Fernando Gabeira: O bode na sala

Os pobres continuarão presos. O STF não se lembra deles, exceto em episódicas campanhas de mutirão

Prometi a mim mesmo que não faria, esta semana, mais um artigo defendendo prisão em segunda instância. Não são nossos argumentos que pesam.

Os ministros do STF já estão decididos. Tudo o que podem fazer é ampliar o prazo do anúncio da decisão. Usar de novo a tática do bode na sala. Anunciam ou indicam uma decisão arrasadora para uma semana e guardam sete dias mais para apresentar algumas atenuantes. Esperam com isso reduzir o desgaste de sua imagem, que não é pequeno.

Durante muito tempo, acalentaram essa decisão. Esperaram cuidadosamente o momento ideal. Ganharam a simpatia agradecida de Bolsonaro pelo gesto de proteção ao filho, encalacrado no Rio. Foi um gesto tão amplo que paralisou, por tabela, um grande número de investigações baseadas em operações financeiras.

Observaram o desgaste de Moro. De vez em quando, deram um empurrão com frases indiretas ou mesmo o discurso desqualificador de Gilmar Mendes. O otimismo que alguns tiveram com as eleições não se justificou. Nem governo nem Congresso decidiram enfrentar a corrupção de frente.

Está tudo começando, diziam alguns. Estão sendo sabotados, acreditavam outros. A qualquer momento as coisas podem mudar, concluíam.

Não mudam fácil no Brasil. Um dos dramas que nos perseguem é este: ser governado por ladrões ou ditadores. Nos momentos históricos piores, as duas características se concentram num só governo.

Mas existem alguns fatores que podem libertar dessa inevitabilidade. Um deles é a inter-relação cada vez mais estreita do Brasil com o mundo.

A volta da tolerância com a rapina pode nos trazer inúmeras dificuldades. Entrar na OCDE, por exemplo, vai para o espaço. Atrair investidores sérios também será problemático, pois, certamente, o esquema de propinas vai ser restabelecido.

Os juízes dizem que não. A esquerda limita-se a afirmar que isso não tem importância: a corrupção é uma nota de pé de página na brilhante história que pretende escrever.

Um outro fator é o nível de informação da sociedade, num período de revolução tecnológica. Nunca se falou tanto de política e, com todas as distorções, as pessoas hoje têm mais consciência do que se passa, conhecem mais a realidade.

Um dos argumentos que usam contra a decisão dos ministros não me emociona: o de que milhares de presos serão libertados.

Desde quando o país mudaria com uma simples decisão de 11 ministros? As prisões estão abarrotadas, e muitas pessoas nem foram julgadas, quanto mais em segunda instância.

O fim da prisão em segunda instância tem um alvo inequívoco: os políticos envolvidos na Lava-Jato e outras operações. Os pobres continuarão presos. O Supremo não se lembra deles, exceto em episódicas campanhas de mutirão. O que os interessa mesmo é julgar e absolver os iguais.

Viveremos, segundo eles, num estado de direito perfeito. Os advogados vão celebrar, os partidos vão celebrar, mas todos sabemos que esse estado de direito concebido por eles apenas autoriza o saque aos recursos nacionais, sem nenhum perigo de cadeia.

Há duas perspectivas para os grandes ladrões: empurrar o processo até a prescrição ou levar para o túmulo o risco de ser preso. As consequências de decisões como essa trazem um profundo descrédito na democracia. E aí reside o perigo maior. Esgotadas as formas legais de combate, sobretudo as desenvolvidas pela Lava-Jato, a memória de muitos se volta para os militares.

Os próprios militares, indiretamente, dão sinais de descontentamento com a volta da impunidade. Mas eles também se comprometeram com o governo Bolsonaro. E sem examinar algumas evidências. Bolsonaro não combateu a corrupção de frente no seu período de deputado. Ele era do PP, apoiou o Severino Cavalcanti.

Mesmo se Bolsonaro fosse de fato decidido nesse campo, dificilmente teria competência para enfrentar STF, Congresso, partidos, parte da burocracia estatal, grandes advogados.

Ele encontrou a coexistência pacífica com as diferentes dimensões do poder. Aliás, os militares sempre foram contra a corrupção de esquerda. Na hora H, abraçavam os seus aliados, como foi o caso de Maluf na eleição indireta para a Presidência da República.

O buraco é mais embaixo. Nenhuma força política isolada conseguirá desatar o nó da impunidade. É tarefa de longo alcance.


Fernando Gabeira: Choro sobre o óleo derramado

Inútil culpar a esquerda, que levou anos para ver o verde e deve levar séculos para ver o azul

Há três semanas ando pelas praias do Nordeste e não consigo chegar a uma conclusão sobre esse desastre. Foi relativamente fácil seguir os efeitos da mancha, no sentido norte-sul, observar seus efeitos na areia e nos seres marinhos. No entanto, é muito complicado seguir a mancha para trás, em busca de suas origens. Satélites americanos foram usados para isso e não encontraram rastros. Parece que a mancha engana satélites.

Baseado em fotos postas à disposição pelos europeus, pesquisadores da Universidade da Bahia chegaram a ver o que poderia ser uma nova mancha de 22 quilômetros quadrados a caminho da costa baiana. Essa possibilidade foi desmentida. O Ibama sobrevoou a região e não a viu. Chegou a supor que os pesquisadores se tivessem enganado, pois havia nuvens dificultando a visibilidade. A técnica usada para calcular a mancha baseia-se na rugosidade da água. A região apontada como problemática era lisa, chata. A suposição era de que o óleo dominasse a superfície.

Os americanos, ao afirmarem não ter conseguido rastrear a mancha, confirmam indiretamente a ideia de que o óleo, mais pesado, afunda e navega numa camada inferior.

Minha experiência induz a uma comparação com o desastre na Galícia, que cobri em 2003. Um petroleiro chamado Prestige derramou 770 mil toneladas de óleo na costa da Espanha. A Galícia, região cruzada por petroleiros mal equipados e semiclandestinos, já conhecera outros vazamentos.

Pode ser que isso esteja acontecendo com navios que saem da Venezuela, de onde veio o petróleo vazado. Pressionados pelas sanções americanas, fazem de tudo para escoar a produção, que, de modo geral, vai para a Índia e a China.

Barris de rejeitos foram encontrados nas praias com inscrições da Shell. Pesquisadores dizem que rejeitos e óleo derramado na praia são a mesma substância. A Marinha discorda. A Shell também desmente.

Tudo isso se passa com relativo desinteresse nacional. Deputados e senadores foram ao Vaticano e deram as costas para as praias manchadas. O próprio Bolsonaro acusou esquerda, ONU e ONGs de ocultarem o desastre por a origem do óleo ser a Venezuela.

Além de denunciar a esquerda, Bolsonaro pouco fez. Em Sergipe foi preciso uma determinação judicial para que protegessem a foz dos Rios São Francisco, Sergipe, Vaza Barris e Real, entre outros.

Embora possa haver um componente político no relativo desinteresse, vejo outras razões para ele. Há muita atenção para certos biomas, como a Amazônia, pois são vistos como decisivos para as mudanças climáticas. Ignoram-se em grande escala o papel dos oceanos e a importância das correntes marinhas no aquecimento do planeta. Num encontro internacional realizado na Inglaterra, alguns cientistas chegaram a dizer que as correntes marinhas e sua dinâmica é que iam determinar a irreversibilidade do aquecimento global.

Uma semana antes do desastre comecei a ler o livro de Rachel Carson sobre o litoral. Além de excelente escritora, Rachel Carson dedicou-se à zoologia marinha. A riqueza biológica do litoral é descrita por ela com detalhes, desde caranguejos do tamanho da unha do polegar a seres maiores, passando por medusas, nereidas, uma paisagem visual e verbalmente encantadora. Na medida em que conseguirmos transmitir a riqueza da vida oceânica, talvez o interesse aumente.

Na Galícia, em 2003, vi muitos voluntários limpando as praias. Neste desastre no Nordeste também houve movimento, crianças em Alagoas, artistas na Bahia, todos empenhados em tirar a sujeira da praia. Discussão política, requerimentos, comissões, enfim, todo o zum-zum em torno de um desastre tem o seu papel. Usar uma pá e sujar os pés é mais eficaz.

Assim como na Galícia, estamos diante de um problema internacional. Como controlar os navios bandalhas que enganam a fiscalização e descumprem normas de segurança?

Se o desastre foi mesmo provocado por um petroleiro, o que me parece mais lógico, o Brasil teria de acionar mecanismos internacionais de controle. Não fazer nada implica esperar um novo desastre, que fatalmente virá.

Ainda não sabemos o impacto real do óleo derramado. Temos as praias como alvo porque sua limpeza é essencial para o turismo. Mas há os manguezais e o consumo de crustáceos e moluscos tem um grande papel na dieta da população litorânea. Aí se joga também um jogo mais difícil: limpar os mangues demanda técnica e roupa especial. Ainda assim, é difícil.

Fico pensando num peixe-boi que é acompanhado pela Fundação de Mamíferos Aquáticos. Chama-se Astro e nada agora entre a Praia do Coqueiro e Mangue Seco, na Bahia. Astro é tão tranquilo quanto à presença humana que foi atropelado por barcos 13 vezes. Depois de escapar com vida dessas trombadas, enfrenta um novo momento. O equipamento que o monitora está coberto de óleo. Ele parece que segue bem.

Mas, sem dúvida, a vida no mar, que é o berço da própria vida, tornou-se uma aventura perigosa. O transporte clandestino de combustível é um tema que merece cuidado especial. Tende a produzir desastres.

Inúmeras vezes, entre Boa Vista e Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, parei para documentar os destroços de carros incendiados. Em geral eram de pequenos contrabandistas fugindo da polícia.

Não adianta apenas criticar a esquerda e as ONGs que cuidam mais dos biomas que estão na moda. Ou culpar a esquerda, que levou anos para descobrir o verde e possivelmente levará séculos para ver o azul.

O transporte marítimo de petróleo depende de um controle internacional das embarcações. O Brasil foi vítima. Precisa fazer algo, caso contrário as possibilidades de novo desastre aumentam. O oceano que deixaremos para as novas gerações nunca mais será o que encontramos. Mesmo assim, é preciso resistir.

 


Fernando Gabeira: Todos os poderes do Supremo

A política caiu nas mãos da Justiça. O STF decide pelos parlamentares

Embora não conheça os bastidores e meu trabalho costume ser distante de Brasília, às vezes sou tentado a dar explicações simples sobre esse complexo movimento do Supremo. Toffoli num certo momento, atendendo Flávio Bolsonaro, proibiu o Coaf de passar informações financeiras aos órgãos de investigação. Em seguida, Alexandre de Moraes suspendeu uma investigação do Coaf, na esteira da decisão de Toffoli. Finalmente, Gilmar confirmou a suspensão do processo de Flávio e Queiroz.

A decisão de Toffoli é problemática em si, pois traz prejuízos à luta contra a corrupção e se choca com compromissos internacionais do País. De sua parte, Bolsonaro escanteou o Coaf e o transformou num órgão de inteligência financeira no Banco Central.

Tudo começou com o dinheiro de Fabrício Queiroz e Flávio Bolsonaro. O mínimo que se pode dizer e que é difícil de explicar, senão não haveria tanto empenho em bloquear as investigações. Mas o Coaf numa outra dimensão estava também examinando as contas bancárias da mulher de Toffoli e da de Gilmar. Pobre Coaf: uniu o presidente e dois Poderes contra ele. Sem contar Senado e Câmara, cujos líderes não morrem de amores por quem segue o curso do dinheiro.

Para agravar o problema, surgiu um grupo corrupto na Receita Federal, precisamente em contato com a Lava Jato do Rio de Janeiro. Foi desmantelado nesta semana. Tudo indica que acessou ilegalmente os dados da mulher de Gilmar.

Quando Toffoli proibiu usar dados do Coaf, ainda não se sabia desses crimes dos fiscais, levantados pela própria Lava Jato. E sua decisão repercute em centenas de casos policiais no Brasil, paralisa investigações. A suspeita de corrupção na Polícia Federal, por exemplo, não poderia suspender todas as suas atividades no combate ao crime.

Toffoli criou uma delegacia própria dentro do STF. Alexandre de Moraes funciona como o delegado. Censurou a revista Crusoé, determinou buscas e apreensões na casa das pessoas.

Eles têm um canto próprio de poder e os outros ministros parecem conformar-se. As lamentáveis declarações de Janot serviram para fortalecer esse núcleo e, simultaneamente, revelar seu viés autoritário.

Considero razoável que, depois do que disse, fosse apreendida a arma de Rodrigo Janot. Para evitar recaídas. No entanto, é completamente inexplicável apreender celulares, computadores e tablets na casa do ex-procurador. Não esclarece nada sobre o caso, todavia abre um leque de informações valiosas no jogo do poder.

Da mesma forma, é exagerado proibir que Janot se aproxime de qualquer ministro do Supremo. Não há nenhum indício de que represente perigo para os dez restantes. É supor que Janot encontrasse um ministro e dissesse: não tem o Gilmar, vai você mesmo.

São passos de uma dança velha como a política. A pretexto de combater os métodos autoritários, enveredam pelo caminho que querem combater.

Numa decisão do plenário, o Supremo deu a entender que poderia suspender muitas condenações da Lava Jato. Minha presunção é de ter sido apenas um bode na sala: restringir a anulação da sentença aos casos de quem recorreu.

Apenas uma presunção. O Supremo sabe que não há uma oposição pequena no Congresso e Jair Bolsonaro foi neutralizado pelo flanco aberto no caso de Flávio e Queiroz. A única modulação possível nasce na sociedade, embora algumas manifestações que pedem o fechamento do STF acabem por fortalecê-lo, tal como é. É uma situação complicada e no fundo está em jogo não a extinção da Lava Jato, mas o limite do freio de arrumação.

Se as coisas marcham nesse ritmo, o limite será dado com o fim da prisão em segunda instância. Suponho que esse seja o marco que pretendem atingir.

Não considero surpreendente que Lula tenha desprezado a progressão de sua pena e se recusado a deixar a prisão. Empregou toda a sua energia na tese de que é inocente e nega o processo de corrupção. Por que, agora, sair da cadeia e enfraquecer a própria narrativa? Sobretudo porque no horizonte está a decisão do Supremo sobre a prisão em segunda instância, ou mesmo a suspeição de Sergio Moro. Ele se mostra mais experiente que seus conselheiros.

Num mundo em que as narrativas atropelam as evidências, elas são a matéria-prima do processo eleitoral. Narrativas contra narrativas, as do populismo de direita ou de esquerda continuam sendo as que mais polarizam. Esse confronto é previsível e existe em outros países. O que há de singular é ver como a política caiu nas mãos da Justiça. De um lado, pela incapacidade de resolver no espaço próprio grandes temas nacionais. O Supremo decide pelos parlamentares. Além disso, tanto esquerda como direita têm seus problemas criminais e precisam sempre da boa vontade dos ministros.

Não creio que Toffoli, Gilmar e Moraes queiram o poder apenas para si. Duvido que contestassem o surgimento de outro núcleo, com objetivos próprios e, quem sabe, sua própria delegacia informal. Poderes monocráticos ou mesmo grupais na alta Corte são apenas um reflexo do vazio em torno dela.

O que é possível hoje, e nesse sentido a democracia está de pé, é protestar, mesmo sabendo que são eles que decidem se ouvem ou não. Como disse acima, é uma democracia. Mas não do tipo que você está satisfeito com seu funcionamento.

O processo de redemocratização foi tocado com consensos bastante amplos, como o da luta pelas eleições diretas. Os próprios atores o levaram para um impasse. Vieram a Lava Jato, as delações do fim do mundo.

As eleições eram um caminho para recomeçar. Mas a renovação foi insuficiente no Congresso. E Bolsonaro é um museu de novidades.

O próprio calendário eleitoral pode reanimar a energia renovadora, voltada para as cidades e seus problemas. Ainda assim, o quadro nacional continua inquietante.

É algo que pode ser também retomado com novas batalhas eleitorais. Mas não suprime a questão: o que fazer até lá, como se mover nesse labirinto?

 


Fernando Gabeira: A saga dos talibãs tropicais

Se os gays desaparecessem do mundo, Crivella ficaria amuado, sem um tema

Liberdade de expressão e democracia ocuparam grande parte da agenda da semana. Volto a elas porque, nesses casos, o tema nunca é antigo. E volto também porque talvez minha experiência possa acrescentar algo. Refiro-me à decisão de Crivella de censurar o beijo gay num dos livros da Bienal.

Eu o conheço um pouco. Em 2008, quando começava a campanha eleitoral, éramos candidatos. Ele me criticou por apoiar a relação de homem com homem. Respondi apenas que isso não era o mais interessante para mim naquele momento. Vivíamos uma epidemia de dengue, como hoje vivemos, e o que me interessava era a relação do homem com o mosquito.

Crivella está de novo no limiar de uma campanha eleitoral. É hora de tirar o tema do homossexualismo da cartola e tentar agrupar sua tropa de fiéis eleitores. Nada mais que isso. Agora não é apenas candidato. É o prefeito do Rio. Não é ingênuo a ponto de ignorar que sua ação vai promover a venda do livro alvo de sua cruzada.

Para ele, isso não tem muito importância. Não quer verdadeiramente combater o homossexualismo, mas agrupar alguns votos. Se os gays desaparecessem do mundo, ele ficaria amuado no seu canto, sem um tema para aquecer a campanha.

Foi muito animador ver a reação dos artistas e a pronta resposta do STF. Definiu-se um limite que dificilmente será transposto no Brasil, sem destruir também as bases da democracia.

No passado foi diferente. A batalha contra a censura do filme “Je vous salue, Marie”, de Jean-Luc Goddard, foi mais difícil porque aconteceu no auge de um plano econômico.

Sarney não tinha razão para temer. O filme, que exibi como um ato de desobediência em inúmeros lugares, se fosse às salas de cinema não iria durar mais do que dois dias, por falta de público.

Aqui na atmosfera da fronteira norte, diante da reação nacional a Crivella, sou mais otimista em considerar improvável uma teocracia puritana, do tipo do Irã, no país.

Na esteira do Crivella veio o post de Carlos Bolsonaro dizendo que a democracia era um instrumento limitado para mudar o país. De fato, seria possível concordar com ele, pois num contexto revolucionário, sem as formalidades legais, os governos podem andar mais rapidamente.

Mas cada vez que se enuncia uma tese desse gênero, é fundamental lembrar que a democracia é lenta, diria até sinuosa, mas a alternativa a ela tem um preço: a perda da liberdade.

Quanto à eficácia das mudanças revolucionárias, também sou cético. O socialismo, segundo alguns teóricos, fracassou simplesmente porque, ao liquidar o mercado, perdeu a chance de ter uma real política de preços. Todas as ditaduras, inclusive as de direita, mergulham em zonas nebulosas, perdem a noção do país real.

Os filhos de Bolsonaro são filhos do presidente, que, por sua vez, diz muitas frases inadequadas. Um deles, Eduardo, falou no fechamento do STF com um cabo e um soldado. O mais velho, Flávio, está mudando o curso da política brasileira por suas possíveis ligações com as milícias. O Coaf já mudou, Bolsonaro escolheu um procurador-geral sob medida e procura detonar a PF.

Tanto as ações de Crivella como as frases da família Bolsonaro podem ser um balão de ensaio para testar a resistência democrática da sociedade. Nunca é demais voltar ao assunto, lembrar-se dele na próxima Bienal, onde quer que escritores e artistas se reúnam. É essencial também que os políticos se manifestem quando a democracia parece estar em jogo.

Quando os artistas se expressam por alguma questão social, ou mesmo pela sobrevivência da Floresta Amazônica, sofrem muitas críticas por estarem tratando de “algo que não lhes diz respeito”. No caso da liberdade de expressão, o tema é direto, sua própria sobrevivência está em jogo. Eles devem gritar mais ainda do que gritaram e, sinceramente, deveriam se preparar para isso.

Os Bolsonaros testam a sociedade. Não basta responder apenas a cada frase. É necessário que se comece a trabalhar uma frente, imune à instrumentalização da esquerda, mas que tenha muito claro os limites que não podem ser transpostos sem que a democracia entre em colapso. A liberdade de expressão é um desses marcos. O outro é escolher livremente nossos governantes e poder descartá-los de quatro em quatro anos. Os dois marcos se entrelaçam. A família Bolsonaro é livre para dizer absurdos; defensores de um Brasil tolerante e democrático, livres para empurrá-los ao ostracismo ou à dimensão real da extrema direita.


Fernando Gabeira: Máscaras que caem

Quando eleitores se derem conta de que a luta de Bolsonaro contra a corrupção era da boca pra fora, seu prestígio vai desabar mais

Há duas semanas, escrevi um artigo sobre o desmonte da Lava-Jato. A tese era esta: os três Poderes investiam contra ela: STF, Congresso e Bolsonaro. Isso sem contar o desgaste produzido pelo vazamento no site The Intercept.

O ataque mais vigoroso partiu do presidente do Supremo, Dias Toffoli. Ele proibiu o Coaf de compartilhar dados com os órgãos de investigação, exceto em casos em que a Justiça autorize. Recebeu o apoio de Bolsonaro, porque sua decisão foi tomada precisamente para atender a um recurso de Flávio Bolsonaro, investigado a partir da movimentação atípica de seu funcionário Fabrício Queiroz. O Supremo voltaria a atacar, anulando a condenação do ex-presidente do BB e da Petrobras Aldemir Bendine.

Na trincheira do Congresso, foi votada a lei de abuso de autoridade. É uma lei que contém artigos abstratos como, por exemplo, o que pune prisões sem base legal. É um problema de interpretação. Se faltar base legal a uma prisão, as instâncias superiores a suspendem. Por que criminalizar o juiz que considerou haver base legal?

Os 36 vetos de Bolsonaro indicam o nível de discordância da lei de abuso. Mas os vetos não atenuam seu apoio a Toffoli e as consequentes mudanças que realizou no Coaf.

O problema central são investigações sobre dinheiro. Elas não envolveram apenas Flávio Bolsonaro, mas também as mulheres de Toffoli e Gilmar Mendes. O título do meu artigo era “Desmonte em família”.

Reconheço agora que faltou um elo nessa corrente que, talvez, não queira acabar com a Lava-Jato, por causa da repercussão negativa, mas apenas neutralizá-la, impedir que chegue a alguns recantos do poder. Esse elo é a própria Procuradoria. Parece que Raquel Dodge se sentou em cima de alguns processos, e a renúncia coletiva dos procuradores é uma veemente denúncia dessa cumplicidade dela com o esquema de desmonte.

O conflito entre ela e procuradores surgiu na delação do empreiteiro Léo Pinheiro, da OAS. Ela retirou as partes que atingiam o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o irmão de Toffoli, ex-prefeito de Marília, São Paulo.

De novo, a família de Toffoli na parada. Ao suspender as investigações com base no Coaf, ele protegeu Flávio Bolsonaro, a mulher de Gilmar e a dele próprio. Agora é seu irmão que entra na cena do desmonte.

Dizem alguns jornais que Toffoli e Maia faziam campanha para Raquel Dodge continuar no cargo. Bolsonaro não aceitou essa alternativa.

Ele quis alguém em quem pudesse confiar. Mesmo que seu escolhido tenha a oposição dos procuradores, é preciso alguém que engavete processos embaraçosos e seja duro com as minorias.

Não há nenhuma surpresa na hostilidade de Bolsonaro às bandeiras que abominava desde a campanha. A novidade é ter se integrado ao esquema que quer desmontar a Lava-Jato. Seus defensores acham que colocar Bolsonaro nessa aliança para subjugar a Receita, a PF e procuradores é má-fé ou desinformação.

As evidências estão aí. Já me acostumei com ardorosos defensores de populistas se recusarem a encarar os fatos, refugiando-se numa narrativa paranoica para justificar o seu ídolo.

Bolsonaro cai nas pesquisas, muito pelas frases que diz, por não se conformar, às vezes, em apenas ter uma opinião sobre um tema: quer também desenterrar mortos para brigar com eles.

Quando os eleitores se derem conta de que sua luta contra a corrupção era apenas da boca pra fora, o prestígio vai desabar mais ainda. Talvez isso se torne nítido quando perceberem que investe contra Moro, que por sua vez se finge de morto. Moro é popular, conquistou admiração externa, quer eficácia no combate ao crime.

Quando ondas de desencanto batem sobre os grandes esquemas políticos, todos podem ser atingidos. Boas ou más intenções, planos de carreira, avanço no combate ao crime são variáveis que talvez não compensem o desgaste.

Na verdade, em termos internacionais o desgaste é mais acelerado ainda. Uma das últimas de Bolsonaro foi defender Augusto Pinochet, considerado um violento ditador por grande parte do mundo. Basta ler a imprensa chilena para ver como foi sentida a acusação de Bolsonaro contra o pai da alta comissária de Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet.

A repercussão das falas de Bolsonaro, desde aquele fatídico post sobre o golden shower, traz uma avalanche de comentários negativos. Às vezes, num deles aparece esta frase: deve ser difícil para os brasileiros. Tem sido. A frase pressupõe também que muitos discordam, e, felizmente, as pesquisas comprovam isso.


Fernando Gabeira: Isso passa

Trump e Bolsonaro são fenômenos novos, mas suas sociedades podem torná-los passageiros

As pesquisas sobre a atuação do presidente Jair Bolsonaro mostram claramente que o nível de expectativa em torno de um presidente é mais alto do que se supõe.

Bolsonaro não acredita em pesquisas. Ele acha que sabe o caminho, não se importa muito com o que acontece na realidade. Navega com otimismo sobre a economia com base, sobretudo, na reforma da Previdência. Ignora, talvez, que seus frutos demoram. E que o momento é muito delicado.

Lendo a história da renúncia de James Mattis, secretário da Defesa de Donald Trump, sinto que é possível estabelecer um paralelo com a figura de Bolsonaro. Mattis é um general da Marinha, o mais respeitado dos Estados Unidos. Discordava de Trump e de sua política de afastamento de alianças tradicionais.

Trump disse que Mattis estava parecendo democrata e que entendia da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) mais do que seu secretário da Defesa. Acontece que Mattis já foi o chefe supremo das forças da Otan.

Mattis teria dito a amigos que Trump tem dificuldades cognitivas. Mas talvez uma causa dessa dificuldade seja exatamente supor que saiba o que não estudou, não ouviu.

Para Mattis, o modelo é George Washington, para quem era necessário ouvir, aprender, ajudar e, depois, liderar. Na verdade, esse modelo de certa forma prevalece até a ascensão de líderes populistas. Hoje está em frangalhos, tanto aqui como nos EUA.

Bolsonaro anunciou que pretende anistiar os autores dos massacres do Carandiru e de Carajás. Vai se chocar com a lei. É um ato simbólico, pois há poucos presos.

No entanto, isso vai afundar mais a imagem do Brasil no exterior. Não porque as pessoas sejam defensoras ardorosas de direitos humanos, ou mesmo de esquerda ou de direita. É porque um marco civilizatório é rompido, entramos na fronteira da barbárie.

Segurança jurídica não significa licença para matar. De que adiantam a lei e o júri, se o presidente anistia?

Bolsonaro não vai mudar. Tenho lido notas em que ministros dizem que ele é assim mesmo, uma pessoa que diz o que pensa. Alguns afirmam que a economia está deslanchando e frases ditas aqui e ali não têm importância. Ignoram o peso dessas frases na própria economia. E seguem no barco.

Mattis percebeu que era impossível manter a política de alianças dos Estados Unidos e simplesmente caiu fora. Não queria legitimar uma política que, apesar das aparências, enfraquecia o seu país.

Aqui, o governo marcha coeso para o isolamento. E escolheu, agora, a Amazônia como tema e a Igreja Católica como adversária.

O sínodo sobre a Amazônia traria como grande novidade a permissão para que padres casados atuassem na região. Mas o governo quer manter o foco em sua política ambiental, neste momento em que as chamas consomem parte da floresta.

A tese da ameaça à soberania pressupõe que a Europa não acredita no aquecimento global e viria explorar os recursos minerais da Região Amazônica. São bilhões de euros investidos numa economia de baixo carbono, dificilmente seu projeto estratégico seria liberar carbono na Amazônia. Seria execrado pelos eleitores.

Verdade é que Emmanuel Macron, presidente da França, em certo momento autorizou a exploração de ouro na Guiana Francesa, mas recuou diante da resistência local.

A formulação brasileira sobre o desenvolvimento da Amazônia prevê que seja sustentável e inclusivo. Isso poderia perfeitamente ser feito com a cooperação internacional, sem perda de soberania.

No momento, fala-se em mineração, avanço sobre as terras indígenas. E o fogo das queimadas revela também o efeito de um intenso desmatamento.

O Brasil é soberano para adotar uma política de devastação da Amazônia. Mas haverá consequências, internas e externas. Não me parece razoável que os defensores de outro modelo sejam considerados adversários da soberania nacional.

Vamos enfrentar a realidade. Não se questiona a soberania, mas precisamente o que o governo está fazendo dela, como a exerce na prática. Trata-se de um processo difícil, porque a tese da soberania desconfia de pesquisadores, cientistas, e os remete para o outro lado da trincheira.

Voltamos à questão da dificuldade cognitiva na sua plenitude. É uma soberania que dispensa o conhecimento como uma das suas ferramentas. Ela se exerce na doutrina.

O mundo mudou e é impressionante como o exercício mais comum no debate amazônico é apontar interesses ocultos dos atores. A Amazônia tem mesmo sua importância para o mundo numa era em que se expandiu a preocupação ambiental – mas tudo isso fica em segundo plano. Se o Brasil levasse em conta essa realidade como um dos pontos centrais de sua posição no mundo, as coisas seriam bem melhores.

Mas não são.

O fato positivo é que as pessoas percebem, por diversas razões, que não estamos num bom caminho. Esse dado valida a tese de que é importante sempre apontar os erros sem buscar conflitos, pois é exatamente esse o estilo que favorece tanto Trump como Bolsonaro. E, enfim, acreditar na inteligência popular e no seu aprendizado, na possibilidade de as maiorias mais tolerantes retomarem as rédeas do País.

Há conservadores que dizem que a política é a arte de confortar as pessoas diante da desolação do real. O estilo de Trump e de Bolsonaro vai na direção oposta: tornar o real insuportável. São fenômenos novos, mas que as duas sociedades têm condições de tornar passageiros.

Aliás, para dizer a verdade, esta é uma frase que tenho ouvido com frequência, sobretudo entre pesquisadores e cientistas que sabem o valor do conhecimento: “Isso passa”.

E nem sempre essa frase conota resignação. Ao contrário, anima.

 


Fernando Gabeira: Cabeça fria, apesar das chamas

O caminho é mostrar a importância da floresta em pé, pelos serviços ambientais e pela riqueza da biodiversidade

Estou na Amazônia para mais uma viagem de aprendizado na região. Ela é vastíssima, e minha capacidade de aprender é lenta e sinuosa. A floresta tem cem mil espécies animais, 43 mil vegetais. As queimadas devem arder até outubro, a julgar pela experiência dos últimos anos.

Os ânimos parecem ter se acalmado. Angela Merkel deu o tom no G7 ao afirmar que é preciso fazer alguma coisa, sem dar a impressão de ser contra Bolsonaro.

Não se trata de um exercício de psicologia individual. Merkel é uma estadista, tem objetivos maiores, lida com pessoas complicadas como Trump. Percebeu talvez que Trump e Bolsonaro são frutos de uma época e que não podem ser tratados com os mesmos critérios do passado.

Bolsonaro anunciou que apresentaria uma política para a Amazônia. Mas, até o momento, afirmou apenas, em reunião com governadores, que era preciso explorar as terras indígenas.

Essa história de Bolsonaro com os índios brasileiros esbarra na Constituição. Para avançar sobre a superfície, precisa de emenda constitucional, e para avançar no subsolo indígena é necessária uma lei complementar, que Romero Jucá não conseguiu aprovar ao longo desses anos.

Algumas repercussões negativas ainda estão no horizonte: fundos suecos planejam deixar de investir no Brasil, compradores de couro, como a Timberland, querem se fechar para a nossa produção.

Importante lembrar que boicotes e sanções contra governos —pelo menos é a impressão que tenho ao longo dos anos que acompanhei — atingem as pessoas comuns e acabam fortalecendo os próprios governos visados.

As pessoas vivem grandes paixões políticas. O único caminho é mostrar a importância da floresta em pé, pelos seus serviços ambientais e pela riqueza de sua biodiversidade. Nada contra ninguém, é apenas prioritário divulgar o conhecimento científico sobre a floresta, os serviços ambientais que presta na regulação do clima, na segurança hidrológica, na captura do carbono.

No meio da semana, visitei o mercado Ver-o-Peso. É impressionante como convergem para ele os diferentes produtos amazônicos. Há 80 barracas de ervas medicinais e perfumes. Essas propriedades não são ainda comprovadas cientificamente. Mas a verdade é que a floresta e a sabedoria tradicional encontram um caminho suplementar para atenuar sofrimento e oferecer cuidados que nem o SUS pode oferecer.

O Itamaraty seguiu um novo rumo ao cobrar, no contexto do Acordo de Paris, o pagamento pela captura do carbono, já previsto. É muito melhor que pedir ajuda em horas difíceis. Não que a ajuda deva ser rejeitada. Mas, pensando bem nas dimensões do problema, 20 milhões de euros é o preço de dois apartamentos de luxo em Paris.

O importante é buscar os caminhos previstos no acordo. O governo Bolsonaro acha que o aquecimento global é uma invenção do globalismo marxista. É um pouco contraditório apoiar-se num acordo internacional de redução de emissões, considerando-a uma tarefa desnecessária.

Mas Bolsonaro decidiu continuar no Acordo de Paris. Por que não buscar também os benefícios que oferece? Um pouco de incoerência não faz mal a ninguém. Trump também não acredita no aquecimento global. Mas quer comprar a Groenlândia porque a região se tornará mais explorável com a temperatura em ascensão.

Existe hoje uma hostilidade populista às descobertas da ciência. No entanto, o caminho do conhecimento e da informação é essencial. Mesmo porque a maioria dos corações já deseja a floresta em pé. As manifestações no mundo inteiro demonstram isso. Mas revelam ainda pouca informação.

Os políticos brasileiros viajam muito para o exterior. Mas muito pouco para a Amazônia. A própria imprensa internacional é muito centrada em conflitos e pouco em universos ainda desconhecidos.

A sociedade brasileira está diante de um desafio. Certas escolhas, como já mostrou em livro Jared Diamond, podem selar o êxito ou o fracasso de um país.

A ideia básica é desenvolver a Amazônia de forma sustentável e inclusiva. O fato de não termos ainda conseguido esse objetivo não pode significar que é um erro.

Na verdade, isto está expresso em todos os planos regionais que o país destinou à Amazônia.

Bolsonaro acha que as pessoas o seguem em tudo. Não acredita nas pesquisas.


Fernando Gabeira || Crepúsculos precoces

Quem gritará ‘meia-volta, volver’ para Bolsonaro vai ser uma grande parte da Humanidade

De uma certa forma, tento falar disso há muito tempo: Bolsonaro não tinha noção das forças que enfrenta quando está em jogo o futuro da Amazônia. É algo que acontecia também com seu ministro Onyx Lorenzoni. Ele disse que não iria ver as queimadas na Amazônia porque há coisa mais importante para fazer.

Como assim? Pareciam ignorar até mesmo a repercussão internacional dessas queimadas. Grande parte do planeta preocupada com o tema; Onyx subestimava. Por muito menos, nas queimadas de Roraima, ministros se deslocaram para lá. Ver o que estava sendo feito, o que era preciso fazer.

Isso numa semana intensa, em que o crepúsculo precoce em São Paulo intrigou a população. Era resultado de queimadas, possivelmente da região de Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. Mas, de uma certa maneira, realçaram a preocupação com queimadas.

O secretário-geral da ONU se diz preocupado. Macron também se diz preocupado, embora use uma foto antiga e repita o mito da Amazônia pulmão do mundo.

Bolsonaro não inventou as queimadas. Existe uma estação anual do fogo. Mas sabotou muitas formas de combatê-la. Inicialmente, anunciou sua oposição às multas do Ibama, proibiu que fossem destruídos equipamentos clandestinos na mata, questionou os dados do Inpe, demitiu o diretor, rompeu com o Fundo Amazônia, hostilizou a Alemanha e a Noruega. Que, por sinal, financiam a prevenção às queimadas.

O nível de desmatamento sempre aumenta quando diminui a fiscalização. E todos que conhecem um pouco da Amazônia sabem da importância do fator subjetivo. Os desmatadores leem atentamente os sinais do governo. Bolsonaro sinalizou com enérgicas bandeiradas permissivas.

Caminhamos agora para uma grande turbulência. A ideia de refugiar-se no nacionalismo acaba fazendo do Brasil que deseja manter a floresta de pé uma parte da conspiração estrangeira para entregar a Amazônia.

Bolsonaro tende à aventura isolacionista. O caminho é reconhecer a importância planetária da Amazônia, conjugar esforços internacionais para preservá-la e valorizá-la pelo conhecimento.

Num programa de TV, o cientista Carlos Nobre mencionou o açaí, um caso de sucesso rendendo por hectare dez vezes mais que a pecuária. Nos Estados Unidos, o açaí virou moda e seu consumo certamente inspira pesquisas para melhorar e encarecer o produto.

Há pelo menos 400 plantas amazônicas que poderiam ser desenvolvidas, centenas com propriedades medicinais a serem pesquisadas.

Grandes equívocos ambientais são provocados pela busca da riqueza. A política amazônica do governo é um equívoco provocado pela busca da pobreza. Ameaça destruir a biodiversidade em busca de minério, ignorando que o maior valor está sendo destruído.

Se tudo se desse apenas num espaço da economia, já seria um erro. Diante dos olhos do mundo, o governo Bolsonaro se comporta como um aprendiz de feiticeiro. Inclusive com respostas patéticas. Bolsonaro divulgando vídeo de caça à baleia na Dinamarca e acusando a Noruega. Onyx afirmando que a pressão europeia se deve a interesses econômicos, sobretudo porque a esquerda no Pós-Guerra abraçou a ecologia. Macron não é de esquerda; muito menos Angela Merkel. O secretario-geral da ONU?

Desde o princípio, sabia que isso ia ser problemático para o Brasil. Bolsonaro não percebeu que, além das ONGs e dos políticos mundiais, existem milhões no planeta que consideram a Amazônia um bem da Humanidade.

Importante que saibam também que existem brasileiros contra a política de Bolsonaro. Mesmo porque depositam nas costas do brasileiro no exterior um fardo que não é dele. De alguma forma, é preciso mostrar que a visão do governo não é a visão do Brasil. Considerando as condições históricas, a política de Bolsonaro é apenas um desvario. Ela contraria até as forças que o apoiaram, como os setores do agronegócio.

No quartel, ouve-se às vezes o grito “meia-volta, volver”. De um modo geral, vem do oficial superior. Quem vai gritar “meia-volta, volver” para Bolsonaro será uma grande parte da Humanidade. Vamos testar o seu ouvido.

Infelizmente, já existe um desgaste para a imagem internacional do pais. É hora de reduzir os danos.


Fernando Gabeira || Voltas que o mundo dá

Argentina estava aí antes de Bolsonaro e continuará depois. São relações de Estado a serem desenvolvidas

Apesar do intenso zum-zum nacional, com leis marotas votadas na madrugada, duas notícias de fora marcaram a semana: o risco de estagnação econômica mundial e a volta do peronismo na Argentina. O interesse por política externa nunca foi muito grande no Brasil. Mas tem crescido nos últimos anos. Senti isso na Comissão de Relações Exteriores da Câmara. Estudantes a frequentavam com interesse para ouvir os debates.

Bolsonaro fez parte dela, por alguns anos. Naquele momento, ainda não era um líder popular nacional. Tornou-se presidente, e discutir com líderes populares é mais áspero: os seguidores são hipersensíveis à imparcialidade ou ao preconceito.

Mas fatos são fatos. A política externa conduzida por Bolsonaro precisa ser criticada, pois pode nos levar a um isolamento perigoso no momento de uma crise mundial.

Bolsonaro aproximou-se dos Estados Unidos. Nada a reparar. A aproximação com os Estados Unidos estava no seu programa e, creio, é apoiada pela maioria dos eleitores brasileiros.

Bolsonaro aproximou-se dos Estados Unidos e está se afastando de outras partes do mundo. Isso não estava no programa. Muito menos reduzir o movimento a uma proximidade com a família Trump, como se política externa fosse tocada por amizades familiares, e não interesses nacionais.

Bolsonaro aproximou-se de Israel. Nada a reparar. Mas se afastou do mundo árabe ao anunciar que levaria a Embaixada do Brasil para Jerusalém. Não completou o plano, mas o desgaste ficou no ar.

Bolsonaro assinou um acordo comercial com a Europa, condicionado ao respeito ao meio ambiente. Nos últimos tempos, tem se dedicado a criticar a Europa, afirmando, injustamente, que a Alemanha quer comprar a Amazônia a prestação.

O acordo com a Europa ficou mais difícil, pois Alberto Fernández, vitorioso nas prévias argentinas, não o quer agora. Acha, como o ex-chanceler Celso Amorim, que o momento não é adequado para o Mercosul. Isso não impediria o Brasil de ir adiante. O próprio acordo prevê que os países entrem de acordo com seu ritmo. Quem aprovar a entrada não precisa esperar o outro.

Com as declarações de Bolsonaro, dificilmente avançaremos. Ele cancelou uma reunião com o chanceler francês para cortar o cabelo. Os franceses não entenderam essa emergência capilar.

Bolsonaro já abriu uma guerra contra os peronistas que devem voltar ao poder. Teme que os argentinos invadam o Sul, fora do verão, como os venezuelanos em Roraima.

A Argentina estava aí antes de Bolsonaro e continuará depois dele. São relações de Estado que precisam ser desenvolvidas, e não uma troca de insultos ideológicos.

Para completar as trapalhadas no Sul, o governo Bolsonaro quase derruba seu aliado paraguaio, com o acordo sobre Itaipu. Além dos problemas criados e do ressentimento nacionalista que reavivou, apareceu na negociação uma empresa brasileira ligada a um suplente do senador Major Olimpio.

Gostar de grana é realmente suprapartidário, mas torna-se algo muito sério quando envolve uma negociação delicada como a de Itaipu.

O novo embaixador do Brasil nos Estados Unidos pode ser um filho de Bolsonaro. Ele já fez referência à necessidade de bomba atômica e afirma que diplomacia sem armas é ineficaz.

Já tínhamos resolvido essa questão com os argentinos, não há mais dúvida quanto à nossa política nuclear. Se somarmos a reação agressiva à eleição do que chama de bandidos de esquerda na Argentina, Bolsonaro, por meio do filho, pode nos afastar ainda mais de uma vizinhança tranquila, apesar das diferenças.

Quando deputado, Bolsonaro às vezes ficava bravo, mas discutia. Como presidente, sente-se um herói poderoso: ganhei as eleições.

Se Bolsonaro se fixasse numa relação apenas com os Estados Unidos, já seria extremamente perigoso. Mas o embaixador que pretender enviar aos EUA andava com um boné de propaganda da reeleição de Trump. A verdade é que Trump nos aproximou da OCDE. Mas o próprio Bolsonaro boicota essa aproximacão ao apoiar a medida de Toffoli que neutraliza investigações da Receita.

O Brasil corre o risco de ficar apenas com Trump. Em termos pessoais, nada a declarar, pois a química humana é de fato surpreendente. Em termos nacionais, é um grande equívoco.


Fernando Gabeira: O clima da resistência

Noruega e Alemanha se interessam pela Amazônia porque estão investindo ali e precisam dar satisfação a seus contribuintes

Às vezes, tenho uma fantasia de deixar tudo por um tempo: escrever um livro numa pequena cidade costeira de Portugal ou me internar na Mata Atlântica, para fotografar bichos e plantas nas horas vagas. Apenas uma fantasia, fruto dos ásperos tempos em que vivemos. Não consigo deixar o Brasil, seguir as tramas, ainda que nem sempre on-line.

Entre outros, o tema que me preocupa é a política ambiental. Não especialmente as frases provocativas de Bolsonaro. Sei distinguir a retórica da realidade.

Nas últimas semanas, sinto crescer no governo, inclusive entre generais, uma forma de tratar a Amazônia com um tom nacionalista e até mesmo agressivo que, certamente, terá consequências.

A Noruega, no discurso desses setores militares, é a vilã do momento. O discurso do governo é de que a Noruega não pode criticar o Brasil, porque extrai petróleo no Ártico, mata baleias e uma empresa norueguesa provocou um desastre ambiental em Barcarena, no Pará.

Tudo isso é reação à tentativa da Noruega e da Alemanha de manterem o espírito do Fundo Amazônia, que financia projetos sustentáveis na região. Creio que está se perdendo o sentido do problema ambiental em escala planetária, que demanda muito mais a cooperação entre os países do que a troca de farpas.

A Noruega e a Alemanha se interessam pela Amazônia porque estão investindo ali e precisam dar satisfação aos seus contribuintes.

Num quadro tão delicado como o do aquecimento global, não se devem suprimir críticas entre países: existem canais próprios para isso. A tática de se defender apontando os erros dos outros não funciona. A França fez explosões nucleares na Polinésia, a Inglaterra caça raposas. Seria um processo interminável.

É uma tática que lembra o processo de corrupção no Brasil, onde os partidos atingidos lembravam sempre os erros dos outros. A tese é essa: se todos fazem, por que não fazer também?

Existe um grande interesse internacional pela Amazônia. Muitas pessoas são ligadas afetivamente à região porque a consideram vital para o planeta. Não há razão para ter ciúmes, mas sim tirar proveito dessa onda positiva.

Bolsonaro diz que a Amazônia é uma virgem que muitos querem violentar. Acrescentou que vai permitir o garimpo na região. Isso não me assusta tanto.

Nenhum governo conseguiu proibir ou mesmo fiscalizar o garimpo na Amazônia.

Se formos agora ao pequeno aeroporto de Laranjal do Jari, veremos os aviões chegando e partindo para o garimpo. Entrevistei um garimpeiro que já sofreu cinco desastres aéreos na floresta. Hoje é pastor, mas continua garimpando.

Bolsonaro afirmou que quer atrair empresas americanas para explorar minério na Amazônia. É um problema. Não porque sejam americanas. Poderiam ser japonesas, sul-africanas, não importa.

O modelo de desenvolvimento está em jogo. De fato, iniciativas sustentáveis ou mesmo formas pré-industriais de atividade econômica não representam uma saída única para a Amazônia.

No Brasil, e também nos Estados Unidos, a defesa do meio ambiente é associada à esquerda, a uma visão anticapitalista. Isso explica parcialmente a reação agressiva de Bolsonaro. No discurso da extrema direita, o aquecimento global é uma invenção marxista; os dados do desmatamento, uma armação contra o Brasil.

No entanto, é possível discutir uma saída dentro do capitalismo para a Amazônia, confrontando duas linhas. Uma delas é usar o conhecimento e a biotecnologia para manter e valorizar a floresta em pé. A outra é enfatizar o lado tradicional da economia, com mineração intensa, criação de gado, industrias.

Na verdade, não são totalmente excludentes. Mas a escolha da primeira linha como hegemônica tem a vantagem da sustentabilidade, recompensa o saber tradicional das comunidades.

O projeto amazônico de Bolsonaro, que parece ter ressonância nas Forcas Armadas, pode nos conduzir a um isolamento internacional, boicote de nossos produtos, uma derrota política e econômica.

Sem contar com o principal efeito negativo: a perda da biodiversidade, os reflexos no próprio clima. O agronegócio já percebeu a resistência externa a esta opção do governo. Por enquanto, teme a perda de mercado. Com o desmatamento, vai se dar conta da perda das chuvas.

Essa é uma das muitas razões para resistir.


Fernando Gabeira: Jogos da nova temporada

Um governo que era contra a corrupção na hora H ajuda Toffoli a neutralizar o Coaf

Com a volta do Congresso e do STF, o delicado equilíbrio de forças entre os três Poderes precisa ser decifrado.

Comecei a ler o livro Os Onze, de Felipe Recondo e Luiz Weber, na busca de mais informações sobre os bastidores e a história recente do STF. A ideia era entender melhor como esse Poder se desdobra no futuro próximo. Constatei no livro que um marco profundo na dinâmica do STF foi a morte de Teori Zavascki. Não só foi alterada a correlação de forças entre eles, mas perdeu-se uma figura agregadora. Isso impulsionou a criação de ilhas independentes, com grande desenvoltura para decisões monocráticas.

Mas a grande linha divisória desde o princípio foi a Lava Jato. Poucos sabem, mas a operação chegou de certa forma ao próprio STF. Foi um episódio ligado à Construcap, que doara R$ 50 mil a um membro do PT com nome Toffoli. Parecia ser o do ministro. No mesmo ano, o irmão de Toffoli disputou as eleições como deputado estadual. O mal-entendido deixou cicatrizes.

Nas suas mais recentes decisões, Toffoli comportou-se como diante de cerco se fechando contra ele. E se antecipa de uma forma que faz do STF não um contrapeso democrático, mas um novo peso pesado em nossos temores.

Toffoli começou criando um inquérito guarda-chuva para combater acusações ao STF. Agregou Alexandre de Moraes como seu delegado. O que surgiu disso? Buscas na casa de pessoas que apenas criticavam o Supremo. E logo em seguida a censura à revista Crusoé, precisamente a que tinha revelado relações financeiras atípicas entre ele e sua mulher.

Num novo passo, Toffoli proibiu as investigações a partir de dados do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), quebrando o ritmo dos trabalhos, rompendo acordos internacionais, dificultando até a entrada do Brasil na OCDE.

Agregou o presidente Bolsonaro, uma vez que atendeu a um pedido da defesa de Flávio.

Finalmente, Alexandre de Moraes suspendeu a fiscalização de ministros do Supremo e outras autoridades, alegando serem tendenciosas.

Um manifesto de 195 auditores afirma que são cruzamentos automatizados que definem o objeto de fiscalização mais rigorosa. Não há nada de pessoal ou político nisso.

Tanto Toffoli como Gilmar Mendes condenam, com razão, os vazamentos. Mas, ora, basta punir quem vazou. Na realidade, os vazamentos que prejudicam os investigados acabaram se transformando em algo contraproducente no fim das investigações.

O presidente Bolsonaro assinou uma medida provisória colocando a Funai no Ministério da Agricultura. Derrotado, assinou de novo, o que é ilegal numa mesma legislatura. O Supremo funcionou como um contrapeso. Mas quem funcionará como contrapeso quando o STF avança? O Congresso, a outra ponta do triângulo, observa com uma resistência localizada no Senado o pedido de CPI da Lava Toga.

Nesses últimos movimentos, Toffoli e Moraes investiram contra a liberdade de imprensa e agora criam um cinturão de aço protegendo alguns ministros e suas mulheres da fiscalização financeira.

Para completar o quadro, o diretor do Coaf, Roberto Leonel, está sendo pressionado a sair porque Bolsonaro não gostou de suas críticas à decisão de Toffoli proibindo o Coaf de levantar pistas para órgãos de investigação. Como não protestar contra a decisão de Toffoli, se atinge o núcleo de sua atividade, que é o controle das atividades financeiras? E mais: atinge também compromissos externos do Brasil.

A briga pela domesticação do Coaf é uma briga feia. Toffoli e Bolsonaro estão juntos, a esquerda está se lixando para o Coaf. O próprio Moro se vê diante da perda do Coaf e, agora, da de seu indicado para dirigi-lo. No quesito engolir sapo, segue no seu aprendizado político.

Era um governo contra a corrupção e, na hora H, ajuda Toffoli a neutralizar o Coaf... A ideia geral não era seguir o dinheiro? Agora é proibido seguir o dinheiro.

O Congresso tem se fixado na reconstrução econômica, o que é a prioridade indiscutível. Por algumas manifestações de Rodrigo Maia, críticas à Lava Jato, sente-se que o clima ali, com exceção do pequeno núcleo no Senado, tende a ser favorável a essa movida de Toffoli e Bolsonaro.

Há muito caminho pela frente: plenário do Supremo, resistência institucional, pressão externa – pode ser que o bom senso ainda prevaleça. De qualquer forma, um novo capítulo se abre também com a chegada do inquérito dos vazamentos da Lava Jato. Vem para as mãos de Moraes. O conteúdo das mensagens poderá trazer novas tensões, sobretudo num ponto sensível: investigação de ministros.

Os ministros que divergem da Lava Jato não são só ilhas, mas um arquipélago no STF. Algumas vulcânicas e em erupção, como Toffoli, que neutraliza o controle efetivo de transações financeiras para atender, entre outros, o filho do presidente, as mulheres dos ministros.

Parece-me às vezes uma utopia. Nem Trump está livre desse incômodo.

A ideia geral é de que a lei vale para todos. De certa maneira, o País terá de chegar a um acordo sobre isso, pois transcende as divergências com a Lava Jato. Um sistema de controle de transações financeiras é essencial para combater o crime organizado, o terrorismo e a própria corrupção. Ele ultrapassa os limites nacionais pela troca de informações. É um sistema de defesa coletivo.

O cerne das divergências sobre a Lava Jato é a prisão em segunda instância. Se cair esse dispositivo, os presos por corrupção serão libertados. O impacto real será menor do que bloquear investigações.

Pelo menos foi tudo desvendado. Na situação atual, simplesmente nada saberíamos. Estamos no limbo, uma palavra que significa margem, esquecimento, mas também, no sentido religioso, aquele lugar para onde antigamente iam as crianças inocentes. Hoje não vão mais para o limbo. Vão para o céu. O que certamente não será o nosso caso.