Fernando Gabeira: Presidente Michel Fora Temer

Como a grande maioria acha que houve corrupção e Temer já era impopular, vamos ouvir, aqui e ali, gritos de “fora”

A segunda denúncia contra Temer vai à Câmara e, como a primeira, deve ser rejeitada. É possível, portanto, prever uma situação bizarra: Temer, que só tem 3,4% de aprovação, segundo as pesquisas, ruma para um desgaste ainda maior, com a repetição de cenas da mala de Rodrigo Rocha Loures, a fortuna encontrada no apartamento usado por Geddel. Toda aquela dinheirama passará de novo pelas telas e aprovação de Temer deve encolher. Mas ele continuará na presidência e, se chance houver, vai querer ser candidato de novo.

Não é provável uma grande manifestação popular. Afinal, o impeachment derrubou uma quadrilha para colocar outra no topo do poder. São muito modestas as razões para lutar pela ascensão de uma nova quadrilha. O sistema se autoimunizou, não há salvação dentro dele.

Como a grande maioria acha que houve corrupção e Temer já era impopular, vamos ouvir, aqui e ali, gritos de “fora”. Um escritor na Bienal do Livro, ao se apresentar, disse: “Antes de tudo, fora Temer”. O grito será incorporado ao nosso universo das ruas, do vendedor de pamonha, os gritos de gol nas tardes de domingo.

O humorista José Simão antecipou, brilhantemente, essa situação bizarra ao imaginar a faixa com que o presidente foi recebido na China: Welcome Mister Fora Temer.

Mas nem todos vão rir todo tempo dessa situação. O presidente se refugiou no agonizante sistema político partidário. Essa ampla posição de resistência às investigações da Lava-Jato acaba fortalecendo posições mais radicais. De um lado, explorando a incapacidade de solução na política, cresce na rede social a posição dos que querem uma intervenção militar. Na arena institucional cresce também o potencial de votos de Jair Bolsonaro. Ele aparece para seus seguidores como alternativa eleitoral como a esse sistema apodrecido. Bolsonaro cresce também porque assim como Trump, usa a mídia a seu favor. Seu estilo é fazer uma declaração bombástica e ir relativando aos poucos, terminando por culpar a mídia pelo mal-entendido.

Estive em Minas mais ou menos na mesma época que Bolsonaro. Decidi analisar as duas polêmicas que surgiram na sua passagem. Na primeira delas, prometeu levar o mar a Minas. É algo que no passado mobilizou um célebre populista mineiro, Nelson Thibau. Ele tinha essa bandeira e chegou a transportar um barco para a Praça Sete, no centro de Belo Horizonte. Acontece que Bolsonaro usava suas frases como uma armadilha. Por exemplo, logo após prometer o mar a Minas, disse “Brincadeiras à parte...” e seguiu seu discurso.

No outro momento, Bolsonaro montou de novo sua armadilha. Declarou: os caras que fizeram a exposição lá no sul mereciam ser fuzilados. Em seguida, disse: é uma força de expressão.

Minha hipótese é a de que ele atravessa o discurso politicamente correto para provocá-lo e trazê-lo para uma boa briga, na qual reforça sua posição entres os adeptos e, simultaneamente, enfraquece o outro. Em síntese, Bolsonaro cria uma situação caricata, que tanto ele como Trump consideram mais inteligível para a maioria de seus seguidores.

As táticas de Bolsonaro e Trump são mais eficientes que as ameaças do populismo de esquerda de controlar a mídia. Eles transitam da mídia para as redes sociais e vice-versa, usam as duas de forma sincronizada, algo diferente do populismo de esquerda.

Ainda preciso avançar um pouco no tema, mas desde já acho que as falas de Bolsonaro deveriam ser avaliadas na cobertura presidencial com uma pergunta: qual é o jogo?

A inglória derrocada da esquerda e a mediocridade do PSDB acabam abrindo o caminho para que uma rebeldia juvenil seja atraída por Bolsonaro e seu discurso crítico ao sistema.

É algo que devemos também à insistência de Mister Fora Temer de se manter no poder, com tão pouca credibilidade. Os partidos políticos e Temer se enterram juntos em Brasília. Mas da maneira que o fazem não deixam nem capim nascer sobre o seu túmulo. Eles contribuem para nos lançar em campanhas de slogans e arranca-rabos, num momento em que é necessário discutir os rumos do país.

Os discursos bombásticos vão animar as eleições. Mas não devem dominá-las. Suponho que uma tendência mais equilibrada é majoritária. E também a mais adequada para pensar a saída da crise e projetar algumas linhas do futuro.

Muita gente tem esperança de que o Brasil saia desse imenso pantanal. Essa esperança, os adeptos da cura gay não podem curar. E a Justiça ainda não autorizou.

 


Fernando Gabeira: Corda em casa de enforcado

Como será o trabalho de Raquel Dodge? Eis uma pergunta que ainda não se pode responder. Quase todos se revelam – e às vezes se transformam – no curso dos acontecimentos.

A imprensa registrou a omissão da Lava Jato no discurso de posse de Dodge. De fato, ignorou algo de repercussão internacional. Mas talvez, diante de três componentes da mesa investigados pela Lava Jato, Dodge tenha preferido, como se dizia na infância, não falar de corda em casa de enforcado.

No momento atual, deve fazer correções nos acordos de delação premiada dos donos da JBS. E a decisão de Janot em denunciar Temer de novo deve ocupar o centro da cena. As previsões são quase unânimes de que Temer escapará na Câmara.

O Brasil continuará sendo dirigido por um homem acusado de dirigir uma organização criminosa, com o respaldo da Câmara. E não vejo grandes reações a isso no horizonte. A leitura da denúncia de Janot me dá uma pista para entender a passividade popular diante de mais uma denúncia rejeitada.

A denúncia afirma que o Brasil era dirigido por uma organização criminosa, no governo PT, e que a passagem do poder, pós-impeachment, mudou o comando do processo de corrupção. Em suma, houve uma troca de quadrilhas no topo do poder.

Imagino que as pessoas se perguntem: se o impeachment provocou apenas uma troca de quadrilhas, por que a queda de Temer não traria outra quadrilha ao governo? A sociedade tornou-se refém de um sistema político partidário fracassado.

Temer, segundo as pesquisas, está com 3,4% de aprovação. Alguns membros da quadrilha, Cunha, Henrique Alves e Geddel, além do operador Lúcio Funaro, estão presos. Os restantes, Padilha e Moreira Franco, foram denunciados. Sua expectativa é a estabilidade econômica e algum crescimento. Ele acha que com isso responde aos problemas específicos colocados pelo seu desgaste. Curioso como se aproxima do PT na supervalorização do crescimento material, uma espécie de cura para todos os crimes denunciados.

É um modo de pensar que exclui os valores democráticos e reduz as pessoas ao universo do consumo. A suposição é de que elas aceitam tudo, desde que estejam ganhando um pouco mais.

A denúncia será julgada naquele clima que conhecemos e avaliada de acordo com as orientações políticas de cada um. No entanto, o volume de informações existentes, a prisão de vários componentes do grupo, o realismo fantástico daquelas malas cheias de dinheiro de Geddel... Tudo isso não sai da memória tão cedo. Como não saiu o deputado Rocha Loures correndo com a mala da pizzaria. A cena foi repetida tantas vezes que, no final, eu mesmo dizia: lá vai o Rocha Loures com sua mala a caminho do táxi.

Mesmo sendo leigo em Direito Penal, a gente ouve falar em quadrilha, vê tanta mala cheia de dinheiro, pensa em quadrilha. E até hoje não há explicação para elas, uma fortuna familiar, um novo modo de entregar pizzas. As malas são concretas, as contas no exterior, apenas dados bancários.

Muita gente pensa que a rejeição da denúncia passará em branco talvez porque espere demonstrações de rua. Hoje o descontentamento é crônico e às vezes aparece pontualmente, em palcos, gritos de “fora Temer”. Daqui a pouco, os 3% vão-se embora, ficam 0,4%.

Até as forças de oposição parecem contentar-se com Temer sangrando. E alguns analistas chegam a prever uma vitória da corrupção, com mudanças na Lava Jato. Nem todos os dados estão lançados. A descoberta dos R$ 51 milhões com a impressão dos dedos de Geddel, isso ainda vai ser explicado. Não é possível que se apreenda tanto dinheiro, um recorde histórico, e não se explique sua origem.

De todas as maneiras, creio, o Brasil vai tentar se livrar desse gigantesco esquema de corrupção que domina o País e foi revelado, na maioria de seus lances, com muita competência pelas investigações.

O The Guardian reproduziu esta semana uma matéria portuguesa falando dos empreiteiros envolvidos na Lava Jato que compraram imóveis para garantir um visto de residência definitiva por lá. Está dentro da lei portuguesa que estimula o investimento imobiliário no país.

Mas as manchetes revelam o interesse internacional pela Lava Jato, mesmo fora da América Latina, onde, com dinheiro do BNDES, a Odebrecht fez um estrago. Recentemente, os bancos suíços admitiram, no pós-Lava Jato, uma mudança de regras no sentido de tornar mais difícil o fluxo de dinheiro da corrupção. Um ganho planetário, uma vez que os brasileiros não descobriram o caminho nem foram os únicos a usar bancos suíços.

Além do apoio popular, são muitas as razões para achar a Lava Jato irreversível. Colocaram o bode na sala e simplesmente será impossível ignorá-lo.

Não sei como o País reagiria se fosse golpeado em sua expectativa de julgamento dessas quadrilhas. Muitos políticos continuam contando com a paciência popular. Não percebem que, ultrapassados certos limites, eles próprios podem pôr-se num risco maior que a prisão.

Supor que ainda possam prevalecer diante da Lava Jato e a pressão popular imaginar o País derrotado por um sistema político-partidário arruinado moralmente é lembrar o pior dos mundos. O triunfo do agonizante sobre uma sociedade cada vez mais informada.

Estou consciente de que minha calma se baseia numa análise mais ampla. Peripécias podem acontecer. Como a delação da JBS, que se mostrou um erro, apesar das provas colhidas.

Todos foram informados de que o Brasil foi dirigido por quadrilhas. É importante encontrar um desfecho legal e pacífico para essa descoberta. A teimosia dos políticos em combater a Lava Jato pode levar não só a reações violentas, como também estimular discursos de intervenção militar, muito presentes nas redes sociais.

Apesar da confiança no rumo geral, há esta inquietação tática: quanto tempo os políticos vão levar para compreender que o jogo acabou?

 

 

 


Fernando Gabeira: Primavera, quem diria

Nas circunstâncias nacionais, parece uma heresia lembrar que está chegando a primavera. Mas, além de boa notícia, é algo de que estou seguro. Algo que posso anunciar nas segundas-feiras, quando tento prever os fatos da semana, num programa de rádio. Em nosso processo histórico tão imprevisível, a constância das estações do ano é um bálsamo.

Claro que poderia melhorar as previsões. Garotinho já foi preso duas vezes. Dava para prever a época em que seria preso de novo. Mas, se contasse com a prisão de Garotinho, o imprevisível, o realismo fantástico me surpreenderia. Garotinho foi preso apresentando um programa de rádio. O locutor que LHE sucedeu naquele momento disse que Garotinho tinha perdido a voz. Os médicos recomendaram silêncio. Ele poderia voltar amanhã ou daqui a alguns dias.

A prisão de Garotinho foi a única que teve uma versão para as crianças. No plano mais amplo, tempestades se formam e, pela primeira vez, pressenti um quadro mais completo. Com as gravações de Joesley Batista e documentos de uma advogada da JBS, entregues por seu ex-marido, a empresa insinua relações promíscuas com o Poder Judiciário.

Aliás, o próprio Joesley já tinha definido a situação ao afirmar, num dos áudios, que o Congresso foi atingido pela delação da Odebrecht e a ele cabia denunciar Temer e o STF. Os dados que havia num dos áudios, no qual se gravou o ex-ministro José Eduardo Cardozo, eram tão problemáticos que o procurador Marcello Miller previa até cadeia para quem os mencionasse. Mas a gravação não foi destruída, e sim enviada para o exterior. Sinal de que Joesley ainda conta com ela no seu poder de barganha.

Tudo isso está sendo investigado, suponho. Há pedidos da própria Cármen Lúcia e de Janot nesse sentido. O Poder Judiciário está diante de um desafio: rigor e transparência nas denúncias sobre ele mesmo.

Joesley Batista gravou muito gente, além de Temer. Alguns, como Gilmar Mendes, já se adiantaram afirmando que podem ter sido gravados. O áudio mais importante para Joesley foi o gravado com o Temer. Tornou-se moeda de troca na delação premiada. Mas, naquele momento, ele tinha com quem negociar. Agora, talvez interesse mais ocultar essas gravações e esperar uma nova oportunidade. Ou mesmo ocultá-las para sempre, em sinal de boa vontade em relação aos seus potenciais julgadores.

Pode ser que o vento afaste as nuvens de tempestade. Mas, por outro lado, as denúncias foram publicadas. O material divulgado pela revista “Veja” sugeria compra de ministros do STJ e uma enigmática frase: Dalide ferrou o Gilmar. Essa frase, na verdade, é vista numa mensagem da ex-advogada da JBS. Diz respeito a uma gravação entre Dalide Correa, ex-sócia de Gilmar, e o diretor jurídico da JBS. Vale a pena investigar tudo isso e colocar mais um poder na berlinda? Os próprios ministros mencionados mostram-se interessados numa investigação, para esclarecer os fatos. Que venha a transparência.

Na temperatura das águas, nas amoreiras, a primavera traz leveza. O bastante para abordar esse grande debate político-cultural em torno da exposição patrocinada pelo Santander em Porto Alegre.

Durante muitas anos participei de lutas minoritárias no Brasil. Minha experiência é que a única forma de não perder o respeito da maioria é procurar sempre o caminho democrático.

A liberdade de expressão artística é inegável. No entanto, ao trabalhar com verbas e educação pública, é necessário reconhecer a grande maioria das famílias que quer ter a primazia na educação sexual de seus filhos. Enfim, saber em que país está se movendo, e negociar, de forma que não se produzam reações em cadeia que acabem fortalecendo o retrocesso.

Creio que a experiência americana que resultou na vitória de Donald Trump merece uma avaliação. Será que não corremos, em circunstâncias diferentes, o mesmo risco? Um fator que sempre me impressionou na vitória de Trump era de como o universo informado dos leitores, acadêmicos, enfim todos, levou um susto com o país real.

Num mundo, Hilary era a vencedora, no outro, Trump. É preciso levar em conta a maioria e avançar de forma não ameaçadora, respeitar, em todos os momentos, a pluralidade das posições.

Quando digo não ameaçador, não quero dizer sorrateiro, mas, sim, um processo claro, uma proposta de convivência onde todos se sintam seguros.

No caso dos Estados Unidos, a insegurança tinha raízes também na economia, os empregos perdidos na globalização. Aqui há um grande nível de desemprego e incerteza econômica.

É nesse contexto que vejo o debate cultural. Poderia ser tudo mais simples se não houvesse dinheiro público nem visitas escolares como compensação ao incentivo fiscal. Com recurso do banco e obedecendo aos parâmetros legais, como todos os outros espetáculos, seria apenas uma exposição de arte. E com grandes nomes.

São visões de caminho. É um palpite de quem tem experiência de tratar com as maiorias e um conhecimento de regiões distantes do país.
Certeza mesmo, só a primavera.

 

 


Fernando Gabeira: Banho de rio, cabeça fria 

-LARANJAL DO JARI- Tenho viajado pelo interior do Amapá, divisa com o Pará, para conhecer melhor a região que Temer quer abrir às empresas mineradoras. Não estava satisfeito com o debate. É preciso ver de perto. Tenho falado com geólogos, pilotos extrativistas, garimpeiros, para ouvir suas opiniões.

Devo refletir um pouco sobre algumas experiências decisivas do Amapá. Uma delas foi a extração de manganês na Serra do Navio. A outra é o projeto Jari, do famoso Daniel Ludwig, que aconteceu a poucos quilômetros do lugar onde estou baseado. Elas deixaram um rastro de decepção.

Navegando num calor de rachar, vi algumas pessoas no rio, à sombra de uma árvore, apenas com a cabeça fora d’água. Invejei seu conforto. Gostaria de estar assim no momento em que escrevo sobre a semana no Brasil. É preciso muito sangue-frio para falar de alguns temas, como as Olimpíadas de 2016 e as malas cheias de dinheiro de Geddel Vieira Lima, ou mesmo os diálogos de Joesley Batista.

As Olimpíadas foram desastrosas para a imagem do Brasil. No princípio, argumentávamos que elas foram pensadas num momento de euforia econômica. A chegada da crise iria mostrar ao mundo nossa vulnerabilidade. Depois, surgiu o debate sobre a Baía de Guanabara e a poluição nas lagoas do Rio. Era ingênuo supor que, ao se revelar para o mundo, os observadores não iriam descobrir que ainda estamos no século XIX em termos de saneamento.

Passados os jogos, reacendeu a discussão sobre o legado. Piscinas abandonadas, velódromo em chamas. Percebemos ali que a tendência era perder muitas das construções, algumas delas superfaturadas.

Quando o “Le Monde” denunciou o suborno para que o Rio fosse escolhido, emergiu de novo a figura de Arthur Soares, o Rei Arthur da corte de Sérgio Cabral. Mas o tema caiu num certo vazio. Era muito constrangedor para nós. Alegrei-me quando Malu Gaspar fez um perfil de Rei Arthur na revista “Piauí”. Pensei: agora sim, não só o enigmático personagem viria à tona como vai ficar mais claro o mal que esse gente fez ao Rio e o tremendo desgaste que os dirigentes, eufóricos com a escolha, impuseram à imagem do Brasil.

A Operação Unfair Play, em colaboração com investigadores franceses, confirma a denúncia do “Le Monde”. E mostra que além de Cabral e do Rei Arthur, contaram também com Carlos Nuzman. Os dirigentes esportivos disputam hoje com os políticos quem joga mais baixo a imagem do Brasil. Nuzman está proibido de participar do sorteio das Olimpíadas. A polícia não o deixa mais sair do país. O presidente da CBF também não deixa o país, com medo de ser preso lá fora.

Devem olhar para as cadeiras vazias do Brasil e lamentar como um país de importância internacional tenha chegado a esse ponto. A medalha de ouro no constrangimento nacional foi a descoberta das malas e malas de dinheiro no apartamento usado por Geddel Vieira Lima, em Salvador.

R$ 51 milhões, horas de trabalho contando o dinheiro nas máquinas. A imagem dessas malas cheias de dinheiro correu mundo, um político de segundo escalão no Brasil tornou-se uma espécie de Tio Patinhas. Creio que o melhor caminho para contornar o constrangimento no exterior é o que usamos aqui dentro para nós mesmos: tudo isso está acontecendo porque há uma competente investigação policial, que conta com o apoio da maioria da população.

Os mecanismos de justiça ainda não parecem à altura do desafio quando vemos que Geddel estava solto, sem tornozeleira, porque não havia dinheiro público para comprá-las. A um quilômetro dali, Geddel acumulava dinheiro para comprar todas as tornozeleiras do país. Suspeito que o dinheiro daria para comprar a fábrica. De qualquer forma, o dinheiro foi recuperado, e, segundo ouvi no rádio, Geddel ocupa hoje o sétimo lugar no ranking de maior assalto no mundo.

Ao pensar nas gravações de Joesley Batista, enquanto descia o rio de volta para Laranjal, tive inveja de novo dos meninos mergulhando no rio Jari. A delação de Joesley foi o ponto mais vulnerável da LavaJato, e por ele entraram também os adversários que querem enfraquecer o combate à corrupção e deixar tudo como está. Há sempre tempo, numa operação complexa como essa, para reparar erros. O melhor caminho, creio, é o de anular a delação de Joesley, mantendo as provas que ele entregou.

Lula, Dilma e o dirigentes do PT foram denunciados. A situação do partido se agrava, e seguem numa caravana pelo Nordeste que lembra um pouco a Caravana Rolidei, numa espécie de despedida. Apesar de o filme de Cacá Diegues “Bye Bye Brasil” ser mais poético e complexo; por isso foi tão discutido por ensaístas no exterior.

A aposta do PT em negar as acusações, reduzilas a uma perseguição política, continua de pé. Mas vai transformá-lo em algo mais próximo da religião. Será preciso acreditar neles, apesar de todas as evidências, supor que a crise econômica nasceu com o governo Temer, que os assaltos gigantescos à Petrobras não aconteceram.

Benza Deus, como se dizia em Minas. A semana merecia um banho de rio.

 


Fernando Gabeira: Os medalhistas brasileiros  

A competência dos bandidos do Brasil é ouro em qualquer olimpíada da corrupção

Aqui onde estou, no interior do Amapá, as coisas me parecem confusas. Creio que parecem confusas em toda parte. Mas é sempre difícil de alcançá-las quando as conexões são pobres.

Rodrigo Janot deverá apresentar uma segunda denúncia contra Michel Temer. Teremos de ouvir tudo de novo, cada um com seu voto. Espero que seja menos dramático e que o mercado não leve tão a sério um enredo previsível. Afinal, a economia segue adiante.

Não conheço a delação de Lúcio Funaro. Sei apenas que é o réu mais violento no nível verbal: ameaça literalmente comer o fígado de adversários. Funaro já enrolou a Justiça uma vez. Deve ser uma pessoa cheia de truques, como parecem ser os irmãos Batista.

Janot afirmou que, enquanto houver bambu, vai lançar suas flechas. É uma afirmação quantitativa. Sabemos que a última flecha tem de ser mais certeira e eficaz. Isso se levarmos a sério a analogia com os índios. Não tenho conhecimentos antropológicos para afirmar, apenas suponho que os índios não gostem de errar a última flecha, porque depois dela ou o bicho pega ou o adversário ataca.

A delação da JBS é um dos pontos mais vulneráveis da Lava Jato, embora nada tenha que ver com o trabalho em Curitiba. Foi na esteira do acordo com Joesley que os adversários da operação bateram pesado.

Mesmo quem se coloca abertamente a favor do desmonte do grande esquema de corrupção no Brasil custa a entender não só a liberdade de Joesley Batista, mas também o fato de os procuradores não terem mandado periciar o gravador antes de desfechar o processo.

No front da Lava Jato no Rio de Janeiro avançou, finalmente, o tema denunciado pelo Le Monde há alguns meses: a escolha do Rio para a sede da Olimpíada foi comprada. E reaparece um personagem chamado Rei Arthur. Tive de falar dele em 2010. Suas empresas faturavam bilhões durante o governo Sérgio Cabral. Ele mandava nas escolhas do governo para contratar serviços. Daí o apelido Rei Arthur.

O que aconteceu com os Batista pode ser uma lição. Rei Arthur andou pelo Rio e escapou para Miami, onde vive. Ele certamente vai usar ao máximo sua presença nos EUA para dificultar a prisão. Quando preso, Rei Arthur já deverá saber com antecedência o que falar e o que esconder - a velha tática de oferecer os anéis para salvar os dedos.

A quadrilha montada por Sérgio Cabral, com inúmeras ramificações, tinha alcance internacional, comprou uma Olimpíada. Seu combate se deu com a ajuda decisiva de investigadores franceses.

Os donos da JBS mostraram, também, alto nível de audácia, na medida em que tinham a chave do BNDES, projetavam um crescimento internacional, enquanto no País compravam quase 2 mil políticos. Era inverossímil esta história de que decidiram colaborar porque tiveram uma espécie de epifania e descobriram que trilhavam o caminho do crime.

É importante que a Lava Jato não aceite os anéis para salvar os dedos, não por uma vocação repressiva. Os adversários são fortes. A história da repressão aos tráfico de drogas na Colômbia está cheia de cooptação dos investigadores pelo crime. Os próprios repressores transformavam-se em chefes de segurança dos esquemas do tráfico. Não eram simplesmente subornados, mas contratados pelo seu conhecimento técnico.

No campo político, no Brasil, não houve nenhuma reforma. O máximo possível é acabar com coligações proporcionais e criar a cláusula de barreira. Os passos dados não neutralizam a tendência em não votar em quem tenha mandato. E isso não é garantia nem de uma modesta renovação. Muitas pessoas novas entraram no Congresso e, ao cabo de algum tempo, estavam falando a velha linguagem. É o que acontece quando as regras do jogo não mudam.

Aqui, no interior do Amapá, observei algo comum em outros pontos do Brasil. Em quem confiar?, perguntam uns aos outros ao verem a sucessão de escândalos. A ideia de que a lei vale para todos foi fortalecida com a prisão de alguns poderosos. Não pode haver brechas nela, caso contrário, o desânimo será ainda maior.

Janot precisa avaliar o impacto da delação premiada de Joesley Batista. Afinal, valeu a pena? Quantas informações importantes ele deu? Até que ponto as investigações seriam incapazes de chegar a elas sem prêmio a Joesley?

Possivelmente, a última flecha de Janot ele vai arrancar de seu próprio corpo. Nada de excepcional numa longa batalha.

Pode ser que avance para compreender que errou ao não periciar as gravações, mas encontrar nelas o caminho da reparação.

O quadro geral é mais inquietante quando a desconfiança transborda o universo da política e se expande pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

As mais recentes pesquisas já apontam nessa direção. Certamente, foram influenciadas pela atuação de Gilmar Mendes, mas não se esgotam nele.

A iniciativa de Cármen Lúcia de pedir uma rápida e esclarecedora investigação sobre referência ao STF nas gravações de Joesley vai numa boa direção. No entanto, ela deve saber que a crise na dimensão da Justiça é corrosiva.

Quanto a Geddel Vieira Lima, ele foi solto e voltou para Salvador. As pessoas estão, agora, estupefatas com a descoberta de milhões de reais num apartamento que ele usava. O Estado não tinha dinheiro para a tornozeleira eletrônica de Geddel. Geddel tinha dinheiro para comprar todas as tornozeleiras eletrônicas do Brasil. Por isso é que vale a pena considerar que estamos diante de quadrilhas extremamente capazes e ousadas, não só prontas para assaltar, mas também dispostas a dar uma volta na repressão.

Tantos inocentes, tantos arrependidos, tantos falsos colaboradores - a competência dos bandidos brasileiros é medalha de ouro em qualquer Olimpíada em que tenha a corrupção como modalidade.

Não será fácil vencê-los, embora a Lava Jato tenha alcançado um nível superior e seja o melhor instrumento que encontramos para isso em toda a nossa história.

* Fernando Gabeira é jornalista

 


Fernando Gabeira: Ouça, Temer

Sua decisão coloca em risco grande parte do trabalho feito por todos nós para recolocar o Brasil no âmbito dos países comprometidos com a preservação do planeta

Tenho discretas razões para supor que Temer compreenderá o equívoco de abrir para a mineração, na Amazônia, uma área do tamanho da Dinamarca. No passado, ele se tornou dono de terras em Alto Paraíso, e a comunidade que trabalhava há anos ali foi a Brasília pedir ajuda. Terras em Goiás foram distribuídas a políticos do PMDB. Temer nem sabia exatamente como eram e o que produziam. Pressionado pelos agricultores alternativos que trabalhavam ali, Temer resolveu abrir mão de suas terras e as doou à cidade de Alto Paraíso. Agora, não se trata apenas de alguns, mas de 47 mil hectares. As terras não são de Temer, mas do Brasil e, de uma forma indireta, de toda a Humanidade. Quando os militares criaram a reserva, a ideia era pesquisar e explorar os recursos de uma forma estratégica. Não creio que pensaram nisso como um momentâneo desafogo a uma crise econômica provocada pela incompetência e corrupção.

Não quero raciocinar em termos de estatal ou privado, ou mesmo de nacional ou estrangeiro. Depois que os militares criaram a reserva, muita água passou por baixo da ponte, ou mesmo por cima, com os eventos climáticos extremos.

No fim da década dos 1980, o Brasil ainda era um vilão internacional porque desmatava a Amazônia. Lembro-me de uma reunião de cúpula na Holanda em que Sarney não foi porque tinha medo de uma reação negativa. Na época, além das queimadas e de outros fatores, houve ainda o episódio de negarem passaporte a Juruna.

Com a realização da Rio-92, o maior encontro de estadistas no pós-guerra, o papel do Brasil começou a se alterar. De vilão ambiental, tornou-se um interlocutor importante e passou a ser visto como ator decisivo nos acordos sobre o aquecimento global. A Amazônia tornou-se para o mundo um espaço a ser preservado, respeitada a autonomia nacional sobre suas terras. Países como a Noruega acharam que se a Amazônia era importante para a sobrevivência de todos, deveriam investir nela em projetos sustentáveis. E fizeram isso.

Ouça, Temer 

Você mesmo esteve na Noruega, embora a tenha confundido com a Suécia.

A grande crise iniciada em 2008 e fatos posteriores, como a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, enfraqueceram mas não destruíram a disposição planetária de contribuir com a Amazônia.

Sua decisão coloca em risco grande parte do trabalho feito por todos nós para recolocar o Brasil no âmbito dos países comprometidos com a preservação do planeta. E de uma certa maneira, despreza os potenciais investimentos em projetos sustentáveis em nome de uma saída que me parece anacrônica e predatória.

Tudo bem, Temer, você dirá que serão respeitadas as regras ambientais para a mineração. Mas quem percorre Minas Gerais e outros pontos do país constata rapidamente que elas não são respeitadas no Sudeste, onde teoricamente, concentra-se o grosso da fiscalização.

No segundo decreto, você criou um comitê ligado à chefia da Casa Civil para monitorar as atividades de mineração nessa faixa que engloba parte do Amapá e do Pará. Não consigo me convencer disso. O chefe da Civil, Eliseu Padilha, é investigado por crimes ambientais no Mato Grosso e no Rio Grande do Sul. E as acusações são amplas, vão de desmatamento a construção de pistas de pouso clandestinas. Pouca gente sabe disso. Mas está disponível na internet e no próprio Supremo.

Além de arruinar o trabalho de construção da imagem nacional, o governo nos propõe uma fórmula de controle na qual a raposa toma conta do galinheiro. O namoro do PMDB com as riquezas naturais da Amazônia vem de longe. Romero Jucá é o mais destacado parlamentar buscando fórmulas para regulamentar a mineração nas terras indígenas.

Nesse momento, Temer, você está cedendo às piores influências no manejo da Amazônia. Se fosse simplesmente um opositor, talvez pudesse me alegrar com essa decisão. Antes de ser opositor, sou brasileiro e lamento ver o Brasil caindo de novo naquele desprezo internacional que sentimos em Haia, no fim da década de 1980. É uma ilusão você pensar que tudo dará certo. Até mesmo Padilha e Jucá, que devem estar comemorando, não percebem que estão atraindo um furacão contra eles. Deveriam ser mais discretos, mas a aposta é de levar tudo porque aqui não se pune ninguém.

No momento em que publico este artigo, estou tentando entrar na reserva, que não tem acesso fácil. O argumento de que garimpeiros clandestinos estão por lá não justifica esta abertura às grandes empresas. Aliás, Temer, existe uma possibilidade de você estar se deixando execrar inutilmente. As empresas que você quer atrair também estão no mundo e devem sofrer pesadas campanhas em seus países de origem.

Não me importa que você confunda Noruega com Suécia, Paraguai com Portugal, ou mesmo reviva a União Soviética. O essencial é não confundir a Amazônia com Goiás, onde tantas terras foram passadas a líderes do PMDB. É um lugar tão complexo, capaz de sepultar não apenas os sonhos pioneiros como o de Henry Ford, mas também as grandes trapaças.


Fernando Gabeira: Notas sobre a decadência

A crise brasileira é tão brava que, às vezes, nos esquecemos de que existe uma outra mais ampla

A crise brasileira é tão brava que, às vezes, nos esquecemos de que existe uma outra mais ampla nos envolvendo: a decadência dos valores ocidentais. Alguns escritores franceses teorizam sobre a decadência da civilização judaico-cristã e chegam a prever a futura dominação muçulmana. Michel Onfray acha que os muçulmanos tendem a predominar, entre outras coisas, porque estão dispostos a morrer por sua crença.

Não tenho a mesma certeza da força da fé, sobretudo no universo político. Sem conhecimentos tecnológico e científico, tática e estratégia adequadas, a disposição de morrer por uma causa pode representar um autoextermínio em grande escala.

O que me atrai nisso tudo é estabelecer um nexo entre a crise ocidental e a brasileira; a mesma realidade, só que em dimensões diferentes.

No final do século, a European Science Foundation realizou uma ampla pesquisa e publicou cinco livros sobre ela. Um deles tem o título “O impacto dos valores”. A tese dos sociólogos e pesquisadores envolvidos no trabalho era que estava havendo uma mudança de valores. Esta mudança não era compreendida pelos governos que insistiam apenas em falar de melhorias materiais e mais riquezas, quando despontavam aspirações novas: desejos não materiais e emancipatórios. Isso acontece no Brasil em alguma escala, quando se defende qualidade de vida ou se constata o crescimento da espiritualidade.

Mas a crise ocidental, pelo menos no meu estudo ainda precário, acabou sendo atropelada, no Brasil, pelo colapso material e pela vulgaridade com que os valores são negados. A crise de valores no Ocidente refere–se à ausência de um sentido numa vida confortável e relativamente bem administrada.

No Brasil vivem-se a escassez e a roubalheira, o que nos dá a impressão de estarmos em outro compartimento; e só alcançaremos as angústias ocidentais quando sairmos do singular sufoco.

No Brasil, deputados se articulam para criar um esquema de sobrevivência eleitoral que inclui um fundo milionário. Juízes como Gilmar Mendes desandam a soltar corruptos, apesar de seus visíveis laços de amizade com eles. Basta ver um pouco de televisão para observar como o caos se espalhou: assaltam até velhos em cadeira de rodas.

Discordo quando se fala em ausência total de valores no Ocidente e insinua-se a possibilidade de uma supremacia muçulmana. Quando acontecem atentados terroristas, governos e sociedade são unânimes em defender um valor essencial: a liberdade. Para ser mais preciso, as vítimas do terrorismo morreram porque vivem num mundo em que a democracia e a liberdade prevalecem.

Essa ideia de morrer por uma causa, que Onfray destaca nos muçulmanos, é romântica e já a adotei na juventude. Mas é inferior à ideia de viver humildemente por uma causa. Valores não materiais e emancipatórios combinam com a democracia e podem significar um avanço na sua inacabada trajetória. É uma aposta no futuro.

Por enquanto, no Brasil, vivemos ainda o que pode ser chamado de fase selvagem da decadência. A lei não vale para todos. Políticos nos assaltam de cara limpa. A elite nacional se recusa, por preconceito, a examinar o grave problema da violência urbana.

Os valores cambiantes na Europa já se anunciavam nos anos 60 e alguns acabaram se materializando na diversidade de lutas e no politicamente correto. Tudo isso tem um impacto bem grande no Novo Mundo. Nos Estados Unidos, a vitória de Trump representou uma espécie de antídoto ao politicamente correto. No Brasil, Bolsonaro encarna esta corrente conservadora, assustada com as ameaças voluntaristas à estabilidade da família.

Na verdade, a família hoje já está bem distante do modelo que os conservadores têm na cabeça. Mas ela existe e não pode ser ignorada, como querem alguns, impondo cartilhas de cima para baixo, avançando, sem diálogos num campo da educação que era exclusivo dela.

Creio que levarei muito tempo ainda para estabelecer todas as conexões entre a crise singular do Brasil e a crise envolvente dos valores ocidentais. O grande problema das duas, tanto aqui como lá, é que tornam atraentes as soluções autoritárias. Soluções externas, como o avanço muçulmano, ou de dentro, sofisticados sistemas de dominação tecnológica.

Um jovem executivo do Facebook já abandonou o trabalho e foi para um bunker se defender de um apocalipse que ele supõe ser o destino do avanço do mundo digital.

O fato de termos problemas anteriores a toda essa agitação crepuscular nos dá um fôlego para vivermos como no Velho Oeste, desejando que os xerifes expulsem os bandidos em todas as esferas em que atuam.

Mas será preciso fazer um esforço adicional para compreender o Brasil dentro do Ocidente. Sair da decadência galopante para a decadência elegante é uma rima, mas, como dizia o poeta Drummond, não é uma solução.

 

 


Fernando Gabeira: Conta de nunca chegar 

Quando cheguei à Argélia para o exílio, o pernambucano Maurílio Ferreira Lima já morava lá. Levou-me para um passeio e passou num açougue para comprar carne. Fez a transação em francês mas, ao sair, disse da porta: “pendura”. Fiquei surpreso com a naturalidade e o sorriso do açougueiro. Maurílio revelou que esta era a única palavra em português que ensinou a ele.

Cada vez que o governo vem anunciar uma nota fiscal, lembro-me de Maurílio. É como se dissessem: “mais R$ 20 bilhões, pendurem”. Maurílio pagava suas contas em dia. Ao contrário do governo, tratava apenas do que comprava, e não de projeções para o ano seguinte. O governo pendurou R$ 20 bilhões em 2017 e anunciou que vai pendurar R$ 30 bilhões em 2018.

Quem vai pagar tanto dinheiro? Eles falam em economia nos gastos públicos. Não acredito. Os dados estão aí: deputados e senadores querem alguns bilhões para financiar suas campanhas.

Se fossem só os políticos, ainda havia uma esperança. A Justiça, que tem sido aliada da sociedade na luta contra a corrupção, é muito reticente quando se discutem os supersalários que excedem o teto legal. Nesta semana, falando com um procurador que atua no Norte do país, ele me passou um quadro desolador. Há promotores que chegam a ganhar R$ 125 mil mensais.

As notícias sobre juízes do Mato Grosso que receberam até R$ 500 mil frequentaram o noticiário e saíram em paz. Um dos juízes chegou a declarar: “não estou nem aí para o espanto que a notícia causou”. Ele não está mesmo. Considera legal receber, e pronto. O próprio Supremo Tribunal Federal sempre tem se manifestado a favor de quem ganha tanto dinheiro com salário e penduricalhos.

Nesse sentido, a orfandade dos brasileiros é total. Os políticos não só desviam dinheiro como inventam fórmulas para receber fortunas através de suas leis eleitorais. E a Justiça não mostra nenhuma sensibilidade para o problema. O que fazer nessas circunstâncias?

Dentro do quadro de apatia que se criou no país, parece que a alternativa é trabalhar e separar o dinheiro do imposto, assim como muitos, em áreas de risco, saem com o dinheiro exato do assalto. Mas é uma tática que tem seus limites. A máquina burocrática brasileira é muito pesada para o país. Ela se comporta como se estivéssemos nadando em dinheiro.

O grande problema da necessária austeridade é o próprio governo. Se ele tem um projeto de reforma da Previdência que implica em sacrifícios para alguns, quem vai apoiá-lo sabendo que não há reciprocidade nos esforços? O resultado disso é a marcha da insensatez que vai nos levando progressivamente ao caos. No momento, falamos em bilhões com tranquilidade, mas já há quem calcule em meio trilhão o rombo nos próximos anos.

Mas toda essa conversa sobre números acaba sendo abstrata. Nas estradas, caiu o policiamento; nas fronteiras, a redução de verbas dificulta a ação das Forças Armadas. Nos hospitais, então, a escassez mata.

Em 2013, a sociedade intuiu que isso estava errado e se manifestou nas ruas, queria serviços decentes para os impostos que paga. Naquele momento, as grandes empresas estavam tranquilas. Se reclamavam dos impostos, a resposta foi simples: ampliar isenções. O BNDES emprestava dinheiro a juros reduzidos, e os próprios políticos ofereciam isenções. De tal forma ofereceram que, no Rio, cabeleireiros, joalherias e até um prostíbulo tornaram-se isentos. A corrupção mostrou como recursos públicos eram drenados. A quebradeira agora vai colocar também em cena algo que não era tão discutido em 2013. Pedia-se um serviço decente em troca do imposto.

Agora, num momento em que cogitam a alta dos impostos, o Brasil merece um grande debate sobre como o bolo dos recursos públicos é dividido.

Por que há tantas isenções e qual o benefício que trazem para o país? Por que uma máquina com tanta gente é tão pouco produtiva? Por que salários tão altos, tantos penduricalhos?

No Congresso participei de inúmeros debates sobre isso, tentando convencer o governo, na época, a reduzir radicalmente as viagens, que custavam em torno de R$ 800 milhões por ano. Já havia os meios para isso: teleconferência, Skype. Hoje foram ampliados com novas alternativas.

O alto custo não é apenas com passagens, mas também com as diárias pagas aos funcionários. Por isso, quando se fala em reduzir custos e aumentar a produtividade, há sempre uma resistência. Apesar de haver gente bem-intencionada entre os funcionários, o ânimo para aumentar a produtividade de serviços públicos deveria vir do universo político.

Do mundo político não virá nada. Foi o próprio sistema político-partidário que criou esse monstro dispendioso. Os políticos, nesse episódio, não são uma solução, e sim uma parte substancial do problema. Se depender eles, o atraso se eterniza. Sempre que apertar, vão dizer: “pendurem”.

 


Fernando Gabeira: O interminável mar de lama  

“Quantas toneladas/ exportamos de ferro? Quantas lágrimas/ disfarçamos sem berro?” Estes versos de Drummond contam uma longa história da mineração em Minas. Uma história que se confirmou pela anulação do processo de Mariana sobre o mar de lama que provocou 19 mortos, dezenas de lares perdidos e um rio envenenado.

O processo foi anulado porque a polícia teria lido e-mails da empresa, sem autorização. Ela só poderia ler e-mails de um período determinado. O argumento da anulação: violência contra a privacidade da Samarco.

Tenho dificuldades em entender por que a quebra da privacidade de uma empresa é superior à morte de 19 pessoas, destruição de comunidades e envenenamento do mais importante rio do litoral brasileiro.

Foi o maior desastre ambiental do Brasil. Precisa ser julgado. Se a polícia leu e-mails demais, basta neutralizar as informações não permitidas. O essencial está lá: a lama, as mortes. O desastre não é um segredinho da Samarco. É uma realidade que todos que viram sentiram e choraram.

No fim da semana, ao chegar em casa, soube que houve um saque a um caminhão de carne tombado. Para mim isso não é novidade. Vejo e filmo, constantemente, saques a caminhões nas estradas brasileiras. No entanto, este tinha um componente especial: ninguém se importou em socorrer o motorista. O saque se prolongou por quase uma hora, antes que chegassem os bombeiros e retirassem o pobre homem dos escombros.

Se junto esses fatos é para enfatizar como é grave um momento em que a vida humana perde seu valor. Um vereador do Rio chegou ao extremo de cobrar propina para liberar corpos do IML. A própria morte passa ser um objeto de negociação.

No seu livro sobre o homo sapiens, Yuval Noah Harari reflete sobre a linguagem humana. Ela não nasceu apenas da relação com as coisas, da necessidade de alertar sobre o perigo, ou mesmo do interesse das pessoas pela vida das outras, da fofoca. Uma singularidade da linguagem humana é sua capacidade de falar de coisas que não existem materialmente, de um espírito protetor, de um sentimento nacional. Esses mitos que nos mantêm unidos ampliam nossa capacidade produtiva e nossas conquistas comuns.

O que está acontecendo no Brasil é o esgarçamento dessa ideia de pertencer ao mesmo país, de partilhar uma história e um futuro.

O mito da nacionalidade é bombardeado intensamente em Brasília por um sistema político decadente. Eles voltam as costas para o povo e decidem, basicamente, aquilo que é de seu interesse pessoal.

Os laços comuns se dissolvem. Não há mais sentimento de comunidade, e daí para adiante é fácil dissolver os laços entre os próprios seres humanos.

No sentido de partilharmos aspirações comuns, já não somos mais um país. E caminhamos para uma regressão maior desprezando as possibilidades abertas pela linguagem, pelos ancestrais que a usavam para grandes conquistas coletivas.

Somos dominados por um sistema político cínico, que se alimenta, na verdade, da repulsa que nos provoca. Mais repulsa, mais indiferença, isto é, menos possibilidade de mudanças reais.

Quando visitei Israel, um motorista de ônibus, ao ver um incêndio, parou, desceu e foi apagá-lo. Muitas vezes na Europa vi gente reclamando quando se joga lixo na rua. E os próprios suíços chamando a polícia quando há barulho depois das dez da noite.

Isso não é aplicável à nossa cultura de uma forma mecânica. Eu mesmo devo fazer barulho depois das dez. Mas o que está por baixo dessas reações é a sensação de pertencer a um todo maior, de ter responsabilidades com ele.

A degradação política conseguiu enfraquecer esse sentimento no Brasil. Eles fingem encarnar um país e quem os leva a sério acaba virando as costas também para esse país repulsivo.

O resultado desse processo destruidor está aí. Reconheço que mecanismos de desumanização estão em curso em todo o mundo e que fazem parte de um processo mais amplo. Mas é uma ilusão pensar que nossas vidas são apenas um reflexo de uma época que tritura valores. Existem razões específicas, made in Brazil, que nos fazem recuar em termos civilizatórios.

A expressão “elite moralmente repugnante” foi durante muitos anos aplicada aos setores dominantes do Haiti. Ela pode ser transferida para Brasília.

A coexistência silenciosa e indiferente diante dessa realidade vai minar os próprios fundamentos da vida comum.

Os versos de Drummond não se limitam a descrever a tragédia mineral: quantas toneladas de ferro, quantas lágrimas disfarçadas?

O Brasil vai recuperar a força de sua humanidade quando se rebelar. Enquanto aceitar silencioso as afrontas que vêm de cima, a tendência é abrir mão de suas conquistas de homem sapiens e mergulhar numa noite de Neandertal.

O sinais estão aí. Adoraria estar enganado.

*  Fernando Gabeira é jornalista


Fernando Gabeira: Uma fronteira com a tirania  

Cai ou não cai, o cara? O que é que vai acontecer por lá? As perguntas se sucedem nas ruas e não consigo respondê-las a contento. Não importa, também não há assim grande tensão nas perguntas. Se Temer cai, haverá apenas uma troca de seis por meia dúzia, parecem dizer. Todos pressentem um período medíocre, incapaz de provocar grandes paixões. Há quorum, falta quorum? Que interesse há nisso, uma vez que os deputados já fizeram suas apostas em cargos e emendas? E vão esperar um outro momento em que Temer se sinta com a corda no pescoço.

As pesquisas indicam que 81% dos entrevistados querem que a investigação sobre Temer prossiga, com todas as suas consequências. Mas essa mesma correlação de forças não se repete no Congresso. A opinião pública é refém dos eleitos, e eles se acham seguros para negociar. Ainda não se convenceram de que uma catástrofe eleitoral os espera.

Mesmo num quadro tão negativo, é possível se encontrar um certo alento. Se Dilma estivesse no governo, seria uma semana dura.

No auge de uma crise prolongada, mais de uma centenas de mortos nas ruas, a Venezuela entra numa ditadura: um fanfarrão de camisa vermelha dança “Despacito” e baixa o pau nos opositores. Pensei que a esquerda brasileira, na maré baixa, fosse mais discreta. Mas alguns dos seus partidos manifestaram seu apoio a Nicolás Maduro. Isso revela que, no fundo, o modelo bolivariano ainda a atrai. Está implícito em certas bandeiras, como no projeto de controle da imprensa.

Os projetos comuns no Brasil, como uma refinaria em Pernambuco, acabaram sendo um fardo para o Brasil. Chávez tirou o corpo fora e, no âmbito nacional, a corrupção correu solta. O governo petista mandou a Odebrecht que, para não perder a viagem, pagou US$ 9 milhões de propina à cúpula chavista, segundo a procuradora Luisa Ortega. A reeleição de Hugo Chávez contou com um decisivo apoio petista, somado à grana da Odebrecht, que, na verdade, era a grana do BNDES. Essa campanha foi narrada por João Santana e Mônica Moura e foi orçada em US$ 35 milhões.

Incapaz de compreender seus erros internos, parte substancial da esquerda brasileira mergulha nos erros alheios e defende um regime autoritário, violento e isolado internacionalmente.

O Brasil nunca seria uma Venezuela, talvez pudesse chegar perto se a crise avançasse. No entanto, a tentação de avançar nesse rumo não abandonou a esquerda e agora, com a queda de Dilma, ficou mais evidente por que o PT radicalizou.

O controle do Congresso, na base de cargos e verbas, é uma tática que se desdobra até hoje. Mas não é 100% eficaz em momentos dramáticos. O chamado controle social da mídia nunca foi palatável até para os aliados do governo petista. A única saída foi construir uma rede de apoios com blogs e guerrilha digital.

Resta outro ponto, presente na experiência da Venezuela, que jamais aconteceria no Brasil: o apoio das Forças Armadas. Sem esse apoio, o próprio Maduro já teria ido para o espaço.

Dilma pode ter sentido uma tentação de acionar os militares. Mas os sinais que vinham de lá eram desalentadores para um projeto de esquerda.

Apesar de ressaltar seus laços ideológicos e programáticos com o chavismo, no Brasil a esquerda não é protagonista no drama que se desenrola. Ela apenas é um ponto de apoio de um regime brutal. As lentes ideológicas de nada servem para tratar dos problemas que surgem com o mergulho da Venezuela numa ditadura.

Temos fronteiras comuns. Embora num nível menor do que na Colômbia, refugiados chegam em levas maiores em Pacaraima. Já temos um problema social na região. Roraima depende da energia produzida na Venezuela. Talvez seja necessário pensar em alternativas mesmo porque os constantes apagões são um aviso.

O território dos ianomâmi atravessa os dois países. Na década de 1990, chegamos a formar comissão mista Brasil-Venezuela para discutir uma política comum para os ianomâmi. Mas naquele tempo, ainda que imperfeitos, havia parlamentos com espaço para essa discussão.

Nas últimas viagens que fiz à fronteira, voltei com uma sensação de que era preciso uma avaliação do Brasil em face do novo momento. Um cenário provável é que a ditadura de Nicolás Maduro, produzindo mortes diárias, vai ser um tema global tratado na própria ONU.

No momento em grandes atores entram em cena, seria bom que o Brasil soubesse o que quer e o que precisa fazer. Caso contrário, seremos engolfados por uma política internacional sobre um tema que envolve, de uma certa forma, o nosso próprio território.

Não importa se Temer, Maia ou qualquer desses políticos assuma o comando, muito menos se o período é de desesperança. Escapamos, por exemplo, de ver um governo, em nome do Brasil, apoiar o golpe de Maduro e recitar a cantinela da solidariedade continental contra a pressão da direita. Pelo menos disso, escapamos. Agora, o resto está bravo.