criava uma parcela de trabalhadores "de segunda classe", com menos direitos do que os demais.
Aumentar gastos com educação e melhorar direcionamento
O Brasil gastava em 2018 o equivalente a 6% do PIB com educação, acima da média de 3,9% dos países de renda média-alta. Esses gastos, contudo, poderiam ser mais bem focalizados, defende o Banco Mundial.
A instituição sugere, por exemplo, que as regiões Norte e Nordeste deveriam ser priorizadas, com investimentos em infraestrutura, na formação docente e em gestão.
O banco também defende que as despesas com universidades federais deveriam ser revistas, já que em 2015, elas consumiam 0,7% do PIB, mas 65% dos estudantes destas instituições pertenciam aos 40% mais ricos da população.
A BBC News Brasil questionou o economista Gabriel Lara Ibarra, responsável pelo estudo, sobre qual exatamente é a proposta do Banco Mundial para as universidades federais, posto que o Brasil ainda tem somente 21% dos jovens adultos com ensino superior, comparado a média de 44% em países da OCDE, 40% na Argentina e 63% na Rússia, por exemplo.
E num momento em que a participação de negros e egressos do ensino público finalmente cresce nestas universidades, como resultado da política de cotas sociais e raciais.
"O ponto não é que as despesas educacionais no nível terciário deveriam ser mais baixas, mas que a destinação de recursos deve levar em conta a integralidade das despesas de educação", argumentou Ibarra.
"Os gastos têm que ser feitos de forma que os estudantes de todas as partes da distribuição de renda, incluindo famílias de renda mais baixa, possam beneficiar-se deles. Uma solução, por exemplo, seria um aumento dos recursos para os níveis educacionais mais baixos, permitindo que alunos vindos da escola pública no nível fundamental tenham melhor qualidade da educação e uma probabilidade mais alta de aceder às universidades públicas."
Adriano Senkevics, doutor em educação pela USP (Universidade de São Paulo), vê a sugestão do Banco Mundial de rever os gastos com as universidades federais com cautela.
"O que me incomoda nessa abordagem é que ela insiste numa oposição entre gasto com educação básica e educação superior, quando estamos mal nas duas dimensões, essa é a verdade", diz Senkevics.
"Temos uma população pouquíssimo escolarizada e, se a preocupação é com desigualdade, há um estudo do Marcelo Medeiros, Rogério Barbosa e Flavio Carvalhaes que mostra que o nível educacional que vai ter impacto sobre a desigualdade é o ensino superior."
O banco também defende a necessidade de melhorar a qualidade da educação, considerando que o desempenho dos alunos brasileiros no Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) é sistematicamente inferior à média da OCDE.
Aqui, os especialistas sugerem medidas como a nomeação de diretores escolares e a bonificação de professores e funcionários a partir de avaliações de desempenho. Eles citam como exemplo o modelo do Ceará, de financiamento da educação baseado em resultados.
Requalificar trabalhadores
O envelhecimento e baixa qualificação dos trabalhadores exigirão um esforço de requalificação da mão de obra brasileira nos próximos anos, diz o Banco Mundial.
Os autores mostram essa necessidade em números: 95% dos trabalhadores pobres trabalham em ocupações com risco relativamente alto de automação; cerca de um terço dos brasileiros com 20 a 39 anos não concluíram o ensino médio e só 17% têm diploma de ensino superior; e a taxa de dependência (relação entre o número de crianças e idosos e a população em idade ativa) da economia brasileira deve subir dos atuais 45% para 67% até 2060.
"Há uma parcela importante da mão de obra brasileira que já saiu da escola tradicional, que já tem as habilidades definidas e o nível de educação que vão ter. Mas a dinâmica de automação e investimentos em novos setores, como a economia verde, vão exigir capacidades que esses grupos de trabalhadores não têm. Por isso é importante pensar como eles vão poder enfrentar essas mudanças do mercado do trabalho do futuro", diz Ibarra.
Segundo ele, é preciso envolver as empresas em esforços de requalificação de seus trabalhadores, com estímulos à formação técnica e profissional. Além disso, diante da redução constante da mão de obra agrícola, são necessários programas para ajudar os trabalhadores rurais a transitar para outros setores, sugere o Banco Mundial.
Ampliar investimento em saúde
Em 2017, um terço das famílias brasileiras gastaram mais de 10% do orçamento familiar em saúde, com medicamentos como a principal despesa paga do próprio bolso. Além disso, a cada ano, 10 milhões de brasileiros caem na pobreza por despesas com saúde, cita o banco.
Assim, uma política holística de combate à pobreza deve incluir o fortalecimento do sistema público de saúde, de forma a reduzir as despesas pagas pelas pessoas do próprio bolso.
Ampliar a inclusão financeira e digital da população de baixa renda
O Brasil tem níveis de acesso a crédito e a contas bancárias superiores ao restante da América Latina e Caribe, mas esse acesso é bem menor para os 40% mais pobres, diz o banco. Além disso, só 32% dos brasileiros adultos conseguiram poupar dinheiro em 2017.
"A inclusão e a educação financeira criam a possibilidade de poupança, gerando um caminho mais sustentável para as finanças das famílias que estão na parte mais baixa da distribuição de renda", diz Ibarra.
"A ferramentas digitais reduzem o custo do acesso a produtos bancários e há muita facilidade hoje em dia, através dos aplicativos, para transações financeiras formais", cita o economista, destacando a bem-sucedida experiência do pagamento do auxílio emergencial através de contas digitais da Caixa Econômica Federal.
O Banco Mundial sugere que o Bolsa Família ou Auxílio Brasil também poderia ser atrelado a uma conta poupança dedicada. Mas alerta que é preciso programas para apoiar a inclusão digital das populações rurais e vulneráveis, já que o preço e a qualidade dos serviços de banda larga no Brasil são hoje fatores impeditivos para essas parcelas da população.
Melhorar a regularização fundiária
"Muitos estudos mostram que, quando os direitos de propriedade são claros e bem regularizados, os incentivos para cuidar, investir e produzir mais sobre uma determinada propriedade são muito maiores", diz o economista do Banco Mundial.
Segundo o estudo, cerca de 57% da população rural cronicamente pobre não possui registro formal de propriedade; metade do território registrado no Brasil tem registros sobrepostos; e os mais de 20 órgãos envolvidos na regularização fundiária no país não estão conectados.
Assim, o banco defende a simplificação e integração dos processos de cadastro de imóveis, além de um esforço de registro de terras estaduais e federais, com retificação ou cancelamento de registros equivocados.
"Uma reforma do processo de regularização fundiária, com sistemas melhor integrados, vai dar mais certeza aos direitos de propriedade para as famílias", afirma Ibarra.
Aumentar competitividade e abrir o mercado
O Banco Mundial avalia que o modelo econômico brasileiro, baseado em uma indústria altamente protegida e exportações de commodities, está "exaurido".
Assim, a instituição defende que, para fortalecer o crescimento, é preciso acelerar mudanças estruturais, com o aumento da produtividade da indústria e do setor de serviços, diversificação das importações e aumento da participação do Brasil no comércio global.
O banco também defende a necessidade de o país retomar investimentos em infraestrutura e afirma que uma forma de fazer isso seria reduzir a vinculação de despesas no orçamento, gerando espaço para investimentos dentro do teto de gastos.
No entanto, o governo Jair Bolsonaro (PL) realizou diversas manobras para driblar o teto nos últimos anos e há uma expectativa de que um novo governo eventualmente mude a regra, que tem se mostrado de difícil cumprimento sob os moldes atuais.
Usar a política fiscal para promover a igualdade
A política fiscal diz respeito à arrecadação e aos gastos do governo. Aqui, o Banco Mundial faz duas sugestões principais: uma revisão dos programas sociais para destinar mais recursos aos gastos considerados mais eficientes e uma reforma tributária.
"Com os mesmos recursos poderíamos ter um impacto maior na pobreza ou até mesmo alguma poupança para fazermos mais investimentos nos serviços públicos", diz Ibarra.
A instituição destaca, por exemplo, os gastos com o Salário Família e o Abono Salarial, que por serem destinados a trabalhadores formais, beneficiam o meio da distribuição de renda, enquanto o Bolsa Família é considerado um gasto bem direcionado aos mais pobres.
O Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) chegou a sugerir em estudos recentes a fusão do Bolsa Família, Salário Família, Abono Salarial e da dedução por dependentes no Imposto de Renda da Pessoa Física, para criação de um "benefício infantil universal". A proposta foi vista com bons olhos por especialistas em desigualdade, mas não avançou.
O Banco Mundial defende ainda a simplificação dos impostos indiretos — aqueles aplicados sobre o consumo de bens e serviços — para um modelo de Imposto de Valor Agregado (IVA), adotado em muitos países da Europa.
Um dos modelos de reforma tributária discutido nos últimos anos ia justamente nessa linha, mas também não prosperou.
Melhorar estatísticas e criar medida oficial de pobreza
Por fim, as últimas propostas do Banco Mundial para atacar a pobreza e a desigualdade tratam da produção de informação.
Melhorar a coleta de dados sobre as populações indígenas e quilombolas e fortalecer o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), com a incorporação pelo órgão de novas fontes de dados como registros administrativos, big data e GPS, estão entre as recomendações.
O banco destaca ainda que a recente elevação da linha de pobreza considerada para pagamento do Auxílio Brasil para R$ 210 é positiva, mas insuficiente, sendo necessária a adoção de uma metodologia oficial de medição de pobreza no país.
"Com uma metodologia analiticamente sólida é possível definir o custo de vida no país e quanto as famílias precisam para cobrir suas necessidades básicas. Isso pode então servir de ponto de referência para identificar as famílias que estão em necessidade de apoio monetário", diz Ibarra. "Não é um exercício fácil, nem uma solução final para a pobreza no país, mas isso é importante porque dá um ponto de referência para a política pública."
*Texto publicado originalmente em BBC news Brasil. Título editado
Nas entrelinhas: Supremo volta do recesso fortalecido
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, no discurso de abertura do semestre, reverberou o fortalecimento da Corte em razão do maciço apoio que recebeu da sociedade civil, nos dois manifestos anunciados na semana passada, um liderado por juristas ligados à tradicional Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, e o outro por empresários e banqueiros ligados à Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) e à Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), respectivamente. Ambos foram uma resposta aos ataques feitos pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) às urnas eletrônicas, à Justiça Eleitoral e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em particular, aos ministros do STF Luís Roberto Barroso, Édson Fachin e Alexandre de Moraes — respectivamente ex, atual e futuro presidente da Corte eleitoral.
Fux reiterou que “nossa democracia conta com um dos sistemas eleitorais mais eficientes, confiáveis e modernos de todo o mundo” e “uma Justiça Eleitoral transparente, compreensível e aberta a todos aqueles que desejam contribuir positivamente para a lisura do prélio eleitoral”. O presidente do STF também condenou a violência nas eleições: “O Supremo Tribunal Federal anseia que todos os candidatos aos cargos eletivos respeitem os seus adversários, que, efetivamente, não são seus inimigos. Confia na civilidade dos debates e, principalmente, na paz que nos permita encerrar o ciclo de 2022 sem incidentes”, disse.
Na mesma sessão, o ministro Alexandre de Moraes, que presidirá o TSE durante as eleições de outubro, fez uma defesa enfática do atual sistema de votação: “Quem conhece as urnas eletrônicas, quem conhece o sistema de votação, se de boa-fé for, certamente vai verificar que nós podemos nos orgulhar do nosso sistema eleitoral”.
Entretanto, no mesmo dia de reabertura dos trabalhos da Corte, Bolsonaro exibiu os músculos, anunciando a indicação de dois ministros para o Superior Tribunal de Justiça (STJ) que não estavam entre os preferidos da maioria do Supremo: Paulo Sérgio Domingues, juiz do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), que tem o apoio de Humberto Martins e da futura presidente do STJ, Maria Thereza de Assis Moura; e Messod Azulay Neto, juiz do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, indicado pelo senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho do presidente.
Queda de braços
Nos bastidores do Supremo, ontem, o mal-estar era grande. O preterido nas indicações foi o desembargador do Tribunal Regional Federal da Região (TRF-1) Ney Bello, cujo nome era articulado pelo ministro do STF Gilmar Mendes. Paulo Sérgio é ligado ao ministro Nunes Marques, aliado incondicional de Bolsonaro na Corte. Os dois nomes ainda precisam ser aprovados pelo Senado, o que deve ocorrer antes das eleições. Bello foi responsável pela decisão que tirou o ex-ministro da Educação Milton Ribeiro da cadeia, mas isso não adiantou muito.
Mesmo fortalecido, outro sinal de que o Supremo não terá vida fácil foi o pedido de arquivamento do inquérito que apura se Bolsonaro vazou dados sigilosos de uma investigação da Polícia Federal (PF) ainda não finalizada, feito ontem pelo Ministério Público Federal (MPF). A vice-procuradora-geral, Lindôra Araújo, braço direto do procurador-geral, Augusto Aras, no texto do pedido, acusou nominalmente Alexandre de Moraes de violar o sistema acusatório ao determinar novas medidas na apuração.
Lindôra saiu em defesa da atuação de Aras, ao pedir o encerramento da investigação. Segundo ela, seu chefe atuou de forma técnica, jurídica, isenta, sem intenção de “prejudicar ou beneficiar determinadas pessoas”. O inquérito foi aberto porque Bolsonaro, em agosto de 2021, divulgou nas redes sociais a íntegra de um inquérito da PF que apura um suposto ataque ao sistema interno do TSE, em 2018. Segundo a Corte, não houve risco às eleições.
A urgência da fome é a urgência pela democracia
Denise De Sordi*, Brasil de Fato
“Geografia da fome”, de Josué de Castro é um livro que nos chama à ação. Daqueles que lemos e nos sentimos atordoados. Tem um sentido de urgência, de chamado da história. Foi este livro que nos explicou – e segue nos lembrando - que a fome não é natural, é um “fenômeno” social, é “marcante”, é “regular”, é “gritante” e é “extensa”. Um “problema” que, na década de 1940 – quando foi publicado, demandava uma “nova perspectiva” ofertada pelas ciências humanas e sociais, que estava ali, pelas mãos do autor, articulada num “método geográfico”, permitindo o estudo do problema sem “arrebentar as raízes que o ligam subterraneamente a inúmeras manifestações econômicas e sociais da vida dos povos” (p.16). A publicação deste livro, mais do que alertar para a fome, permitiu ainda dizer em alto e bom som que o acesso aos alimentos está ligado à renda dos trabalhadores.
Como nos alertou Milton Santos na Apresentação, se a fome fosse algo da “natureza” a culpa seria “de ninguém”, o livro subverte, a partir de extenso estudo, este entendimento. Há uma culpa que está relacionada à organização da sociedade, aos “sistemas econômicos e sociais” (p.30). A pobreza generalizada da população explicava – e ainda explica – a fome mais do que outros fenômenos.
Não à toa, a publicação do livro potencializou um debate que já corria ao longo dos anos da década de 1930 e que se estenderá para a concretização do salário mínimo como forma de garantia de acesso aos mínimos de sobrevivência aos trabalhadores. “Geografia da Fome” revirou as discussões políticas no período em que foi lançado e abriu um campo de discussões no qual a dimensão do que conhecemos por segurança alimentar foi incorporada ao campo das políticas públicas que começavam então a se desenhar e ser implementadas.
Entretanto, é preciso lembrar que a fome hoje, esta que se alastrou pelo país desde 2016 e que se acentuou entre 2021 e 2022 provocando o retorno do país ao Mapa da Fome (FAO) não tem o mesmo sentido histórico que possuía em 1940, ou nos anos que seguiram, cortados por um intervalo histórico sombrio que travou as iniciativas, por exemplo, de programas alimentares. Período que foi finalizado pelas mobilizações populares e pela conquista da democracia, materializada como o pacto social que firmamos em 1988. Foi justamente por meio do acúmulo de experiências históricas derivado de inúmeras mobilizações populares engajadas na construção da redemocratização do país que a democracia brasileira tomou forma como prática de Estado e, assim, as políticas públicas sociais em nível nacional foram gradativamente conquistadas, ao longo dos anos da década de 1990, enquanto uma das principais formas de operacionalizar o pacto democrático.
Políticas e programas sociais não são, portanto, ações voltadas apenas para aqueles que são caracterizados pelo Estado como “pobres” – figura técnica e institucionalmente definida nos anos 2000 por linhas de corte de renda - políticas e programas sociais são parte orgânica da forma que assume a relação entre Estado e sociedade, são para todos nós. A experiência do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) – extinto em 1995, retomado em 2003 e extinto novamente em 2019 - talvez seja o exemplo mais claro de como esta relação pode se concretizar e ampliar a democracia.
Uma das características do projeto Cozinhas Solidárias é o plantio de hortas para aproximar as comunidades dos cuidados e usos dos alimentos / Foto: Isabelle Rieger / Amigos da Terra Brasil
Programas e políticas sociais não resolvem todas as questões sociais, mas indicam os termos do pacto social para lidarmos com a educação, a saúde, a pobreza, a fome, o emprego, o consumo, o acesso aos alimentos, a cultura, a política e assim por diante. Desde 2016 vivemos uma virada discursiva que intenciona resumir as políticas e programas sociais ao papel de “atenção aos pobres”. Esta é uma estratégia de “redução do Estado”, por meio da qual, cada vez mais, os Direitos Sociais deixam de ter como horizonte a universalização e são cada vez mais restringidos, isto é; focalizados.
Mais recentemente, no desaguar das consequências deste discurso, programas sociais construídos tendo em vista a complexidade da sociedade brasileira, foram desmanchados e/ou tornados inoperantes para atender ao processo de aprofundamento da exploração e expropriação dos trabalhadores. É uma agenda política e econômica que não só reproduz o empobrecimento e a pobreza como condição de vida majoritária, mas para a qual a permanência da pobreza no país é favorável.
Dentre os programas extintos estão o Programa Bolsa Família (PBF) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Ambos nos remetem à conquista histórica da democracia no Brasil contemporâneo. A existência deles só foi possível porque o jogo democrático permitiu, ao longo dos anos de 1990 e 2000, a confluência de interesses diversos, a soma de diferentes perspectivas sobre quais são os melhores caminhos para se gerir o ritmo do empobrecimento, equilibrando as agendas econômica e social. Enquanto expressão das relações entre Estado e sociedade, não foi sem pressão e sem olhar para as práticas dos movimentos sociais e dos sujeitos organizados nas áreas urbanas e rurais, que estas políticas e programas foram formulados. É um tipo de dinâmica das relações entre Estado e sociedade que, para ser legítima e duradoura, deve contar com movimentos de baixo para cima que se traduzam em políticas e programas que os traduzam de cima para baixo.
É esta dinâmica que é também preventiva da corrosão democrática, por isto, a reconstrução destas políticas e programas sociais parece demandar novamente um olhar para compreender o que está a ocorrer nas cozinhas solidárias, na constituição dos bancos de alimentos, e nas formas pelas quais movimentos sociais têm se organizado para garantir a sobrevivência da população, a partir de concepções que estão fincadas na solidariedade social. Isto é, a solidariedade como um valor democrático e um projeto de sociedade.
Não se trata de uma agenda de ações emergenciais, mas de práticas para o agora que auxiliam na formulação política do futuro. A formulação de agendas deste tipo é algo que, historicamente – basta olharmos para as mobilizações ao longo dos anos de 1990 –, se potencializa quando emerge pelas mãos dos movimentos sociais, a exemplo das dezenas de cozinhas solidárias espalhadas pelos estados brasileiros pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, o MTST. As cozinhas solidárias - diferentes das comunitárias – oferecem uma experiência social inédita, revisitando a ideia das cozinhas coletivas das próprias ocupações urbanas para que se promova, no cenário de agora, um elo entre a produção dos alimentos e seus produtores, o consumo e a distribuição. É um tipo de ação que ganha relevo mediante o fim do PBF e a desarticulação do PAA em seu papel social.
A soberania e a segurança alimentar andam junto com práticas democráticas. Lidar com a condição de insegurança alimentar, caracterizada por sua dimensão da fome, é também um compromisso histórico com a democracia. Ambas são tarefas urgentes. Há 33 milhões de nós impacientes e com fome.
*Texto publicado originalmente no site Brasil de Fato.
Nas entrelinhas: O establishment se mexe em defesa das urnas
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
O encontro do presidente Jair Bolsonaro com diplomatas estrangeiros para falar mal do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e levantar suspeitas de que haveria fraudes nas urnas eletrônicas virou uma espécie de “efeito borboleta”, uma variante da Teoria do Caos, que consiste em grandes acontecimentos provocados inicialmente por pequenas alterações. O conceito passou a ser usado quando certas escolhas provocam desastres, principalmente depois do filme Efeito Borboleta, lançado em 2004, pela dupla Eric Bress e J. Mackye Gruber.
Evan Treborn (Ashton Kutcher), um jovem de 20 e poucos anos, em luta contra as memórias traumáticas de sua infância, descobre uma técnica que pode levá-lo de volta ao passado e passa a alterar diversos acontecimentos, com objetivo de mudar para sempre o seu futuro. Porém, o “efeito borboleta” trará consequências inesperadas para sua vida e daqueles que estão ao seu redor. Na tentativa de ficar com a namorada, Kayleigh, cria realidades alternativas que não terminam como gostaria. Entretanto, o que nos interessa não é um “spoiler”, mas o fenômeno ligado à Teoria do Caos.
Em 1952, o escritor de ficção científica norte-americano Ray Bradbury publicou o conto O som do trovão, no qual um personagem pisa em uma borboleta, provocando graves consequências, inclusive a chegada de um líder fascista ao poder. Em 1961, o que era ficção virou realidade científica. O meteorologista norte-americano Edward Lorenz desenvolveu um modelo matemático para a previsão do tempo, processando dados como temperatura, umidade, pressão e direção do vento no seu computador. Depois de observar os resultados, repetiu a operação. Inesperadamente, a segunda previsão foi completamente diferente da primeira.
Quanto mais o modelo avançava no tempo, as diferenças entre os dois resultados se tornavam maiores. O computador de Lorenz havia arredondado os dados de algumas casas decimais. Para Lorenz, isso equivalia a dizer que o vento provocado pelo bater de asas de uma borboleta no Brasil poderia ocasionar um tornado no Texas, nos Estados Unidos. Assim nasceu a Teoria do Caos, com seu “efeito borboleta”. É mais ou menos o que conseguiu o presidente Jair Bolsonaro com o seu inusitado e espantoso ataque às urnas eletrônicas na reunião de presentantes de quase 70 países, que provocou a forte reação da sociedade civil.
Manifestos
O establishment jurídico e empresarial resolveu dar um basta aos ataques de Bolsonaro à democracia. Suprapartidariamente, saiu em defesa do Supremo Tribunal Federal (STF). A iniciativa partiu de ex-ministros da Corte, professores e estudantes da tradicional Faculdade de Direito do Largo do São Francisco (USP), com uma declaração que começou com três mil assinaturas e já soma mais de 300 mil signatários. Outro manifesto, organizado pela poderosa Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), mobilizou o grande empresariado nacional, inclusive a Febraban. Recebeu apoio da Central Única dos Trabalhadores (CUT), da Força Sindical e de outras centrais sindicais. Os principais banqueiros do país assinaram os dois manifestos, como pessoa física.
Enquanto o establishment se mexia, o governo divulgava dados positivos sobre a economia, entre os quais a redução do preço da gasolina, a geração de emprego e a distribuição do Auxílio Brasil. O ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, tentava minimizar a importância dos manifestos. Segundo ele, os banqueiros assinaram os documentos porque perderam R$ 40 bilhões com o PIX. O lucro dos bancos não condiz com essa tese. A adesão também é resultado da PEC das Eleições, que agrediu a institucionalidade da economia e a segurança jurídica.
Protagonista do rolo compressor governista montado no Congresso, com recursos das emendas secretas ao Orçamento da União (somam R$ 16,5 bilhões), o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), foi ao Twitter como se nada houvesse: “Má notícia para os pessimistas de plantão! Estamos na contramão do mundo, mas isso é bom! Inflação em baixa, PIB em alta”. Levou um banho de água fria com a divulgação do DataFolha de ontem. O pacote de bondades do governo ainda não mudou os humores dos eleitores. Na pesquisa estimulada, Lula (PT) tem 47% e Bolsonaro (PL), 29%; Ciro (PDT), 8%; Simone (MDB), 2%; Janones (Avante), Marçal (Pros)n e Vera Lúcia (PSTU) têm 1%. Branco/nulo/nenhum: 6%. Não sabe: 3% (4% na pesquisa anterior). Os demais candidatos não pontuaram. Lula venceria no primeiro turno.
Nas entrelinhas: Simone Tebet completa a fila de largada da campanha
Luiz Carlos Azedo | Nas entrelinhas | Correio Braziliense
A confirmação da candidatura de Simone Tebet, ontem, pela convenção nacional do MDB e da coligação que a apoia, integrada pela federação PSDB-Cidadania, completou a fila de largada das eleições deste ano. O cenário mantém como tendência principal a polarização entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), com 44% das intenções de voto, e o presidente Jair Bolsonaro (PL), com 35%, segundo a pesquisa XP/Ipespe divulgada na segunda-feira. O que pode alterar esse quadro, ou consolidá-lo, será a propaganda eleitoral de rádio e tevê, que começa em 16 de agosto.
O ex-ministro Ciro Gomes (PDT), com 9%, a senadora Simone Tebet (MDB), com 4%, e André Janones (Avante), com 2%, são os candidatos mais bem posicionados para construir uma terceira via, alternativa muito difícil. Nenhum dos três, até agora, definiu o vice. Simone contava com o apoio do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), mas o tucano histórico, mais uma vez, movimenta-se em função da política do Ceará. A senadora Eliziane Gama (Cidadania-AM) pleiteia a vaga. Pablo Marçal (Pros) e Luiz Felipe d’Avila (Novo) têm 1%. Vera Lúcia (PSTU), Sofia Manzano (PCB), Luciano Bivar (União Brasil), Eymael (DC) e Leonardo Péricles (UP) completam a fila de largada, com menos de 1% cada.
Votos nulos ou que não votariam em nenhum dos candidatos somam 4%. Não sabem/não responderam representam apenas 2% dos entrevistados, o que indica um cenário de grande participação eleitoral. Ontem, o Datafolha divulgou uma pesquisa entre jovens eleitores, que confirmou o que já se previa: o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem a preferência no eleitorado adolescente e jovem nas 12 maiores capitais do país, com 51%. Jair Bolsonaro (PL) tem 20%. Depois, vem Ciro, com 12%. São jovens de São Paulo, Rio, Belo Horizonte, Salvador, Fortaleza, Recife, Porto Alegre, Curitiba, Goiânia, Brasília, Manaus e Belém. A margem de erro é de três pontos para mais ou para menos. A pesquisa eleitoral completa do DataFolha sobre as eleições presidenciais deve ser divulgada hoje.
Nenhuma grande alteração no quadro deve ocorrer até o horário eleitoral, pois a prioridade dos candidatos agora é a articulação dos palanques regionais, resolvendo conflitos e recolhendo náufragos das alianças. Como o registro das candidaturas deve ocorrer até 5 de agosto, muita água vai rolar ainda nos estados, e os candidatos terão de conciliar as articulações de campanha com a própria movimentação eleitoral. Lula passa a ter a segurança sob responsabilidade da Polícia Federal. Como ex-presidente, já tinha esse direito, mas, agora, o esquema será reforçado em razão dos riscos de atentado.
Regras do jogo
Bolsonaro passa à desvantagem de ter que se comportar de acordo com as regras eleitorais, ou seja, será tratado como os demais candidatos, estando sujeito a punições toda vez que sair das regras do jogo. Como está em guerra com o Supremo Tribunal Federal (STF), pode ser que queira esticar a corda, para passar por vítima e ilustrar a narrativa de que não existe imparcialidade da Corte. Entretanto, essa postura aumenta seu risco eleitoral, porque a opinião pública confia na Justiça Eleitoral, e isso gera grandes desgastes políticos.
Por exemplo, o manifesto em defesa do Estado de direito organizado por juristas e estudantes da tradicional Faculdade de Direito do Largo do São Francisco (USP), berço da elite política e jurídica paulista, com apoio de empresários, intelectuais e artistas, subscrito por três mil personalidades, em 24 horas obteve a adesão de mais de 100 mil representantes da sociedade civil. Entre os signatários estão os ex-ministros do STF Carlos Ayres Britto, Carlos Velloso, Celso de Mello, Cezar Peluso, Ellen Gracie, Eros Grau, Marco Aurélio Mello, Sepúlveda Pertence, Sydney Sanches, além de artistas, intelectuais, executivos, empresários e até banqueiros. É o tipo de fato político que pode impactar negativamente a candidatura de Bolsonaro em que ela é mais forte: os eleitores com renda acima de 10 salários mínimos.
No rastro do encontro com diplomatas no qual levantou suspeitas sobre a urna eletrônica e atacou a Justiça Eleitoral, Bolsonaro vive, também, a rebordosa da reação negativa da comunidade internacional. A mais importante foi o pronunciamento do secretário de Defesa dos Estados Unidos, Lloyd Austin, na terça-feira, durante a 15ª Conferência de Ministros da Defesa das Américas, em Brasília: “Os nossos países não estão ligados apenas pela geografia. Também somos atraídos pelos interesses e valores em comum, pelo nosso profundo respeito pelos direitos humanos e pela dignidade humana, pelo nosso compromisso com o Estado de direito e por nossa devoção à democracia”, disse.
Editorial revista online | Incerteza e risco na campanha eleitoral
No dia 5 de agosto próximo, partidos e candidatos sairão às ruas, na largada de suas campanhas. A partir dessa data, até a realização do primeiro turno das eleições, assistiremos todos à campanha eleitoral com maior grau de incerteza e risco dentre todas as realizadas na vigência da Constituição de 1988.
O presidente da República, candidato à reeleição, reincide seguidamente em três modalidades de pronunciamentos, todas com efeito desestabilizador sobre o curso do processo eleitoral. Em primeiro lugar, lança dúvida sobre a eficácia das urnas eletrônicas, tentando fazer prosperar, na opinião pública, a hipótese de fraude em caso de derrota. A reiteração desse argumento em contextos diversos mostra, de forma clara, a intenção de contestar o eventual resultado desfavorável e prolongar, no fim das contas, sua permanência no poder, a despeito da derrota. Uma mensagem inequivocamente golpista.
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Em segundo lugar, promove, simultaneamente, a desqualificação moral dos adversários, sempre com base em notícias falsas, fabricadas e disseminadas com o propósito de aumentar a animosidade, até mesmo a aversão, aos candidatos das forças que integram o campo democrático hoje no país.
Finalmente, prossegue na propaganda e estímulo permanente ao livre acesso e porte de armas de fogo a todo cidadão. Cumpre assinalar que esse esforço discursivo foi acompanhado por medidas efetivas de liberalização que resultaram na multiplicação do número de armas de fogo em circulação, de 2018 para cá.
Os três argumentos apontam para o mesmo alvo: a constituição de uma massa de eleitores armados, radicalizados, prontos para disparar contra adversários, em caso de frustração de seus objetivos eleitorais. Aumenta a voltagem da violência política e, mesmo antes do início da campanha, houve episódios que resultaram em agressão armada e óbito.
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O grande indicador dos resultados da estratégia do candidato governista será, aparentemente, a mobilização popular convocada em seu favor para o dia 7 de setembro. A estratégia parece repetir, em escala ampliada, as manifestações de 2021. Em caso de sucesso, o saldo seria a desmoralização das instituições e a criação de uma reserva de aparente apoio popular a movimentos futuros de recusa do resultado eleitoral.
As tarefas da oposição, por sua vez, estão desenhadas com clareza. Articular de imediato uma rede em defesa da democracia, que reúna partidos e candidatos, governadores e prefeitos, legisladores nacionais, estaduais e municipais, Judiciário e sociedade civil, em defesa da ordem no dia do bicentenário da Independência e da democracia ao longo de todo o processo eleitoral, até a posse dos eleitos.
Outra tarefa é promover o diálogo urgente entre os candidatos do campo democrático para construir o consenso necessário em torno da defesa da democracia, do repúdio conjunto aos ataques autoritários e definição das regras mínimas de convivência democrática e civilizada que devem governar a competição eleitoral no interior desse campo.
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