”Frente democrática é cada vez mais urgente”, analisa Luiz Sérgio Henriques

João Rodrigues, da equipe da FAP

Em artigo publicado na Revista Política Democrática Online deste mês de abril, o tradutor e ensaísta Luiz Sérgio Henriques defende a necessidade urgente de uma frente ampla para a garantia da democracia no Brasil. As lições das lutas de Tancredo Neves e Ulisses Guimarães durante a ditadura militar, a chapa Lula-Alckmin e os riscos para o futuro da nação com eventual reeleição do presidente Jair Bolsonaro são outros assuntos abordados no artigo.

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Para aprofundar o debate sobre a necessidade de uma frente democrática para as eleições de 2022, o podcast da Fundação Astrojildo Pereira (FAP) desta semana conversa com Luiz Sérgio Henriques. O autor é um dos responsáveis pela mais recente edição das “Obras” de Antonio Gramsci, Civilização Brasileira, em 10 volumes. Sua atividade de tradutor tem como eixo difundir a cultura democrática e socialista italiana. Além de dirigir a página Esquerda Democrática, disponível no Facebook, Luiz Sérgio Henriques é colunista do jornal O Estado de S. Paulo há mais de 10 anos.

O perfil ideal de um candidato para a terceira via e os caminhos para mais esperança e mudança na sociedade brasileira também estão entre os temas do programa. O episódio conta com áudios do Jornal Nacional, Jornal da Band, CNN Brasil, TV Cultura (Documentário 50 Anos de Brasil: Brasileiro, Profissão Esperança), UOL, Giro VEJA e do discurso de Ulisses Guimarães em 5 de outubro de 1988.

O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Youtube, Google Podcasts, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues.




Luiz Carlos Azedo: saída de Moro da disputa fortaleceu Bolsonaro

Pesquisa Ipespe divulgada ontem confirmou as expectativas de que a saída do ex-juiz da Lava-Jato Sergio Moro reforçaria muito mais a polarização entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente Jair Bolsonaro na corrida eleitoral deste ano, na qual o primeiro tenta voltar ao poder e o segundo, busca a reeleição. O mais beneficiado foi Bolsonaro, que subiu de 26% para 30% de intenção de votos, na comparação com o levantamento realizado em 25 de março. Lula manteve-se na liderança, com 44%.

Bolsonaro cresceu entre pobres (de 31% para 35%), no Sul (de 31% para 39%) e no Sudeste (de 25% para 31%). A subida não pode ser creditada apenas ao deslocamento dos eleitores de viés mais ideológico de Moro. Tem a ver, também, com o controle da pandemia da covid-19, a injeção de recursos do Auxílio Brasil e outros benefícios do governo no orçamento das famílias e, ainda, com os investimentos do Centrão em pequenas e médias cidades, por meio do chamado orçamento secreto. Parte dos votos de Moro, como era de se esperar, foi captada por Ciro Gomes (PDT), que passou de 7% para 9%, e pelos candidatos da chamada terceira via: João Doria (PSDB), passou de 2% para 3%, e Simone Tebet (MDB), de 1% para 2%.

A propósito da terceira via, ontem houve um encontro dos presidentes do PSDB, Bruno Araújo, e do Cidadania, Roberto Freire, que formam uma federação; do MDB, Baleia Rossi; e do União Brasil, Luciano Bivar, que lançou sua pré-candidatura, embaralhando mais ainda a busca de uma chapa unificada. O grupo estabeleceu o prazo de 18 de maio para chegar a um denominador comum, o que continua sendo muito difícil. Há duas razões para isso. A primeira é de ordem objetiva: segundo as pesquisas espontâneas, o voto em Bolsonaro (passou de 25% para 27%) e Lula (manteve 36%) está se consolidando, o que mostra cristalização da polarização entre ambos. A segunda é subjetiva: os candidatos precisam demonstrar disposição de se retirar da disputa.

Não é o caso do ex-governador João Doria, que iniciará amanhã, pela Bahia — numa aproximação com o secretário-geral da União Brasil, ACM Neto, candidato favorito ao governo do estado, com quem estava rompido —, seu périplo pré-eleitoral pelo Brasil. Doria não admite nenhuma conversa sobre a retirada de sua candidatura que desconsidere o fato de ser o postulante do PSDB escolhido nas prévias da legenda, ou seja, não está disposto a se submeter a uma decisão dos demais partidos. Ignora solenemente as articulações para afastá-lo da disputa. No seu calendário, a campanha eleitoral somente começará em 15 de agosto, com a propaganda eleitoral de rádio e tevê.

Evidentemente, o prazo de 18 de maio dado pelos demais partidos para que possa alavancar sua candidatura, na medida em que o tempo avançar, servirá de ultimátum, caso não decole nas pesquisas. Nesse caso, as demais legendas têm intenção de propor outra candidatura. Os nomes mais cotados são de Simone Tebet, que mantém bom diálogo com Doria, e Eduardo Leite, que virou uma espécie de “candidato fantasma” do PSDB. Pelas regras do jogo, o nome de Leite só é viável com a desistência de Doria, embora a tese de que os outros partidos podem apresentá-lo seja voz corrente nos bastidores da terceira via. A candidatura de Luciano Bivar não pode ser levada a sério, é um chapéu na cadeira para a eventualidade, remotíssima, de Moro voltar a ser candidato à Presidência pela União Brasil.

Esquerda, volver

Ciro Gomes continua correndo por fora da terceira via, embora busque alianças ao centro. Já teve conversas com Bivar e, ontem, procurou o apoio do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), que desistiu de disputar a Presidência. Ciro tem boa relação com o candidato do PSD ao governo de Minas Gerais, o ex-prefeito de Belo Horizonte Alexandre Kalil. Esnobado pelos presidentes das legendas da terceira via, saiu do encontro com Pacheco atirando: “A terceira via é uma expressão preguiçosa criada por uma certa imprensa. O que se chamou de terceira via no Brasil são as viúvas do Bolsonaro, e eu não tenho nada a ver com isso”, disparou o pedetista. Com a saída de Moro, Ciro subiu de 7% para 9% nas intenções de voto, o que só reforça a resiliência de sua candidatura.

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva parece ter batido no teto, embora continue franco favorito nas pesquisas de segundo turno, em qualquer cenário. Contra Bolsonaro, venceria com 53% dos votos contra 33%. O petista consolidou sua aliança com o PSB, que indicará o ex-governador Geraldo Alckmin para vice. Lula busca uma aproximação com setores empresariais; ao mesmo tempo, mantém a velha narrativa contra as “elites escravocratas”, a agenda sindical do PT, a defesa das estatais e uma política externa não alinhada ao Ocidente, o que é música para a esquerda tradicional. Ou seja, também não tem nenhum interesse em se aproximar da terceira via.

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Esperança e mudança foram alguns dos anseios da frente democrática que lutou pela redemocratização do Brasil | Foto: Reprodução

Revista online | A frente democrática, aqui e agora

Luiz Sérgio Henriques*, exclusivo para revista Política Democrática Online

“Brasileiro, profissão esperança” – era assim que costumávamos nos autodefinir, na trilha do belo musical de Paulo Pontes sobre Dolores Duran e Antônio Maria, ainda nos anos 1970. A ditadura, afinal, era como que “externa” a nós, imposta de fora. Não a queríamos, só éramos forçados a suportá-la. O que talvez explique certo pessimismo hoje disseminado é a descoberta – terrível – de que a esperança não é necessariamente nossa profissão e muito menos a segunda natureza. De dentro de nós mesmos, de pessoas como nós – amigos, parentes, vizinhos – podem brotar dezenas de milhões de votos capazes de jogar o país, como jogaram em 2018, nos braços da extrema-direita. Uma escolha, historicamente desesperada, de quem quer voltar atrás no tempo, negar conquistas, fugir a incertezas e desafios.

A experiência da luta contra o regime ditatorial nos educou, é verdade, mas é preciso entender bem o que houve. Aprendemos, por exemplo, que o “centro político” é um conceito essencial, pois nele se cruzam, se chocam e, também, se conciliam as tendências fundamentais de toda uma conjuntura. O centro não é um termo médio amorfo, um espaço povoado por mornos ou desmotivados para a luta, mas, sim, o elo que é preciso pegar firmemente com as mãos para fazer mover, num sentido ou no outro, o conjunto das forças políticas e a própria sociedade. De nada adianta autoexilar-se num gueto, batendo a mão no peito e apregoando a condição de “verdadeira” esquerda – condição talvez sincera, certamente impotente.

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Considerar aquele centro como terreno estratégico define a questão da hegemonia e das forças que se credenciam para dirigir as demais numa dada circunstância. Na ditadura, o sentido da luta contra o voto nulo e pela valorização das eleições foi precisamente este: animar um centro organicamente comprometido com a redemocratização do país, no qual pudessem convergir forças e personalidades variadas, inclusive as que paulatinamente se destacavam do regime – Teotonio Vilela, Aureliano Chaves ou José Sarney. E havia uma esquerda, uma parte dela ao menos, que dava legitimidade a este movimento progressista, que desaguaria na Constituição de 1988.

Na situação de agora, um motivo de desesperança – ou, se quisermos, uma interrogação para a qual ainda não temos resposta – decorre da incerteza sobre o principal partido da esquerda, sua linha básica e a orientação dos seus simpatizantes, que não foram “treinados” na política de frente. Será que basta acenar simbolicamente para o centro, escolhendo, tal como em 2002, um vice-presidente “conservador” para compor a chapa? A intenção será só a de “acalmar os mercados”, sugerindo relações de “paz e amor”? Ou, ao contrário, haverá algo de novo na ação institucional e na definição de políticas que não copiem o velho desenvolvimentismo?   

A inquietação, na verdade, não deve ser estranha ao próprio núcleo da campanha petista. O senador Randolfe Rodrigues demonstra instinto apurado quando constata a reconstituição de um poderoso bloco em torno de Bolsonaro, militares e Centrão (“Bolsonaro vencerá se Lula não for mais plural”, Metrópoles, 03.04.2022). Um conjunto que não está suspenso no ar, uma vez que esta extrema-direita no poder tem sustentação na sociedade: os 25 ou 30% que apoiam irrestritamente Bolsonaro são uma espécie de aríete antidemocrático pronto para ser acionado contra instituições-chave, como o Supremo Tribunal Federal (STF), o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ou qualquer outra. E um eventual segundo mandato do atual presidente, como toda a literatura tem repetido a propósito da farta safra de populistas autoritários, seria um risco ainda maior do que tentativas canhestras de golpe, como em setembro de 2021.

Estadistas se movem audaciosamente na hora do perigo. Tomam a iniciativa de procurar desafetos, curar ressentimentos, reestabelecer pontes com adversários de ontem, sem nenhuma exceção. O senador Randolfe menciona os palanques das diretas-já, cruciais para a eleição da chapa Tancredo-Sarney e a consequente derrota do regime de 1964. A menção é pertinente porque se trata, também, de acolher forças e personalidades da direita democrática, bem como seus eleitores, em torno da candidatura oposicionista mais forte. Além do mais, aquela ação típica de estadista, se efetivada, teria um efeito pedagógico não desprezível sobre os adeptos de sempre, mostrando a estes, num momento decisivo, que a vida em democracia sempre requer embates e acordos, dissensos e consensos, com exclusão só de quem ameaça a própria convivência civil.

Ao longo dos anos, a falta desta pedagogia terá sido, em boa medida, a responsável pelo déficit de recursos que ora sentimos para vencer o adversário nas urnas e diminuir na sociedade o expressivo número de brasileiros com inclinações autoritárias. Não se pode esquecer que, com a frente democrática de antes, o país afinal pôde respirar por algumas décadas ares de “esperança e mudança”. Estas, contudo, são páginas já escritas por gente como Ulysses e Tancredo. Há outras mais, igualmente decisivas, a serem escritas aqui e agora. O feito será repetido?


Saiba mais sobre o autor

* Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta

** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática online de abril de 2022 (42ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

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Luiz Carlos Azedo: trapalhada de Bolsonaro deixa Petrobras à deriva

Uma das características do governo Bolsonaro é a geração de crises endógenas, ou seja, criadas pelo próprio presidente da República ou seus auxiliares, sem nenhuma interferência da oposição. Por capricho ou esperteza do chefe do Executivo, a confusão armada na troca de comando da Petrobras é mais uma delas. No fundo, ocorre porque Bolsonaro se considera um presidente que pode tudo no governo, quando não é assim que funciona o Estado democrático de direito. O presidente da República tem seu poder limitado pela Constituição e pelas leis.

A gestão da Petrobras foi blindada pela nova legislação das estatais aprovada no governo do presidente Michel Temer. A chamada Lei de Responsabilidade das Estatais (Lei nº 13.303/16) foi uma resposta do Congresso aos escândalos investigados pela Operação Lava-Jato na maior empresa estatal brasileira, para dar uma satisfação à opinião pública. A nova legislação regulamentou o dispositivo da Constituição (art. 171, §1º) que exige um estatuto jurídico próprio para as empresas estatais.

A lei estabelece regras de governança corporativa para impedir as ingerências políticas nas empresas estatais, entre as quais a indicação e a ocupação dos cargos de administração (art. 17, §2º) por políticos ou pessoas sem idoneidade e a necessária qualificação técnica. A lei tornou obrigatória a existência de um comitê interno cuja função é verificar se as indicações aos cargos de administradores cumprem as regras de governança corporativa.

A legislação também deu maior transparência e eficiência à gestão administrativa das empresas estatais, com a criação de diversos órgãos de controle (compliance, auditoria interna, comitê estatutário etc.), além de seguir expressas práticas de governança e de divulgação de informações. No caso da Petrobras, essas regras são ainda mais relevantes, porque a empresa é uma sociedade anônima, cujas ações são negociadas no mercado de capitais.

A política de preços da Petrobras não pode sofrer interferência do governo. Toda vez que existe essa ameaça, a empresa sofre as consequências no mercado financeiro. Bolsonaro vem tentando interferir na política de preços da empresa desde o começo de seu governo. A saída de Roberto Castello Branco do comando da estatal foi consequência dessas tentativas. Sua substituição pelo general Joaquim Silva e Luna, atual presidente da Petrobras, tinha por objetivo controlar os preços dos combustíveis; o militar, porém, seguiu as regras da legislação vigente e a política de preços estabelecida em razão do mercado de combustíveis, que é dolarizado.

Deu errado

Diante da necessidade de melhorar seus índices de aprovação popular, mirando a própria reeleição, Bolsonaro resolveu trocar o comando da empresa, indicando para presidente do Conselho de Administração o atual presidente do Flamengo, Rodolfo Landim, e para a presidência da diretoria da empresa, Adriano Pires, conhecido consultor da área de energia. Landim, que já foi funcionário de carreira da empresa, obviamente, seria um aporte político importante para o governo, principalmente no Rio de Janeiro. Pires havia encantado o presidente da República com a proposta de criar um fundo especial para subsidiar o diesel e o gás de cozinha e, com isso, mitigar a alta dos combustíveis provocada pela guerra da Ucrânia.

Deu errado. Não porque o mercado tenha reagido negativamente, mas porque os dois nomes não atendiam às exigências de compliance. Ao se despedir do cargo, no qual permanece apenas para abandonar o posto em meio à batalha, o general Silva e Luna havia advertido que a direção da empresa não comporta a presença de aventureiros; sabia bem o que estava falando. Tanto Landim como Pires desistiram da indicação devido a conflitos de interesses. Ambos têm negócios com fornecedores e prestadores de serviços da estatal.

Ontem, Bolsonaro foi ao Rio de Janeiro para tentar convencer Pires a aceitar o cargo. Como sempre acontece, atribuiu aos “inimigos internos” as dificuldades enfrentadas pelo executivo, que está há mais de 20 anos à frente do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), consultoria especializada em inteligência, regulação e assuntos estratégicos para o setor de energia. Não é um neófito, se desistiu do cargo é porque sabe das dificuldades que enfrentaria.

A demissão de Silva e Luna por si só não muda a política de preços da estatal, que fez um forte reajuste em março, com aumento de 25% do diesel, 19% da gasolina e 16% do gás de botijão, a causa de sua saída. A demissão de Roberto Castello Branco, em fevereiro de 2021, também ocorreu após um reajuste de combustíveis, da ordem de 14,7% no diesel e 10% na gasolina pela estatal naquele mês. Esses aumentos decorreram do aumento do preço do petróleo, induzido pelos principais países produtores — Opep, Rússia e Venezuela, principalmente —, e da alta do dólar, que agora está caindo. São variáveis que não podem ser neutralizadas artificialmente.

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FAP prepara documento com sugestões de políticas públicas para o Brasil

Cleomar Almeida, coordenador de Publicações da FAP

A Fundação Astrojildo Pereira (FAP) planeja realizar, até o mês de julho, um encontro para sistematizar um documento com sugestões de premissas e diretrizes que devem ser priorizadas pelos governantes para nortear políticas públicas no Brasil nas próximas décadas. A atividade integra o planejamento da entidade, que vai celebrar o bicentenário da Independência no mês de setembro.

Abaixo, veja vídeo da reunião:

https://youtu.be/sPsghllqX-s

O diretor-geral da FAP, o sociólogo Caetano Araújo, e o diretor financeiro da entidade, Raimundo Benoni, destacaram a proposta do documento, na última quinta-feira (30/3), durante reunião do Conselho Curador, como parte do planejamento da fundação. Na ocasião, o colegiado também aprovou, por unanimidade, a prestação de contas referente ao ano de 2021.

Caetano sugeriu, ainda, que o documento propositivo seja entregue ao Cidadania, partido político ao qual a fundação é vinculada. “Todas as intervenções sobre esse assunto foram convergentes, e agora vamos operacionalizar e informar, periodicamente, o conselho como a proposta está se encaminhando. É um ponto do nosso planejamento”, afirmou ele.

Trabalho continuado

De acordo com o diretor-geral, a FAP continuará, ao longo dos próximos meses, o trabalho centrado na comemoração das três grandes celebrações deste ano: o centenário do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o centenário da Semana de Arte Moderna e o bicentenário da Independência, que ocorrerá em setembro deste ano.

“Será um momento para discutirmos não só o que aconteceu em dois séculos, mas que tipo de país nós queremos ser, quais são as tarefas do momento para a nação brasileira. Isso tem tudo a ver com momento político eleitoral que vamos viver. Queremos prosseguir na comemoração do bicentenário dessa forma, voltada para o futuro”, destacou Araújo, que também é consultor do Senado.

O diretor financeiro, por sua vez, disse que a ideia é começar a desenvolver essas atividades ainda neste mês de abril. “Vamos fazer processo de escuta ativa, ligar para os conselheiros, para trocar ideias e sugestões”, disse ele, que também participou da reunião do Conselho Curador da FAP.

Conselheiro da fundação, o Luiz Carlos Azedo disse que o país passa por um período de definição de rumos com um significado histórico. “O embate que vai ter agora com Bolsonaro nas eleições, qualquer que seja o resultado, vai definir rumo para o país que pode balizar e condicionar seu futuro por décadas”, ressaltou.

De acordo com Azedo, é essencial que instituições como a fundação continuem se mobilizando pelo país. “Precisamos debater o que nós queremos, as premissas e as diretrizes que achamos que o país deve seguir pelas próximas décadas. Para isso, elaborar um documento propositivo é algo importante”, afirmou.

"Interessante"

Durante a reunião do Conselho Curador da FAP, o diretor-geral da entidade também lembrou a importância do centenário da Semana de Arte Moderna e do PCB, que foi celebrado durante seminário internacional online, realizado de 8 a 10 de março, e em evento presencial, em Niterói (RJ), no dia 25 do mesmo mês.

“Quem esteve presente em Niterói viu que o evento foi muito interessante, emocionante e rico, porque discutimos um pouco o passado, a validade das nossas premissas anteriores e o que perdeu validade, a permanência e atualidade dos valores que inspiram a trajetória do PCB e reconhecemos a necessidade de fazer mudança para que esses valores, projetos e lutas sejam feitos de forma efetiva”, disse Caetano.

Segundo o sociólogo, o seminário internacional e a comemoração em Niterói foram duas atividades da FAP que “atingiram seu objetivo de comemorar, rememorar e projetar as perspectivas do PCB e do PPS para o nosso futuro e para este século que a gente vive hoje”, com a nova identidade política da sigla protagonizada pelo Cidadania.

Veja vídeos




Novo Fundeb: na mira do oportunismo bolsonarista

Por Nelson Cardoso do Amaral, entrevistado por Cátia Guimarães, para a EPSJV/Fiocruz

Em dezembro de 2021, o Congresso Nacional aprovou a lei nº 14.276, que modifica e detalha alguns pontos da lei nº 14.113, a qual, um ano antes, criou o novo Fundeb, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais de Educação. Considerado uma vitória pela maioria das entidades e movimentos sociais que atuam em defesa da educação pública, entre os principais ganhos do novo Fundo destacam-se o seu caráter permanente – diferente da versão anterior, que tinha prazo de validade – e o aumento progressivo da complementação da União, que era de 10% e agora deve chegar a 23% em 2026. Isso, no entanto, foi resultado de uma verdadeira “queda de braços” com o governo federal – que, na avaliação de Nelson Cardoso do Amaral, presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), ainda não se deu por “vencido”.

De acordo com Amaral, mudanças implementadas desde a aprovação do novo Fundeb mostrariam que a União quer “pegar de volta” parte do dinheiro a mais que vai ter que empregar na educação básica. Um dos caminhos, diz, é tentar usar esse recurso para políticas sociais executadas pelo setor privado. Outro é reduzir ainda mais sua responsabilidade pela educação federal através do decreto nº 10.656/2021, que inclui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (EPCT) como possível beneficiária de um mecanismo de financiamento que foi criado para fortalecer estados e municípios. Nesta entrevista, além de alertar para os riscos que ainda podem existir e problematizar os efeitos dessa mudanças para os Institutos Federais, o pesquisador analisa os efeitos do Fundeb sobre a educação profissional no Brasil.

Do ponto de vista do financiamento e do fortalecimento da educação básica, o novo Fundeb, aprovado em 2020 e regulamentado agora no final de 2021, foi um avanço? Haverá mais recursos?

Nelson Cardoso do Amaral – A área toda de financiamento avalia que foi um avanço de boa dimensão. Isso porque as complementações [da União] mais que dobraram. Claro que a gente tem que esperar até 2026 para a complementação da União passar de 10% para 23%, mas é um avanço em termos de valores. Foi colocado também o CAQ, Custo Aluno-Qualidade, no texto do Fundeb, uma discussão que é importante. Mas a gente tem muitas preocupações ainda com relação à normatização e implementação. Em termos gerais, sim, foi um avanço importante, até porque a tendência governamental era acabar com as vinculações [percentuais mínimos que a Constituição determina para investimento em educação e saúde]. Toda a linguagem do [ministro da Economia] era desindexar, desobrigar e descentralizar tudo. Depois partiram para a ideia de vinculação conjunta, que colocaria o dinheiro da saúde junto com o da educação. Isso está na PEC [Proposta de Emenda Constitucional] 188, que está tramitando no Senado. Então, esse é um fantasma que ainda persiste e que vai colocar os dois campos em disputa: se você gastar mais dinheiro com a educação, pode gastar menos com saúde e vice-versa. Será uma disputa muito perversa se isso for aprovado.

O senhor considera que a aprovação do novo Fundeb foi um avanço, mas, na queda de braço que se travou no Congresso, houve perdas também?

Houve. Quando o governo percebeu que tinha perdido a batalha da desvinculação e que houve um aumento do dinheiro da complementação da União para o Fundeb, começou a imaginar uma forma de tirar esse dinheiro [de investimento] na educação pública de volta. A primeira ideia foi implementar programas assistenciais, na forma de vouchers que financiariam vaga em creches da rede privada. Depois veio a considerar [usar o Fundeb para financiar] matrículas do setor privado comunitário e confessional para passar dinheiro para o setor privado. Mas essas batalhas também foram perdidas. É nessa linha que está o problema: como o dinheiro vai estar implementado nas redes estaduais e municipais, eles estão o tempo todo pensando em que percentual podem abocanhar para o governo federal ou para os grupos privados de educação.

Por exemplo, há todo um processo que está em discussão e que vai levar muito tempo em debate, que é a decisão de considerar a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, dos Institutos Federais, como parte da educação básica que pode receber recursos do Fundeb. Vai ser uma grande discussão porque seus estudantes são federais, não são nem estaduais nem municipais. E o Fundeb é um fundo estadual, constituído de recursos dos estados e municípios, com complementação da União. E essa complementação da União entra exatamente para suprir a função distributiva e supletiva que a União tem pela Constituição e para equalizar mais nessa redistribuição os valores pelo país todo. Mas a cada momento, o governo quer puxar dinheiro para o âmbito federal e para o âmbito privado. Então, é preciso atenção permanente o tempo todo. Por exemplo, está aberta a porta para a ida de recursos para o Sistema S.

Como? Essa proposta chegou a ser discutida mas foi recusada na votação do projeto na Câmara, não?

Foi, mas o decreto nº 10.656, de 2021, fala das “instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas, sem fins lucrativos, conveniadas com o poder público”. Aqui pode-se querer incluir um monte de coisas. E, às vezes, até querer contrariar legislações maiores. O risco está na forma de execução desse decreto.

Em relação à educação profissional, o antigo Fundeb destinava recursos apenas para a modalidade integrada ao ensino médio e não incluía a Rede Federal. Essa compreensão era correta?

Na minha interpretação, toda a educação básica estaria incluída no Fundeb, inclusive a educação profissional não integrada ao ensino médio. O grande problema é colocar o sistema federal no meio. Porque o Fundeb não tem nenhum componente ligado ao sistema federal de educação. O dinheiro da União que entra é uma complementação a esse dinheiro dos estados e municípios. Portanto, tem que voltar para estados e municípios.

Mas, na sua avaliação, qual o interesse da União em incluir o setor privado e a Rede de Educação Profissional, Científica e Tecnológica no Fundeb?

Existe uma disputa pelo fundo público entre o setor privado e o setor público. Isso justifica que esse componente do setor privado queira sempre pegar um pedacinho do dinheiro público. E esse tipo de ação consegue guarida no governo. E um outro aspecto é que o governo federal tenta a todo custo tirar a sua responsabilidade sobre a educação básica. Para ficar mais claro o que eu estou dizendo, vale citar novamente, por exemplo, a PEC 188, que é dramática. Ela tira a obrigatoriedade dos governos estaduais e municipais de construírem creche onde não tem vagas para todas as crianças. Ou seja, eles querem continuar pagando creches [privadas] o tempo todo com recurso do Fundeb. Com as universidades, tentaram montar o programa Future-se, também para tentar tirar a responsabilidade da educação superior do orçamento da União. Então, eles querem cada vez mais retirar a parte social do orçamento da União. E quanto mais você tira recursos e ações públicas do fundo público, mais sobra espaço para o setor privado entrar nesse contexto. Em relação ao Fundeb, quando o governo percebeu que perdeu a parada e que passou de 10% para 23% a sua complementação, começou a desenvolver o raciocínio de como abocanhar um pedaço desse dinheiro.

Mas e no caso da inclusão da Rede Federal no Fundeb? Também é uma forma de pegar o dinheiro de volta porque reduz a responsabilidade do governo federal com o orçamento dos Institutos?

Sim, querer colocar a Rede Federal de Educação Profissional Científica e Tecnológica nesse contexto [de receber recursos do Fundeb] é pegar o dinheiro de volta. E eu não sei como se vai fazer isso. O decreto diz que o caminho é estabelecer convênios ou parcerias [entre a Rede e os estados]. Só que essa discussão vai parar no Supremo Tribunal Federal, no meu entender. Os estados e os municípios vão judicializar porque vão perceber que é dinheiro a menos para eles. Que estão tentando tirar uma parcela de dinheiro deles para a União.

O decreto autoriza destinação de recursos do Fundeb para a dupla matrícula. Isso significa que os recursos vão em dobro, pagando pela escola que oferece o ensino médio, que será do estado, e pela instituição que oferece a educação profissional, que pode ser da Rede Federal. Certo? É por isso que os estados e municípios perderiam dinheiro?

Nos convênios em geral, você tem especificação dos dois lados em termos de responsabilidades. Em geral, o convênio envolve uma contratação, a parte financeira. Eu não sei muito bem como eles vão articular esses convênios [entre estados e Rede Federal] de tal modo que chegue dinheiro ao Instituto Federal por conta disso. Os Institutos Federais vão vender serviço agora? Se o estado trouxer mil alunos para cá, o Instituto Federal vai ganhar um tanto por isso? Essa é uma outra deturpação. Porque, se o Instituto Federal tem condições de absorver mil estudantes do estado e não aumenta as próprias vagas, isso é muito esquisito. Se o Instituto Federal pode absorver mil pessoas, está dizendo que poderia aumentar a quantidade dos seus estudantes e não aumenta porque não quer. Poderão vir questionamentos de todo tipo, tanto jurídico quanto esse tipo de questionamento político que eu estou fazendo. Estão sobrando professores, condições físicas e materiais [nos Institutos] para atender esses estudantes? Eu acho que vai dar muita polêmica.

Parece que esse já é um debate nos Institutos hoje. Há quem aponte que, casada com os cortes de orçamento que a Rede vem sofrendo, essa medida pode incentivar que os Institutos se dediquem a ser “prestadores de serviços” para as redes estaduais, enfraquecendo o seu projeto do ensino médio integrado, com vistas a reforçar o orçamento.

É desse risco que o senhor está falando? Qual a sua avaliação sobre isso?

É lamentável essa articulação que está acontecendo, dessa forma. Lamentável porque você está deformando a estrutura de funcionamento e os objetivos dos Institutos Federais. É como o programa Future-se queria fazer com as universidades: obrigá-las a ir atrás de dinheiro no mercado para retirar do governo a responsabilidade pelo seu financiamento. É uma lógica perversa. Uma das análises que pode ser feita é que esse garroteamento todo que está sendo feito no dinheiro da educação superior, da ciência e tecnologia e da Rede Federal é para que os Institutos Federais cedam suas condições e princípios para se tornarem prestadores de serviço para o setor privado e para o setor público, estadual e municipal. Vai ser uma luta muito forte.

Mas o volume de recursos que os Institutos Federais acessariam via Fundeb é de fato relevante para tudo isso valer à pena?

Não sei, eu teria que fazer contas. Mas eu te digo que, no contexto atual da evolução do dinheiro de outras despesas correntes e investimento, qualquer valor é bem-vindo, é importante. Não se vai conseguir pagar a folha de pagamento com esse tipo de prestação de serviço, mas ela pode ter um significado importante para outras despesas correntes e investimentos. Agora, o questionamento é esse: tem professor, técnico, um grupo enorme ocioso para fazer esse tipo de tarefa?

Isso pode afetar as matrículas do ensino médio integrado, que são a tradição da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica? Pode gerar redução?

Pode sim diminuir. Mas o certo é que não vai aumentar porque ele agora vai prestar serviço para os estados. Ou seja, é um jogo difícil e complicado. Mas eu não acredito que isso vai chegar a esse ponto. A expectativa é que isso não dure muito tempo, que haja uma reversão nesse processo de destruição da ciência e tecnologia no país. O novo Fundeb foi uma ilha de vitória nesse processo todo.

E a que essa vitória se deve?

Como o governo queria acabar com a vinculação do orçamento da educação e achou que iria conseguir, ele não fez nada em relação à tramitação do Fundeb. Só acordou na hora em que viu que o trem ia ser aprovado e virar constitucional, quando viu o apoio enorme [que o projeto tinha] no Congresso e a sociedade toda mobilizada para aprovação. Então, como ficou irreversível, ele entrou para tentar abocanhar um pedaço. Eu não sei se você se lembra, mas a proposta era chegar a 20% de complementação da União e, na negociação, foi o governo federal que colocou 23%. Qual era a intenção naquele momento? Pegar um pedaço desse dinheiro para os vouchers. Porque o Fundeb está fora do limite imposto pelo teto de gastos [Emenda Constitucional nº 95] e o governo estava com problema de implementar ações de política social, por conta do teto de gastos. Então, ele falou: “eu jogo mais dinheiro no Fundeb e pego um pedaço dele para fazer minha política social”. Só que deu tudo errado. Então, agora eles vão tentar fazer isso na implementação, por meio de decretos, vão tentar retirar pedaços do dinheiro do Fundeb. A ideia era implantar os vouchers junto com o Auxílio Brasil, o programa que criaram agora como o novo Bolsa Família. Você acrescentaria ao programa a entrega de um voucher para as famílias escolherem a creche que queriam, tanto pública como privada: uma coisa magnífica em termos de movimento para ganhar voto.

Mas, na medida em que o decreto nº 10.656/2021 autoriza também essa parceria para executar o itinerário formativo 5, de formação profissional, previsto na reforma do ensino médio, isso não pode ser vantajoso para os estados? Porque alguns estados estão precisando contratar e pagar outras instituições privadas para oferecer esse itinerário…

Se você olhar do ponto de vista desses estados, essa parceria pode ser vantajosa, mas por outro lado você destrói a Rede Federal. Se você estabelecesse que isso seria temporário, até os estados terem suas condições estabelecidas para oferecer esse itinerário, tudo bem. Você define um tempo e, enquanto isso, o estado se estrutura para atender essas necessidades. E aí é claro que vai ter que ter colaboração da União com os estados também para isso. Porque a União é o ente federado que tem mais condições de suprir recursos extra, pode emitir título, pode fazer um monte de coisas que os estados e municípios não podem. A Rede Federal poderia até fazer um esforço durante um tempo para atender um pouco essas necessidades, mas teriam que ser alocados recursos do orçamento estadual e recursos da União para implementar esse tipo de novidade no país. Eu não tenho nada contra a Rede Federal apoiar elaboração de projetos, planejar junto com estado o que se deve fazer para atingir determinadas situações, e até durante um tempo abrigar no seu interior o grupo de estudantes que estão nesse momento precisando dessa formação. Não tenho nada contra isso. Mas vai ficar tudo por conta da Rede Federal? O que existe de planejamento para os estados conseguirem cumprir essa nova obrigação? É sempre bom a universidade e os Institutos Federais interagirem com coisas do estado e dos municípios, mas não assumir responsabilidade pelo outro.

O Fundeb trabalha com fatores de moderação, que fazem com que o valor repassado para os diversos segmentos e modalidades da educação básica não seja necessariamente o mesmo. No caso dessa novidade trazida pelo novo decreto, os valores repassados são os mesmos para o curso técnico completo e para o itinerário da formação profissional, que tem carga horária bem menor. Qual a sua avaliação sobre isso?

No Fundeb, esses fatores de ponderação não têm uma regra, uma justificativa muito precisa. Na verdade, foi tudo resultado mais de discussões políticas ao longo do tempo, tanto que eles sofreram alterações sem nenhuma base. A verdadeira base para os fatores de ponderação seria o Custo Aluno-Qualidade (CAQ), que é uma outra vertente prevista no novo Fundeb, mas que está parada também em termos de análise. Com o CAQ, você saberia quanto custa o aluno do ensino fundamental, do ensino médio, da educação profissional, da educação de jovens e adultos, da educação integral, etc. Você teria realmente parâmetros para elaborar um curso de qualidade. Até hoje, esses parâmetros foram estabelecidos mais por uma discussão política tendo como limite o total de dinheiro do Fundeb. E tem mais isso. É claro que, no meu entender, quando formos trabalhar com o CAQ, vai ter um problema porque na hora que calcular o volume total de dinheiro necessário, vai ser muito, então vai ter que ser feito também algum ajuste lá no final, um achatamento, para chegar a um determinado volume de dinheiro possível para a riqueza do país, para o tamanho do PIB e da arrecadação, etc. Porque a área educacional é ambiciosa e tem que ser. Mas com o CAQ passaria a existir uma lógica da relação entre o custo de um e outro [segmento ou modalidade educacional], porque teria uma base de discussão que é qualidade.

O PNE estabelece que se deveria triplicar o número de matrículas da educação profissional no Brasil até 2024, sendo pelo menos 50% delas públicas. Não apenas não se acredita que essa meta possa ser cumprida como o censo escolar 2021 mostrou uma redução no número de matrículas da educação profissional no país. O Fundeb poderia ser um mecanismo indutor dessa meta?

A Emenda Constitucional 95 [de teto dos gastos] matou o PNE. Quando ela foi aprovada, ficou claro que não daria para cumprir nada do PNE, porque não tem jeito. Agora, se vem o CAQ e uma nova ampliação dos recursos do Fundeb, vai sim haver expansão da educação profissional, assim como vai haver da educação básica, melhoria de qualidade… Mas eu não acredito muito que tenha uma estratégia governamental de tentar aumentar as matrículas na educação profissional com essa atuação por dentro do Fundeb. Esse pessoal não fala em PNE hora nenhuma. A única coisa que a gente vê sobre as universidades e institutos federais é corte de dinheiro, congelamento de salários e corte de outras despesas correntes ou investimento. Eu não consigo ver nenhuma atuação governamental para tentar cumprir alguma coisa do PNE.

Do ponto de vista do financiamento, o que é preciso para fomentar a oferta da educação profissional nas redes estaduais?

Se você examinar a estrutura do censo escolar, vai ver que a educação profissional é pequena no contexto da educação básica. São 2 milhões entre 48, 50 milhões de matrículas. Então, teria que haver bastante recurso sendo jogado nesse processo, porque a educação profissional é cara, não é barata. O Custo Aluno-Qualidade dela deve ser bem alto, exatamente por causa da parte profissional, que tem que ter profissionais habilitados, laboratórios, um monte de componentes especiais que não tem no ensino médio de formação propedêutica. Então, vai precisar de mais dinheiro, vai depender de o novo PNE repetir a meta 20, que determina o equivalente a 10% do PIB [de financiamento para a educação]. Se fizermos isso, praticamente vai dobrar o dinheiro da educação brasileira. Então os estados, os municípios e a União vão ter que colocar mais dinheiro, vai ter que se fazer uma reforma tributária para que os ricos paguem mais do que os pobres… O caminho, no meu entender, é esse, não tem outro. É diminuir a desigualdade, aumentar o tamanho do PIB, fazer o país voltar a crescer. Se não, nada vai ser ampliado.

Historicamente, o Fundeb teve algum efeito sobre o crescimento de matrículas e fortalecimento da Educação Profissional no Brasil?

Eu não posso responder essa pergunta cientificamente, porque teria que fazer uma análise desse perfil para poder falar. Mas a sensação que eu tenho é que os fundos, desde o Fundef, que era voltado só para o ensino fundamental, e depois o Fundeb, desempenharam um papel importantíssimo em todos os níveis, etapas e modalidades da educação brasileira. Se entrar no site do Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira], você verifica a evolução que houve em todo esse tempo do valor por aluno aplicado na educação básica. Foi muito forte a evolução, em todas as modalidades, educação infantil, fundamental e ensino médio. Qual a conclusão a que estou querendo chegar? Que todos os níveis, etapas e modalidades foram beneficiados por essa reorganização do dinheiro da educação no Brasil, por se ter constituído esse fundo, colocado pesos e ponderações, por se ter colocado um valor de referência por matrícula, por esse dinheiro ter sido distribuído e se ter montado os conselhos sociais para fazer a fiscalização… Foi depois do Fundeb que a maioria dos pesquisadores de financiamento da educação se constituíram, se organizaram. E eu diria que, nesse conjunto, a educação profissional teve seu componente de ganho também. Mas, no meu entender, a educação profissional é uma coisa meio parecida com a educação superior: tem que ter projetos especiais.


EPSJV/FIOCRUZ

A Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) é uma unidade técnico-científica da Fiocruz que promove atividades de ensino, pesquisa e cooperação no campo da Educação Profissional em Saúde.


Ivan Alves Filho: o Campo Democrático e as eleições presidenciais

Ivan Alves Filho, historiador.

Em 1984, quando o Brasil ainda vivia sob a ditadura militar, o Partido dos Trabalhadores se negou a apoiar a candidatura de Tancredo Neves para superarmos aquela situação. Esse o fato concreto, irrefutável.

Na outra ponta, a oposição mais consequente defendia que a saída deveria se dar pelo Colégio Eleitoral, uma vez que a emenda das diretas tinha sofrido uma derrota no Congresso Nacional.

Mas o PT ignorou completamente isso. Hoje, esse mesmo partido quer nos convencer que precisamos apoiar a candidatura de Lula da Silva para evitarmos uma nova ditadura.
Trata-se de uma instrumentalização da Democracia e da ideia de Frente Ampla.

Mais: Votar em Lula da Silva pode ser o melhor caminho para reeleger Jair Bolsonaro. Por uma razão simples: as pessoas tendem a imaginar que o ditador reprimiria seus eventuais opositores, mas o corrupto prejudicaria a população em seu conjunto. Certo ou errado, é assim que a banda toca.

Eis o que só reforça a necessidade de lutarmos por uma opção que reúna as forças do Campo Democrático, se possível com uma candidatura unificada.

Devemos pautar a nossa política pelo tripé Ética, Justiça Social e Democracia. Se a truculência do atual governo representa uma ameaça à Democracia e suas instituições, a corrupção que grassava nos governos do PT também colocava em risco a nossa Democracia. Era um atentado ao nosso convívio democrático, corroendo as bases da Nação. Tortura nunca mais.

Mensalão e Petrolão nunca mais também. A corrupção está para a economia como a tortura para a politica.


Nota de pesar – Lygia Fagundes Telles

Lamento, em meu nome e pelo Cidadania, a morte da consagrada escritora Lygia Fagundes Telles, um dos grandes nomes da nossa literatura. Vencedora dos prêmios Jabuti e Camões, traduzida em diversos países, Lygia teve seu talento e sua obra exuberantes reconhecidos em vida. Ela está imortalizada por livros como “As Meninas” e “Seminário dos ratos”, mas sua passagem é uma perda imensurável para a Cultura nacional. À família e aos amigos, os nossos sentimentos.

Roberto Freire
Presidente Nacional do Cidadania


Brasil 2022: a crônica da servidão consentida

Por José Luis Oreiro

No início de 2006 eu escrevi um artigo com o então Presidente da Federação das Indústrias do Estado do Paraná (FIEP), Rodrigo rocha Loures (pai), e Carlos Artur Krueger Passos, então consultor da FIEP e professor da UFPR intitulado “Desindustrialização: a crônica da servidão consentida” (https://revistas.ufpr.br/ret/article/view/28936/18905) , o qual foi publicado no Vol. 04 do Boletim Economia & Tecnologia do Centro de Pesquisas Econômicas do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná, do qual eu era o Diretor-Presidente. O artigo começava com uma citação do teórico militar alemão Clausewitz : “Não é no que pensamos, mas no como pensamos, que reside nossa contribuição a teoria”. Nesse artigo alertamos o então governo do Presidente Luis Inácio Lula da Silva que o Brasil se encontrava num grave processo de desindustrialização, o qual acabaria por levar o país a estagnação econômica e ao retorno a condição de “colônia informal” dos países desenvolvidos. Nossa intenção nunca foi partidária: queríamos que o governo brasileiro da época fizesse uma mudança de rumo na sua política econômica, principalmente na política macroeconômica que aprisionava o país numa armadilha de juros altos e câmbio sobrevalorizado que estava matando o setor mais dinâmico da economia brasileira e fazendo com que o Brasil retornasse a condição de “fazendão” que prevalecia até a Revolução de 1930 liderada pelo maior presidente da história do país, Getúlio Dornelles Vargas. Infelizmente nossas considerações caíram em ouvidos moucos. A participação da indústria de transformação no PIB no Brasil, segundo dados do IPEADATA, de 17,35% do PIB em 2005 para 11,33% do PIB em 2021, uma queda de 6 p.p do PIB num período de 16 anos.

Fonte: IPEADATA. Elaboração do autor.

Essa profunda mudança estrutural negativa, a qual os economistas novo-desenvolvimentistas denominam de “regressão produtiva”, esteve associada com uma inequívoca redução do crescimento potencial da economia brasileira. Conforme podemos verificar na figura 2 abaixo, a média móvel de 10 anos da taxa de crescimento da economia brasileira após alcançar um pico de 4,03% em 2013, durante o primeiro mandato da presidente Dilma Rouseff, começou a apresentar um declínio acentuado atingindo a marca ridícula de 0,36% no terceiro ano do governo de Jair Messias Bolsonaro.

Fonte: Ipeadata. Elaboração do autor.

Para os economistas liberais como Marcos Lisboa, Samuel Pessoa, Marcos Mendes, Ana Paula Vescovi, José Márcio Camargo et caterva os dois fatos são (sic) não correlacionados. Esse grupo de economistas – que assessorou o governo do Presidente Michel Temer e, indiretamente, o governo de Jair Bolsonaro, devido ao acesso que tais economistas tem a grande mídia – o problema da estagnação da economia brasileira dos últimos 10 anos se deve a uma alegada “nova matriz macroeconômica” – expressão infeliz criada pelo secretário de política econômica do primeiro governo Dilma Roussef, Márcio Holland – que produziu (sic) um “excesso de intervenção do governo na economia” levando a uma má-alocação de fatores de produção, o que seria a causa causans do baixo crescimento recente. A hipótese de má-alocação de recursos é, contudo, uma teoria desprovida de evidência empírica ou uma evidência empírica desprovida de teoria conforme argumentei recentemente neste espaço (https://jlcoreiro.wordpress.com/2022/03/10/a-misallocation-explica-o-desenvolvimento-desigual-algumas-consideracoes-a-partir-da-literatura-de-crescimento-e-desenvolvimento-economico/). Esse grupo de economistas vem advogando desde 2016 a adoção de uma agenda de reformas econômicas como a reforma trabalhista, a reforma da previdência e o teto de gastos, a qual supostamente devolveria o dinamismo da economia brasileira, fazendo com que o “PIB privado” liderasse o crescimento econômico ao invés do “PIB do governo” como fora realizado durante as administrações petistas. Passados seis anos da adoção do novo modelo de crescimento para a economia brasileira, os resultados foram decepcionantes para dizer o mínimo. Enquanto a média de crescimento do PIB Brasileiro foi de 2,64% a.a entre 1980 e 2014, o crescimento médio no período 2017-2019 (período no qual a política econômica do Brasil foi conduzida totalmente pelos economistas liberais) foi de apenas 1,44% a.a, valor que corresponde a apenas 54,6% do crescimento do período 1980-2014. Os dados não permitem chegar a outra conclusão: o experimento liberal no Brasil foi um fracasso retumbante.

Confrontados com a realidade inescapável do seu fracasso, os economistas liberais reagem afirmando que o Brasil ainda não adotou todas as reformas que precisa. Além das reformas já realizadas é necessário um choque de privatização, com a venda do que resta das empresas estatais brasileiras, Petrobrás inclusa, e a adoção de uma reforma administrativa que (sic) modernize o setor público brasileiro.

O choque de “privatização” é uma má ideia já abandonada pelos países desenvolvidos. Conforme a figura 3 abaixo mostra, a onda de privatizações nos países desenvolvidos foi largamente revertida o período 2000-2017, ou seja, verificou-se um intenso movimento de reestatização devido as ineficiências manifestas das empresas privatizadas, as quais aumentaram os preços dos seus produtos ao mesmo tempo que reduziram a qualidade dos serviços prestados.

Figura 3 : A Movimento de “reestatização” nos países desenvolvidos (2000-2017)

Fonte: Transnational Institute.

A reforma administrativa, por seu turno, não tem por objetivo (sic) modernizar o serviço público no Brasil mas tornar os servidores públicos em serviçais dos políticos de plantão, conforme argumento em artigo publicado no Brazilian Journal of Political Economy escrito em co-autoria com meu orientado de doutorado em economia na Universidade de Brasília, Helder Lara Ferreira Filho (Ver https://www.scielo.br/j/rep/a/djDvQj9mJ9xQS5RcWw8sVbq/). Se a reforma administrativa for aprovada o Estado Brasileiro irá retornar aos padrões prevalecentes na “República Velha”, um retrocesso de quase um século!

A agenda econômica liberal proposta pelo governo Temer e, ao menos na esfera da retórica, pelo governo Bolsonaro nada mais é do que o retorno ao que o historiador econômico Erik Reinert (2016) denomina de “colonialismo”. Nas suas palavras

O Colonialismo é, antes de tudo, um sistema econômico, um tipo de integração econômica profunda entre os países. Não importa muito sob qual liderança política isso ocorre – independência nominal e “livre comércio” ou não. O importante é verificar que tipos de bens flui em qual direção. Pelo sistema de classificação acima as colônias são nações especializadas no “comércio ruim”, na exportação de matérias primas e na importação de bens de alta tecnologia, seja industriais ou vindos de um setor se serviços que faz uso intensivo de conhecimento” (p. 190).

O ponto que quero ressaltar é que o Brasil dos últimos 20 a 30 anos anos adotou, inicialmente de forma inconsciente, e depois de 2016 de forma deliberada, o modelo “colonialista”. A agenda de reformas não tem por objetivo emular as políticas econômicas que fizeram com que os países ricos se tornassem ricos (tema do livro de Reinert), mas sim produzir uma espécie de “acumulação primitiva de capital” por intermédio do retorno do país as atividades primário-exportadoras e a redução dos salários e benefícios trabalhistas, elevando assim a “mais-valia absoluta” para utilizar o conceito criado por Karl Marx. A reprimarização da pauta de exportações brasileira no período 2008-2014) fica bem clara na Tabela abaixo extraída de Oreiro e D´Agostini (2016):

Esse projeto tem por objetivo a recuperação da taxa de lucro do capital (ROE: return over equity ou retorno sobre o capital próprio) na economia brasileira, o qual se reduziu de forma significativa no período 2010-2014 devido a elevação dos salários reais acima do crescimento da produtividade do trabalho em função do sobreaquecimento do mercado de trabalho, conforme podemos verificar na Tabela abaixo extraída de Oreiro e D´Agostini (2016). Em suma, trata-se de um projeto para reverter o profit-squeeze por intermédia de uma sobre-exploração da força de trabalho.

Nesse contexto, no aniversário de 200 anos da independência do Brasil temos muito pouco a comemorar. Com efeito, o modelo econômico adotado nos últimos 15 a 20 anos (governos FHC incluso) abandonou o projeto “Varguista” de desenvolvimento econômico como instrumento para garantir a soberania e a independência de facto do Brasil. Os conselhos dados pelos economistas liberais não tem por objetivo tornar o Brasil uma nação rica e soberana; mas apenas reforçar os laços coloniais que o país voltou a ter a partir dos anos 1990 com as “reformas liberais” implementadas pelos governos Collor e FHC. As administrações petistas tentaram descobrir a “quadratura do círculo”, tentando conciliar os interesses coloniais de nossas elites com mecanismos de promoção de equidade social. Essa contradição inerente ao projeto petista – qual seja, “conciliar & desenvolver” – está na raiz do golpe parlamentar que tirou a Presidenta Dilma Rousseff do poder em 2016, sem que tenha havido motivação jurídica para o impeachment. Desde 2016 as rédeas da política econômica no Brasil tem estado com os economistas liberais, os quais depois de um período de serviços prestados ao colonialismo, exercendo altos cargos na administração pública, são regiamente recompensados com postos de trabalho altamente remunerados no setor financeiro privado. Ao fim e ao cabo, Clausewitz estava certo: a maneira como pensamos é fundamental. A tragédia do Brasil é que nossa elite econômica e política não está interessada em defender a construção de uma nação rica e soberana, mas apenas em satisfazer seus desejos privados de acumulação de capital, por mecanismos primitivos de sobre-exploração da força de trabalho conjugados com a devastação ambiental largamente promovida pelo governo Bolsonaro. Infelizmente nada teremos a comemorar no dia 07 de setembro de 2022.

Referências:

Oreiro, J.L; D´Agostini, L.M. (2016). “From Lula Growth Spectacle to the Great Recession (2003-2015): Lessons of the management of the macroeconomic tripod and macroeconomic challenges for
restoring economic growth in Brazil”. Artigo apresentado no workshop “Central Banks in Latin America: In Search for Stability and Development” realizado na Pontíficia Universidade Católica de Lima, Peru, no período de 12 a 13 de maio de 2016. Disponível em http://joseluisoreiro.com.br/site/link/eca7eac82f16c20f9c2c75cb375ecbc01489ea2f.pdf

Reinert, Erik. S. (2016). Como os países ricos ficaram ricos e por que os países pobres continuam pobres. Contraponto: Rio de Janeiro.


Alberto Aggio: História e política no “longo pós-guerra” da Itália

Itália em disputa de Giuseppe Vacca lançado entre nós recentemente é um livro magistral. Em 303 páginas Vacca analisa 35 anos da vida política italiana depois de ultrapassado o fascismo e a devastadora guerra que arrasou seu território. É sobretudo um excepcional livro de História Política que seguramente será muito útil aos estudiosos desse campo da História em nosso país, sem falarmos no leitor interessado em compreender os desafios da contemporaneidade.

Campanha eleitoral em 1948 evidenciava o embate entre PCI e DC

O subtítulo do livro “comunistas e democratas-cristãos no longo pós-guerra (1943-1978)”, dá a indicação explícita de que não se trata especifica e cronologicamente de um estudo sobre a I República, mas sobre as conexões e os embates políticos que compõe o pós-guerra na Itália: um momento de reconstrução do país e de luta em torno dos critérios e possibilidades da modernização da sociedade italiana. Essa luta implicou o estabelecimento da República e em seguida de uma nova Constituição para o país. Essa grande epopeia fez nascer e se estabelecerem duas grandes forças políticas no país: a Democracia-Cristã e o Partido Comunistas Italiano (PCI).

Esses são os dois atores centrais do livro de Vacca. A contraposição e o diálogo entre eles, a dura luta não apenas no Parlamento, mas também nas ruas e praças. Para além do confronto, a concordância entre ambos em diversos momentos e temas pontuais; embates e consensos que produziram como resultado a ampliação dos direitos dos trabalhadores, a unidade do país e a sua inserção no contexto europeu. Duas forças políticas populares, enraizadas no território, mas opostas ideologicamente. Elas iriam, surpreendentemente, produzir o consenso e as profundas mudanças culturais em torno do que viria a ser a Itália nas mais de três décadas do pós-guerra.

Duas forças políticas que, sem excluírem as outras de menor peso – dentre elas o Partido Socialista Italiano (PSI) –, souberam avançar a modernização e alterar as estruturas do país bem como a sensibilidade social e cultural dos italianos. Foram esses dois partidos, a DC inspirada no “personalismo cristão” e o PCI no “internacionalismo proletário”, que de fato se assumiriam, cada um a seu modo, a função ou o papel de um “partido da Nação”, conectados com os ditames da nova ordem mundial do pós-guerra. Para um dividido e conflituoso como a Itália, isso tinha um significado extraordinário, que acabaria se perdendo anos mais tarde.

De Gasperi e Togliatti em reunião do primeiro governo republicano na Itália do pós-guerra

Em torno desses dois atores, os diversos capítulos do livro asseveram que a hegemonia político-cultural desse processo esteve com a Democracia-Cristã e que o PCI jamais conseguiu destrona-la e, com isso, vencer as eleições e governar o país. A conjuntura internacional da Guerra Fria e a hegemonia católica impediam essa perspectiva e exigiam o realismo dos dirigentes comunistas. Isso ficou claríssimo em 1948, a primeira eleição para o novo Parlamento, na qual os comunistas se tornaram o segundo partido mais votado, levando uma política de classe contra classe, o que era impraticável para se assumir o governo naquela conjuntura.

De acordo com Vacca, o que dava sustentação ao sistema político que se montou com a Constituição republicana de 1948 não era a oposição entre direita e esquerda, mas uma dupla legitimação que envolvia aquelas duas forças políticas: o antifascismo, base do “campo democrático”, no qual estavam comprometidos tanto a DC quanto o PCI, e o anticomunismo, imprescindível para governar no período da Guerra Fria. Essa tese interpretativa explica efetivamente a capacidade hegemônica da DC e dá sentido ao predomínio desse partido nesse “longo pós-guerra”. Por essa razão nunca houve realmente a possibilidade de alternância na formação dos governos italianos desse período. Essa impossibilidade, dentre outros fatores, gerou o que mais tarde foi caracterizado como uma “democracia bloqueada”.

O livro de Vacca visa iluminar esse complexo período, examinando duas culturas políticas que plasmaram a sociedade civil italiana e determinaram a qualidade das suas classes dirigentes. O autor divide essas três décadas em duas partes: a reconstrução e o milagre econômico e, sucessivamente, o período no qual “se manifestou uma fragilidade orgânica do país e se puseram as premissas do subsequente declínio”. Vacca sintetiza essa passagem da seguinte forma:

na fase ascendente da República, DC e PCI foram duas forças políticas originais no panorama europeu, conscientes da própria função histórica e capazes de regular seus conflitos e valorizar sua complementariedade, tendo uma visão mais ou menos adequada da estrutura do mundo. O declínio da nação italiana deita raízes exatamente no desgaste, por causa da mudança do tempo, dessas capacidades” (p.16).

As razões fundamentais do declínio são sintetizadas em torno da não percepção da mudança do tempo histórico. Para Vacca, líderes importantes como Aldo Moro e Enrico Berlinguer, embora tivessem intuído “a aproximação do fim do longo pós-guerra”, tentando dar ou renovar a coesão do país por meio da convergência das duas maiores forças políticas (DC e PCI, o “compromisso storico”), “não tiveram percepção adequada da ‘grande transformação’ e não conseguiram evitar que a Itália fosse considerada um foco de instabilidade tanto a Oeste quanto a Leste” (p.18). E assim foi: a classe política desse glorioso período não sobreviveu ao fim da Guerra Fria e a emergência do Mercado Comum Europeu.

A partir dos anos 1990 e nas duas primeiras décadas do século XXI, tanto a regulação política interna quanto a adequação internacional, em função do fim da Guerra Fria, da emergência da globalização, etc., a Itália perde a capacidade de atualização ao contexto europeu: “as culturas políticas que ocupam a cena divergem daquelas dos principais países europeus, mais ainda do que nas décadas precedentes” (p.17).

Na leitura de Vacca, um país que não consegue formar “novas e robustas culturas políticas” acaba por se iludir com a ideia de que está participando ou construindo algo novo e, sem consciência, assume as mesmas faces ou máscaras da velha commedia dell’arte.

Para nós, brasileiros, o livro de Vacca é útil sob diversos aspectos, além daqueles mencionados acima. Metodologicamente, poderíamos mobilizá-lo para se pensar a fase ascendente do nosso processo de democratização, que gradativamente teve coincidência com as mesmas “mudanças do tempo” mencionada por Vacca. Nessa fase de ascensão democrática, conquistamos uma nova Constituição e a nossa classe dirigente soube enfrentar os diversos desafios políticos e econômicos que se seguiram: debelar a inflação e se preparar para uma integração ativa na globalização emergente. Os governos de FHC significaram o ápice dessa ascensão, que permaneceu inercialmente no primeiro governo de Lula.

Depois disso, a nossa trajetória é reconhecidamente descendente no plano político, com a ausência clara de uma nova classe dirigente e a deriva do país, até a desastrosa emergência da extrema-direita, com a vitória de Jair Bolsonaro em 2018. Como escrevi em outro artigo, a “perda de consenso em relação à ordem democrática, acarretando um recorrente antagonismo político, polarizações sucessivas e diversas, que perigosamente comprometem a unidade da Nação e suas perspectivas democráticas”[1] parece ter se tornado a tônica da vida política brasileira nos últimos tempos.

O livro de Vacca poderia ser, assim, um ponto de inspiração para que se desenvolvesse uma pesquisa sobre esses dois momentos na democratização brasileira, o ascendente e o descendente. Mas seria importante ressaltar que, ao contrário da Itália, no Brasil, dois atores, supostamente próximos, em disputa antagonística geraram uma polarização destrutiva e não colaborativa. Esse “Brasil em disputa”, dificilmente poderia olhar de maneira positiva para o passado, como faz Vacca, a despeito de todas as observações criticas. Contudo, estariam, Itália e Brasil, irmanados num presente que somente o “pessimismo da razão” aparece aos nossos olhos como uma dimensão ainda produtiva.

A Itália em disputa – comunistas e democratas-cristãos no longo pós-guerra (1943-1978), de Giuseppe Vacca, FAP/Unicamp, 2021, 303p., tradução de Luiz Sérgio Henriques.

(Resenha publicada simultaneamente em Revista Será?, de 01 de abril de 2022; https://revistasera.info/2022/04/historia-e-politica-no-longo-pos-guerra-da-italia/)


[1] A referência é de um artigo recentemente publicado que se pode acessar em https://horizontesdemocraticos.com.br/brasil-e-chile-uma-historia-comparada-de-golpes-autoritarismo-e-democracia/


Paulo Iotti: “Tentativa de censura ao Lollapalooza foi nefasta”

João Rodrigues, da equipe da FAP

A decisão do ministro Raul Araújo, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), de proibir manifestações políticas no festival Lollapalooza, realizado no último fim de semana em São Paulo, causou revolta no meio artístico. Juristas e parlamentares dos mais diversos partidos classificaram a liminar do TSE como censura. Três dias após a decisão, o próprio ministro Raul Araújo revogou a liminar que proibia manifestações políticas no festival de música, depois que o Partido Liberal (PL), legenda do presidente Jair Bolsonaro, pediu a retirada da ação.

https://open.spotify.com/episode/3nHAtBEi0BmeniEkpwGuHF?si=aNX29b6AShOfCa4AFKzFyA&utm_source=copy-link

No entanto, o caso reacendeu na sociedade a importância sobre o direito à liberdade de expressão. Para analisar os impactos da tentativa de censura ao Lollapalooza, o podcast da Fundação Astrojildo Pereira (FAP) conversa com o advogado Paulo Iotti. Doutor e mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino, Iotti é especialista em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e em Direito Homoafetivo, além de professor universitário. Diretor-Presidente do GADvS - Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero, é ainda sócio do Instituto Brasileiro de Direito de Famílias (IBDFAM).

Censura prévia, falta de critério em decisões de tribunais superiores e a confiabilidade do sistema eleitoral brasileiro também estão entre os temas do programa. O episódio conta com áudios da Jovem Pan News, O Povo Online, Multishow, TV Cultura e UOL.

O Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Youtube, Google Podcasts, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues.