Fernando Gabeira: E tudo se acabar na quarta-feira
Uma das bandeiras do bolsonarismo está praticamente morta. É o voto impresso
Fernando Gabeira / O Globo
As manifestações bolsonaristas de amanhã devem ser grandes. Houve empenho do governo, intensa campanha nas redes sociais, financiamento para aluguel de ônibus do interior — enfim, um esforço excepcional.
Elas podem até ter algumas consequências adiante, mas, do ponto de vista de objetivo político, são um momento de sonho para vestir fantasias que não sobrevivem na quarta-feira.E, quando não há objetivo político válido, dificilmente uma força se impõe, mesmo havendo muita gente e até poder militar.
Uma das bandeiras do bolsonarismo está praticamente morta. É o voto impresso. Foi derrotado no contexto legal em que deveria ser analisado, e não há como voltar atrás. Nesse caso particular, estarão simplesmente carregando um defunto, na expectativa de que lhes possa ser válido no ano que vem, em caso de derrota eleitoral.
A outra bandeira do bolsonarismo será, aparentemente, a liberdade de expressão. Em termos abstratos, ninguém se coloca contra ela. A dificuldade é aceitar que se preguem a violência e a invasão de prédios públicos como se estivessem exercitando a liberdade, quando, de fato, ultrapassam seus limites legais.
Essa aceitação de limites está presente, por exemplo, no parecer da subprocuradora Lindôra Araújo, que denunciou o ex-deputado Roberto Jefferson.
Isso não significa que o tema não deva ser constantemente discutido. E o é no Brasil. Juízes têm censurado jornais; há debates sobre instruções do Supremo relativas a combate a fake news; o próprio Bolsonaro rejeitou uma lei que penaliza a divulgação em massa de notícias falsas. É um tema em aberto, mas a conclamação à violência e o racismo, para citar alguns, são limites legais que não podem ser transpostos apenas por atos de vontade.
Bolsonaro é presidente. Tem pouco a dizer diante de uma pandemia que não desapareceu, como creem alguns otimistas. Governa um país em que a economia estagnou, encontra diante de si uma crise hídrica que se desdobra também numa crise de energia.
Numa situação dessas, o presidente lidera manifestações pelo voto impresso ou por uma duvidosa concepção de liberdade. Isso é tão distante da realidade como conclamar as pessoas a comprar fuzis e definir como idiota quem está preocupado com os alimentos, cada vez mais caros.
O exame dos problemas reais do Brasil implica a definição da responsabilidade do presidente. Até a crise hídrica, de certa forma determinada por fenômenos como La Niña, seria mais branda se não houvesse tanto desmatamento e tantas queimadas estimulados pelo governo Bolsonaro.
Pode ser que se ouça nas ruas algum grito contra a corrupção. Mas será de uma amarga ironia. Bolsonaro apenas se aproveitou da bandeira. Os fatos descritos na CPI mostram como gigantescos golpes estavam armados contra os cofres públicos. As denúncias de rachadinha contra o filho ex-deputado estadual estendem-se ao filho vereador e alcançam o próprio gabinete de Bolsonaro.
Como se não bastassem essas revelações, o encontro com o setor fisiológico do Congresso revela que Bolsonaro, como ele próprio diz, se originou no Centrão e sempre se localizou nesse espaço político.
Muita gente pode ir para a rua, mas, se estiverem perdidos, de nada adianta serem muitos se perdidos de armas na mão.
O Brasil vive um momento dramático de crise sanitária ainda não vencida, crise econômica e social, crise ambiental, seca e escassez de energia, quase 15 milhões de desempregados.
Uma grande manifestação que ignore essa realidade e um presidente que se esconde dela servem apenas para mostrar como é profundo o abismo em que nos metemos e como será difícil superá-lo sem um grande debate sobre a reconstrução.
A cortina de fumaça que Bolsonaro cria para tentar sobreviver politicamente não nos deixa avaliar ainda quanto a democracia, o tecido social e os recursos naturais foram devastados neste período. É uma tarefa para a quarta-feira de cinzas.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/e-tudo-se-acabar-na-quarta-feira.html
Fernando Gabeira: Variações em torno do golpe
Com desidratação persistente na opinião pública, Bolsonaro tem grande capacidade de cavar o próprio abismo
Fernando Gabeira / O Estado de S. Paulo
Como tantos outros no passado, este agosto tem sido pesado na política. Fala-se muito em golpe, tornou-se um tema tão banal que às vezes é invocado até por cantores sertanejos.
De tanto ouvir denúncias sobre suas intenções de dar um golpe, Bolsonaro mudou o discurso. Aceita que está preparando o que chama de um contragolpe. Onde foi buscar esse argumento?
Tudo indica que a transmutação do golpe em contragolpe surgiu após o encontro do vice-presidente Hamilton Mourão com o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso. Bolsonaro teria interpretado o encontro como um golpe em marcha, no qual seu mandato seria cassado e o do seu vice, preservado. Como se diz na gíria, noia pura. O TSE jamais cassou mandatos de presidente. A chapa Dilma-Temer foi julgada e absolvida por excesso de provas.
De qualquer forma, Bolsonaro acredita que o termo contragolpe pode absolvê-lo numa tentativa que o mundo inteiro vai considerar como ela é: um golpe.
Nos últimos tempos, os bolsonaristas buscam uma justificativa legal para o golpe. Segundo o jurista Ives Gandra, o artigo 142 da Constituição indica que as Forças Armadas são um poder moderador quando há conflito entre os outros Poderes. Rigorosamente, em termos constitucionais as Forças Armadas não são um Poder entre os três claramente mencionados. O general Heleno, que andava meio calado, reapareceu com essa interpretação no bolso do colete, cavando uma leitura constitucional para edulcorar o golpe.
O cientista político Sérgio Abranches acha que o golpe de Bolsonaro tem uma característica híbrida. Ele subjuga progressivamente as instituições, segundo o padrão autoritário moderno, mas pode combinar essa tática com o movimento dos tanques nas ruas, a forma tradicional.
Na verdade, Bolsonaro dedica grande parte de sua agenda a solenidades militares. Ele não sai dos quartéis: nos últimos dias foi à formatura de cadetes, discursou em promoção de generais, recebeu convite de um grupo de tanques enfumaçados e foi pessoalmente assistir aos ensaios de guerra em Formosa (GO). No passado, os políticos que frequentavam quartéis para pregar o golpe eram chamados de vivandeiras. Bolsonaro não chega a pregar um golpe nos quartéis, mas quer que as Forças Armadas ao menos deem a impressão de que o apoiam.
Algumas instituições democráticas já tombaram, como é o caso da Procuradoria-Geral da República (PGR). Augusto Aras, como se diz de carros velhos, só pega no tranco. Só investiga o presidente pressionado pelo STF e, assim mesmo, sempre justifica o comportamento de Bolsonaro. A PGR é tão pateticamente governista que chega a se contradizer na defesa do bolsonarismo. Quando Roberto Jefferson era acossado pela Justiça do Rio, o parecer do procurador era de que o caso deveria ser avaliado pelo Supremo. Quando o STF prendeu Jefferson, a posição mudou: o caso deveria ser enviado à primeira instância.
Aos poucos, torna-se bastante nítido o quadro de tentativa de golpe e resistência a ele. Treze governadores lançaram uma carta de apoio ao STF, o próprio presidente do Senado indicou que não moverá processos de impeachment contra ministros que Bolsonaro quer derrubar no momento.
No entanto, a leitura mais importante da resistência ao golpe deveria ser feita nas pesquisas que indicam claramente a desidratação de Bolsonaro na opinião pública. Não é um fato novo, mas persiste e avança.
Bolsonaro pode ser derrotado no segundo turno até por um candidato da terceira via. A desidratação pode jogar por terra um dos argumentos pelos quais cantores sertanejos nos ameaçam com a fome e o caos: a adoção do voto impresso.
A tentativa de tumultuar o processo eleitoral com suspeitas de fraude só tem sentido com resultados mais ou menos apertados. Se Bolsonaro for reduzido, ao longo do tempo, ao apoio da extrema direita, algo que parece provável, ficará muito longe da votação que obteve em 2018.
O horizonte das eleições de 2022 não o demoverá de suas intenções autoritárias. Ao contrário, quanto mais clara ficar a derrota, maior a necessidade de apressar o passo e resolver o problema ainda este ano.
O quadro mais amplo não é favorável: a retomada econômica não tem a força esperada, os biomas brasileiros ardem e uma crise hídrica já presente deve se agravar em novembro.
Bolsonaro tem uma grande capacidade de cavar o próprio abismo. Jamais se importou em manter os 57 milhões de votos que recebeu, e não só porque é movido por um ódio radical às pessoas e à natureza. De certa forma, sua ascensão eleitoral foi um acidente, que só pode ter acontecido pela conjugação de falhas, exatamente como um grande desastre aéreo. Muito em breve vai se encontrar com sua própria dimensão histórica e talvez até ele se espante com o fato de ter ido tão longe.
Esses são problemas um pouco teóricos para quem vier adiante e tiver de compensar os prejuízos do imenso retrocesso que a passagem de Bolsonaro pelo governo representou para o Brasil. Será um encontro com um país diferente, com novos problemas, pedindo novas soluções.
Mas essa reflexão pode esperar um pouco, porque o elefante ainda está na sala.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,variacoes-em-torno-do-golpe,70003815992
Bolsonaro sente bafo da inflação e muda de ideia sobre Bolsa Família
Generosidade do presidente com aumento para programa é proporcional ao desespero do governo
Bruno Boghossian / Folha de S. Paulo
Antes da virada do ano, Jair Bolsonaro ameaçava demitir qualquer auxiliar que falasse em aumentar o valor do Bolsa Família. O presidente surfava na popularidade do auxílio emergencial e considerava bobagem procurar dinheiro para reforçar o programa de socorro aos mais pobres.
Não demorou para que ele mudasse de ideia. O fracasso continuado do governo fez com que Bolsonaro admitisse, em abril, elevar o benefício médio de R$ 192 para R$ 250. Mais tarde, o presidente já falava em R$ 270, depois em R$ 300 e, agora, anuncia que trabalha por um salto do pagamento para R$ 400 por mês.
A generosidade é proporcional ao desespero do Planalto. A aprovação a Bolsonaro despencou na população de baixa renda: de 37% no fim do ano passado para 21%, segundo o Datafolha. Para piorar, o presidente já enfrenta a sombra de Lula nessa fatia do eleitorado e teme os efeitos de um cenário econômico adverso.
Bolsonaro sentiu o bafo da inflação. Na posse de seu novo ministro da Casa Civil, o presidente destacou que a alta do preço dos alimentos e da energia criou uma "dificuldade enorme" para os mais pobres, citando a reformulação do Bolsa Família como prioridade. Sem muita intimidade com o tema, ele precisou que um auxiliar soprasse o nome que o governo quer usar para rebatizar o programa, Auxílio Brasil.
A disparada do gás de cozinha também entrou no radar político. Na semana passada, Bolsonaro deu entrevista a um programa de auditório e avisou que a Petrobras gastaria R$ 3 bilhões para ajudar famílias na compra de botijões, que acumulam um aumento de 20% no ano. A estatal, no entanto, disse que não tomou nenhuma decisão sobre o assunto.
Com foco na reeleição, Bolsonaro não dá bola para as resistências que pode encontrar dentro do governo. Quando sugeriu o aumento do Bolsa Família, ele disse contar “com o coração grande de Paulo Guedes”. O ministro é o mesmo que já reclamou da ida de empregadas domésticas à Disney e do financiamento de filhos de porteiros na universidade.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bruno-boghossian/2021/08/bolsonaro-sente-bafo-da-inflacao-e-muda-de-ideia-sobre-bolsa-familia.shtml
Fernando Gabeira: Um país no retrovisor
Na semana passada, li um pequeno livro do francês Jacques Attali, chamado “A economia da vida”, em que ele descreve como se preparar para uma nova pandemia dentro de dez anos.
O autor esboça uma história das epidemias desde quando as pessoas começaram a se reunir em grande número, na Mesopotâmia, na Índia e na China.
Uma de suas conclusões que me interessam aqui é que as epidemias derrubam governos, impérios e, às vezes, arrastam até religiões.
Até hoje, impressiona-me a ignorância de Bolsonaro e seus gurus, que se recusaram a perceber a dimensão gigantesca desse fenômeno e foram atropelados por ele, produzindo com sua política de avestruz mais de meio milhão de mortos.
Sei que muitos não concordam, mas, na minha opinião, Bolsonaro foi destruído pela pandemia, e não vejo como se recuperar, apesar da decantada memória fraca dos brasileiros.
Quando olho para seus passos, penso: em termos políticos, está lá um corpo estendido no chão. A tática de se unir aos grupos fisiológicos não é nada mais que uma continuidade da miopia, por outros caminhos.
Interessante é que declara ter entregado a alma do seu governo ao Centrão. Como se esse espaço político estivesse povoado por piedosos pastores que colecionam almas para sua salvação, e não por vorazes caçadores do tesouro.
Diante de minhas retinas fatigadas, vejo uma reedição da aliança de militares e políticos decadentes que já fracassou no passado. E, o que é o pior, o corpo estendido no chão depois que uma jamanta histórica passou sobre ele não consegue perceber que veículos menores se aproximam para esmagá-lo de novo. Refiro-me à crise hídrica e à consequente dificuldade energética que o Brasil certamente enfrentará em novembro. De novo, a mesma displicência obtusa com que enfrentou a pandemia.
A Coreia do Sul obteve o mapa genético do vírus, produziu testes, toneladas de máscaras e rastreou diligentemente todos os casos. Isso não aconteceu aqui, assim como não surgirão campanhas pelo uso racional da água e da energia. O impacto de uma crise energética, embora muito menor que de uma pandemia, foi suficiente para desequilibrar o PSDB no início do século.
Estamos diante de um imenso fracasso da extrema direita. O que se vê no horizonte é a ascensão de uma nostalgia por um governo de 20 anos atrás. Sem entrar no mérito, é importante lembrar que a História não se repete, que as condições foram alteradas em duas décadas. No mínimo, considere-se que o país foi sacudido por duas poderosas forças destrutivas: a pandemia e o governo Bolsonaro.
Certas convicções na chamada “inteligência brasileira”, com tantas pessoas talentosas e queridas, não mudam com o tempo. Uma delas é o apego romântico à Revolução Cubana.
O pau quebra na ilha, e surgem notas de apoio ao governo e ao povo cubano, como se fosse possível apoiar simultaneamente opressores e oprimidos. É difícil imaginar que milhares de pessoas nas ruas sejam mercenários a serviço dos EUA, que jornais europeus como El País e Le Monde mintam para fortalecer o império.
Impossível ignorar o movimento de artistas chamado San Isidro, que se bate contra um decreto que exige que toda produção cultural tenha autorização do governo.
Já estou resignado em achar que certas ideias são levadas ao túmulo, apesar do curso dos fatos. No entanto há mudanças que não podem ser ignoradas. Uma delas é a questão ambiental. O tema subiu ao topo da agenda dos líderes mundiais. Fundos de pensão e empresas o consideram como uma variável decisiva.
O que há de apenas retórico nessas teses será arrastado para a prática diante dos eventos extremos que se sucedem: onda de calor no Canadá, enchentes na Europa, declínio dos rios voadores que vêm da Amazônia.
As eleições não podem nos jogar na máquina do tempo, onde tenhamos de escolher, entre as nostalgias, aquela que for a mais recente.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/um-pais-no-retrovisor.html
O preço e a saúde da democracia brasileira
O Centrão carrega na mão, sentindo-se à vontade para gastar o dinheiro público
Quando o Congresso aprovou uma verba de R$ 5,7 bilhões para o fundo eleitoral, muitos, como eu, protestaram. É o preço da democracia, falou-se em defesa do assalto ao Tesouro. De fato, as eleições têm um preço para todos, sobretudo depois que se decidiu transitar do financiamento privado para o público. Precisava ser um preço tão alto?
A ideia na transição era a de que os gastos excessivos, as campanhas rocambolescas dariam lugar a um processo de debates, e com custos mais modestos. Reconheço que a expressão custos mais modestos tem um valor subjetivo. No entanto, outro argumento se impõe: já que são gastos públicos, devem ser orçados com transparência.
Não foi o que aconteceu. A transparência desejada deu lugar a uma opacidade calculada. O fundo eleitoral deveria ser votado em destaque separado.
Nessa hipótese, os defensores da proposta deveriam explicar o sentido daquela soma de R$ 5,7 milhões. Por que esta soma e não outra, que cálculos os levaram a concluir por um volume de recursos quase três vezes superior ao que foi votado no passado recente?
Adianta pouco pessoas que conhecem a complexidade e os mistérios da política dizerem pura e simplesmente: o volume é esse e pronto, um custo democrático. O que se espera é uma discussão transparente e realista sobre os custos eleitorais, até porque podem ser feitos ainda num contexto de pandemia. Caem as internações, mas a variante delta avança no Brasil e já é a segunda encontrada entre as novas contaminações.
O presidente da Câmara, Arthur Lira, argumentou numa entrevista que os gastos eram apenas um quarto dos custos totais das eleições. Mais uma razão para nos inquietarmos: se isso é verdadeiro, as eleições no Brasil custarão R$ 24 bilhões. As de 2018 teriam custado R$ 21,8 bilhões e não estávamos devastados pela pandemia. Não estou acrescentado a esse custo os R$ 2 bilhões necessários para implantar o voto impresso, uma bandeira de Bolsonaro que já está desbotando na Câmara, embora tenha sua votação apenas adiada.
Há algum tempo os especialistas consideram as eleições brasileiras as mais caras do mundo. Em 2006, o brasilianista David Samuels comparou as eleições brasileiras e americanas: as nossas custaram entre US$ 3,5 bilhões e US$ 4,5 bilhões, ante US$ 3 bilhões nos EUA. Os cálculos de Samuels não incluem o chamado horário eleitoral gratuito, que tem esse nome para atenuar seu impacto nas contas, mas representa custo real para o País.
O ato de orçar as eleições brasileiras não envolve, pois, apenas uma parte do preço da democracia, mas também uma porção considerável de sua saúde, expressa em legitimidade.
Dominado pelo Centrão, o Congresso sente-se forte ante um presidente acossado por mais de uma centena de pedidos de impeachment. E carrega na mão, sentindo-se à vontade para gastar dinheiro público.
Esse movimento perdulário não se esgota no fundo eleitoral. O próprio Estado denunciou uma espécie de orçamento secreto, em que as emendas parlamentares são destinadas sem transparência.
Esse processo foi introduzido por meio de um artifício que intitularam “emendas do relator”. Só neste ano Arthur Lira deverá dispor de R$ 11 bilhões para destinar a deputados e partidos fiéis, dentro dessa rubrica.
O chamado preço da democracia brasileira está influenciando a sua saúde. Todos os ressentimentos que já existem sobre a atuação do Congresso acabam ganhando dimensão maior quando se acrescentam essas variáveis financeiras.
Por essas razões foi necessário protestar contra o fundo eleitoral. Bolsonaro não pode simplesmente vetá-lo. Será necessário buscar uma saída conciliatória, pois não podemos voltar subitamente ao financiamento privado.
Aliás, a situação de Bolsonaro é muito cômoda. Ele é candidato e seus gastos de campanha até o momento não são computados como tal. Eles são bancados pelo governo federal, que financia seus deslocamentos no Brasil para passear de motocicleta e fazer discursos eleitorais, às vezes disfarçados, às vezes não. Os custos da campanha já em curso não se esgotam aí. Seu passeio no Rio custou ao Estado R$ 645 mil na montagem do esquema de segurança. Em São Paulo, esse custo praticamente dobrou e foi a R$ 1,2 milhão.
Bolsonaro venceu as eleições em 2018 surfando a onda da luta contra a corrupção e o desprezo do sistema político pelas preocupações das pessoas comuns. Alguns analistas acham que Bolsonaro venceu por causa de um moralismo primário dos eleitores e de alguns formadores de opinião. Essa acusação de moralismo se volta agora contra quem protesta pelo alto custo do fundo eleitoral. No entanto, nosso protesto pode resultar em economia concreta para os cofres públicos, sem prejuízo da disputa eleitoral.
Esses R$ 5,7 milhões serão de alguma forma reduzidos.
A análise do moralismo é precária se não leva em conta o fato de que o sistema político continua de costas para a sociedade e prepara reformas ainda mais escabrosas que o valor do fundo eleitoral.
O grande perigo para a democracia acontece quando o povo se volta contra ela. É o aprendizado que o processo de redemocratização tem de fazer, para evitar que aventuras autoritárias se tornem viáveis de novo.
Fernando Gabeira: Dinheiro, não, um certo rumo
Salário mínimo não tem aumento. Debate é se militares podem passar o teto do funcionalismo
Neste momento se discute muito o Orçamento. É uma discussão tediosa se nos concentramos apenas nos números.
Na verdade, o que se discute agora é basicamente a ajuda emergencial até dezembro. Não dava para pagar os R$ 600. Caiu para R$ 300. Daqui a pouco surgirá a nova discussão, agora sobre o programa Renda Brasil, que pretende ser um serviço continuado, nos moldes do Bolsa Família.
Tudo isso é estimulado pela campanha à reeleição de Bolsonaro. Esses programas foram sempre necessários, mas no passado ele se opunha a eles, chamava-os de Bolsa Farinha e os via como uma forma de comprar votos. É sempre assim: no governo dos outros é suborno, no nosso é medida necessária para atenuar as duras condições de vida da população mais pobre.
Por causa do seu apelo eleitoral, só se discute mais intensamente a ajuda aos pobres. Mas sabemos que, apesar de garantir votos, o Brasil precisa de mais: de um projeto de retomada econômica com abertura de empregos.
Ainda assim, é pouco. Em cada momento histórico é preciso definir um rumo, sobretudo depois de uma tenebrosa pandemia, com todas as suas consequências.
Ter um rumo correto faz a diferença. Os europeus optaram por uma retomada verde e também por avançar no processo de modernização digital. Isso define investimentos e repercute até nas decisões tributárias, que estimulam as atividades de baixo carbono e penalizam as mais problemáticas numa época de aquecimento global.
Não se trata de afirmar que o Brasil precisa ter o mesmo rumo, embora esteja envolvido no mesmo contexto globalizado. É um dos raros países que são uma potência ambiental, não poderia perder esse bonde, uma vez que dificilmente passará outro tão promissor nas próximas décadas.
Uma das lacunas na chamada reforma tributária, em nosso país, é ser vista apenas sob um ângulo superficial da racionalização. O único objetivo parece ser a simplificação, que já é algo importantíssimo para o crescimento. Mas crescer para onde? E como crescer?
Tradicionalmente, as questões ambientais ficam um pouco à margem do debate tributário. Às vezes o simples princípio poluidor pagador já é visto como uma grande vitória.
No entanto, a questão das atividades de baixo carbono passa a ocupar um espaço novo. O aquecimento global transformou o carbono neutralizado numa espécie de moeda. Alfredo Sirkis, amigo morto recentemente, tinha o sonho de transformar o carbono numa referência monetária, como foi o ouro até a conferência de Bretton Woods.
Existe outro ponto em que o Orçamento se poderia transformar de discussão burocrática em debate vivo. Refiro-me também ao dinheiro destinado à defesa nacional. Ele foi ampliado por Bolsonaro, embora não a ponto de suplantar educação ou saúde, como o presidente queria.
Não custava nada um debate sobre as verbas da defesa não escorado apenas em cifras, mas em rumos. Que tipo de guerra esperamos, como nos preparamos para ela, os recursos são adequados? Parece uma heresia trazer esse debate da defesa para a sociedade.
Sabemos que os militares se preocupam com a defesa da Amazônia, num momento em que o mundo está muito interessado no destino da região.
Até que ponto vão investir na Amazônia? Que concepção de defesa têm para a área?
Teoricamente, fica mais fácil tomar conta de uma região sem a floresta em pé. Mais simples ainda seria essa tarefa se os povos indígenas fossem fundidos num só povo, o brasileiro.
Mas o problema central é que a floresta terá de ser explorada sem destruição e os povos indígenas são considerados hoje também uma riqueza da humanidade. Aliás, essa já é uma visão mais antiga. Durante a conferência de 1992 no Rio, houve o encontro dos líderes mundiais e um encontro paralelo, no Aterro do Flamengo, reunindo organizações e personalidades. Neste encontro foi definido que a diversidade cultural é tão importante para o futuro comum como a biodiversidade.
É esse quadro complexo de biossociodiversidade que a defesa da Amazônia nos apresenta. Nada mais interessante antes de abordar cifras do que conhecer exatamente o tipo de escolha que o Brasil fará. Mesmo porque as notícias que surgem são muito inquietantes. Fala-se na compra de um satélite de R$ 145 milhões, quando sabemos que o Inpe monitora adequadamente a região. Por que essa redundância? No passado fizemos um investimento gigantesco para a época no Sivam, o Sistema de Vigilância da Amazônia. Fala-se muito pouco dele, mas seria um instrumento até mesmo de nossa diplomacia amazônica, por sua possibilidade de coletar e compartilhar dados.
Enfim, todas essas dúvidas são pertinentes para quem se interessa em examinar como o País gasta o seu dinheiro. Vimos que a economia é bastante severa quando se trata de salário mínimo: não há aumento real. No entanto, o debate é se os militares podem ou não ultrapassar o teto do funcionalismo público. Isso é tão desapontador que prefiro acreditar que um verdadeiro debate sobre Orçamento ainda virá, ou já existe e minhas antenas ainda não o captaram.
Fernando Gabeira: Reflexões sobre o naufrágio
Aqui não há pianistas para nos distrair enquanto afundamos
‘O naufrágio das civilizações’. Quando esse livro chegou a mim, resolvi que ia lê-lo antes de outros que estão sobre a mesa. Interessam-me o título e o autor, Amin Maalouf.
Ele usa a imagem marítima, como a de grande barco afundando. Costumo usá-la como a perda do horizonte, uma outra forma de ver o naufrágio.
Maalouf começa se interrogando sobre o fracasso da modernização árabe, tão rica culturalmente na sua infância no Levante, um arquipélago de cidades comerciais, e na juventude em Beirute. Como foi que tudo se perdeu, que caminhos, que encruzilhadas transformaram o mundo árabe num lugar inseguro, desesperado a ponto de produzir legiões de suicidas?
Ele analisa o papel da grande figura de Nasser, sua vitória na luta anticolonial, mas constata que, de certa forma, Nasser jogou fora o bebê com a água de banho, perseguindo estrangeiros e limitando a liberdade de expressão. Sua trajetória se esgota na humilhante derrota da chamada Guerra dos Seis Dias, um desastre irreversível.
Maalouf avança para outros momentos da história e para outras regiões do mundo onde o naufrágio já aconteceu, como o Império Soviético, ou parece muito próximo, como o Ocidente.
Ele destaca uma data, 1979. E duas revoluções: a islâmica, no Irã, e a chegada ao poder de Margaret Thatcher na Inglaterra. A primeira pelo potencial de ódio que iria trazer para a tensão entre xiitas e sunitas. A segunda, pela consagração da ideia de que os interesses pessoais são o motor do progresso, que se realiza pela soma de todos eles, pela invisível mão do mercado.
O livro segue o rastro dessas duas revoluções para alertar para o perigo de naufrágio que nos ronda. Maalouf é consciente, como eu, de que as pessoas, no anoitecer da vida, tendem a olhar suas juventudes como uma época de ouro. E confundem o ocaso de seus mundos pessoais com o próprio fim do mundo.
Tudo isso me interessa muito, pois, nos últimos livros que escrevi, tentei entender as razões pelas quais o Brasil frustrou as expectativas grandiosas que tínhamos sobre ele. O título de um dos livros, inspirado em Marco Aurélio, exprime essa frustração: “Onde está tudo aquilo agora?”.
Todo esse trabalho antecede a eleição de Bolsonaro. Poderia voltar atrás, ao otimismo dos anos de Juscelino, à Bossa Nova, aos debates sobre os filmes de Glauber Rocha, aos romances de Guimarães Rosa, aos contos de Clarice Lispector.
Por economia, concentro-me em Bolsonaro. Algumas vezes, comparei seu projeto a uma tentativa de imitar Thatcher, inclusive num traço que Maalouf não mencionou nela: seu sonho de retorno da moral vitoriana.
No projeto brasileiro, Paulo Guedes representava o ultraliberalismo, hoje atropelado pela pandemia e pelo desejo de reeleição de seu chefe; Bolsonaro, por sua vez, desejava um retorno aos costumes mais antigos, algo que esbarra no Congresso e se realiza plenamente na política externa, campo em que o Brasil se tornou uma referência de fundamentalismo religioso.
Mas a grande afirmação de uma política baseada no egoísmo foi a defesa da economia a qualquer custo, independente do número de mortos que resultaria de uma política de imunização de rebanho, desejada por Bolsonaro.
Aumento de armas, supressão de medidas de segurança no trânsito. Tudo isso foi apenas o prenúncio de uma política ambiental destrutiva. A floresta em pé é mais difícil de defender. A supressão dos povos indígenas fundidos num só povo é também uma garantia contra a sedução estrangeira.
O resultado disso: morte e destruição que se estendem também às relações políticas no interior da democracia. De vez em quando, um “acabou, porra!”, uma vontade de encher a boca do outro com porrada.
A imagem do naufrágio no Brasil soa romântica como se estivéssemos no Titanic. Aqui não há pianistas para nos distrair enquanto afundamos. A linguagem do poder é áspera e suja como nas salas de tortura.
No inferno de Dante havia pelo menos uma inscrição: deixai toda a esperança, vós que entrais.
Aqui nos empurram a pontapés e palavrões. Uma forte razão para desobedecer, manter a esperança.
Fernando Gabeira: A escolha dos pobres
Apesar do esforço dos deputados, Bolsonaro capitalizou sozinho a ajuda emergencial
A divulgação da pesquisa com aumento da popularidade de Bolsonaro não deveria surpreender tanto. A negação da pandemia de coronavírus, para muitos de nós, parecia um fator de desgaste. Mas nem isso colou, pois 47% dos entrevistados consideram que Bolsonaro não tem culpa pelo fracasso nacional diante da pandemia.
O ponto elementar do aumento do prestígio de Bolsonaro é a ajuda emergencial. No início queria que fosse de R$ 200, mas as negociações com o Congresso acabaram elevando-a para R$ 600. Apesar do esforço dos deputados, Bolsonaro capitalizou sozinho essa extraordinária transferência de renda, que salvou muita gente e em alguns pontos do Nordeste melhorou as condições de vida.
Isso tudo, num momento em que discutimos a democracia e seus limites, deveria ser visto com bastante calma. Em primeiro lugar, é comum em todos os estudos da democracia apontar um apoio maior ao governo em regiões que dependem da assistência oficial. Tem sido assim no Nordeste. De modo geral, é a última região onde os governos perdem força.
Os anos em que a esquerda esteve no poder deram-lhe a sensação de que estava selada entre ela e a população mais pobre uma aliança histórica irreversível. Há muita ilusão nessa ideia. Alguns críticos da esquerda afirmam que ela errou por considerar apenas o aspecto fisiológico da aliança, sem avançar na educação política. Pessoalmente, acho que errou apenas ao enfatizar as melhorias no aumento de um tipo de consumo, deixando de lado alguns avanços que seriam vitais para os pobres, como, por exemplo, o saneamento básico.
Uma questão que se coloca para a democracia é até que ponto as limitações econômicas não transformam em fantasia a ideia de que as pessoas escolhem livremente seu caminho. Ou, em outras palavras, enquanto houver pessoas abaixo da linha de pobreza não há escolha para elas senão tentar escapar dela.
As pesquisas fora do Brasil que mostram a decadência da democracia entre gente da classe média e jovens são eloquentes nesse sentido. Em muitos lugares há uma tendência crescente a aceitar um governo autoritário e mesmo uma ditadura militar. Não é a extrema pobreza que produz esse sentimento. Em muitos casos a decadência da adesão democrática se dá apenas porque foi interrompido o processo de melhoria de vida. Em outros casos, os entrevistados dizem que estão bem de vida, mas abandonam a crença na democracia porque uma cidade vizinha ficou pobre ou porque um bairro próximo apresenta altos níveis de violência.
Em síntese, se setores da classe média orientam suas posições por um pressentimento quanto ao futuro, como questionar que pessoas em extrema dificuldade canalizem seu apoio político diante de algo mais essencial, que é a sobrevivência física?
Certamente outras políticas públicas têm peso na vida dos mais pobres. A de saúde é uma delas. Acontece que neste período de pandemia, apesar da corrupção, houve aumento de vagas em hospitais e uma sensação de que a maioria dos pacientes foi atendida. Alguns erros, como a não hospitalização mais precoce, não chegaram a ser sentidos com clareza. Muito menos a incidência maior de mortes em regiões mais pobres foi politizada, uma vez que a vimos com a habitual resignação diante de problemas estruturais.
Outra política que influencia a vida das pessoas mais pobres é a de educação. No período da pandemia o setor ficou congelado. Mesmo a educação privada sofreu o impacto e conseguiu se sair melhor com o trabalho a distância. Mas também essa diferença foi atenuada pelo fato de que nos acostumamos com o desnível estrutural entre o ensino particular e o público.
Um dos pontos que não foram articulados na análise da pesquisa é até que ponto a política assistencial de Bolsonaro será sustentável. Os dados que complementam a análise mostram que há uma previsão de queda de 11% na atividade econômica do segundo semestre. O País poderá com isso entrar em recessão.
Em que bases o governo consegue ser popular numa recessão? Precisaria de muito mais estudo para formular a saída. O único exemplo de governo que se sustenta apesar do avanço da pobreza é o da Venezuela. Ali se combinam dois fatores importantes. Uma parte da população se sente contemplada. E as Forças Armadas, sócias do chavismo e das benesses do governo, são de uma fidelidade até o momento inabalável.
A decisão de destinar mais dinheiro à Defesa do que à Educação e à Saúde revela que o caminho de se associar às Forcas Armadas Bolsonaro adotou desde o início. O que há de novidade é a ajuda assistencial, que ele sempre considerou uma forma de a esquerda comprar votos, passar a ser a principal esperança de sua sobrevivência política.
A esquerda tem dificuldade de aceitar que as massas apoiem a direita por causa da ajuda assistencial. E a direita sempre atacou o Bolsa Família como se fosse algo que entorpecia não só a escolha política, como o desejo de trabalhar e empreender.
Parece que, em certos casos, pouco importa ser de esquerda ou de direita, a história já está previamente escrita.
*Jornalista
Fernando Gabeira: Os caminhos na tempestade
As coordenadas para tirar o Brasil da crise chocam-se com a visão de mundo de Bolsonaro
O foco de nossas discussões hoje no Brasil tem sido o governo: atacar ou defender o que está aí, arranjos para derrubar ou manter Bolsonaro de pé.
No entanto, há uma crise de grandes proporções no horizonte. Não importa quem estiver em Brasília, enfrentará um enorme desafio para simultaneamente amparar os mais vulneráveis e fazer o País andar.
Para o economista Armínio Fraga, é profundo o tamanho do buraco. Ele calcula que será necessário, em recursos, o equivalente a oito pontos do PIB para sairmos dessa.
Nesse ponto é que uma reflexão política pode ajudar. O governo segue dois caminhos perigosos. Ambos tornam a tarefa mais difícil.
A visão atrasada da política ambiental pode ser um obstáculo decisivo, pois consegue, ao mesmo tempo, afugentar investidores internacionais e desvalorizar os produtos brasileiros lá fora. Ou, no limite, até tornar alguns inviáveis.
A política sanitária negacionista completa esse quadro. O desempenho brasileiro no combate ao coronavírus também não ficará barato para a Nação. Pontualmente, o mercado da carne foi atingido. Mas o turismo dificilmente se recupera rápido. O fato de sermos uma região onde o vírus não é controlado significa inúmeros transtornos, que repercutem até na dificuldade do Flamengo de contratar um técnico de futebol no exterior.
A existência de um governo com essas características torna a tarefa de recuperação, com a demanda de recursos que implica, gigantesca, quase impossível.
O ponto central no momento é a reforma tributária. O pulo do gato é um imposto sobre transações eletrônicas, bastante aceleradas sobretudo depois que a pandemia se instalou no País. É uma CPMF adaptada às condições da nova situação criada pelo coronavírus e que, de certa maneira, já se verificava como consequência da revolução digital.
Aí reside outro nó político. Como convencer a sociedade, devastada pela crise sanitária, a pagar um novo imposto, ela que já o recusou em outras circunstâncias?
A única possibilidade de atenuar a resistência será um esforço visível do governo para reduzir os custos da máquina. Nos cálculos de Armínio Fraga, isso poderia representar três pontos do PIB, sem perda de eficácia da máquina.
A própria ordem dos fatores dificulta essa saída. O governo, primeiro, pensa em introduzir um novo imposto. Só depois, possivelmente, falará em reforma administrativa. Mesmo assim, não se conhece em detalhes o que ele pensa sobre isso. Haveria mesmo uma racionalização convincente da máquina, uma certeza cristalina de custos menores pela prestação dos serviços públicos?
A previsão é de que, mesmo sem orçamento de guerra em 2021, o governo seja pressionado a gastar. A dívida no longo prazo torna-se problemática e a tendência será buscar dinheiro com prazos cada vez mais curtos.
Tudo isso é um grande problema no médio prazo. Uma razão a mais para pedir uma verdadeira política ambiental, uma guinada no negacionismo sanitário, uma ampla reforma da máquina administrativa.
Mas que sucesso teriam essas demandas num governo que cultiva o isolacionismo e a negação?
Breve teremos eleições nos Estados Unidos. Existe uma possibilidade concreta de vitória de Joe Biden. Bolsonaro embarcou cegamente na canoa de Donald Trump.
Esse deslumbramento provinciano é inadequado para um presidente do Brasil. Mas agora já aconteceu. Existem quadros na diplomacia brasileira que poderiam atenuar o impacto negativo dessa política. Mas o atual ministro é o símbolo dessa política que vê em Trump a salvação dos valores ocidentais – embora quase todos saibamos que, se dependessem de Trump, os valores ocidentais já estavam destruídos.
Quando articulo todos esses elementos de análise, concluo que dificilmente este governo tem condições de superar a crise no horizonte.
Derrubá-lo num movimento traumático abalaria em muitos dos seus eleitores a confiança na democracia. Daí não vejo outro caminho senão abordar a crise com propostas positivas e, simultaneamente, mostrar aos eleitores bem-intencionados que não há solução com Bolsonaro. As coordenadas para tirar o Brasil da crise chocam-se diretamente com sua visão de mundo.
Quanto mais rápido se completar esse movimento, mais tempo teremos para abordar a crise de forma criativa, aplicando no futuro não só as lições do passado, mas, acima de tudo, aquelas que se tornaram evidentes durante a pandemia.
As diferenças sociais no Brasil não podem apenas ser combatidas com a ideia de que é preciso aumentar o consumo de eletrodomésticos e carros. Existe um consumo de qualidade que pode surgir de um eficaz serviço público: saneamento, educação, sistema de saúde universal e bem equipado.
A enorme potencialidade do Brasil, popular, intelectual, científica, enfim, todos esse fatores que o governo despreza precisam estar juntos de novo não apenas para derrubá-lo, mas para enfrentar seu legado negativo no processo de reconstrução. São dois momentos diferentes, reconheço. Mas deveriam estar, dentro do possível, entrelaçados, pois nunca atravessamos uma tempestade tão perfeita.
Fernando Gabeira: A política da negação
A máscara é uma imposição do coronavírus que ameaça Bolsonaro com a impotência
Há anos que não se fala mais esta frase: Freud explica. No entanto, infelizmente, em 1936, Freud contou numa carta a história que explica a terrível passagem da pandemia de coronavírus pelo Brasil.
De acordo com a lenda, quando o rei Boabdil recebeu a notícia de que a cidade de Alhambra, capital de seu reino, estava para ser dominada pelo inimigo, ele queimou a carta e decapitou os mensageiros.
Freud afirma que, ao queimar a carta e decapitar os mensageiros, o rei Boabdil negou uma realidade desagradável: a queda de sua cidade. Um fator determinante no comportamento do rei era a necessidade de combater um sentimento de impotência. Ao queimar a carta e decapitar os mensageiros, ele tentava mostrar seu poder absoluto.
Quando o coronavírus chegou ao Brasil, Bolsonaro afirmou que iria abalar a economia e arruinar o seu governo. O coronavírus transfigurou-se numa gripezinha.
Numa live com o querido embaixador Marcos Azambuja e Mary Del Priore, a historiadora me lembrou que o termo negacionista em história surgiu quando, depois da Guerra, alguns intelectuais de extrema direita negaram a existência dos campos de concentração e do Holocausto.
Uma das vantagens da quarentena é ficar perto dos livros. Encontrei na estante um livro em que dois intelectuais americanos revisam a história moderna dos EUA usando o conceito da negação.
Michael Milburn e Sheree Conrad, em “Políticas da negação”, revivem episódios como a Tempestade no Deserto e o Massacre de My Lai, em que morreram 400 vietnamitas.
Como estão no campo da psicologia, analisam também o comportamento de figuras-chave na política americana, Ronald Reagan, por exemplo, a partir de sua tendência a negar a realidade.
Não pesquisei os dados da infância de Bolsonaro, como fizeram os americanos com seus políticos. Os biógrafos podem fazer isto no futuro. O singular em Bolsonaro é que ele é muito expressivo e direto, não é tão necessário assim o mergulho na infância.
Ele se apegou à economia porque via na sua crise o declínio do próprio poder. Não era o único caminho. Se aceitasse a realidade do coronavírus e se dispusesse a dar o melhor de sua energia para atenuar seu impacto, estaria hoje em melhor condição.
Jacinda Ardern, na Nova Zelândia, aceitou a realidade e tornou-se a maior líder do pais nos últimos 100 anos.
A negação do coronavírus por Bolsonaro é um dos processos mais corrosivos na história contemporânea. Ele desmontou o Ministério da Saúde, em plena pandemia, e o ocupou com militares.
A Ciência e a Medicina pareciam para ele como mediações débeis e inadequadas, e de fato o são quando se quer substituir a realidade por um desejo. Como o coronavírus não existia como perigo, ele participou de manifestações, saudou as pessoas e circulou sem máscara.
Dizem os relatos que Bolsonaro considerava usar máscara “coisa de viado”. É frequente a associação do poder com a masculinidade. A máscara é uma imposição do coronavírus que o ameaça com a impotência e a castração.
Aqui nem precisa do Freud para explicar. Sua filha Ana Freud trabalhava com o tema e costuma citar o caso de um menino que, na fantasia, tinha um leão que só gostava dele. Ele passeava com o leão entre as pessoas e se divertia com o fato de ficarem assustadas. Não havia razão para isso: afinal, o leão era inofensivo, desde que mantido sob controle.
Era a forma de o menino negar seus impulsos agressivos contra o pai e, mais ainda, se proteger da ansiedade da castração diante de um inimigo tão mais forte. É possível compreender aí como parece estranho para Bolsonaro ter medo do coronavírus. Afinal é, na sua fantasia, apenas uma gripezinha, uma chuva que acaba molhando a todos.
Essa profunda dissociação da realidade nos custou um preço muito alto em vidas humanas e, ao contrário do que pensa Bolsonaro, reduziu nossas chances de recuperação econômica.
A presença de militares no Ministério da Saúde para fortalecer essa fantasia infantil de Bolsonaro equivale ao termo que usamos em política: o Exército bate palmas para maluco dançar.
É um genocídio, como diz Gilmar? Ou não chega a ser um genocídio, como diz a maioria? Em qualquer hipótese, digo eu, não há consolo.
Fernando Gabeira: A morte e a morte da democracia
Ela é comida pelas beiradas, como vírus que invade, gradativamente, seu pulmão até que pare de respirar
É preciso retomar o tema da democracia ameaçada. A prisão de Fabrício Queiroz conteve o avanço da extrema direita. Muitos interpretam o perigo de golpe apenas como um blefe de Bolsonaro, um delírio que agora se dissolve.
São pessoas sensatas que me perguntaram quando soei o alarme se eu não estava exagerando.
De uma certa forma, abordei este tema num artigo de fim de semana. Lembrei a tensão nas democracias europeias dos anos 30 e as pequenas pausas que surgiam entre elas. Muitos as interpretavam como o fim dos problemas, um novo período de paz.
Não tenho nenhuma intenção de comparar a extrema direita brasileira com a Alemanha nazista. Isto serviria apenas para reforçar a ideia de que exagero. Minha preocupação é apenas analisar a pausa. Ela pode ser aproveitada para se avançar na defesa da democracia ou pode ser considerada como o fim de um período de hostilidades.
Muitos imaginam o golpe de estado clássico: tanques saindo dos quartéis e ocupando pontos estratégicos, Congresso e STF fechados. É uma espécie de tiro no coração da democracia. Acontece que, nos últimos anos, cresce o consenso de que a democracia é comida pelas beiradas, como um vírus que invade, gradativamente, seu pulmão até que pare de respirar.
Essa lenta e sistemática derrubada da democracia brasileira está em curso. Não há tanques na rua, nem censores dentro dos jornais.
Mas a informação de qualidade está sob intenso fogo. O IBGE teve contestado seus dados sobre desemprego; a Fiocruz, invalidada uma pesquisa sobre consumo de drogas; o Inpe, decapitado por seus informes sobre o desmatamento na Amazônia. O próprio Bolsonaro tentou, mas não conseguiu, suspender a Lei de Acesso à Informação.
É como se as luzes de um edifício fossem sendo apagadas gradativamente. Na Fundação Palmares já não é possível contestar o racismo. O governo já não defende a diversidade cultural. Somos todos filhos de um mesmo Deus. Nas palavras do Weintraub: “Odeio a expressão povos indígenas.”
Três mil militares ocuparam a administração civil. No Ministério da Saúde desalojaram técnicos num momento em que se luta, e se perde, contra uma pandemia que já levou mais de 50 mil vidas. As armas são vendidas em maior escala, na medida em que cai o controle do Exército.
Na preservação ambiental, as luzes já se apagaram há muito. Na escuridão, crescem o desmatamento, o garimpo ilegal, a grilagem. Não se respeitam as leis, e os funcionários que tentam aplicá-las são demitidos.
O avanço de um golpe clássico foi contido pelo STF. Mas ele foi propagado em faixas que pediam intervenção militar com Bolsonaro na Presidência. Frequentaram essas manifestações, além do presidente, generais no governo e o ministro da Defesa.
Foi preciso prender extremistas e investigar as contas de deputados que financiam as manifestações. O Congresso não se manifesta. Está escondido atrás das togas dos ministros, esperando que canalizem sozinhos a agressividade digital bolsonarista.
Um Congresso que tem medo de tuítes sairia correndo ao ver o primeiro fuzil. Mas é preciso contar com ele.
Felizmente, a sociedade começou a acordar. Manifestos surgiram em vários setores. Esboços de frentes vão se formando aqui e ali. Há sempre quem se ache o rei da cocada e não aceita certos parceiros. Mas o rumo geral é de união.
Apesar da pandemia, surgiram as primeiras manifestações de rua. De um modo geral, pacíficas, um ou outro choque com a polícia, uma solitária faixa pedindo ditadura do proletariado, rompendo o tom.
Seria importante interpretar a pausa apenas como um tempo que se ganha para se organizar, não relaxar, achando que as coisas se resolvem sem nossa intervenção. Uma semana depois da prisão de Queiroz, o TJ do Rio já concedeu foro especial a Flávio Bolsonaro e pode anular não só a prisão, como trazer o processo à estaca zero.
Daqui a pouco, volta toda a onda agressiva e vamos nos perguntar o que fizemos na pausa. As democracias europeias vacilaram inúmeras vezes, mas acabaram vencendo no final. Mas os analistas sempre se perguntam se a vitória não poderia ter vindo mais cedo, poupado mais vidas.
Mesmo em dimensões desarmadas, o preço da vitória depende da maneira como interpretamos as relativas calmarias, se alimentamos ilusões conciliatórias ou compreendemos que, cedo ou tarde, a batalha se dará.
Fernando Gabeira: Uma pausa para avançar
Além da pandemia, por décadas vamos sentir os efeitos da passagem de Bolsonaro pelo pode
A leitura da História da Europa nos anos 30 mostra uma longa tensão bélica entrecortada por pausas que enchiam de esperança os que sonhavam com a paz. Poucos percebiam, como Winston Churchill, quão importante era aproveitar os momentos de tensão para se preparar para um confronto inevitável.
Guardadas as proporções, o Brasil entra numa pausa com a prisão de Fabrício Queiroz. Jogado na defensiva pelos diferentes processos no Supremo, um contra fake news, outro contra manifestações com bandeiras ilegais, Bolsonaro tende a se acalmar por alguns dias.
Toda a sua energia certamente estará concentrada em se defender do pepino do tamanho de um cometa que ronda seu governo. A presença de Fabrício Queiroz na casa do advogado da família Bolsonaro levou, de novo, não só os problemas de Flávio Bolsonaro, mas a incômoda questão das milícias cariocas para o terceiro andar do Palácio do Planalto.
Dificilmente, nesse período, crescerão as manifestações pedindo o fechamento do Congresso e do STF. Muito menos Bolsonaro, Mourão e o ministro da Defesa devem lançar novas notas afirmando que as Forças Armadas não aceitam julgamentos políticos. Isso agora soaria como um blefe.
Muito possivelmente Bolsonaro perdeu terreno nas Forças Armadas e também na faixa de seu eleitorado que esperava a luta contra a corrupção. Nesta última ele já havia perdido com a saída de Sergio Moro do governo denunciando suas tentativas de intervir na Polícia Federal do Rio. E as perdas se acentuaram quando firmou aliança com o Centrão, uma espécie de seguro contra o impeachment, que nem sempre é honrado pelos contratantes.
Quando a prisão de Queiroz apertou o botão “pausa” a sociedade estava se organizando para deter o golpe e fazer frente à política nefasta de Bolsonaro. Manifestações de rua surgiram aos domingos e manifestos brotaram de vários setores, indicando a possibilidade de uma frente democrática em gestação.
Nesse momento também a pandemia atingia seu auge, ultrapassando a casa de 1 milhão de contaminados e 50 mil mortos. O Brasil tornou-se um país a ser evitado. O fracasso no combate à pandemia, impulsionado pelo negativismo de Bolsonaro, afasta os potenciais visitantes.
A destruição da Amazônia, que pode alcançar 16 mil km2 no prazo de um ano, por sua vez, afasta os investidores. Fundos de pensão responsáveis por investimentos gigantescos podem voltar as costas ao Brasil, por causa da destruição da floresta e a cruel política para os povos indígenas.
Bolsonaro não torna o País inviável apenas simbolicamente, arrasando a cultura e atropelando nosso patrimônio histórico. Ele nos coloca nas piores condições possíveis para superar a profunda crise econômica, agravada pela pandemia. Embora o ministro Paulo Guedes veja um futuro brilhante pela frente, grandes economistas brasileiros, ao contrário, veem no horizonte uma das grandes privações por que passará o Brasil em sua História.
Quem se preocupa com a democracia apenas quando se aquecem os motores dos tanques militares pode ter uma falsa sensação de alívio. A democracia continuará exposta a pequenos golpes cotidianos Além disso, quanto menos margem de manobras Bolsonaro encontrar, mais possibilidade de buscar ações desesperadas.
Enquanto a sociedade se move, ainda lentamente por causa da pandemia, o confronto com as aspirações golpistas concentrou-se na reação do Supremo Tribunal Federal. Infelizmente, o Congresso recuou para segundo plano, talvez temeroso da agressividade da militância bolsonarista.
É preciso que os deputados e senadores superem a fixação numa salvação individual nas eleições. Os deputados da extrema direita, segundo a PGR, usam verbas parlamentares para mobilizar o fechamento do próprio Congresso. Não há como se esconder atrás das togas negras do Supremo. É necessária uma frente democrática no próprio Congresso.
“Somos poucos”, dirão os deputados. Mas não importa tanto o número, o importante é começar. Se a pausa acionada com a prisão de Queiroz for entendida como um momento de distensão, uma época para simplesmente deixar andar o processo judicial, ela pode trazer surpresas desagradáveis…
Naturalmente, os processos legais têm de ser acompanhados. Mas os danos ao País continuam a ocorrer. E a chegada de momentos mais dramáticos da crise econômica pede a construção de redes de solidariedade.
Diz a OMS que o mundo sentirá por décadas os efeitos da pandemia de coronavírus. No caso brasileiro, além da pandemia, vamos também sentir por décadas a passagem de Bolsonaro pelo poder.
No trabalho de reparo dos estragos e reconstrução do futuro não pode haver pausa. Mesmo porque as desgraças não nos abandonam nem no cotidiano. O mínimo que esperamos de novo, nessa pausa, é uma voraz nuvem de gafanhotos que nos invade pelo sul do País.
Um aumento de chances de vitória é uma razão suficiente para intensificar a luta. Quanto menos nos preparamos para ela, mais difícil será o desfecho. Sem necessariamente estabelecer um paralelo com o nazismo, a História dos anos 30 é uma aula sobre as hesitações da democracia diante de um perigo no horizonte.
*Jornalista