Fernando Gabeira: O país do carnaval e das novelas
Do maior dos enredos, as eleições, espera-se gente que nos possa ajudar a sair do buraco
Dizem que no Brasil o ano só começa depois do carnaval. Não é verdade, pelo menos em 2018. Há várias novelas em andamento e o carnaval será uma simples pausa na sua trajetória.
A nomeação da deputada Cristiane Brasil para o Ministério do Trabalho é uma delas. O governo cometeu um erro na escolha. À medida que os fatos vão ampliando a dimensão desse erro, Temer insiste em manter sua decisão, apesar do imenso desgaste.
O que fazer diante de pessoas que percebem o erro, mas insistem em levá-lo até o fim? Talvez desejar que Deus as proteja delas mesmas.
A outra novela é a tentativa de Lula de escapar das consequências de uma condenação em segunda instância. É uma expectativa que envolve o Supremo Tribunal, a quem se pede, no fundo, a negação do fundamento que inspirou as investigações da Operação Lava Jato: a lei vale para todos. Não há condições de mudá-la sem que isso represente uma imensa fratura na já combalida credibilidade da instituição.
A terceira é mais delicada, porque envolve a Justiça e a sociedade, que a apoiou no curso das investigações e das sentenças. Auxílios-moradia, salários turbinados, juízes combatendo uma necessária reforma da Previdência Social – tudo isso vai criando uma distância que ainda pode ser reparada pelo bom senso.
A Justiça tardou a compreender que o movimento de combate à corrupção com apoio da sociedade certamente traria uma visão mais severa sobre o uso do dinheiro público. O fato de oportunistas tentarem invalidar a luta contra a corrupção porque os juízes recebem salário-moradia em cidades onde têm residência é inconsistente e não está aí o maior problema.
É possível dizer que a Justiça parcialmente triunfou sobre o gigantesco esquema de corrupção. Mas é um tipo de luta que imediatamente leva a um novo patamar: o da coerência.
A reforma é também um confronto com as corporações. A dos juízes está em posição especial para constatar como o País foi saqueado e como a máquina do Estado é inflacionada com cargos em comissão e inúmeros penduricalhos.
Estamos na lona. Mas esperando que as instituições confiáveis, como a Justiça e as próprias Forcas Armadas, se aproximem do esforço nacional de ajustar o País à sua realidade financeira.
Não é só a luta contra a corrupção nem o princípio de que a lei vale para todos que estão em jogo. Há toda uma luta silenciosa no País contra a ideia de que todos querem vantagens públicas, mesmo os que aplicam a lei.
Desejo um final feliz para essa novela, uma vez que dela depende, em parte, o futuro de uma reconstrução baseada na aliança de amplos setores da sociedade com as instituições confiáveis.
Um dos meus argumentos contra a luta armada é que ela precisa criar um exército de salvação nacional para triunfar. Depois, quem nos salvará dos salvadores? Claro que vivemos uma situação diversa, mas é importante que a Justiça, após um trabalho nacionalmente aprovado, reconheça que ela mesma precisa se ajustar aos tempos que ajudou a moldar.
Tudo isso ainda nos espera depois do carnaval, abrindo alas para o enredo maior de 2018: eleições. Delas é possível esperar a escolha de gente que nos possa ajudar a sair do buraco não só da economia, mas também do desencanto geral com os rumos do País.
A reforma da Previdência foi conduzida por um governo impopular. Mas ela não é necessariamente impopular se reduz privilégios, cobra dos devedores e garante um futuro menos instável. Não precisa vir numa situação já de emergência, como na Grécia, trazendo insegurança e sofrimento. Ou como no Rio, para não ir mais longe.
Minha expectativa é de que isso se resolva bem na campanha. Os candidatos sabem que a reforma é necessária. Ou a defendem ou serão obrigados a fazê-la depois, nesse caso com baixa legitimidade, porque mentiram na campanha.
É uma ilusão da esquerda negar uma reforma necessária. Um dos fatores que a levam à resistência é o fato de estar muito enraizada nas corporações. Nesse caso pesa também o cálculo eleitoral. Até que ponto perder parcialmente o apoio dos funcionários públicos seria recompensado em votos pelos contribuintes?
Não só a esquerda vive esse dilema, mas o sistema político-partidário no seu conjunto. Ele não tem fôlego para realizar uma tarefa decisiva. Tornou-se um obstáculo às chances de reconstrução econômica. Entre outras, essa é uma das fortes razões para esperar mudanças a partir das escolhas de 2018.
Se o carnaval dá uma pausa para as novelas políticas, ele é implacável com a tragédia da violência urbana. Tudo continua. No Rio, três grandes vias, Linha Vermelha, Linha Amarela e Avenida Brasil, foram interditadas por tiroteios entre polícia e bandidos. Um menino e um homem morreram. Balas perdidas, governo perdido.
Já é um pouco estranho que tanta gente pare para fazer o carnaval. Mas seria mais estranho ainda que o governo parasse sobretudo nesta emergência. Existem graves problemas de violência no Norte e no Nordeste, mas o caso do Rio tem algumas agravantes.
A situação é tão grave que os responsáveis por atenuar o problema o examinam de certa distância. O ministro da Defesa declarou que o sistema de segurança está falido e o governador Pezão disse que na Rocinha se mata policial como se mata galinha. São bons comentários para um programa de rádio, mas quem está na linha de frente, ao dizer isso, imediatamente tem de responder a perguntas como: e daí? E os tiroteios? Como é que vai ser? Significa que estamos sós e desarmados antes, durante e depois do carnaval?
A moderada esperança nas eleições não significa abstrair problemas que não podem esperar, não só porque envolvem vidas, mas porque podem criar um terreno fértil para soluções autoritárias.
Fernando Gabeira: Brasil horror show
Talvez tenhamos sofrido um transplante de consciência, mas não deu certo
- O Globo
Vendo o anúncio da série “Altered Carbon” tive uma estranha intuição sobre o que acontece no Brasil. A ideia central é o transplante de consciência de um corpo para outro. Creio que o filme deve levar a refletir também sobre o tema do momento: a inteligência artificial. Talvez tenhamos sofrido um transplante de consciência, só que foi uma operação que não deu certo. Alguns mecanismos deixaram de funcionar ou foram rejeitados pelo cérebro receptor.
Um exemplo: a decisão de Michel Temer de nomear Cristiane Brasil como ministra do Trabalho. Ela foi processada duas vezes na Justiça do Trabalho. Sua nomeação foi bloqueada. Temer insiste.
Com o caso prestes a ser julgado no Supremo, Cristiane Brasil aparece num barco dizendo barbaridades. O que mais repercutiu foi a forma de sua aparição, cercada de homens sem camisa, gritando “É isso aí, doutora”.
Mesmo se estivesse num convento cercada de piedosos frades, ela simplesmente mostrou que não conhece o tema para o qual foi designada: “Não sei quem passa na cabeça dessas pessoas que entraram na justiça contra mim.”
Ao dizer isso, revelou uma falha abissal na sua consciência política. Não ficou claro se ao pronunciar “quem” no lugar de “o que”, ela estava se referindo a uma possível entidade que baixa na cabeça das pessoas — um exu, uma pombajira — quando decidem reclamar seus direitos.
Temer diz que é uma escolha política. Entende por política apenas a relação com o Congresso. Falta nele a dimensão da sociedade. Acredita que basta frequentar programas populares de tevê. Falhas na operação de transplante.
A consciência de Itamar Franco, transplantada com êxito, não hesitaria diante do problema. Ele afastava ministros apenas por aceitarem hotel pago pela Odebrecht.
Foi tudo muito alterado no carbono político brasileiro. Os trabalhadores são insultados com uma escolha de uma ministra processada na Justiça do Trabalho, que nem sabe que santo baixa nas pessoas que reclamam direitos trabalhistas.
No passado, as entidades sindicais protestariam. Mas não se ouvem seus lamentos, nem nas ruas nem no Congresso. Algumas se concentram na defesa de seu líder condenado; outras estão envolvidas no toma-ládá-cá de Brasília.
A alteração transforma a cena política brasileira num show de horror. Uma ministra indicada dizendo aquilo e os homens sem camisa afirmando: todo mundo é processado na Justiça do Trabalho.
Quando digo show de horror não estou fazendo nenhuma alusão aos problemas que preocupam Temer. Ele confessou que sofria muito com a história de que estava ligado a práticas satânicas.
Tudo isso é uma bobagem. Assim como também acho injusto o apelido que ACM deu a Temer: mordomo de filme de terror.
Convivi com Temer alguns anos e o acho uma pessoa tranquila. Ele se parece com uma pessoa cordial. Não há nada de errado externamente. O problema foi esse possível transplante de consciência que não deu certo. Alguns reflexos desapareceram.
As evidências mostram como seu projeto de investir em Cristiane Brasil é um equívoco político. Mas em vez de dar graças a Deus porque juízes bloquearam a nomeação, decide lutar até o fim.
Vão morrer abraçados, Cristiane, Temer, os quatro homens sem camisa e até o ministro Carlos Marun, que, desde o tempo em que defendia Eduardo Cunha, não tem a tecla contato com a realidade social.
“Vocês queriam que ela estivesse de burka?”, perguntou Marun aos repórteres. Ninguém a quer usando burka ou biquíni. O que a consciência dos políticos precisa incorporar é simplesmente isto: é errado nomear não apenas acusados de corrupção mas também pessoas que ignorem o conteúdo de sua pasta.
Marun está para Temer como estava para Cunha: pronto para defender o chefe, não importa se as circunstâncias são constrangedoras.
Com a mesma expressão séria com que afirmava a inocência de Eduardo Cunha, agora se dedica não só a atacar procuradores mas a defender o direito de Temer de indicar seus ministros, sejam quem forem.
Neurônios se perderam na operação, sinapses tornaram-se impossíveis. Interessante é que chamam isso de política. Não percebem que para a própria sociedade, política é algo muito mais amplo e aberto.
O aliado maior de Temer, o PT, queria nos convencer que o objetivo último da vida é consumir eletrodomésticos e viajar de avião. Em nome dele, valia tudo. A parte da quadrilha que sobreviveu quer nos fazer crer que o objetivo central da vida é uma aposentadoria segura. Em nome dela, vale tudo.
O vírus chamado fins justificam os meios acabou se introduzindo na consciência com tanta força na cena política, e talvez seja ele que acionou a degradação do programa mental, tornando a política algo tão vulgar quanto uma pornochanchada.
Fernando Gabeira: Delírios tropicais
Ouvindo pelo rádio o julgamento de Lula, parece que a novela não terá fim
Seguir na estrada um longo julgamento como o de Lula é curioso. Há momentos em que a internet vai para o espaço e as emissoras de rádio desaparecem com zumbidos e estalos insuportáveis. O interessante é ouvir muitos programas diferentes, na medida em que passamos pelo raio de ação das emissoras. Não é a mesma coisa que a Coreia do Norte, onde aquela mulher com trajes típicos anuncia os foguetes de Kim Jong-un. A cobertura é bem desconstraída, até um pouco vaga. Num dos programas, o comentarista reclamava: o juiz está chamando cozinha de kitchen, usando a palavra em inglês.
Imediatamente, alguém vem em socorro e explica que Kitchen é marca da cozinha, a mesma comprada para o tríplex de Guarujá e o sítio de Atibaia, ambos atribuídos a Lula. Em seguida, começam as projeções. Alguns calculam que os recursos vão demorar tanto que Lula poderá ser presidente antes de todos serem julgados.
Isso não confere com minha visão. Mas o que fazer? Havia também uma grande excitação sobre o resultado, algo que para mim era previsível, tanto que já tinha escrito sobre essa novela e esperava o seu fim para que se possa discutir o que importa: a reconstrução do país.
O que senti ao longo do caminho, ouvindo fragmentos de debates, foi uma sensação de, para muitos comentaristas, a novela não pode acabar nunca. Os recursos, restam os recursos. Cada recurso será um capítulo à parte da novela e assim, segundo eles, vamos ter confusão até o fim da campanha de 2018.
Tinha de escrever dois artigos à noite. Fiquei temeroso: será que minha visão não é simples demais? Esperava esse resultado, achava-o um desfecho previsível apesar de toda a marola do PT. Já tinha a experiência do depoimento de Lula em Curitiba. Tudo normal.
Num tema tão emocionalmente carregado como esse, era natural que a fronteira do delírio fosse muitas vezes transposta. Gleise Hoffman, por exemplo, teve visões. Conseguiu achar um cartaz pro Lula na torcida do Bayern. Na verdade, era um cartaz escrito Forza Luca, um torcedor que está internado. O deputado cearense José Guimarães viu ônibus levando apoiadores de Lula da fronteira, mas eram apenas ônibus transportando sacoleiros.
Mas os comentaristas não estão livres de alucinações. Uma delas é imaginar um presidente dirigindo o país da cadeia.
No fim da tarde, a maneira como descreviam o resultado de 3 a 0 me desconcertava. Como escrever artigos daqui a pouco? Entendi que Lula foi condenado por unanimidade. Ouvi, e nesse momento o som do rádio estava audível, que ele deve cumprir a pena na prisão.
Como interpretar frases como essa: com essa condenação o destino eleitoral de Lula ficou incerto? Para um viajante na estrada, com pouca conexão, a tendência é achar que uma pessoa condenada a 12 anos de cadeia tem um destino muito mais definido do que a maioria dos mortais que circula em liberdade.
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Para mim, a leitura de uma condenação unânime e a conclusão de que a pena deve ser cumprida em regime fechado é o dado essencial. Os comentaristas davam uma volta nele, como se não existisse. Só tratavam da eleição de Lula e, com alguma volúpia, das confusões jurídicas que projetavam para o futuro.
Na estrada concluí que havia uma diferença de enfoque. Todos estavam concentrados na eleição de Lula. Mas o que está em jogo a curtíssimo prazo é a liberdade de Lula. Para que Lula continue representando o candidato que vai salvar o Brasil, é preciso que alguém o liberte. Nesse caso, as esperanças vão se voltar para o Supremo, mais especificamente Gilmar Mendes. Aí, sim, talvez tenha alguma emoção no futuro. O Supremo teria de mudar seu próprio entendimento para que Lula não fosse preso, após o julgamento em segunda instância.
Se isso acontecer, será a revelação final de como a instituição faz parte do sistema político e apodreceu velozmente com ele. A ideia de que a lei vale para todos vai ser contestada de uma forma pedagógica.
O Supremo teria de rever às pressas sua decisão, contrariar abertamente a sentença explícita do TR4. E afirmar que Lula não pode ser preso, exceto quando se esgotarem todos os recursos, inclusive no próprio Supremo. Vejo um cenário desse tipo com certa frieza. Afinal, como dizia Guimarães Rosa, o que tem de ser tem muita força. Alguns ministros, como Marco Aurélio Mello, já declaram que a prisão de Lula vai incendiar o país. Vai ficar mais claro ainda o papel do Supremo na degradação nacional e sua cumplicidade objetiva com a corrupção dos políticos.
Há sempre um incêndio no futuro. Na semana passada, era o resultado do júri. Agora, suas consequências. Muitas ameaças não cumpridas acabam sendo a única uma forma de argumentar. E ela fracassa quando se perde o medo de viver numa sociedade em que todos pagam pelos seus crimes.
Em vez de inventar uma saída para Lula, um Supremo com um mínimo de vergonha na cara deveria estar fechando a dos outros políticos, protegidos pelo foro privilegiado.
Fernando Gabeira: A longa marcha pelo tapetão
O jogo acabou. O Brasil livrou-se de um populista em 2018. Mas não do populismo
De vez em quando, o Brasil entra nuns desvios e perde o foco, mesmo vivendo uma crise profunda, com alarmes assustadores, como o rombo na Previdência. Esse desvio foi uma escolha da esquerda. E o País, no conjunto, acabou distraído com a sorte do ex-presidente Lula.
Havia mais gente nas filas de vacina contra a febre amarela do que manifestantes na rua. Não perdemos o fio terra.
Esse descaminho começou com a tática do PT de negar a montanha de evidências trazidas pela Lava Jato. A tarefa principal era salvar Lula da cadeia. Foi o motivo de ele ter-se declarado candidato a presidente, de novo.
Com esse movimento, associaram a sorte de Lula ao rumo das eleições e acharam a mola política com que iam saltar a montanha de evidências: explicar os fatos como uma conspiração da Justiça; se as pessoas não percebem isso, é porque a conspiração tem outro braço poderoso, a grande imprensa.
Para a esquerda, a sorte de Lula, a das eleições e da democracia são a mesma coisa. Não perdi tempo tentando discutir isso. É apenas uma cortina de fumaça que nos afasta da tarefa de reconstruir o País e, dentro dos limites, realizar mudanças no sistema político.
A decisão do TRF-4 foi uma espécie de choque da realidade, embora uma perspectiva política carregada de religiosidade possa ver nessa derrota apenas um prenúncio da grande vitória final.
Foram muitas as visões. Viram alguém com um cartaz “Forza Luca” na torcida do Bayern de Munique e acharam que era “Forza Lula”. Viram ônibus de mochileiros vindos da fronteira e acharam que eram apoiadores de Lula.
Nada contra o direito de delirar. Mas quando o delírio compromete o foco de reconstrução nacional, ele preocupa. De certa forma, acho que a própria imprensa – a grande manipuladora, na opinião da esquerda – acaba embarcando nessa expectativa de um grande acontecimento, na verdade, uma condenação lógica e previsível.
Não porque a imprensa tenha uma tendência à esquerda. Ouvi a cobertura do caso na estrada, o rádio passando por várias cidades, vozes diferentes. Existe uma certa expectativa de projetar problemas futuros. Passada a decisão, ela se deslocou para os recursos que podem surgir.
O resultado foi de três a zero. Claro que pode haver recurso, mas não tem importância nenhuma. Ninguém pergunta ao time de futebol que sofre uma goleada se vai entrar com um recurso. E se entrar, pouca atenção se dá a ele.
Quando me dei conta, já havia um cipoal de recursos previstos, de forma que o problema só seria resolvido em agosto de 2018 e até lá seríamos prisioneiros desse impasse. Parece que existe uma satisfação em escavar recursos e apelações, enfim, um desejo inconsciente de não sairmos do lugar, pelo menos até agosto.
Mas os dados estão lançados. Assim que for julgado o recurso, pela lógica de condenação em segunda instância Lula será preso.
Essa é a leitura que fiz na estrada. De forma muito frequente os comentaristas se abstraem da consequência legal da decisão e se fixam nas eleições. É como se Lula tivesse sido condenado simbolicamente e tivesse apenas pela frente uma longa batalha jurídico-burocrática.
Enfim, ao dramatizar um recurso perdido de antemão o Brasil construiu uma grande plataforma emocional, um espaço de distração, cheio de pequenos sobressaltos. Ao invés de cair na realidade e olhar para a frente, vai acompanhar a longa marcha da esquerda pelo tapetão.
Peço desculpas de novo por me ausentar dessa questão, como me ausentei da história do recurso no TRF-4. Havia provas testemunhais, periciais e documentais e o TRF-4 tinha confirmado todas as principais sentenças de Moro.
A emoção desloca-se para embargos de declaração, recursos especiais, enfim, pela perpetuação do jogo.
As multidões que foram às filas de vacina contra a febre amarela, embora um pouco alarmadas, estavam com um pé na realidade, esperando que o universo político-midiático se volte para problemas reais da reconstrução do Brasil. Toda essa encenação dramática do PT diante de um fato inevitável foi a fonte de diversão e material para o suspense jornalístico.
Não tem jeito. Se o ritmo escolhido pela imprensa for também o de dramatizar o tapetão, então vamos ter de esperar com paciência.
O problema é que está chegando a hora de discutir alternativas para o País. Fabio Giambiagi, que estuda há muitos anos o déficit da Previdência, encontrou uma imagem para a situação do País: o Brasil suicida-se em câmera lenta.
Se consideramos o tempo curto e a necessidade do foco na reconstrução, veremos que também na política é preciso olhar para a frente. Toda essas dispersões, esse falsos dramas, servem apenas para consolidar nosso atraso.
Um gigantesco esquema criminoso assaltou o País durante muitos anos. Investigações eficazes e um magnífico trabalho de equipe nos puseram diante de toneladas de evidencias. É razoável esperar que as pessoas sejam condenadas e presas.
Dentro ou fora da cadeia, Lula será um importante eleitor. Não creio que tenha descido acidentalmente ao lado de Jaques Vagner e Fernando Haddad em Porto Alegre. Faz parte do ritual comunista indicar a sucessão pela proximidade física nas aparições em público. Com o tempo, até eles terão de olhar para a frente, como a viúva que aos poucos deixa o luto e encara de novo a vida.
O jogo acabou. O Brasil livrou-se de um populista em 2018. Mas não se livrou do populismo. Esse é ainda um grande problema do amanhã, que só um amplo e qualificado debate nacional pode superar.
Há um longo caminho pela frente, espero que possamos vê-lo com, nitidez, em vez de nos perdemos na gritaria de derrotados pela sociedade, que deseja justiça e instituições que a apliquem com transparência.
Fernando Gabeira: Os loucos e o poder
Temo que seja cada vez mais difícil enquadrar lideres mundiais nos parâmetros da sanidade mental
- O Globo
A discussão sobre a saúde mental do homem mais poderoso do mundo é algo novo para mim. Mas o tema associando loucura e política certamente apareceu em muitos momentos da História. Nos tempos mais recentes, sempre foi mais comum uma discussão sobre a saúde física. No caso de Franklin Rooosevelt, o que estava em jogo era sua mobilidade, algo aparentemente superado nos dias de hoje: a cadeira de rodas não é um obstáculo intransponível.
A questão da loucura apresenta dificuldades: como definir que uma outra pessoa é louca contra a vontade dela, sobretudo quando ocupa o cargo político mais importante do planeta?
O debate sobre a saúde mental de Trump se acentuou com o lançamento do livro “Fogo e fúria”, de Michael Wolff. Os argumentos que tenho lido não me convencem de que Trump é louco. Às vezes detêm-se em análises de gestos simples como levantar um copo de água, sem considerar que certas hesitações se devem mais à velhice do que à loucura.
A disputa com Kim Jong-un sobre quem tem o botão maior, embora infantil na boca de um presidente, expressa uma tendência à competição onipresente em inúmeras atividades humanas.
No tempo em que Stalin dominava a União Soviética, muitos opositores foram mandados para o hospício. Era algo bastante temido, sobretudo entre intelectuais. O regime comunista não só monopolizava o poder como também se sentia em condições de monopolizar a razão. Ser de oposição era sintoma de uma doença mental. Numa sociedade democrática deve haver alguns protocolos, inclusive para uso da Justiça, determinando se a pessoa cruzou ou não a fronteira da sanidade. Quando se trata de algo tão político, é evidente que se formem duas grandes correntes, cada uma desconfiando abertamente da imparcialidade científica da outra.
Não tenho condições de afirmar se Trump é louco ou não. Outro dia, em Porto Alegre, um jovem me fez uma longa e complexa pergunta, concluindo: acha que estou louco? Quem sou eu para dizer que uma pessoa está louca, respondi. Tenho dúvidas a respeito de mim mesmo. No passado, Francisco Nelson, um grande amigo do exílio, sempre me confortava: tudo bem, você está lúcido.
Chico Nelson morreu de enfarte. Desde então, dedico-me a responder sozinho e falta energia para julgar os outros.
Mesmo para quem vive num país surreal como o Brasil, é estranho ver dois líderes mundiais trocando insultos, e Trump dizendo que tem um botão maior que o do outro.
Às vezes acho que discussão sobre a saúde mental de Trump mascara outra mais delicada: até que ponto ele representa a normalidade estatística, até que ponto o que está em jogo não é a sanidade da própria sociedade americana?
Ainda assim, restaria a dúvida sobre o é que normalidade nos dias de hoje. Antigamente, em Minas, um ditado popular tentava fixar a fronteira entre loucura e lucidez: é louco mas não rasga dinheiro. Que sentido tem essa fronteira numa sociedade consumista? Até que ponto a ostentação dos bilionários não é um rasgar dinheiro com base na realidade? Muitos de nós se lembram que loucura e poder estão associados de tal forma que, num dos clichês das comédias do passado, o louco aparecia sempre dizendo que era Napoleão Bonaparte.
Melhor, no exame dos atos de Trump, é analisar um a um, não sob a ótica da saúde mental, mas de sua eficácia política.
Trump retirou os EUA do Acordo de Paris. É um cético quanto ao aquecimento global. A dúvida dele a respeito de evidências que nos parecem esmagadoras tem consequências políticas. Uma delas é abrir espaço para que China tente ocupar o vácuo deixado pelos Estados Unidos, e a França recupere um pouco de sua grandeza perdida.
Temo que seja cada vez mais difícil enquadrar lideres mundiais nos parâmetros da sanidade mental.
Na atual fase do capitalismo, o entretenimento de milhões de pessoas tornou a indústria da diversão tão importante que tendem a surgir dela os nomes mais viáveis para liderá-la.
O próprio Trump usou a indústria da diversão para ampliar sua popularidade e, agora, utiliza o Twitter como seu programa particular.
Não nego que os critérios de sanidade e loucura ainda são importantes e mobilizam milhões de profissionais dedicados a, pelo menos, atenuar o sofrimento humano.
Transplantados para a política, esses critérios talvez não tenham a mesma validade. Minha suspeita é de que na luta cotidiana para espantar o tédio, a excentricidade torne-se uma espécie de capital para os candidatos ao poder.
Trump é um sintoma de algo bem mais sério e bem mais louco do que podemos imaginar. Aceitar essa premissa é incômodo mas nos aproxima da realidade. Não foi por acaso que, depois da Segunda Guerra Mundial, os intelectuais se voltaram não para dissecar a psicologia de Hitler, mas para se investigar o que havia na sociedade alemã para tornar possível sua liderança.
São outros tempos, mas, creio, a tarefa ainda é a mesma.
Fernando Gabeira: A compulsão de pedalar
No fundo, PT e PMDB não eram só uma coligação, mas uma equipe de ciclistas
O Brasil tem dois fatos marcados para o início de 2018. Um, com direta repercussão na política, o julgamento de Lula, em 24 de janeiro; e o outro, com impacto na economia, a votação da reforma da Previdência, marcada para 19 de fevereiro.
Em agosto de 2018 o impeachment de Dilma Rousseff completa dois anos, e existe ainda uma discussão aberta sobre se valeu a pena, se foi melhor para o Brasil.
Formalmente, Dilma foi derrubada por causa das pedaladas fiscais, por ter gastado mais do que permitia a lei. Nas comissões e no plenário do Congresso oradores se sucediam para condenar essa prática. Parte do governo de Dilma, o PMDB se voltou contra ela e apoiou o impeachment. Estavam todos horrorizados com as pedaladas fiscais.
Agora, o segundo aniversário do impeachment vem aí e o governo falou em aprovar, antes dele, uma lei que lhe permita pedalar sem ser punido legalmente. Ao que parece, não queria nem pedalar, mas passar da bicicleta comum para uma elétrica, destas que se movem sem o esforço das pernas. Em termos de nossas tradições, nas quais certas leis pegam e outras não, o governo Temer pretendia inovar. Não se trata mais de afirmar que a lei não pegou, e sim de uma lei que tira férias, como, por exemplo, o horário de verão: só vale em certa época do ano. Não há dúvida de que isso desmoralizaria a tese central do impeachment.
Todos sabemos, também, que a esperança do movimento popular era deter o processo de corrupção. Mesmo aí os resultados só podem ser creditados à Operação Lava Jato, porque o governo Temer não só fazia parte do esquema de corrupção anterior, como é muito mais audacioso que o PT, como mostra aquele maroto decreto de indulto no final do ano. Na verdade, são táticas diferentes. O PT faz coisas erradas e tenta convencer de que você é que está equivocado, tem uma visão conservadora, aristocrática – enfim, há um arsenal de adjetivos a serem usados em cada ocasião. O governo Temer usa a tática do se colar, colou. Sem debates, assinou um decreto abrindo uma área da Amazônia à mineração. Ouviu o barulho e concluiu: não colou. No caso da portaria que atenuava as punições ao trabalho escravo, da mesma forma, ouviu o barulho e concluiu: não colou. Vamos fazer algo mais severo ainda porque as eleições vêm aí. O indulto de Natal morreu no STF, por uma decisão de Cármen Lúcia. Duvido que sobreviva ao plenário, embora já imagine quem possa votar a favor. E, finalmente, as próprias pedaladas “dentro da lei” parecem não ter colado também.
O único saldo do governo Temer foi ter conseguido deter o processo de degradação da economia, propiciar uma discreta retomada do crescimento. Somado à reforma da Previdência, ainda que modesta, ganhará fôlego para ir até o fim, um pouco pela inutilidade de, simultaneamente, derrubar um governo e eleger outro em 2018.
Voltando ao calendário, suponho que a decisão do caso Lula este mês e a possível reforma da Previdência definam um cenário relativamente favorável ao debate sobre a reconstrução, implícito na campanha eleitoral.
Não abstraio a existência de protestos, caso a condenação de Lula seja confirmada. Mas o êxito máximo de um movimento desse tipo seria manter Lula em liberdade, apesar da condenação em segunda instância. Dar umas férias a essa determinação legal do STF.
A sentença de Sérgio Moro não será anulada. A tese de que houve uma perseguição judicial é difícil de se expandir para fora do petismo, pois foram vários anos de trabalho de investigação, toneladas de documentos, perícias, provas testemunhais.
Tudo isso aconteceu numa atmosfera democrática, com Congresso aberto, imprensa e, sobretudo, transparência. Aliás, o processo de investigações foi acusado mais por mostrar do que ocultar, como naquele diálogo entre Dilma e Lula em que Bessias levaria um documento de posse para proteger Lula da prisão.
A esquerda decide lançar todas as suas fichas na salvação do líder num momento em que a maioria está preocupada com a salvação do País. Essa energia concentrada em salvar Lula deixa de lado algumas questões vitais que ela teria de encarar num processo eleitoral.
Será difícil de afirmar que a corrupção é algo apenas do governo Temer, que conseguiu se equilibrar porque era o sócio menor no esquema descoberto pela Lava Jato. Será difícil de explicar como acabou com a pobreza e surgiram 52 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza apenas neste curto mandato de Temer. É como se 52 milhões de pessoas estivessem escondidas nos pântanos, nas selvas, favelas e sertões e tivessem aparecido apenas quando ouviram os gritos de “tchau, querida”.
De qualquer forma, mesmo distante do tema da reconstrução, a esquerda é importante fator subjetivo no cenário eleitoral. Ela afirma que as eleições sem Lula são uma fraude, em outras palavras, que a decisão do TRF-4, caso confirme a sentença, não vale. Na verdade, ela pede uma espécie de corredor em que alguns mecanismos legais sejam suspensos, para que ele possa prosseguir na salvação dos pobres, mandando-os de novo para a galáxia onde se escondiam antes do impeachment. Se a decisão do TRF-4 confirmar a de Moro, então seriam necessárias não só as férias da determinação de prender em segunda instância. Seria preciso, também, um congelamento da Lei da Ficha Limpa. Não afirmo que isso é impossível. Apenas muito improvável, uma espécie de distração dos problemas reais do País.
Na Venezuela, foi possível, por exemplo, colonizar a Justiça e corromper os militares com cargos e vantagens. Cada pessoa perdeu em média 5 kg nestes anos de Maduro. Os venezuelanos estão sumindo corporalmente, assim como os pobres sumiram nas estatísticas do PT.
É difícil elaborar os fracassos, partir para outra. Requer capacidade de dúvida, suspensão da fé religiosa em certos projetos políticos. Por enquanto, as esperanças do governo Temer e as do PT são de pedalar, driblando as lei da responsabilidade fiscal e as decisões da Justiça. No fundo, não eram só uma coligação, mas uma equipe de ciclistas.
Fernando Gabeira: As brumas de janeiro
Baixando essa poeira de janeiro, será possível discutir um pouco mais amplamente uma agenda para a mudança
Viajaram todos no réveillon, fiquei só em casa, com uma delicada missão: acalmar os quatro gatos durante os 17 minutos dos fogos em Copacabana. No fim, deu certo. Vieram todos para a minha cama, redobrei a atenção com uma delas que tem o hábito de fazer xixi fora do lugar, quando contrariada. Nessa breve semana de férias, constatei que em 2018 vou trabalhar mais ainda. São as circunstâncias. Minha pergunta é esta: que tipo de qualidade necessito para encarar as novas tarefas?
Para fazer mais e melhor, destaco sempre uma delas, que nem sempre me acompanha, na trajetória agitada: concentração. Costumo levar na mochila um velho livro do sexto patriarca da Escola do Sul: Hui Neng, um sábio budista. Volta e meia, bate na tecla da concentração. No seu universo, a concentração é indispensável ao caminho espiritual. Mas nada impede que seja também um instrumento valioso na nossa vida cotidiana.
Definidos objetivo e método, nada melhor que usar os restantes momentos de férias para me dispersar. Ou, pelo menos, sentir a força avassaladora das múltiplas atrações que disputam nossa atenção. Dentro de casa, com livro, tevê e internet, é possível se perder completamente, em romances, ensaios, biografias, perfis, curtas, debates inteligentes e bobagens engraçadas.
Vi um perfil de Francis Bacon, cujos quadros sempre me impressionaram e a quem só conhecia de um livro de entrevistas. Fiquei triste com seu cotidiano pontilhado de crises, suicídio de um de seus amantes no momento de sua grande consagração internacional: a exposição no Grand Palais, em Paris. Lembrei-me de Van Gogh, pobre, dando sua própria orelha para uma prostituta. É como se fosse uma lenda: não me comove tanto. E pensei: as dores dos contemporâneos parecem ser as nossas dores.
Vi os episódios de série “Black mirror”, especialmente “Arkangel” me fez divagar de novo. A mãe decide implantar um dispositivo no cérebro da filha. Através dele, pode localizá-la e até mesmo ver e ouvir o que a menina Sarah vê e ouve. Na sua telinha, a mãe acompanha a cena de sua filha fazendo amor com o namorado. Ela vê o namorado de baixo, com os olhos de Sarah. E ouve a menina dizer frases pornográficas. Numa cena anterior, Sarah aparecia vendo no recreio da escola um filme pornográfico.
É apenas um detalhe em toda a história. No entanto, acionou uma conexão na minha cabeça: andei lendo um pouco sobre um debate acerca do tema nos EUA. Uma das críticas enfatizava que o imaginário sexual da juventude estava sendo colonizado pelos roteiristas de filmes pornográficos. Isso alterava o vocabulário e os próprios sentimentos. “Arkangel” me provoca a voltar ao tema.
Passados os momentos de dispersão, ainda fico intrigado como sou atraído por eles. Como se concentrar num mundo em que milhares de focos disputam sua atenção?
Na estrada, às vezes com pobre conexão, isso é possível. O chamado fluxo de trabalho é também uma âncora no presente. Ainda assim, os fatos seguem acontecendo e não se pode descuidar deles. No entanto, é preciso fazer uma espécie de barreira sanitária. Em outras palavras, o volume de informações que nos orgulhamos de consumir e produzir também pode se voltar contra nós, sobretudo em doses cavalares.
De volta ao futuro imediato, está diante de todos nós um ano desafiador. Acompanhar as eleições, tentar extrair delas a maior mudança possível nas relações entre sociedade e governo é uma tarefa inescapável. O primeiro grande traço do ano eleitoral será desenhado no dia 24 de janeiro em Porto Alegre: o julgamento do recurso de Lula pelo TR4. Teoricamente, o Tribunal pode confirmar, rejeitar, reduzir ou ampliar a pena de Lula. Em qualquer hipótese, tudo terá de ser equacionado de novo, a partir dessa decisão.
Pelo que vi em Curitiba, quando Lula foi depor, as tensões que surgem nesses momentos podem ser superadas com serenidade e algum planejamento para evitar a violência.
Protestos, abaixo assinados, todos fazem parte do jogo político. Mas servem mais como um consolo para Lula do que propriamente uma visão apontando para o futuro. Em caso de confirmação da pena, como conduzir uma candidatura que se choca com a Lei da Ficha Limpa?
Não posso prever em detalhes esse primeiro grande momento do ano eleitoral. Na verdade, ainda o encaro como um incidente do passado. Lula resolveu se candidatar para fugir da Lava-Jato pelos melífluos caminhos da política.
Baixando essa poeira de janeiro, será possível discutir um pouco mais amplamente uma agenda para a mudança. Entre o destino de um condenado e as tarefas de reconstrução do país há uma considerável mudança de foco.
Os anos pertencem a uma teia maior do tempo. Nunca são totalmente novos. Como todos nós, trazem consigo a carga do passado. Até os motins nas cadeias são planejados na véspera do réveillon. Esperemos pois, com paciência, 2018 surgir nas brumas de janeiro.
Fernando Gabeira: A cada ano sua história
Nesta época sempre tento ver as coisas com a simplicidade de Drummond: “O último dia do ano/não é o último dia do tempo./Outros dias virão”. O ano de 2018 nasce numa segunda exatamente 50 anos depois de 1968. Esse aniversário não deveria ofuscar o ano que entra, mas sim ajudar a entender esse meio século. Em 68, nem tudo aconteceu da mesma forma. Na Praça de Tlatelolco, no México, mais de 200 estudantes foram assassinados. Luther King, assassinado, Robert Kennedy, assassinado.
Nem todas as lutas eram idênticas. Hoje, 68 é associado às românticas revoltas da juventude, aos sutiãs queimados e expectativas de mais liberdade sexual.
No Brasil, esses fatores só chegam mais tarde. Era basicamente uma luta estudantil contra um governo militar, embora tenham ocorrido duas greves de metalúrgicos no período, em Osasco e Contagem.
Na verdade, eles eram um subenredo. Lembrome que, ao dissolver o congresso da UNE, em Ibiúna, a policia fez questão de exibir todas as pílulas anticoncepcionais encontradas no sítio. A intenção era sugerir promiscuidade sexual. Hoje, talvez fosse um indício apenas de precaução.
Quase nunca falo de 68 porque já me cansei do tema. No entanto, faz alguns anos que sempre me pergunto: até que ponto a mudança de comportamento foi influenciada pelos jovens? Até que ponto o instrumento realmente decisivo partiu de um salto científico com a disseminação da pilula?
O ano de 2018, apesar de começar na segunda, como 1968, enfrenta uma conjuntura bastante desafiadora. Apesar dos 50 anos de lutas por direitos civis nos EUA, a eleição de Trump representa um golpe na ilusão de um progresso linear.
As ondas migratórias, com o crescimento da extrema direita, colocam em xeque as teses do multiculturalismo que estimulou as lutas identitárias dos imigrantes.
No Brasil, a lembrança mais próxima é a de um longo período de dominação da esquerda que, além de falhar nos campos da ética e da economia, revestiu esses temas culturais de uma estreiteza partidária lamentável. Os direitos humanos foram as primeiras vítimas: são vistos hoje com desconfiança.
Em toda a parte, nos EUA, na Europa e no Brasil tornam-se mais fortes as linhas conservadoras que questionam esse possível legado de 68.
Talvez fosse um momento para refletir com a experiência da juventude. Quando se quer o mundo, você pensa apenas no seu objetivo e esquece um pouco dos outros. De repente, descobre que a maioria prefere outro caminho. É hora de dialogar. Em 68, o traço de união era lutar contra um regime ditatorial. Em 2018 é de reconstruir um país, sob muitos aspectos, arrasado.
Mas 2018 acontece 50 anos depois. As lutas continuam se desenvolvendo. As feministas queimavam sutiãs em 1968. Hoje, com a entrada maçica das mulheres na força de trabalho, elas questionam o assédio sexual nas empresas. E não só nas de Hollywood, mas também nas grandes montadoras.
De lá para cá houve a revolução digital e um processo contínuo de mudanças que nos envolvem. É nesse quadro amplo de transformações que precisamos achar um rumo.
O fator nacional de referência é a reconstrução do tecido democrático, mudanças no sistema político partidário, recuperação da economia.
Grandes debates sobre costumes, alguns fundados, outros artificiais, vão seguir acontecendo. O importante é saber em que lugar e em que ano estamos. Reconheço que mesmo nesses quesitos não há unanimidade: as pessoas vivem em tempos diferentes.
Daí a importância das eleições, como troca de ideias, uma oportunidade real de saber para que lado a maioria quer levar o Brasil.
Sempre desejo feliz 2018 lembrando que será um ano difícil.
Mas não os vejo como termos antagônicos. O ano de 1968 também foi difícil. E muitos o viveram com alegria.
Cada época com seus fantasmas. O importante para quem viveu algumas é não confundi-los. Como Drummond, de copo na mão esperar o amanhecer, sabendo que “Para ganhar um Ano-Novo/ que mereça este nome,/ Você, meu caro, tem de merecê-lo/ tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,/ mas tente, experimente, consciente./ É dentro de você que o Ano Novo/ cochila e espera desde sempre.”
Um país também não escapa dessa lógica. Para ganhar um Ano Novo, terá de merecê-lo. Ainda que 2018 desapareça na névoa da história e ninguém se lembre dele ao completar meio século. Mas é o ano que temos, o tempo presente. Tão grave no Brasil que nos convida a andar devagar e, se possível, de mãos dadas.
Fernando Gabeira: Natal nos trópicos
Encontrei neste Natal, em Gramado, algo que não via há muitos anos: uma campanha para que as pessoas se abracem. Vi isto na Suécia, no fim da década de 1970. Achávamos estranho porque a campanha sueca estimulava as pessoas a se tocarem. Latinos, aparentemente, não tinham esse problema de fechamento e timidez. Ao contrário, tocávamos em excesso e, às vezes, isto aborrecia os escandinavos.
Um quarto de século depois, reencontro a campanha pelo abraço e me pergunto o que houve conosco nos trópicos. Foi o crescimento econômico, ou a revolução digital? Felizmente as pessoas se abraçaram e se confraternizaram na praça de Gramado, sob uma espuma que simulava neve e molhava minhas lentes.
Ultimamente, as multidões andam zangadas no Brasil, a julgar pelo que fizeram no Maracanã. O espírito de Natal, pelo menos neste período, deve ser mais forte que o espírito de porco. Independentemente de análises mais profundas, é algo de bom que a cristandade nos dá, anualmente.
O papa Francisco é um importante interlocutor e talvez fosse bom mencionar o que disse ao receber o Prêmio Europeu Carlos Magno:
“Há uma palavra que nós nunca deveríamos cansar de repetir. É esta: diálogo. Somos chamados a construir uma cultura de diálogo por todos os meios possíveis e assim reconstruir o tecido da sociedade.” Em outro trecho, Francisco diz: “A paz será durável na medida em que armarmos nossos filhos com a arma do diálogo, que os ensinarmos a travar a boa luta do encontro e da negociação.”
No Brasil isso é necessário também, mas muito difícil. É preciso estar com um olho no espírito de Natal e nas peças que os poderosos nos pregam, precisamente, nesta época. Em dezembro de 1968, decretou-se o AI-5, uma forte inflexão do autoritarismo. Fomos protestar na rua, mas o A5 foi engolido pelo espírito de Natal e dissolveu-se docemente como um panetone na boca.
A segunda turma do Supremo aproveitou, especialmente Gilmar Mendes, de nossa distração natalina e deu mais alguns golpes na Lava-Jato, soltando gente, arquivando processos e proibindo a condução coercitiva.
Como aplicar aqui a arte do diálogo, conforme ensina o Papa Francisco? Há um certo orgulho jurídico em contrariar a opinião pública, uma certeza aristocrática de que eles sabem, e apenas eles, o caminho correto para tratar a corrupção no Brasil. Não há diálogo entre o sentimento social e um grupo de juízes que resolveu bloquear um avanço na luta contra a corrupção, reconhecido por quase todos nos últimos anos. Se as multidões forem às ruas, correm o risco de apenas confirmar o orgulho de votar contra elas, a certeza de que a verdade solitária pertence aos juízes togados.
Uma parte do Supremo poderia dialogar com eles. Mas ali, também, o diálogo parece ter sido reduzido a um puro choque de opiniões. Além do mais, é difícil resolver no âmbito do Supremo porque eles compõem uma turma com autonomia.
Os militares poderiam dialogar com eles? Seguramente não, uma vez que há consenso sobre o poder da própria sociedade em resolver esse problema.
Os políticos não dialogariam em nome da sociedade, precisamente porque estão realizando o que eles mais querem: deter o processo de investigação e voltar o máximo possível ao período pré-Lava-Jato.
A única referência que ainda resta são os procuradores, a PF e a Justiça Federal. Vai ser preciso encontrar uma forma de combater esses cavaleiros do apocalipse, mas isso não é algo para se encontrar agora, em pleno espírito de Natal. São apenas obstáculos que esperam o Brasil num ano de ansiada renovação.
Por enquanto, a confraternização fortalece o diálogo e a paciência com o outro. E nos dará força para o ano que entra. Saímos de um período de confrontos muito desgastante. Vamos entrar numa frase brava de choque de extremos nas eleições.
Sob a bandeira do diálogo, por mais frustrante que seja, como no caso do Supremo, será possível alguma coisa, sobretudo se o diálogo se intensifica entre aqueles que querem a renovação e estão perplexos com a resiliência das velhas práticas que arruinaram o Brasil.
Dialogar com quem acha que não há mais jeito, dialogar com quer esfolar o adversário — enfim, há um longo percurso pela frente.
Um feliz Natal ajuda. O encontro familiar sempre acende a ideia da continuidade: os que já foram, os que estão aí, os que acabaram de chegar.
Transplantado para a dimensão nacional, esse sentimento é um bom combustível para rodar o delicado ano de 2018 e, quem sabe, emergir das cinzas de um período que se esgotou.
São os meus votos.
Fernando Gabeira: As marcas do ano
Os japoneses escolheram um ideograma para definir o ano de 2017: um símbolo gráfico que significa Norte, uma alusão aos coreanos que frequentemente lançam seus foguetes no mar do Japão. Com um inimigo externo desvairado como Kim Jong-un é mais fácil achar um símbolo. Trabalhando com o alfabeto, uma revista norte-americana optou pela palavra feminismo, referência ao furacão de denúncias de assédio sexual que sacudiu Hollywood e se desloca a cem quilômetros por hora rumo à Casa Branca.
Tentei encontrar algo que simbolizasse o ano no Brasil. Pensei na tornozeleira eletrônica, pois este ano estivemos de novo sob o impacto da Operação Lava-Jato. Mas ponderei: as tornozeleiras representam os empresários que já estão saindo da cadeia. Os políticos com foro privilegiado ainda nem chegaram. Pensei num pé com a tornozeleira, outro com uma asinha. Seria difícil, embora o símbolo Yin Yang da filosofia chinesa talvez desse conta dessas energias opostas.
Deixando o território da política e olhando apenas o Brasil, soubemos que, em 15 anos, matou-se mais no Brasil do que na Síria em guerra, mais que em toda a América do Sul, mais do que em toda a Europa.
Há dez minutos que escrevo. Alguém deve ter sido assassinado do primeiro parágrafo até aqui. É a média nesse princípio de século. Nesse momento acho que a imagem da morte é uma forte competidora. Vivemos uma guerra visceral, matadores e mortos compartilham o mesmo país, às vezes o mesmo bairro ou a mesma cama.
Mas também deixaria de fora o turbilhão de vida que fervilha no Brasil, gente como a professora de Janaúba, em Minas Gerais, Helley Abreu Batista, que morreu para salvar crianças.
Desisto de achar um ideograma ou mesmo uma palavra para tudo o que se passou. Prefiro dar umas férias à política e escrever essa crônica como antigamente: falando de pessoas e coisas simples. Esta semana, por exemplo, conheci um Papai Noel em Gramado. Tadeu Salvador é o seu nome. Ele é profissional na Aldeia de Papai Noel, um complexo turístico sobre o Natal, aberto durante todo o ano. Salvador vendia automóveis usados e sofreu três AVCs. Mudou de profissão e está muito bem. Naquela atmosfera onde as árvores vieram da Europa e há praças simulando nevadas, Salvador faz uma discreta concessão à sua condição terrena: um ventilador branco, marca Mondial.
Já que cheguei ao ventilador, gostaria de tratar de alguns objetos com que tentei me entender este ano. Chave, óculos e caneta estão perdidos para o diálogo. Formam uma organização criminosa que não só desaparece em conjunto, como usa armadilhas para me confundir. Se procuro os óculos aparece apenas a chave, ou a caneta, embora esta tenda a sumir para sempre.
Em 2018, buscarei diálogo mais próximo com dois recém chegados à minha vida: o crachá no trabalho e o cartão eletrônico que abre a porta do quarto do hotel. O crachá falhou algumas vezes, talvez porque não tenha visto a data da renovação. Sempre me deixava em dúvida: vai ou não vai. Depois que ele caiu no mar, na Ilha de Algodoal, nunca mais falhou. O barqueiro estava com medo de uma tempestade e voltou rápido ao continente. Jogou a mochila na areia, e uma onda a inundou. Pelo menos aprendi que, se o crachá falar, é hora de levá-lo para umas férias na praia.
Os cartões eletrônicos dos hotéis são o desafio. Chego do trabalho tão cansado que nem sei se deixo as bolsas do equipamento ou sento na cama, ou faço os dois ao mesmo tempo. E a porta não abre.
Não sei se em Porto Velho ou Boa Vista, lembrome do cartão que falhava todo dia, duas vezes em algumas ocasiões.
Em Gramado o cartão falhou. Fui à portaria e disse ao recepcionista: o cartão falhou. — Qual o número do seu quarto? — 1478. — Desculpe, mas não existe esse quarto. Tentei uma nova combinação: — 4178. — Ah, aí sim — disse ele. Pedi desculpas pelo erro. Estava acostumado com pousadas, onde o quarto tem dois dígitos, ou hotéis de três dígitos, mas quatro dígitos, para mim, são mais que o número de um brevíssimo quarto de hotel: é uma senha.
Por falar em senhas, talvez escreva um dia sobre como invadiram nossas vidas. Suspeito que tenham relações com a Orcrim formada pelos óculos, chave e caneta. Mas não tenho provas.
Espero encontrar alguém como Papai Noel no ano que vem. Preciso, de vez em quando, de uma pausa para as pessoas e as pequenas coisas da vida.
Em 2017, o Brasil conseguiu ser, simultaneamente, tão intenso e tão vazio que chegamos a saudar sua passagem. A esperança é de que o ano que entra seja melhor, ou, pelo menos, ruim de uma forma diferente.
Fernando Gabeira: Restos a pagar
A violência devia estar no topo da agenda de um país onde se morre mais do que na guerra
O fim de ano coincide com a divulgação do número de assassinatos no Brasil, nos primeiros 15 anos do século 21: 278.839. Mais do que a Síria, que vive uma longa guerra.
Anualmente são assassinadas 60 mil pessoas. A cada dez minutos alguém perde a vida pelas mãos de outro.
Essa mortandade dispersa passou ao largo da agenda política brasileira. Lembro-me de que, no início do processo de democratização, o foco voltou-se para os direitos humanos.
Em São Paulo, foi criada a Comissão Teotônio Vilela, da qual fiz parte. No Rio, Brizola implodiu o presídio da Ilha Grande.
A visão dominante na época tendia a considerar o crime nas ruas do Brasil como consequência direta da desigualdade social, da aspereza da vida nos bairros pobres. Mas os números indicam que países ainda mais pobres que o Brasil têm índices menores de assassinatos. É preciso mais que políticas sociais.
Um projeto nacional de segurança, monitorado diretamente pelos presidentes que mais ficaram no cargo, Fernando Henrique e Lula, nunca veio à luz. Suponho que exista uma certa tendência aristocrática a considerar o fato policial algo secundário diante dos grandes temas do País.
Os jornais de qualidade, no passado, estruturavam seu trabalho como se fossem uma réplica do próprio governo, com suas pastas ministeriais: política, relações exteriores, economia e agricultura. Havia setor policial, com legendários repórteres, mas era de longe um setor secundário. Não dava o que pensar. Era como se multiplicassem pequenas tragédias, o que desde os gregos parecia algo integrado ao destino humano.
No momento em que se esgota o período inicial da democratização, o abismo entre a gravidade da violência no Brasil e seu lugar na agenda brasileira cresceu enormemente.
Estamos no limiar do ano novo, em que as eleições prometem ser o tema central. Com vários pré-candidatos em cena, a questão da violência ainda passa ao largo, exceto para Jair Bolsonaro, que enfatiza sua importância. Suas propostas, no meu entender, tocam num tema inescapável: como envolver a sociedade na autoproteção, como descentralizar uma tarefa maior que o Estado?
A resposta de Bolsonaro para esse tópico é legalizar o porte de arma, ampliando a capacidade de defesa individual. É um caminho seguido nos EUA, certamente confirmado nas urnas com a vitória de Trump. Mesmo lá é cotidianamente combatido, pela sucessão de massacres cometidos por atiradores isolados.
O mesmo princípio de envolvimento social levaria ao uso de outras armas que não as de fogo: a informação e uma intensa troca entre polícia e sociedade. Sempre que falo desse tema, os defensores das armas contestam: que fazer num assalto, com um smartphone na mão?
Possivelmente, nada, a não ser configurá-lo antes para ser rastreado e oferecer a pista à polícia. Mas em outras situações, a capacidade de prevenir por meio de avisos, mapas e dados que brotam da interação permanente pode salvar muitas vidas.
Se é para falar em experiência americana, a mais útil no Brasil seria a de estimular iniciativas da sociedade, até independentes do governo. Nossa expectativa de que o governo resolva sozinho é mais parecida com a tendência europeia.
Para alcançar esse projeto de cooperação será preciso uma longa marcha através de uma cultura que desconfia da polícia e romantiza o crime. Certamente isto tem raízes em nossa História colonial. Não foi à toa que Dilma sacou Joaquim Silvério dos Reis, o traidor da Inconfidência Mineira, para compará-lo aos delatores da Lava Jato. É um absurdo igualar uma luta de libertação nacional ao assalto à maior empresa pública do País. Mas ela escolheu a imagem pelo seu conteúdo emocional.
Claro que essa cultura tem também algumas referências concretas: a qualidade da polícia. Transplantada dos EUA para o Brasil, a campanha antidrogas nas escolas, feita com palestras de policiais, é uma a experiência não funcionou bem. Os policiais brasileiros não despertavam a mesma empatia nos estudantes.
Mas se o argumento para não cooperar está baseado na qualidade da polícia, por que não dar uma volta nele e perguntar: o que vem primeiro, a baixa qualidade da polícia ou a subestimação cultural do seu papel?
Os países em guerra põem esse tema no topo da agenda, entre outras razões, porque morre muita gente. Se esse argumento tem algum peso, a violência deveria estar no topo da agenda nacional num país onde morre muito mais gente do que na guerra.
A diferença é que na guerra as pessoas se organizam para matar. Aqui alguns se organizam em quadrilhas e em grande parte os assassinos são indivíduos atomizados. Matam as outras vivendo sob a mesma bandeira nacional, às vezes no mesmo bairro ou o sob o mesmo teto. Vivemos uma guerra visceral.
Os contornos da campanha de 2018 ainda são muito difusos. Se o tema da segurança pública for tratado com a formalidade burocrática típica dos nossos programas políticos, os candidatos farão discursos para um País imaginário.
A experiência dos últimos anos nos desgastou muito. Brigas, ofensas, isso enfraquece a possibilidade acordos nacionais em alguns temas.
Em segurança pública, reconheço que é difícil um acordo com forças que romantizam o crime e veem na polícia um instrumento de opressão das classes dominantes. Se também aí não for possível um acordo nacional, que nossa geração de políticos, cujo ciclo se encerra, ao menos reconheça o fracasso retumbante num tema: o saneamento básico. Esquerda, direita, centro, estamos todos na mesma m...
Avançar numa tarefa que alguns países alcançaram ainda no século 19 é algo que dispensa mimimis, estrelismos e bate-bocas: seria uma maneira digna de encerrar um período cuja etapa derradeira foi uma distância abissal entre sistema político e sociedade.
Fernando Gabeira: Uma licença poética
O que, afinal, gostaria de ver acontecendo em 2018? E até que ponto estou disposto a contribuir para que isso aconteça?
O que esperar da política em 2018? Fui a São Paulo, na segunda, debater esse tema, num encontro de empresários. Naquele contexto, entendi o verbo esperar como o resultado de uma dedução razoável dos dados existentes. O fato mais importante de 2018 parece ser a eleição. E sobre ela sabemos pouco, além das pesquisas. Existem métodos mais poderosos que utilizam toneladas de dados e não uma simples pergunta de rua. Mas mesmo esses métodos seriam eficazes mais tarde, quando o quadro estiver completo.
Na verdade, usamos cenários: PT e PSDB reproduzem o clássico confronto? Um outsider, como Bolsonaro, pode quebrar essa escrita? Nesse caso, quem sobrará no segundo turno? Trabalhar com cenários é alinhar hipóteses, perseguir uma realidade que nos desafia. Assim como o poeta luta com as palavras, lutamos com fatos ainda embrionários para prever sua evolução.
Na saída do encontro, nas ruas ensolaradas da Chácara Santo Antônio, o motorista, de repente, disse:
— Lá se foi o ano. Passou rápido.
Senti, pela primeira vez em 2017, aquela sensação que em, certo momento, aparece em todo final de ano, quando me dou conta de que estamos próximos do réveillon. Uma sensação esquisita que combina a beleza e o mistério da vida com a certeza de sua finitude. A partir daquele momento, resolvi encarar o verbo esperar no seu outro sentido, o de desejar. O que, afinal, gostaria de ver acontecendo em 2018? E até que ponto estou disposto a contribuir para que isso aconteça?
Nesse sentido, o ano de 2018 já começou para mim. Tenho planejado com amigos um novo site para acompanhar os acontecimentos do ano, com o objetivo de contribuir com informações e análises para que as pessoas façam boas escolhas nas eleições.
Um leitor me disse outro dia que há uma certa desolação nos meus artigos. No entanto, acho que refletem a realidade. Nem sempre é possível fazer boas escolhas com as alternativas disponíveis. Esse é um ponto mais ou menos comum em nossas conversas. Em qualquer hipótese, entretanto, não basta contribuir para que haja boas escolhas. É preciso desenvolver uma segunda tarefa: a de fortalecer os mecanismos de controle da sociedade.
Já há um esforço de controle do mundo político por grupos independentes. Pesquisam gastos partidários, parlamentares, execução de orçamento. Na semana passada, em Teresópolis, cidade em que o prefeito e toda a Câmara estão envolvidos em corrupção, encontrei um exemplo disso. É o Observatório Social, que acompanha todas as despesas da prefeitura e já conseguiu evitar que cerca de R$10 milhões fossem jogados no lixo com gastos inúteis.
A articulação de todos os grupos voltados para a transparência é uma forma de controle. Vai ser difícil esconder da garotada tudo o que se passa com o dinheiro dos contribuintes. Outro dia, um caso de corrupção em São Bernardo foi descoberto através do WhatsApp. Num grupo, uma jovem contou que pagou para ganhar um cargo público. “Como assim?”, uma das participantes perguntou. Conversa vai, conversa vem, o caso acabou caindo nas mãos do Ministério Público, e descobriu-se que o secretário de Gestão Ambiental estava vendendo cargos.
Reconheço que a fiscalização das contas é algo limitado. É preciso fiscalizar também as políticas, a coerência entre promessas e prática. Tudo isso virá com o tempo, se reconhecermos o valor dos grupos que trabalham com a transparência. Sempre é possível argumentar que, no Brasil, mesmo quando conhecidos, os crimes políticos não são punidos adequadamente.
De fato, esta é uma outra batalha. Governo e parlamento ainda resistem aos novos tempos, mesmo quando todos os seus erros são demonstrados de forma inequívoca. O Supremo Tribunal Federal é um espaço de insegurança jurídica, onde alguns ministros jogam abertamente o jogo dos políticos com os quais estão comprometidos. Se a sociedade se prepara para denunciar esses crimes, e eles não são punidos, muito possivelmente para chegar a essa situação anômala, os juízes terão de contrariar a Constituição.
Nesse momento é razoável contar com as Forças Armadas, não para uma intervenção militar, mas para que declarem, com nitidez, que a Constituição deva ser respeitada. Diante do panorama, a grande tarefa em 2018 não é só votar bem, nas circunstâncias. É também a de preparar a sociedade para que se defenda melhor do banditismo político.
Apesar da aspereza de um confronto que ainda não acabou, nem acabará tão cedo, minha intuição, percorrendo o Brasil a trabalho, é a de que vamos sair desse buraco. É difícil traduzir essa esperança em palavras num seminário ou mesmo numa crônica de jornal. Por enquanto, considerem que é apenas uma licença poética supor que a sociedade possa derrotar o crime político organizado e seus cúmplices nos altos tribunais.
Mas quando alguém descobrir, em dezembro, que 2018 passou rápido e voltar aquela sensação mista de beleza e nostalgia pela vida, pelo menos poderemos dizer que a realidade não foi algo assim totalmente incontrolável e aleatória. Teríamos conseguido influenciar, pelo menos, o que estava ao nosso alcance.