Saiba o que muda na prática com o 'PL dos agrotóxicos'
Giulia Granchi / BBC News Brasil
A Câmara dos Deputados aprovou na última quarta-feira (09) um projeto de lei que flexibiliza o controle e a aprovação de agrotóxicos no Brasil.
A maioria dos deputados apoiou a mudança —301 contra 150, além de duas abstenções. Em 2016, esse PL já havia sido aprovado, mas, por ter sofrido alterações recentes, terá agora de voltar ao Senado para uma nova avaliação.
O projeto é alvo de críticas por fragilizar ainda mais uma legislação já considerada fraca por especialistas.
"O texto não cobre as lacunas de fiscalização, monitoramento e reavaliação de produtos, que já são precárias, e ainda retira o pouco de proteção que a população tinha", avalia a engenheira agrônoma Marina Lacôrte, porta-voz de agricultura e alimentação do Greenpeace Brasil e mestre em ecologia.
QUAIS SÃO OS PRINCIPAIS PONTOS DO PL
O projeto de lei 6299/2002 visa que o controle da autorização de novos agrotóxicos no Brasil seja uma missão do MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), tirando a atuação direta do Ministério da Saúde, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), do Ministério do Meio Ambiente e do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais) desse processo.
Se a proposta for aprovada, os órgãos ainda podem emitir pareceres e alertas de risco sobre as substâncias, mas a competência de multar empresas e institutos de pesquisa passaria a ser somente do MAPA.
Nesse caso, o Ministério da Saúde avaliaria questões como o risco de contaminação de trabalhadores, da população geral e o nível de segurança sanitária, e os órgãos relacionados ao meio ambiente, a periculosidade dos produtos para a proteção ambiental.
Mas os pareceres não são vetos, e podem ser ignorados.
"O MAPA é quem avalia a eficiência da molécula do ponto de vista agronômico. Além disso, suas aprovações podem estar ligadas a interesses comerciais. Desde governos passados não temos políticos isentos no ministério, mas sim pessoas ligadas à bancada ruralista, que defendem esse modelo agrícola de commodities. É a raposa cuidando do galinheiro", diz a porta-voz do Greenpeace.
Ela reforça que mesmo que fossem políticos que olhassem para a agricultura de forma conjunta à sociedade e ao meio ambiente, ainda é muito perigoso tirar a autonomia dos outros órgãos.
A BBC News Brasil entrou em contato com o MAPA para obter um posicionamento sobre a composição do ministério e a influência sobre o modelo agrícola e aguarda resposta.
MUDANÇAS RECENTES NO TEXTO
Apesar de a Constituição Federal categorizar esses produtos como "agrotóxicos", o relator do texto, Luiz Nishimori (PL-PR), altera o termo na lei para "pesticidas". O deputado justifica a mudança como um acompanhamento das tendências mundiais.
"A nomenclatura científica mundial para os produtos é [a palavra em inglês] 'pesticides' e estamos adequando aos demais países. O agro não é tóxico, o que apresenta toxidade são os produtos para combater pestes, pragas e doenças nas plantas. Sem proteção, as ervas daninhas vão danificar as plantas e, sem isso, não temos alimento. O mundo todo utiliza este nome", disse à BBC News Brasil.
Quando utilizados em florestas e em ambientes hídricos, os agrotóxicos passam a ser chamados pelo texto de "produtos de controle ambiental", e seu registro caberá ao Ibama.
Na nova versão, a vedação da importação e produção de agrotóxicos restringe-se ao termo generalista de "riscos inaceitáveis". Atualmente, a lei define a proibição para agrotóxicos que revelem características teratogênicas, carcinogênicas, mutagênicas e causem distúrbios hormonais e danos ao aparelho reprodutor.
A matéria estipula prazos mais rápidos (de até dois anos) para os registros dos agrotóxicos pelos órgãos federais, o que poderia prejudicar estudos toxicológicos mais robustos. Quando não houver manifestação conclusiva dentro dos prazos estabelecidos, o agrotóxico receberá uma autorização temporária.
De acordo com Nishimori, a alteração serve para igualar o Brasil a outros países de mesma importância agrícola, que, segundo ele, costumam começar a usar os produtos com mais agilidade.
"Para avançar cada vez mais, o Brasil precisa ser competitivo e estar nos mesmos patamares de acesso às tecnologias inovadoras no campo."
MUDANÇAS E RISCOS
O relator afirma que "quem vai ganhar com este projeto é o consumidor final e a sociedade brasileira". No entanto, especialistas da área da saúde e do meio ambiente emitem opiniões contrárias, afirmando que a população geral —e o planeta como um todo— tendem a ser prejudicados.
"A questão central dessa mudança no texto é que quem decide o que vai ao não ao mercado é o Ministério da Agricultura. Se a avaliação dos outros órgãos indica alta periculosidade, mas o MAPA decide que o produto é economicamente interessante, ele pode acabar passando", indica Luiz Cláudio Meirelles, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.
Na opinião do cientista, a tendência é que os órgãos que ficariam com menos poder participem cada vez menos dos processos.
"A Anvisa já tem agenda lotada na análise de outros produtos, como medicamentos e vacinas. Será que faz sentido continuar investindo seus esforços em uma área na qual não vai decidir mais nada?", questiona.
Dessa maneira, avalia Meirelles, fica mais difícil de controlar os riscos à saúde que a população terá a longo prazo, assim como o impacto no meio ambiente.
O Inca (Instituto Nacional do Câncer) aponta que toda a população está suscetível a exposições múltiplas a agrotóxico por meio de consumo de alimentos e água contaminados.
Entre os principais efeitos à saúde, o instituto lista os de nível agudo, como irritação na pele, desidratação, alergias, ardência do nariz e boca, tosse, coriza, dor no peito, dificuldade de respirar, irritação da boca e garganta, dor de estômago, náuseas, vômitos, diarreia, dor de cabeça, transpiração anormal, fraqueza e irritabilidade.
Já entre os efeitos crônicos, que aparecem após exposições repetidas a pequenas quantidades das substâncias por um período prolongado, são relatados os seguintes sintomas, de acordo com a Anvisa:
Dificuldade para dormir, esquecimento, aborto, impotência, depressão, problemas respiratórios graves, alteração do funcionamento do fígado e dos rins, anormalidade da produção de hormônios da tireoide, dos ovários e da próstata, incapacidade de gerar filhos, malformação e problemas no desenvolvimento intelectual e físico das crianças e risco aumentado para câncer (em determinados grupos de agrotóxicos).
O QUE SIGNIFICA ISSO NA PRÁTICA?
Segundo Nishimori, o objetivo não é aumentar a variedade, mas sim que o Brasil autorize produtos modernos que combatem pragas e doenças de forma mais eficaz.
"O produtor rural não tem interesse de estragar seu próprio negócio, portanto, os pesticidas utilizados são prescritos por um agrônomo que analisa a quantidade necessária para matar a praga e não oferecer risco à saúde humana."
Para a porta-voz do Greenpeace, o discurso relacionado à modernidade não se sustenta.
"Já temos uma velocidade enorme nas aprovações, mas nenhuma segurança nessas liberações e nenhuma molécula nova nem menos tóxica —estamos com o cardápio de sempre, de produtos já proibidos na Europa e que deveriam ser reavaliados aqui. Alimento seguro é sem agrotóxico, é comida que foi produzida de uma forma segura."
Nos últimos três anos, o Brasil teve a aprovação de cerca de 1.500 agrotóxicos.
"Em sua maioria, são substâncias que já foram proibidas em outros países, como o glifosato. Aqui, liberamos mais marcas, quando deveríamos estar trabalhando para uma retirada programada", diz o pesquisador da Fiocruz.
O glifosato, substância citada pelo professor e que está presente hoje na maioria dos alimentos, foi classificado pela OMS (Organização Mundial de Saúde) em 2015 como grau "A2", o que o coloca na categoria de "comprovadamente cancerígeno para animais mamíferos e provavelmente cancerígeno para seres humanos".
Os novos agrotóxicos que seriam aprovados, aponta Meirelles, também apresentam o agravante de registro por equivalência, ou seja, podem ser registrados por possuírem as mesmas substâncias de um outro agrotóxico.
"Se eu e você fazemos um bolo com os mesmos ingredientes, eles podem não sair exatamente iguais. Química é isso. Dependendo da síntese das matérias-primas, o resultado toxicológico pode ser bem diferente. A depender da pureza e de pequenas mudanças na concentração, a toxicidade da substância muda completamente. Por lidarmos com um produto tóxico, como o nome já diz, o cuidado precisa ser redobrado", afirma.
"Quando eu falo de câncer, isso não entra na conta, mas é o estado que paga. É uma tragédia pessoal para o paciente e um custo enorme para o estado. O projeto de lei é o tipo de modelo que envenena tudo e não considera os custos para a sociedade", diz o pesquisador.
A engenheira agrônoma também aponta que flexibilizar o uso de agrotóxicos tem priorizado a produção de commodities e de comida, mas não o combate à fome. "Temos recorde de safras e mesmo assim nosso país voltou ao mapa da fome."
A conclusão de Meirelles é que o projeto não dá prioridade à vida. "Nenhum ser humano quer consumir de antemão algo que é naturalmente prejudicial à saúde. A pessoa não sabe que quando está comendo uma salada pode estar ingerindo dezenas de agrotóxicos diferentes, mesmo que em quantidade ínfimas."
RELAÇÃO COM O AGRONEGÓCIO
Uma reportagem do veículo Brasil de Fato aponta que o deputado Nishimori recebeu R$ 380 mil de empresários e executivos do agronegócio na campanha que o levou à Câmara dos Deputados, em 2018.
Embora o apoio esteja dentro da lei, a BBC News Brasil questionou o deputado se a tentativa de aprovação da lei está relacionada à pressão e relacionamento com esses apoiadores.
"Não existe pressão de apoiadores. Sou do Estado do Paraná, forte em agricultura. Trabalho pelo desenvolvimento do setor agropecuário porque acredito que a vocação brasileira é a produção de alimentos. Trabalhamos pela aprovação de uma lei defasada há mais de 30 anos e que precisa colocar o Brasil em sintonia com os países competidores, com respeito às normas sanitárias, de saúde e meio ambiente", respondeu ele.
O QUE A POPULAÇÃO PODE FAZER?
"Nos sentimos impotentes e a sociedade tem se manifestado contra. Não sei para quem esses 301 deputados governam, por que não é para a sociedade", diz Marina Lacôrte, que recomenda que quem é contra o projeto de lei continue manifestando sua insatisfação política.
"Além disso, temos que votar para nossos representantes de forma consciente. Se você é contra, conheça quem votou para passar o texto e saiba quem merece seu voto."
Embora não seja suficiente para mudar toda a estrutura de produção, Lacôrte também incentiva que a população ajude a promover outros sistemas alimentares e agrícolas, apoiar pequenos produtores de produtos orgânicos. "É muito positivo para sua própria saúde e para uma cadeia de produção mais sustentável."
Os alimentos orgânicos costumam ter valor mais alto nos supermercados, mas é possível conseguir um preço mais baixo comprando diretamente com quem os produz. O Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) criou uma lista de feiras orgânicas pelas cidades do Brasil.
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60354286
A espada que o TSE mantém pendurada sobre a cabeça de Jair Bolsonaro
Malu Gaspar / O Globo
Operadores experientes do Judiciário apostam que o discurso ambíguo de Jair Bolsonaro em relação ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não tem nada de gratuito e segue uma lógica bem pragmática.
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Na segunda-feira (7), ao receber os ministros Edson Fachin e Alexandre de Moraes, que vão comandar o TSE, Bolsonaro disse que precisava haver "mais diálogo" entre eles.
Três dias depois, em sua live semanal, ele colocou mais uma vez em dúvida a segurança das urnas, dizendo que técnicos do Exército tinham encontrado vulnerabilidades nos equipamentos e sugerindo que a corte se recusava a dar explicações – o que há tempos estava previsto para esta segunda-feira (14), numa reunião da Comissão de Transparência das Eleições.
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Na interpretação de ministros das cortes superiores com quem conversei nos últimos dias, o morde-e-assopra do presidente visa preservar algum canal de interlocução com a corte eleitoral e ao mesmo tempo manter viva a narrativa de fraudes, para poder alegar perseguição caso o tribunal tome alguma medida contra ele.
Isso porque Bolsonaro sabe que o TSE ainda tem um trunfo contra ele, uma espécie de "espada de Dâmocles" pendurada sobre sua cabeça. A expressão faz referência a uma história da mitologia grega e representa uma situação de risco iminente.
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O risco, no caso de Bolsonaro, é o inquérito administrativo em curso na corregedoria-geral do tribunal a respeito da famosa live das urnas eletrônicas.
Na transmissão, em agosto passado, Bolsonaro divulgou dados de uma investigação sigilosa da Polícia Federal sobre a invasão de um hacker nos sistemas do TSE em 2018.
A apuração sobre as eleições de 2018 não chegou a nenhuma conclusão, mas o presidente da República não só colocou uma cópia digital em suas redes sociais como também sugeriu que houve fraude.
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No inquérito concluído na semana passada sobre esse caso, a delegada da Polícia Federal Denisse Rios afirma que Bolsonaro cometeu um crime.
Mas, no entorno do presidente, a aposta é de que o procurador-geral da República, Augusto Aras, a quem cabe dar seu parecer, não vai dar denunciar Bolsonaro ao Supremo.
Só que o inquérito administrativo do TSE ainda não acabou. Nesse caso, a apuração busca averiguar se houve abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação de Bolsonaro na live.
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A apuração da corte eleitoral leva em conta os mesmos documentos do inquérito das fake news conduzido no Supremo, compartilhados pelo ministro Alexandre de Moraes.
Em tese, se o presidente for considerado culpado, a punição pode ser tornar o presidente da República inelegível – o que é altamente improvável, ainda mais a poucos meses das eleições.
Os ministros do TSE, porém, não têm nenhuma intenção de apressar a conclusão da investigação, e muito menos de aliviar a barra do presidente. Enquanto puderem, manterão a espada pendurada sobre Bolsonaro.
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Ainda assim, interlocutores que fazem a ponte entre o presidente e o judiciário lembram que há um precedente perigoso: o do deputado federal Fernando Francischini (PSL-PR), que teve o mandato cassado no TSE por seis votos a um, em outubro passado. Francischini ficou inelegível.
O motivo também foi abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação, pela divulgação de dados falsos sobre a vulnerabilidade das urnas eletrônicas em uma transmissão pela internet para centenas de milhares de pessoas.
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Em seu voto, o ministro que vai relatar a investigação sobre Bolsonaro, Mauro Campbell, foi direto: "diante da Justiça Eleitoral, os candidatos detentores de cargo público se despem da quase totalidade de suas prerrogativas para a disputa da eleição, sob pena de violação da isonomia da disputa."
Traduzindo: para o ministro que comanda o inquérito sobre Bolsonaro no TSE, estar no poder não impede o candidato de ser punido.
A espada está afiada, e Bolsonaro sabe disso.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/malu-gaspar/post/espada-que-o-tse-mantem-pendurada-sobre-cabeca-de-jair-bolsonaro.html
Bolsonaro vai à Rússia para tentar sair do isolamento internacional
Felipe Frazão / O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - Quando desembarcar em Moscou, na Rússia, o presidente Jair Bolsonaro vai atrair os holofotes internacionais para si. Na quarta-feira, dia 16, quando chegar ao Kremlin, Bolsonaro estará pisando na sede da segunda maior potência militar e nuclear do planeta, com forças posicionadas e capazes de invadir a vizinha Ucrânia, sob protestos do Ocidente. O presidente ganhará, de alguma forma, uma janela para sair do isolamento internacional a que levou o Brasil, hoje visto negativamente em diversos aspectos por Washington e Bruxelas.
Rejeitado por líderes da União Europeia e pelo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que nunca lhe deu a atenção de um simples telefonema, Bolsonaro receberá na Rússia a deferência que recentemente encontrou apenas em países autoritários do Oriente Médio. Ao atender ao chamado de Vladimir Putin, estará na prática colaborando com a tentativa russa de demonstrar normalidade em dias de tensão. Moscou afirma que seus exercícios militares na fronteira com a Ucrânia são legítimos e classifica como "histeria" os alertas que os norte-americanos disparam ao mundo, alertando para o risco do iminente conflito militar que poderia comprometer a paz em Kiev.
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Bolsonaro vai tentar se esquivar da crise militar, apesar das pressões dos EUA para dar um duro recado a Putin. Indagado, ele afirmou que seu foco são as parcerias comerciais. Mas é natural que as movimentações de tropas surjam na conversa entre os presidentes, já que Brasil e Rússia ocupam assento, no momento, no Conselho de Segurança da Organização da ONU. Os ministros da Defesa e chanceleres também farão consultas mútuas. Na instância adequada - as Nações Unidas -, o Itamaraty pregou o diálogo em vez do uso da força.
Aliados do presidente acham que Putin não autorizaria nenhuma incursão militar enquanto recebe um chefe de Estado em seu território. Apesar de as tensões estarem a quilômetros de distância de Moscou, do lado brasileiro houve certa apreensão. Ela veio principalmente do Gabinete de Segurança Institucional. A ala militar do governo recomendou até o adiamento da viagem, mas o presidente não quis. Hoje, Bolsonaro só desistiria se, de fato, o conflito fosse deflagrado.
A fotografia de Bolsonaro com Putin certamente se somará ao acervo que já reúne imagens com Xi Jinping e Narendra Modi, como forma de o Planalto rebater críticas à condução ideológica da política externa. O encontro no Kremlin também serviu para Bolsonaro incomodar a Casa Branca e pleitear um encontro com Biden - de quem o presidente brasileiro vive se queixando, dizendo que o democrata "não tem tempo" para ele e que a alegada indisposição seria eco de um alinhamento pessoal com o ex-presidente Donald Trump.
Bolsonaro afirma que Putin é um conservador e existem semelhanças entre eles - a exemplo da relação conturbada com imprensa e opositores, aproximação com religiosos e a valorização da "masculinidade". Mas do ponto de vista geopolítico, não há. Na América Latina, os russos sustentam relações próximas e ajudam na sustentação econômica e militar de regimes de esquerda em Cuba e na Venezuela, hostis aos EUA. O bolsonarismo tem em sua raiz uma aversão a esses dois governos latinoamericanos. Uma contradição que Bolsonaro omite de seus simpatizantes.
Esse será o terceiro encontro pessoal entre Putin e Bolsonaro. Ele já poderia ter ocorrido em 2020, mas foi adiado pela pandemia da covid-19. Putin veio a Brasília, em 2019, por ocasião da Cúpula do Brics, sigla para Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, e convidou Bolsonaro a visitar Moscou pelo mesmo motivo. Será também oportunidade de retribuir a reunião bilateral que mantiveram no Palácio do Planalto, em Brasília, à margem do Brics. Eles também se encontraram em Osaka, no Japão, por ocasião do G-20.
O atual encontro foi agendado em dezembro passado, após visita precursora do chanceler Carlos França ao experiente ministro das Relações Exteriores russo, Serguei Lavrov. Em artigo no Estadão, França disse que o "relacionamento bilateral encontra-se aquém do potencial". Na balança comercial, de US$ 7,3 bilhões, há desequilíbrio desfavorável ao Brasil. Os governos têm duas comissões de trabalho. E o Brasil quer um acordo de cooperação e facilitação de investimentos. Um acordo comercial amplo, de livre comércio, como é visto com ceticismo por diplomatas.
A parceria no Brics vem sendo usada como justificativa diplomática da visita de Estado. Mas a verdade é que Bolsonaro não tem o Brics no topo de prioridades de agenda exterior, em que pese já ter visitado China e Índia. Putin, inclusive, aproveitou as últimas cúpulas do bloco para cobrar, cara a cara com seus pares, mais aproximação política, o que não é a pauta brasileira.
A principal justificativa de Bolsonaro é a busca por adubos e fertilizantes, de longe o principal produto da balança comercial entre os países, com cerca de US$ 1,8 bilhão anuais importados pelo Brasil. O País também busca diversificar e sofisticar suas exportações à Rússia, considerados muito concentrados em alguns produtos. Nos últimos anos, a Rússia atingiu a autossuficiência na produção de suínos, retirando mais um item da pauta. A expectativa de produtores nacionais é que voltem a acessar o mercado russo neste ano.
Mas Bolsonaro viaja com uma baixa importante. A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, foi cortada da delegação por causa da covid-19. No ano passado, quando potências ocidentais impuseram sanções a Belarus, um dos principais fornecedores de potássio ao campo brasileiro, a ministra correu a Moscou para tentar garantir e até ampliar o fornecimento de fertilizantes ao Brasil. A preocupação é que a escassez impacte novamente o preço dos alimentos no Brasil, gerando mais inflação, algo negativo para quem busca a reeleição, embora a ministra preveja que a próxima safra de verão esteja garantida.
Há ainda interesse dos russos em fornecer ao Brasil equipamentos militares de ponta. Os russos têm algumas das melhores máquinas bélicas de aviação, como os consolidados caças Sukhoi, e também sistemas de defesa antiaérea, que já foram oferecidos antes, mas não entusiasmaram os militares brasileiros. Um oficial da Força Aérea russa, no entanto, relata a existência de uma espécie de bloqueio informal nas negociações, por causa das relações muito mais próximas entre militares das Forças Armadas brasileiras com os americanos. No ano passado, o almirante Craig Faller, então chefe do Comando Sul dos EUA, disse que a oferta estava na mesa e que só dependia do Brasil tornar-se parceiro global da Otan. A expansão dessa aliança militar no Leste Europeu desagrada a Putin e é uma das razões do potencial confronto.
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Fonte: O Estado de S. Paulo
https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-vai-a-russia-tentar-sair-do-isolamento,70003978564
Por que a Semana de Arte Moderna ainda é um marco da cultura 100 anos depois
André Bernardo / BBC News Brasil
Em janeiro de 1952, o poeta Manuel Bandeira (1886-1968) precisou comparecer a uma sessão solene na Academia Brasileira de Letras (ABL), no Centro do Rio, para os 30 anos da Semana de Arte Moderna.
Na época, o ocupante da cadeira 24, então com 66 anos, passava os dias em Teresópolis, na região serrana do Estado, onde se tratava de tuberculose.
À porta do Petit Trianon, um repórter do extinto Diário Carioca solicitou uma entrevista. "Estou farto de falar e de ouvir falar sobre modernismo", resmungou o poeta. "Tudo o que eu tinha para dizer eu já disse".
Diante da insistência do rapaz, prosseguiu: "Acho perfeitamente dispensável. Que esperassem o centenário. Se no ano 2022 ainda se lembrarem disso, então, sim".
Um século depois, a Semana de Arte Moderna ainda é lembrada como um marco da cultura brasileira.
"Nem todo mundo pensa a Semana de 22 do mesmo jeito. Algumas interpretações são mais críticas. Outras, mais laudatórias", afirma o historiador Lucas De Nicola, coautor de Semana de 22 — Antes do começo, depois do fim (Estação Brasil).
"O inegável é que a Semana de Arte Moderna virou um marco. Um marco de inovação e criatividade".
Por motivo de saúde, Manuel Bandeira não participou da Semana de 22, mas autorizou o poeta Ronald de Carvalho (1893-1935) a declamar os versos de Os sapos (1919), que ironizava a poesia parnasiana, a inimiga número um dos modernistas.
"Uma das conquistas daquele grupo foi a revolução estética", completa o professor José De Nicola, de Semana de 22. "Insatisfeitos, romperam com os padrões da época e saíram em busca de novas formas de expressão".
A leitura de Os sapos foi o ponto alto da segunda das três noites da Semana de Arte Moderna, realizada entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922. Revoltado, o público reagiu com vaias, gritos e assobios.
Para o poeta Mário de Andrade (1893-1945), Bandeira era o "João Batista do Modernismo". Já o historiador Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982) apelidou Os sapos de "hino nacional dos modernistas".
Um carioca entre os paulistas
Até hoje, não se sabe ao certo de quem partiu a ideia de reunir um grupo de artistas e intelectuais paulistas e organizar uma semana de exposições de pinturas, recitais de poesia e apresentações musicais no Theatro Municipal de São Paulo.
Por ironia do destino, a ideia pode ser creditada, segundo alguns autores, a um carioca: o pintor Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976).
Foi ele que, em novembro de 1921, teria desabafado ao amigo Rubens Borba de Moraes (1899-1986): "Esse negócio de exposiçãozinha individual é coisa do passado! O que é preciso é fazer uma grande exposição de arte moderna, um salon des indépendants, ou coisa que o valha. Sei lá o quê, uma coisa que sacuda a indiferença do público!".
A princípio, o tal "salão dos independentes" idealizado por Di Cavalcanti seria realizado numa modesta livraria de São Paulo, O Livro, de propriedade de Jacinto Silva.
Não foi assim por sugestão do diplomata Graça Aranha (1868-1931). Em visita à exposição do pintor carioca, o autor de Canaã (1902) demonstrou interesse em conhecer "a mocidade literária e artística de São Paulo".
Entre novembro e dezembro de 1921, Di Cavalcanti apresentou a Graça Aranha nomes como Mário de Andrade, Oswald de Andrade (1890-1954), Menotti Del Picchia (1892-1988) e Anita Malfatti (1889-1964).
Entre uma conversa e outra, a ideia de criar uma mostra coletiva começou a ganhar força. Ao fim do terceiro encontro, em 7 de dezembro de 1921, Graça Aranha entregou a Di Cavalcanti um cartão do empresário Paulo Prado (1869-1943).
Aos encontros na livraria O Livro, na rua Boa Vista, seguiram-se outros, no palacete de Paulo Prado, na avenida Higienópolis. O entusiasmo era tanto que, a certa altura, alguém chegou a sugerir que o evento durasse um mês inteiro.
"Não tínhamos munição para guerra tão longa", protestou um dos presentes. Foi quando, inspirada na Semaine de Fêtes de Deauville, um festival de música, pintura e moda em um elegante balneário francês, Marinette Prado, mulher do anfitrião, sugeriu fazer uma Semana de Arte Moderna.
Definidos o nome e o tempo de duração do evento, só faltava acertar o lugar. A livraria O Livro foi considerada pequena demais para as pretensões do grupo e alguém propôs o majestoso Theatro Municipal de São Paulo, inaugurado em 12 de setembro de 1911, para sediar a exposição.
Caberia ao produtor de café Paulo Prado o papel de "mecenas" da Semana de 22. A ele, logo se juntaram outros: políticos, banqueiros, empresários...
"O principal legado da Semana foi despertar uma consciência de modernidade no campo artístico brasileiro e gerar um importante debate na sociedade da época sobre o que era ser moderno no Brasil", avalia a curadora Andreia Vigo, da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.
Gênios ou loucos?
A primeira das três noites da Semana de Arte Moderna, dedicada às artes plásticas, aconteceu no dia 13 de fevereiro.
Ao todo, quase 100 peças, de telas de Anita Malfatti, Di Cavalcanti e Vicente do Rego Monteiro (1899-1970) a esculturas de Victor Brecheret (1894-1955), entre outros artistas, foram expostas no saguão do Theatro Municipal.
"O movimento modernista foi muito maior que a Semana de Arte Moderna", explica o historiador Yussef Campos, organizador de Inda bebo no copo dos outros — Por uma estética modernista (Editora Autêntica).
"Tarsila do Amaral, por exemplo, não participou da Semana, embora seja um dos nomes mais importantes de um movimento que, como maior legado, provocou a renovação da linguagem, a ponto de Mário de Andrade dizer que escrevia brasileiro". De viagem pela Europa, Tarsila do Amaral só desembarcou no Brasil em junho de 1922.
Muitas das telas de Anita Malfatti expostas na Semana de 22, como A estudante russa, O homem amarelo e A mulher de cabelos verdes, pintadas durante seu estágio em Nova Iorque, eram as mesmas da exposição de 1917, em uma galeria da rua Líbero Badaró.
Na ocasião, a obra da pintora foi duramente criticada pelo escritor Monteiro Lobato (1882-1948) que, em polêmico artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em dezembro de 1917, comparou a arte moderna aos "desenhos que ornam as paredes dos manicômios".
Cinco anos depois, a obra de Anita Malfatti voltou a escandalizar o público conservador da época. Muitos chegaram a se perguntar se as telas não tinham sido expostas de cabeça para baixo.
Em sinal de protesto, alguns visitantes colocaram bilhetes anônimos, com ofensas e insultos, atrás dos quadros.
"A Semana de 22 não nasceu do nada. Houve uma exposição anterior, a da Anita Malfatti, em 1917, que desbravou caminhos para o modernismo no Brasil", afirma o filósofo Cauê Alves, curador-chefe do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP).
"Marcos existem para ser questionados. A ideia da Semana como um marco do modernismo brasileiro precisa ser motivo de questionamento e não de celebração."
Além da exposição propriamente dita, houve duas conferências: "A emoção estética na arte moderna", ministrada por Graça Aranha, e "A pintura e a escultura moderna do Brasil", dada por Ronald de Carvalho.
Por fim, o pianista Ernani Braga (1888-1948) tocou algumas peças do compositor Heitor Villa-Lobos (1887-1959), como Três danças africanas.
"Não há registros da Semana de 22. Não temos fotos, áudios ou vídeos. Apenas os textos que foram publicados nos jornais e, anos depois, os livros de memória escritos pelos protagonistas", explica a pesquisadora Gênese Andrade, professora de Literatura da FAAP e organizadora do livro Modernismos 1922-2022 (Companhia das Letras).
Entre gritos e vaias
A segunda noite da Semana de Arte Moderna — ou "festival", como preferiam os modernistas — aconteceu no dia 15 e foi dedicada à literatura e à poesia.
No palco do Municipal, Oswald de Andrade leu trechos de Os condenados, e Mário de Andrade recitou versos de Inspiração.
"Como tive coragem para dizer versos diante duma vaia tão barulhenta?", indagou o autor de Pauliceia Desvairada na conferência "O movimento modernista" (1942).
Não satisfeito em vaiar, o público ainda soltou gargalhadas, proferiu impropérios e arremessou tomates e batatas no palco.
Sem acreditar no que via e ouvia, Ronald de Carvalho chegou a cogitar a hipótese de Oswald de Andrade, o maior polemista do grupo, ter chamado alguns calouros da Faculdade de Direito para fazer algazarra e gerar controvérsia.
"O fato de eles terem sido vaiados foi visto como algo positivo. O que eles queriam mesmo era virar notícia. Era uma forma de promover a causa", observa a crítica de arte Heloísa Espada, curadora do Instituto Moreira Salles (IMS), que inaugura, em setembro, a mostra "Modernidade Fora de Foco — Foto e filme no Brasil, 1889-1930".
"É preciso deixar claro que a Semana de 22 é só uma amostra do modernismo no país. Não é sinônimo ou resumo de arte moderna no Brasil".
Os ânimos só se acalmaram quando a pianista Guiomar Novaes (1894-1979) executou peças de Debussy, Chopin e Villa-Lobos.
"A Semana de Arte Moderna está para acabar!", noticiou, em tom gaiato, o Jornal do Comércio, na edição do dia 18. "É pena! Como divertimento, foi insuperável".
Teve mais. "A semana de arte moderna foi um assunto magnífico para desopilantes piadas", acrescentou Joaquim Feijó em crônica publicada no jornal A Gazeta. "O segundo espetáculo degenerou em função de circo."
"A segunda noite ilustra com perfeição o espírito irreverente e desafiador da Semana de Arte Moderna", aponta a jornalista e historiadora Márcia Camargos, autora de Semana de 22: Entre vaias e aplausos (Editora Boitempo).
"Se a Semana de 22 não tivesse existido, algum outro evento, em algum outro lugar, teria surgido para mostrar o descontentamento dos jovens artistas com a estética da época."
O dia seguinte
A terceira e última noite da Semana de 22 aconteceu no dia 17. Dos três dias, foi o menos concorrido. Mesmo assim, quem compareceu ao Municipal naquela noite de sexta-feira se indignou com a apresentação de Villa-Lobos.
A ideia de convidá-lo partiu, mais uma vez, de Di Cavalcanti. "Ele nos tinha revelado um músico estranho que tocava piano num bar e compunha coisas espantosas", relatou Oswald de Andrade, em 1954.
Quando subiram as cortinas, o maestro vestia uma casaca e trazia um pé calçado com sapato e outro com chinelo. Com dificuldade para caminhar, apoiava-se em um guarda-chuva.
Pensando se tratar de mais um deboche modernista, o público vaiou. Há quem diga que, irreverências à parte, Villa-Lobos estava realmente com um calo no pé.
Chegava ao fim a Semana de 22.
Em crônica publicada no jornal Correio Paulistano, de 18 de fevereiro de 1922, Menotti Del Picchia se perguntava: "Que ficou da Semana de Arte Moderna?".
A Semana de 22 deu origem a um sem-número de revistas, como a Klaxon (1922), que durou de maio de 1922 a janeiro de 1923, e movimentos, como o Antropofágico (1928), de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral.
A Antropofagia, por sua vez, inspirou de filmes do Cinema Novo a canções do Tropicalismo, passando por peças de José Celso Martinez Corrêa, entre outros tantos.
O título da revista Klaxon, uma sugestão de Oswald de Andrade, virou motivo de piada para Lima Barreto (1881-1922).
"Pensei que se tratasse de uma revista de propaganda de alguma marca de automóveis americanos", tirou sarro o autor de Triste fim de Policarpo Quaresma (1911) no artigo "O futurismo", publicado na revista Careta de 22 de julho de 1922.
"A Semana de Arte Moderna não nasceu fazendo sucesso. Em 1922, a repercussão foi quase nula. Só passou a ter a importância que tem hoje em 1972, quando o governo de São Paulo financiou uma série de retrospectivas", esclarece a historiadora de arte Regina Teixeira de Barros.
"Seu legado é a reflexão crítica do passado e a vontade de renovação artística. A liberdade de criação é uma conquista da modernidade."
"Um grito no salão"
Uma das críticas mais recorrentes feitas à Semana é o fato de ela ter ignorado modernidades fora do circuito paulistano.
O professor Luís Augusto Fischer, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, cita dois exemplos, ambos do Rio: o escritor Machado de Assis (1839-1908) — "Já era moderníssimo, desde 1880, tanto em forma quanto em conteúdo" — e o compositor Noel Rosa (1910-1937) — "O exemplo do samba é o mais eloquente que existe!".
"A Semana de Arte Moderna é um evento superestimado. Se atribui a ele o papel de Big Bang de tudo de bom e moderno que aconteceu na cultura brasileira. Isso é uma bobagem! Um provincianismo sem tamanho!", critica.
"Tem muita coisa boa que aconteceu antes e depois da Semana de 22 que é moderna e não tem nada a ver com o modernismo paulista".
Na contramão dos que criticam a Semana de Arte Moderna e relativizam sua importância histórica e cultural, há quem não economize elogios.
"Não faz sentido querer desqualificar a Semana de Arte Moderna. Sua produção é inegavelmente importante. Caso contrário, não estaríamos aqui, cem anos depois, conversando sobre o legado da Semana de 22", argumenta a pesquisadora Gênese Andrade.
Se Lima Barreto era um feroz opositor do modernismo, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) não escondia sua admiração. Tanto que seu livro de estreia, Alguma poesia (1930), foi dedicado a Mário de Andrade.
Em crônica de 1972, por ocasião dos 50 anos da efeméride, o poeta mineiro comparou a Semana de Arte Moderna a "um grito no salão". "E, para dar grito, não se pede licença: grita-se!".
Cem anos depois, o grito dos modernistas continua ecoando, em alto e bom som.
Fonte: BBC Brasil
https://www.bbc.com/portuguese/geral-60321269
Após 32 anos, termina o trabalho com as ossadas da vala de Perus
Marcelo Godoy / O Estado de S.Paulo
Após 32 anos, os trabalhos de identificação das ossadas encontradas na vala comum do cemitério Dom Bosco, em Perus, na zona oeste de São Paulo, chegam ao fim em abril. É quando deve acabar a retirada de material genético das 901 caixas com ossos com características de sexo, idade e altura compatíveis com os 40 desaparecidos políticos que teriam sido enterrados no lugar por agentes da ditadura militar.
Já foram concluídas 819 análises dos chamados indivíduos principais, cujos ossos estavam nas caixas. Entre eles foram identificados cinco desaparecidos políticos: Dênis Casemiro, Frederico Antonio Mayr, Flávio de Carvalho Molina, Dimas Antonio Casemiro e Aluísio Palhano Ferreira.
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Os peritos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) esperam concluir a retirada do material genético das 81 ossadas que ainda precisam ser analisadas até o fim de março. O resultado final da análise dessas ossadas será conhecido em dez meses, quando os exames de DNA ficarão prontos, encerrando o processo de identificação de corpos.
As datas foram confirmadas pelo coordenador científico do Grupo de Trabalho Perus, Samuel Ferreira, em audiência na Justiça Federal na sexta-feira passada. Dela participaram representantes da União, da Prefeitura de São Paulo, do Ministério Público Federal e da Unifesp, cujo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) é o responsável, desde 2016, pelo trabalho com as ossadas. Atualmente, os peritos envolvidos são contratados pela universidade.
Trabalho
Em 4 de setembro de 1990, a vala clandestina foi aberta. Nela havia 1.049 conjuntos com ossos. “Em 26% deles há mistura de indivíduos. Ao todo, nós estimamos que os restos de 1,3 mil a 1,4 mil pessoas estavam na vala”, afirmou o professor Edson Teles, coordenador do CAAF. Durante os trabalhos no centro forense, os peritos separaram as ossadas que tinham possibilidade de serem de desaparecidos com base em critérios de altura, sexo, idade. Selecionaram 901 ossadas e extraíram material genético dos ossos para os exames de DNA. “A conclusão dessa fase dos trabalhos será um marco na história da vala”, disse Teles.
Com isso, as 1.049 caixas devem ser transferidas do CAAF para um memorial que será construído pela Prefeitura, conforme previsto em lei e acordado com a Justiça Federal. O memorial terá uma dupla função: além de preservar a memória, permitirá, no futuro, novas análises em caso de melhora na tecnologia de identificação das ossadas ou análises das caixas em que há mistura de indivíduos.
Aqui surgiu um novo problema: o imóvel da sede atual do CAAF foi comprado por uma construtora, que pretende derrubá-lo em junho. Até lá, será necessário construir o memorial, cujas obras ainda não começaram, e achar uma nova sede para o centro. O juiz Eurico Zecchin Maiolino, da Justiça Federal, fará audiência sobre o caso na sexta-feira.
Histórico
O trabalho com as ossadas se arrastava desde a descoberta da vala, feita clandestinamente em 1976. À época, a administração do cemitério pensava em construir um crematório para se desfazer dos ossos. Além de desaparecidos políticos, vítimas de violência policial, moradores de rua e pessoas cujos corpos não foram reclamados pelas famílias estavam ali. No caso dos desaparecidos políticos, muitos foram enterrados com nomes falsos, mas, nas fichas arquivadas no cemitério, constava a letra “T”, para identificá-los como “terroristas”.
Em dezembro de 1990, os ossos foram transferidos para a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde dois desaparecidos foram identificados na vala – outros três foram achados em outra área do cemitério. Os trabalhos ficaram paralisados e a equipe médica da Unicamp foi acusada de negligência com as ossadas, o que causou a retirada delas da universidade e a sua guarda no ossário do cemitério Araçá, em São Paulo, onde tudo ficou parado por mais de uma década. O ossário chegou a ser atacado por vândalos em 2013 antes de a Prefeitura fechar o convênio com a União e a Unifesp a fim de concluir os trabalhos de análise e identificação das ossadas.
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Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,apos-32-anos-termina-o-trabalho-com-as-ossadas-da-vala-de-perus,70003978322
‘Decepção’ e ‘vergonha’, os sentimentos mais relacionados ao governo Bolsonaro
Camila Turtelli / O Estado de S. Paulo
Uma pesquisa da Genial/Quaest a que a Coluna teve acesso com exclusividade mapeou o sentimento da população em relação ao governo de Jair Bolsonaro e mostrou que “decepção” é o sentimento mais relacionado ao governo, para 36% dos entrevistados.
Vergonha e desapontamento aparecem na sequência entre os sentimentos negativos, com 30% e 19%. A pesquisa foi feita com 2 mil entrevistados em todo o País no início do fevereiro.
Entre os sentimentos positivos sobre o governo, “esperança” foi citada por 28% dos entrevistados. “Confiança” (14%) e “admiração” (13%) vieram na sequência.
“O governo Bolsonaro é sinônimo de vergonha para os eleitores de Lula, sinônimo de decepção para eleitores do Moro e do Doria, e sinônimo de otimismo e esperança para os eleitores de Bolsonaro. Sentimentos divergentes, que vão do otimismo eleitoral à frustração de quem acreditou no projeto”, disse Felipe Nunes, cientista político e diretor da Quaest.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/blogs/coluna-do-estadao/decepcao-e-vergonha-sao-os-sentimentos-mais-relacionados-ao-governo-bolsonaro-diz-pesquisa/
Governo Bolsonaro lança programa para estimular o garimpo com foco na Amazônia
André de Souza / O Globo
BRASÍLIA - O presidente Jair Bolsonaro editou um decreto para estimular o garimpo, em especial na Amazônia Legal. Foi criado o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala (Pró-Mape), que terá por objetivo "propor políticas públicas", incentivar "o desenvolvimento da mineração artesanal e em pequena escala, com vistas ao desenvolvimento sustentável regional e nacional", e estimular "a formalização da atividade".
De acordo com o texto, "a Amazônia Legal será a região prioritária para o desenvolvimento dos trabalhos da Comape", sigla para Comissão Interministerial para o Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala, também criada pelo decreto. O texto esclarece ainda que considera mineração artesanal e em pequena escala "as atividades de extração de substâncias minerais garimpáveis", conforme estabelecido em uma lei de 1989.
A Secretaria-Geral da Presidência da República, em texto elaborado para anunciar o decreto, também cita expressamente a atividade: "o garimpo representa elevado potencial para geração de riqueza e renda para uma população de centenas de milhares de pessoas". Além disso, "as condições em que vive o pequeno minerador, o alcance de sua atividade e as necessidades primárias da produção em pequena escala contribuem para explicar como a atividade garimpeira interage com o restante da sociedade circundante de forma diferenciada".
De acordo com a Secretaria-Geral, o Pró-Mape "inaugura uma nova perspectiva de políticas públicas sobre a atividade garimpeira no Brasil", com políticas integradas entre vários ministérios, "resultado do reconhecimento de que nenhuma política pública isolada será capaz de promover o desenvolvimento socioambiental desejado".
O decreto apresenta como um dos objetivos do programa "estimular as melhores práticas, a formalização da atividade e a promoção da saúde, da assistência e da dignidade das pessoas envolvidas com a mineração artesanal e em pequena escala".
O decreto estabelece ainda que a Comape será composta por representantes do Ministério de Minas e Energia, da Casa Civil da Presidência da República, do Ministério da Cidadania, do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, do Ministério do Meio Ambiente, e do Ministério da Saúde. A coordenação ficará com Minas e Energia, que terá voto de qualidade, ou seja, em caso de empate, valerá em dobro.
Também poderão ser convidados para participar das reuniões representantes de entidades públicas ou de outras instituições, mas eles não terão direito a voto. Os encontros serão semestrais.
A comissão interministerial será responsável por definir diretrizes, coordenar ações voltadas para setor, incluindo políticas sociais, econômicas e ambientais, e opinar sobre propostas voltadas para o setor quando for solicitada pelo presidente da República.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/brasil/governo-bolsonaro-lanca-programa-para-estimular-garimpo-com-foco-na-amazonia-25393218
Eleições 2022: Bomba fiscal no Congresso Nacional pode passar de R$ 230 bilhões
Idiana Tomazelli / O Estado de S. Paulo
O apetite da ala política do governo por medidas de apelo popular em ano eleitoral será um desafio para a equipe do ministro Paulo Guedes (Economia), que começa 2022 sob a pressão de uma bomba fiscal que pode passar dos R$ 230 bilhões.
O primeiro grande teste é a PEC (proposta de emenda à Constituição) dos Combustíveis, que teve uma de suas versões batizada de kamikaze pelo time econômico, devido ao impacto potencial de mais de R$ 100 bilhões em troca de uma redução incerta de centavos no preço nas bombas e na conta de luz.
A equipe de Guedes ainda negocia uma desoneração localizada apenas no diesel, ao custo de R$ 17 bilhões. Mas permanece a pressão pelo avanço em paralelo de outras propostas relacionadas, como a instituição de subsídios para conter tarifas de ônibus urbano.
Além disso, a coleção de bombas a serem desarmadas no Congresso Nacional neste ano não se resume ao tema dos combustíveis. Com a retomada dos trabalhos legislativos, parlamentares voltaram à carga com projetos que aliviam dívidas de grandes empresas, ampliam isenções tributárias ou elevam gastos do governo.
Uma maior expansão fiscal, por meio de gastos ou renúncias de receitas, é considerada tendência natural no último ano de um governo e também foi observada em gestões anteriores.
No entanto, especialistas avaliam que a segunda colocação do presidente Jair Bolsonaro (PL) nas pesquisas de intenção de voto adiciona pressão para que o Palácio do Planalto seja mais conivente com os pedidos.
Segundo a última pesquisa do Datafolha, Bolsonaro está atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na corrida presidencial.
Um dos projetos de maior risco para a equipe econômica é o que autoriza uma ampla renegociação de dívidas tributárias de médias e grandes empresas.
O texto do Refis aprovado no Senado centrava os maiores benefícios em companhias que enfrentaram dificuldades devido à Covid-19. No fim de 2021, a Câmara dos Deputados estendeu o alcance do programa até mesmo a empresas que lucraram mais na pandemia.
Cálculos do governo apontam uma perda potencial de R$ 92,1 bilhões só em 2022, caso o programa seja aprovado no formato previsto pela Câmara. O texto prevê descontos de até 90% em juros e multas e 100% em encargos, além da possibilidade de abater grandes volumes de crédito de prejuízo fiscal ou base de cálculo negativa da CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido).
O tamanho da fatura levou a equipe econômica a agir. No final de 2021, governistas conseguiram retirar o projeto de pauta.
Sob pressão de grandes empresas e de congressistas, a proposta deve ganhar força novamente. Há negociações em curso para que o texto entre na pauta das próximas sessões.
O relator, deputado André Fufuca (PP-MA), recém-empossado líder da legenda na Câmara, disse à Folha que vai conversar com lideranças a respeito do projeto na próxima semana. Ele evitou responder se fará mudanças no texto.
No Senado, uma das pressões no radar do governo é a correção da tabela do IRPF (Imposto de Renda da Pessoa Física). O senador Ângelo Coronel (PSD-BA), que era relator da reforma do IR já aprovada na Câmara, desmembrou o tema da tabela e apresentou um projeto avulso.
A proposta do congressista é elevar a faixa de isenção a R$ 3.300 mensais, o que custaria cerca de R$ 35 bilhões. Hoje, a isenção vai até R$ 1.903,98.
"Já que não vamos atender os R$ 5.000 que o presidente na campanha alardeou, pelo menos um meio-termo, corrigindo pela inflação", argumenta Coronel.
Segundo o parlamentar, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), já sinalizou no colégio de líderes que pretende marcar uma semana de votação de matérias tributárias, com datas a serem definidas. A tentativa de Coronel será incluir o projeto da tabela do IRPF na pauta.
Há ainda um projeto de lei, relatado pelo líder do MDB no Senado, Eduardo Braga (AM), que busca instituir um repasse federal para bancar a gratuidade de idosos nos ônibus urbanos.
Uma proposta semelhante chegou a ser incluída na PEC kamikaze, que recebeu a assinatura do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho do presidente. Mas o avanço da PEC está sendo combatido pela equipe econômica.
Na última quarta-feira (9), Pacheco decidiu enviar o projeto de lei avulso sobre o subsídio aos ônibus diretamente ao plenário da Casa, sem passar por nenhuma comissão. O custo pode chegar a R$ 5 bilhões.
O próprio governo também já deu sinal verde à derrubada de um veto de Bolsonaro para isentar empresas do setor de turismo e eventos do pagamento de tributos durante cinco anos. O restabelecimento da benesse deve gerar uma renúncia de R$ 3,2 bilhões apenas em 2022.
O aval à derrubada foi anunciado publicamente por Flávio Bolsonaro em suas redes sociais. A apreciação do veto pode ocorrer na próxima quarta-feira (16).
Outro veto que deve cair permitirá às empresas do Simples Nacional renegociar suas dívidas, com impacto de cerca de R$ 1,7 bilhão para os cofres federais.
Grande parte das investidas mira as receitas do governo —uma estratégia para evitar esbarrar no teto de gastos, regra fiscal prevista na Constituição e que limita as despesas, mas não disciplina as receitas do governo.
A equipe econômica, porém, vê os movimentos com bastante preocupação, pois precisa respeitar a meta fiscal, que autoriza um déficit de até R$ 170,5 bilhões neste ano. A previsão atual do governo aponta um rombo de R$ 79,3 bilhões, projeção que deve piorar caso haja corte de tributos sobre o diesel.
Guedes ainda quer reduzir o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), o que também impacta a receita.
Há ainda pressão pelo lado das despesas. O time do ministro da Economia segue em alerta para o risco de a concessão de reajustes para policiais acabar deflagrando uma pressão generalizada por aumentos ao funcionalismo.
Para o pesquisador Bruno Carazza, professor da Fundação Dom Cabral, o enfraquecimento da posição de Guedes e a segunda posição de Bolsonaro nas pesquisas de intenção de voto tornam o presidente mais suscetível às pressões em ano eleitoral.
"Em um ano de tentativa de reeleição, isso nunca aconteceu, o presidente não estar liderando as pesquisas. Gera incentivo extra para que ele [Bolsonaro] libere mais dinheiro para tentar fazer a economia crescer, deixar o eleitor mais feliz", analisa o pesquisador.
Segundo Carazza, a possibilidade de vitória de Lula também tende a fortalecer candidatos de sua coalizão para cargos no Legislativo, o que pode levar atuais aliados de Bolsonaro a buscarem mais recursos para suas bases. "Para segurar traições, o governo tem cedido a essas pressões", afirma.
O cientista político Rafael Cortez, da consultoria Tendências, avalia que o governo enfrenta dificuldades para gerar no eleitor uma sensação de confiança e ganho de bem-estar, apesar de iniciativas recentes, como a ampliação do Auxílio Brasil —sucessor do Bolsa Família, marca das gestões petistas.
"A fonte dessa incapacidade tem a ver com a falta de coordenação política. É como se houvesse dois governos, com uma equipe econômica cada vez mais isolada em relação ao projeto de reeleição", afirma. Para o especialista, há também falta de coordenação entre Câmara e Senado.
"Curiosamente, essa falta de coordenação pode ajudar no sentido de evitar um mal maior", diz Cortez, citando o exemplo da PEC dos Combustíveis, que perdeu força dando lugar a um projeto para desonerar apenas o diesel. "No fundo, como a gente vive uma governabilidade perversa, quando um item é aprovado ele adiciona risco, não tira."
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/02/bomba-fiscal-no-congresso-pode-passar-de-r-230-bilhoes.shtml
Dorrit Harazim: Umbral de guerra?
Dorrit Harazim / O Globo
O livro “Kamikaze Diaries: Reflections of Japanese Student Soldiers”, de Emiko Ohnuki-Tierney, não é volumoso (265 páginas na edição em inglês) nem recente (2007). Em compensação, é impossível esquecê-lo. A obra corrige de forma definitiva um dos clichês da Segunda Guerra mais difundidos no Ocidente: que os jovens kamikazes recrutados nas melhores escolas do Japão para pilotar voos suicidas eram um bando de fanáticos nacionalistas honrados em se explodir pelo bem da pátria e do imperador. A correspondência reunida no livro revela, ao contrário, os medos, angústias e ambivalências dessa geração empurrada à força para a morte. Nem voluntários eram. Seus solilóquios manuscritos em páginas de diários, ou singelas cartas para namoradas, pais, companheiros, são dilacerantes. Demonstram o que já deveríamos ter entendido desde que nos tornamos bípedes: guerras são um horror, qualquer uma. Vale para a Ucrânia.
Os Estados Unidos continuam sendo uma nação relativamente distanciada desses horrores, em parte porque a lembrança nacional mais recente de um conflito militar, em casa, data da Guerra Civil de 1861. Foi para encorpar essa desmemória coletiva que um acadêmico da Califórnia criou o Center for American War Letters Archives, museu interativo on-line dedicado a coletar correspondências privadas e todo tipo de material guardado por combatentes. Idealizado por Andrew Carroll, diretor de um centro de estudos da Universidade Chapman, o espaço virtual de acesso fácil e navegação amigável pretende, no futuro, cobrir desde a Guerra de Independência (aquela que Eduardo Bolsonaro, em palestra nos Estados Unidos, confundiu recentemente com a Revolução Francesa) até os dias atuais.
Por enquanto, a “ala” do site de conteúdo mais robusto reúne cartas, áudios, depoimentos e memorabilia doados por veteranos da Guerra do Vietnã. Ali deparamos com momentos de fé, humor, saudade, desesperança, camaradagem, medo de ser esquecido. Numa dessas peças, garimpada pelo New York Times, ouve-se o coronel George S. Patton júnior (não confundir com seu espaçoso pai, o generalíssimo da Segunda Guerra) dirigindo-se à esposa Joana. É lacônico seu tom de voz na fita gravada em 1968, um dos anos mais carniceiros no Vietnã. “O comandante está vivo neste momento. Mas um braço foi arrancado, e ele perdeu o outro antebraço...”, relata Patton júnior 24 horas após uma granada inimiga ter matado um soldado e ferido outro. “A explosão o dividiu em dois, literalmente em dois.”
O distanciamento físico entre a população dos Estados Unidos e as muitas ações militares americanas pelo mundo, com oceanos e continentes inteiros a separá-los, favoreceu a “normalização” do desenrolar de guerras intermináveis e inúteis. Até 2010, os Estados Unidos dispunham de um tapete de 1.180 bases militares cobrindo o planeta. A justificativa oficial para essa onipresença era o legado deixado pela Segunda Guerra, que acabara 70 anos antes. “Alguém realmente acredita que, se fecharmos nossas bases na Alemanha, a Rússia vai invadir?”, indagava à época o colunista do New York Times Nicholas Kristof. Com o fim da Guerra Fria e a derrocada do império soviético, essa presença foi sendo reduzida para atuais 750 bases — sem contar as mantidas em sigilo, é claro.
Pois eis-nos de volta a algo que parecia inimaginável num ontem ainda recente: um embate capaz de resvalar, por acidente de percurso, num confronto direto entre forças das duas maiores potências militares. Por mais que o presidente Joe Biden afirme e confirme que em hipótese alguma enviará um único soldado aquartelado na Europa para combater na Ucrânia, a História não lhe dá razão.
A partir do maciço paredão bélico russo exibido na região, ficou evidente que um conflito armado na Ucrânia em tudo se assemelharia a uma guerra convencional, com seu corolário de horror também convencional. Não parece sobrar mais espaço para operações cirúrgicas pontuais nem ameaças de represálias financeiras. Morreriam os de sempre. “Perdedores” e “otários”, como o ex-presidente Donald Trump designou vilmente os soldados tombados na Primeira Guerra e enterrados no cemitério americano Aisne-Marne, em Belleau, norte da França.
Embora as mentes humanas sejam o único instrumento do universo capaz de refletir sobre o sentido da vida, cá estamos novamente no umbral de uma guerra.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/umbral-de-guerra.html
Míriam Leitão: O racismo é tema central
Míriam Leitão / O Globo
Há uma lucidez nas férias que ajuda o jornalismo. Às vezes, a distância da correria diária permite um olhar mais agudo sobre o país. As tragédias recentes atingindo negros colocam o combate ao racismo como ponto central de qualquer projeto de futuro. Não precisamos de mais mortes para entender que esse problema pode destruir a Nação, se não for encarado com coragem, obstinação e propostas objetivas. Séculos de violência contra o povo preto nos olham desafiadores.
Não há palavras de repúdio que confortem os que vivem sob a ameaça constante e perdem pessoas queridas de maneira brutal. O refugiado congolês Moïse Kabaganbe foi vítima de uma barbárie tão imensa que nos cobriu de vergonha. Ele era apenas um menino de 24 anos que buscou abrigo entre nós. A mancha não sairá da nossa bandeira, nada há que apague esse crime hediondo. Só podemos, diante dele, fortalecer a convicção de que é preciso resgatar o país do fosso cada vez mais fundo em que estamos. Ver logo depois Durval Teófilo Filho com o braço estendido, como um pedido de paz, diante do seu assassino, foi dilacerante. O sargento da Marinha Aurélio Alves Bezerra já havia dado um tiro no seu vizinho de condomínio. Foi quando, caído, Durval levanta a mão desarmada. Ele estava apenas tentando chegar em casa. Aurélio saiu do carro, mirou a vítima caída e deu mais dois tiros. O sargento quis matar. Aos 38 anos, Durval foi executado por ser negro e seu vizinho achou que ele só podia ser um ladrão. Um ato explícito de racismo que termina tragicamente. Na sua defesa, o sargento fez alegação absurda. Disse que atirou “para reprimir a injusta agressão iminente que acreditava que iria acontecer”. O jovem Yago Corrêa de 21 anos saiu para comprar pão e foi preso. O delegado disse que Yago “estava na hora errada, no lugar errado”. Graças à mobilização da família e de moradores da favela do Jacarezinho ele foi solto.
Com quanto sangue mais vamos manchar nossa bandeira antes de entender que só haverá futuro quando o país encarar seu racismo? O racismo é inimigo da pátria, que só será pátria se honrar a sua rica diversidade étnica. Não é tarefa dos negros combater essa violência, é de cada pessoa e de todos os poderes.
O presidente da Central Única de Favelas e escritor Preto Zezé, em artigo na terça-feira, na “Folha de S.Paulo”, exprimiu o sentimento dos negros. “Somos exilados de direitos no nosso país e perseguidos como inimigos. O cenário inviabiliza qualquer ideia de nação, já que, devido à cor da pele, somos privados de direitos básicos. E corremos riscos, pois o imaginário popular está habitado com a ideia de preto como perigoso.”
Um país assim, que mata negros por serem negros, que escravizou africanos por três séculos, que nunca teve política de reparação, que até hoje os discrimina, não pode perder tempo com debate estapafúrdio. Não há racismo reverso. Ponto final. Os brancos não são ameaçados por serem brancos. Pelo contrário. Chega de dar espaço a debate falso. A mentira não é inocente, ela nos afasta do essencial e urgente.
Sempre houve quem lutasse a luta justa no Brasil. O herói da Pátria Luiz Gama é desses. O filme “Doutor Gama”, de Jeferson De, no Globoplay, narra uma das suas muitas lições de resistência. Precisa ser visto. O livro “Avesso da Pele”, de Jefferson Tenório, é outra recomendação que faço. Nele, o narrador, em diálogo com o pai, vai revelando ao leitor o cotidiano das feridas que os olhares, as palavras, as portas fechadas vão impondo ao negro. A pessoa adoece e um dia não aguenta mais. Tenório nos conta dessa morte lenta, desse cumprimento de uma pena sem culpa e sem remissão. Por quanto tempo mais o tecido social brasileiro suportará tamanha covardia?
Gosto dos números, acho que eles são reveladores, mas prefiro nem levantar aqui estatísticas para mostrar o que é evidente, a hegemonia dos brancos, a exclusão dos negros. Por natureza sou otimista. Acredito em políticas públicas e nas decisões privadas para mitigar problemas sociais. As poucas que surgiram nos últimos anos, como as cotas nas universidades públicas, ajudaram. As empresas que sinceramente querem mudar estão avançando. Tudo somado é pouco perto da imensidão da tarefa. Este é um ano eleitoral. O combate ao racismo deveria ocupar as agendas como uma obsessão.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/o-racismo-e-tema-central.html
Elio Gaspari: Flávio Bolsonaro disse quase tudo
Elio Gaspari / O Globo
Na sua entrevista à repórter Jussara Soares, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) disse quase tudo:
— Para mim, quem soltou o Lula foi o Moro. Segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal, ele fez coisas que estavam fora da lei. Era só ter cumprido a lei que o Lula estava preso até hoje.
Quase tudo, porque não há como garantir que, cumprindo-se a lei, Lula estaria preso. Quase tudo, porque também faltou lembrar o famoso tuíte do general Eduardo Villas Bôas. Mesmo assim, é certo que ao divulgar às vésperas do primeiro turno a colaboração do ex-ministro Antonio Palocci, Moro levou água para o moinho de Bolsonaro. Fortaleceu-o aceitando a costura de Paulo Guedes, ocorrida (sem divulgação) pouco antes do segundo turno.
Numa trapaça da sorte, Bolsonaro foi ajudado primeiro pela colaboração premiada de um ex-ministro da Fazenda (divulgada por Moro), e depois pelo futuro ministro da Economia, à época chamado de Posto Ipiranga.
A entrevista do senador pareceu um momento de moderação e, sobretudo, revelou a possibilidade de uma campanha na qual são aceitas as regras do jogo, até mesmo da vacina. Referindo-se a manifestações dos aliados do presidente que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo, ele disse que “se fosse chutar o balde, o Brasil afundaria”. Boas palavras, admitindo-se que o tamanho do chute viraria o balde. De qualquer forma, vale a conclusão: o Brasil afundaria.
Prever os próximos lances dos Bolsonaro é coisa temerária, mas fica o registro de que essa entrevista do senador foi pelo menos um momento de moderação.
Ele diz que o governo se comunica mal. Na realidade, Jair Bolsonaro se comunica de forma eficaz para seus admiradores e assim chegou à Presidência da República em 2019. A conjuntura era outra, e nela teve não só a ajuda de Moro, mas também de um outro tipo de negacionismo, vindo de seus adversários.
Se há um problema, não está na forma da comunicação, mas no seu conteúdo.
Bolsonaro com o pé no acelerador
A entrevista do senador Flávio (01) Bolsonaro estava nas ruas quando seu pai fez a live semanal e apontou para um novo desentendimento com o Tribunal Superior Eleitoral.
Nas suas palavras:
“Nosso pessoal do Exército, da guerra cibernética, buscou o TSE e começou a levantar possíveis vulnerabilidades. Foram levantadas várias, dezenas de vulnerabilidades. Foi oficiado o TSE para que pudesse responder às Forças Armadas. Passou o prazo e ficou um silêncio. O prazo de 30 dias se esgotou no dia de hoje. Isso está nas mãos do ministro Braga Netto (Defesa) para tratar desse assunto. E ele está tratando disso e vai entrar em contato com o presidente do TSE. E as Forças Armadas vão analisar e dar uma resposta”.
Além disso, prometeu para “os próximos dias” algo para “nos salvar”.
Na véspera, o deputado Eduardo (03) Bolsonaro, havia dito que “a gente vai dar um golpe que vai acabar com o Lula”.
A dificuldade de Doria
O governador João Doria definiu como “jantar dos derrotados” o encontro em que estavam, entre outros tucanos de muita plumagem, Tasso Jereissati, Eduardo Leite e Aécio Neves.
De fato, Doria derrotou-os na prévia do partido, mas seu modesto desempenho nas pesquisas estimulou-os para costurar alianças mais adiante, sobretudo com a senadora Simone Tebet, do MDB.
Menosprezar adversários do mesmo partido sempre é uma política arriscada. A menos que Doria esteja em busca do título de candidato derrotado.
O preço do nazismo
O deputado Kim Kataguiri disse que a Alemanha errou ao criminalizar o nazismo. Depois, explicou-se, desculpando-se. Para quem acha a mesma coisa, até mesmo em nome da liberdade de opinião, aqui vai uma lembrança das boas razões que levaram os alemães a isso.
Se fosse possível esquecer o que o nazismo fez com os outros, hoje completam-se 77 anos do dia em que as sirenes de Dresden começaram a soar. Em 25 minutos, oitocentos aviões ingleses despejaram cerca de duas mil toneladas de bombas sobre a cidade medieval. A “Florença do rio Elba” foi bombardeada por outros dois dias. Uma tempestade de fogo derreteu até estruturas de aço. Tudo o que poderia queimar, queimou e restou uma paisagem lunar.
Os ingleses perderam apenas seis aviões, e os americanos da segunda leva, um. Morreram cerca de 25 mil alemães.
(Nunca uma população civil tinha sofrido ataques de tais proporções. Em março, os americanos queimaram parte de Tóquio, e em agosto jogaram duas bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki).
Os alemães criminalizaram o nazismo porque, entre outros crimes, tendo iniciado a guerra, persistiu nos combates, mesmo sabendo que sacrificava seu próprio povo.
A Alemanha criminalizou o nazismo por vários motivos mas, acima de tudo, pelo mal que ele custou aos alemães.
Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota, nunca trabalhou na vida nas encantou-se com o doutor Zezeco. José Medeiros Nicolau, diretor do Departamento de Ordenamento, Parcerias e Concessões da Secretaria Nacional de Atração de Investimentos do Ministério do Turismo, informava em sua agenda que estava ocupado com “despachos internos”.
O repórter Patrik Camporez descobriu que ele estava na região de Courchevel, nos Alpes franceses. Explicando-se, Zezeco disse que trabalhou de forma remota e “nada parou”.
Eremildo vai a Brasília para ver se descola uma boquinha em Courchevel e promete que nada haverá de parar.
De mão em mão
Vender aeroportos tem sido motivo de orgulho para sucessivos governos brasileiros.
Falta explicar o que esses governos sentem quando os compradores devolvem a mercadoria.
O aeroporto do Galeão foi vendido em 2013 para a Odebrecht, com financiamento do BNDES e do FGTS, mais a participação minoritária da Changi, administradora do celebrado terminal de Cingapura, que tem até piscina para os passageiros. Antes mesmo do impacto da pandemia, os concessionários reclamavam do negócio, e em 2017 a Odebrecht foi-se embora.
Em outubro passado, a Changi começou a negociar a venda da concessão, e na semana passada decidiu devolvê-la à Viúva.
Com isso, o Galeão será oferecido junto com o aeroporto do Centro da cidade.
Os governos gostam de falar bem de tudo o que fazem. Falta contar porque o Galeão virou um mico.
Trump
Vem aí, às vésperas da eleição americana de novembro, um novo livro sobre Donald Trump, e o título já diz bastante: “Confidence Man”, “Vigarista”, em tradução livre. A autora é Maggie Haberman, repórter na Casa Branca durante o governo do presidente.
Ela já revelou que às vezes o pessoal da limpeza encontrava papéis rasgados nas privadas do seu gabinete. No caso de Trump, papéis em privadas são coisa suspeita, pois acredita-se que o doutor destruía documentos que, por lei, deveria preservar. Já se sabe, por exemplo, que Trump usava os celulares de assessores para não ser rastreado.
Puro palpite
Bolsonaro vai se vacinar.
Se o fizer, não tomará a vacina chinesa.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/elio-gaspari/flavio-bolsonaro-disse-quase-tudo-1-25391833
Eliane Cantanhêde: Putin não invadirá a Ucrânia, porque ganha com pressão e perderia com guerra
Eliane Catanhede / O Estado de S. Paulo
Na avaliação – ou aposta – do governo brasileiro, incluídos embaixadores e generais, o presidente Vladimir Putin tem claros objetivos externos e internos para esticar a corda, mas não chegará ao ponto de invadir a Ucrânia. Ele ganha com a pressão, mas perderia muito com a guerra.
Caem chuvas e trovoadas, aumenta o risco de a Rússia invadir a Ucrânia em dias, ou horas, e EUA, Japão, Reino Unido, Holanda e Coreia do Sul pedem que seus cidadãos saiam imediatamente de território ucraniano. Mas a viagem do presidente Jair Bolsonaro está firme e forte amanhã, e não há nenhum pedido para que brasileiros saiam do alvo.
Planalto e Itamaraty têm uma leitura mais branda do que fazem a mídia internacional e os demais governos dos comunicados em que Joe Biden admite que a Rússia “poderá”, não que “irá” invadir a Ucrânia. O Brasil aposta num recuo, sobretudo porque Biden e Putin continuavam conversando ontem. A ver.
Nos “papers” e reuniões de governo, Putin não é só um troglodita impulsivo. Vem da inteligência russa, é estratégico e obcecado com “Russia first” e “Russia great again” – ao estilo Trump – e tem razão em reagir à OTAN nas suas fronteiras, após os traumas históricos: invasões viking, mongol, polonesa e investidas de Napoleão e Hitler.
Gorbachev e Yeltsin deixaram o país em frangalhos e Putin, com mãos de ferro, pôs a economia nos eixos, investiu em segurança alimentar, tropas e armamento e acha que chegou a hora de recuperar o lugar entre os grandes, além de acalentar a alma imperial da sociedade russa, que vem desde sempre, passou pela União Soviética e deixou um rastro de saudosismo.
Ao ameaçar com a invasão, a Rússia recupera ares de potência política: rival à altura dos EUA, conquista apoio da China, mobiliza a Europa e atrai líderes de França e Alemanha a Moscou. Se partir para a guerra, Putin jogará todos os ganhos fora. Guerra é guerra. Nesse contexto, ele dará ouvidos aos interesses do Brasil, ou usará Bolsonaro para reforçar os Brics como contraponto aos EUA e demonstrar que seu raio de ação inclui o “quintal de Washington”?
O Brasil fez nota simpática sobre os 30 anos de relações diplomáticas com a Ucrânia, mas os vexames já começaram. Depois da mesa de quatro metros para o francês Macron, quantos metros terá a de Putin e Bolsonaro, que nem vacinado é? Ele fará os cinco testes de Covid exigidos pela Rússia? Qual a comitiva, reduzida a pedido de Moscou? Aliás, Mário Frias, que gastou R$ 80 mil com um assessor para ir aos EUA, faria um tour por Rússia, Hungria e Polônia com cinco subordinados. Para que? Tem lutadores de jiu-jítsu cultural por lá?
Fonte: O Estado de S, Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,aposta-do-brasil-putin-nao-invadira-a-ucrania-porque-ganha-com-pressao-e-perderia-com-guerra,70003977714