Marcus Pestana: Quando o carnaval chegar
Marcus Pestana / Congresso em Foco
Em 1972, tivemos o lançamento do musical de Cacá Diegues “Quando o Carnaval Chegar”, estrelado por Nara Leão, Maria Bethânia, Hugo Carvana, Chico, entre outros. Na trilha sonora destaca-se a música tema, onde Chico Buarque diz: “Quem me vê apanhando da vida, duvida que vá revidar. Tou me guardando pra quando o carnaval chegar”, “Eu tenho tanta alegria, adiada, abafada, quem dera gritar. Tou me guardando pra quando carnaval chegar”. Parece até uma alegoria da eterna espera brasileira pelo dia em que a alegria do carnaval abraçará em definitivo a maioria da população do país, superando a surra diária e a alegria abafada e adiada.
Este ano a Mangueira e a Portela não irão pra avenida, não haverá abadás e blocos de Axé e o Galo da Madrugada não varrerá as ruas de Recife, graças à pandemia que nos assola há dois anos. Será um momento de descanso e reflexão. É justo, pois, tentar imaginar o que nos reserva 2022. E certamente, não haverá monotonia pelos sinais que temos até aqui.
Em primeiro lugar, nuvens carregadas ameaçam o cenário internacional. O conflito entre Rússia e Ucrânia poderá ter desdobramentos imprevisíveis. Os EUA e a União Europeia resistem e ameaçam com retaliações crescentes. A China se alinhou a Rússia e paga pra ver. Obviamente, a tensão crescente terá repercussões no comércio internacional e no fluxo global de investimentos. O Brasil tem na China, EUA e União Europeia seus três maiores parceiros comerciais e ao mesmo tempo compõe o BRICRS, ao lado da Rússia e da China. Nossa atual política externa tem cometido erros primários e todo cuidado é pouco.
Por outro lado, tudo indica que a pandemia chegará ao fim com o avanço da imunização e a COVID-19 se incorporará à rotina dos desafios sanitários.
No plano econômico é de se prever que a inflação cederá a médio prazo, mas a taxa de juros e o desemprego continuarão altos e o crescimento raquítico. Os investimentos devem entrar em compasso de espera, aguardando os desdobramentos políticos das eleições de outubro.
E é aí que mora o perigo. As eleições trazem, como tudo na vida, ameaças e oportunidades. O Brasil necessita urgentemente de estabilidade política e econômica e de um plano de voo de longo prazo, sob pena de continuar patinando no pântano das crises permanentes. Enquanto não superarmos a instabilidade não cuidaremos da verdadeira agenda do século XXI e de preparar o futuro.
Nos últimos dias, a temperatura política subiu, o que é até certo ponto natural a sete meses das eleições presidenciais, mas que pode sair do controle. Os conflitos entre o Palácio do Planalto e o Poder Judiciário foram reciclados. Bolsonaro subiu o tom em palestra organizada pelo BTG, tentando, pela radicalização do discurso, provar que merece mais quatro anos. Lula tenta tranquilizar a sociedade, com movimentos claros em direção ao centro político, revelando estar consciente da gravidade do quadro e que fará um governo longe de retaliações e aventuras à esquerda. Paralelamente, o centro democrático tenta, a duras penas, localizar uma candidatura competitiva que vocalize uma agenda contemporânea, comprometida com a democracia, o desenvolvimento sustentável e o combate às desigualdades.
2022 promete. O importante é que não somos todos atores passivos neste drama. O futuro nascerá das nossas mãos e de nossas escolhas.
*Marcus Pestana, Presidente do Conselho Curador ITV – Instituto Teotônio Vilela (PSDB)
Fonte: O Tempo
https://congressoemfoco.uol.com.br/blogs-e-opiniao/colunistas/quando-o-carnaval-chegar/
Pablo Ortellado: PL das Fake News está cercado de impasses
Pablo Ortellado / O Globo
O Projeto de Lei 2.630/2020, apelidado de PL das Fake News, vive tantos impasses, que é difícil saber onde vai parar. Ele pode tanto ser aprovado na semana depois do carnaval como ser engavetado. Pode vir a ser um robusto marco regulatório ou também terminar como um conjunto mal-ajambrado de regras ruins. Há pelo menos quatro grandes impasses.
O primeiro é a moderação de conteúdo em mídias sociais. Facebook, Twitter e outras precisam moderar o que é publicado pelos usuários — apagar, reduzir o alcance ou rotular conteúdo que viola os termos de uso dos serviços. Sem moderação, as plataformas seriam inundadas por spam, pornografia e discurso de ódio.
Só que a moderação é muito custosa porque o conteúdo publicado é abundante, e as regras complexas. Para reduzir o custo, as empresas automatizaram o procedimento com inteligência artificial. A moderação automática, porém, é pouco precisa e, por isso, muitas publicações lícitas são apagadas. O problema é particularmente agudo em conteúdos políticos. Ativistas de direita e esquerda alegam perseguição e censura.
Para enfrentar o problema, o PL determinou regras de transparência, notificação e recurso, de maneira que os usuários cujos conteúdos sejam apagados ou restritos sejam avisados de que a publicação foi moderada, sejam informados sobre que regra foi infringida, tenham a oportunidade de recorrer da decisão, e eventuais erros sejam reparados. As empresas alegam que esses novos procedimentos, por ser onerosos, desestimulariam a moderação, resultando em mais conteúdo impróprio. Alegam também que as regras de reparação são mal desenhadas.
O segundo impasse envolve o tratamento da publicação dos políticos nas mídias sociais. É um tema sensível para o Congresso, que ainda não assimilou a prisão do deputado Daniel Silveira depois de atacar ministros do Supremo. A punição foi vista por muitos congressistas como violação do princípio da imunidade parlamentar.
O relator do PL, deputado Orlando Silva, incluiu no projeto um artigo sobre imunidade parlamentar. Segundo ele, a inclusão não faz mais do que relembrar o princípio já vigente. Mas, se fosse apenas redundante, não precisaria ter sido incluído. A presença desse artigo num PL que regula mídias sociais seguramente dará margem a interpretações de que a publicação de políticos não pode ser moderada. Isso é preocupante, porque seguidos estudos têm mostrado que os maiores difusores de desinformação são justamente os políticos com mandato.
O terceiro impasse é a regulação dos serviços de mensagens privadas. A versão do PL aprovada no Senado incluía a rastreabilidade de conteúdos virais, o que permitiria identificar a cadeia de encaminhamento das mensagens em aplicativos como o WhatsApp. Hoje, mensagens ilícitas viralizam, e não há nenhum instrumento que permita investigar sua origem.
A rastreabilidade de mensagens virais enfrenta forte oposição das empresas que não querem ser reguladas, de organizações de direitos digitais contrárias à guarda de metadados e de políticos que fazem uso malicioso dessas mensagens. Embora o deputado Orlando Silva esteja tentando construir um consenso sobre a retirada da rastreabilidade, ela pode muito bem voltar no Senado (e, em seguida, ser vetada pelo presidente).
Por fim, o quarto impasse é a exigência de que empresas com grande participação no mercado constituam representantes no país, sob pena de sanções. O artigo não foi pensado para nenhuma empresa em particular, mas ganhou grande repercussão com a recusa do Telegram — que não tem representante no Brasil —a cumprir determinações judiciais.
O tema é politicamente sensível porque o Telegram tem sido usado pelo presidente Bolsonaro e por seus apoiadores. Para a Justiça Eleitoral, há o temor de que o jogo sujo político que vimos no WhatsApp em 2018 migre em 2022 para o Telegram. Da parte dos bolsonaristas, há o temor de que a medida seja usada pelo TSE e pelo STF para censurar o discurso da direita.
O relator mais uma vez parece estar construindo um consenso, criando sanções escalonadas e proteções contra o abuso judicial. Mesmo assim, a medida terá a oposição de bolsonaristas nas duas Casas e será vetada pelo presidente. Com o tempo de aprovação, o tempo de veto, o tempo para derrubar o veto e a vacatio legis (prazo para entrar em vigor), um eventual bloqueio do Telegram aconteceria perto demais da campanha eleitoral, causando enorme tumulto político.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/pl-das-fake-news-esta-cercado-de-impasses.html
Ascânio Seleme: Sustinho bom
Ascanio Seleme / O Globo
Um próximo interlocutor de Lula definiu com uma boa frase o quadro político atual, com pesquisas que mostram um revigoramento da candidatura de Bolsonaro e um exagerado otimismo que muitos líderes petistas evidenciam em entrevistas e conversas privadas. “As novas pesquisas dão um sustinho bom nesta turma que anda com salto muito alto”. Tem alguma razão o político, que pertence a um partido de centro, mas que transita bem em todas as esferas. Susto, ou sustinho, funciona como freio de arrumação. Como uma boa chacoalhada pode colocar as coisas no lugar. Ninguém ignora que muitos do PT estão mesmo contando com o ovo muito antes do primeiro esforço da galinha.
Gleisi Hoffmann, presidente do PT, diz que o partido não está de salto alto e que ainda espera um crescimento mais consistente da candidatura de Bolsonaro em razão do saco de bondades gordo de dinheiro público que ele vem abrindo sem qualquer parcimônia. Ela tem razão sobre o saco gordo, mas erra na questão do calçado. Quem conversa com petistas sabe que muitos usam mesmo a sandália da humildade, Lula inclusive. Mas há outros tantos que falam com aquele “já ganhou” subentendido. A própria Gleisi, em janeiro deste ano, numa entrevista ao GLOBO, falou como se a vitória já estivesse garantida. Disse que Lula não precisava fazer nova carta ao povo brasileiro porque “a única coisa que não vamos fazer é quebrar contratos, o resto vamos fazer. E não tem ‘mimimi’ do mercado”. Você diria que presidente do partido usou sandália ou salto naquela entrevista?
Mas rearrumar o discurso da tropa é o menor problema do PT neste momento. O partido é disciplinado e uma orientação forte nesse sentido enquadra os mais entusiasmados. O que Lula precisa fazer, com o suporte indiscutível do seu partido que, aliás, não se viu até aqui, é abrir efetivamente o leque de apoios para o centro e garantir que os partidos de esquerda estejam mesmo ao seu lado desde o primeiro turno. Todos os jornalistas que cobrem política ouviram diversas vezes ao longo dos últimos meses petistas desdenharem de uma aliança com Geraldo Alckmin, atacando o ex-governador por seu conservadorismo ou sugerindo que ele traria poucos votos para a chapa. Por outro lado, nenhum deles ouviu um petista dizer que poderia ser produtivo para o plano nacional fazer mais concessões aos partidos aliados, mesmo em São Paulo.
O sobressalto, o sustinho provocado por estas duas últimas pesquisas (PoderData e CNT/MDA), pode virar pavor se a campanha petista permanecer pouco agregadora como vem sendo até agora. Falta clareza do partido para dizer com quem vai até as urnas e como seguirá depois da apuração caso seja vencedor. Já passou da hora de fazer discurso para a militância. Para esta, que é vital e ajuda a vencer eleições, o sinal já está claro, ninguém vai recuar se Lula confirmar Alckmin e conseguir fechar um acordo com o PSD, de Gilberto Kassab. Claro que haverá dor de cabeça se o PT abrir mão da candidatura de Fernando Haddad em favor de Márcio França (PSB). Mas quer um sinal mais claro da disposição de dividir do que este?
Não se pode querer tudo. Se Lula for presidente e ainda por cima o partido ganhar os governos de São Paulo e do Rio terá uma hegemonia de poder que jamais experimentou, nem nos seus melhores momentos. Em São Paulo, Lula e Dilma Rousseff conviveram com governadores da oposição (Geraldo Alckmin, Cláudio Lembo, José Serra, Alberto Goldman e Alckmin outra vez) durante a integridade de seus mandatos. No Rio, com Rosinha, Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão, Lula e Dilma tiveram boa convivência, mas não alinhamento automático. E este fato não atrapalhou os seus mandatos e muito menos interferiu na colocação em prática das políticas públicas petistas.
O PT é guloso, todo mundo sabe disso. E gula é vício, não é fome. Vício em política não funciona porque não é sinônimo de perseverança ou determinação, mas sinal de avareza, ganância, cobiça. O PT é maior do que isto. Lula é maior do que isto. Saber dividir é melhor do que tentar sôfrega e permanentemente multiplicar. Em política, dividir muitas vezes significa somar.
Fica, Moro
Há um risco ainda não calculado pelos que atacam sem trégua a candidatura de Sergio Moro. Se o ex-juiz desistir de concorrer, por falta de apoio ou por ficar demasiadamente fragilizado, a maioria dos seus votos não vai para a terceira via, como imaginam alguns, mas para Bolsonaro. Se as duas últimas pesquisas de intenção de votos já mostraram um revigoramento da candidatura do presidente, imaginem como serão as enquetes caso Moro não apareça na cédula como opção ao eleitor. Se Bolsonaro receber quatro dos seis pontos de Moro, chega a 35% (CNT/MDA) ou 38,7% (PoderData), podendo causar um efeito manada perigoso para os que a ele fazem oposição. Claro que no segundo turno a turma do Moro também vai desaguar majoritariamente em Bolsonaro, mas aí será outra eleição.
Apesar de Ciro
A leve subida de Ciro Gomes na pesquisa CNT/MDA serviu para reduzir um pouco a angústia dos petistas com o crescimento de Bolsonaro. Mostra que os eleitores que preferem candidaturas de esquerda também aumentaram. Pouco, mas aumentaram. Já na PoderData, o candidato do PDT perdeu eleitores. Por isso, os petistas seguem apostando prioritariamente no eleitorado do Ciro, que vota maciçamente num candidato do PT no segundo turno. Foi assim em 2018, apesar de Ciro.
Abandonado
Há três semanas, João Doria escreveu para dizer que não havia hipótese de desistir de sua candidatura. Referia-se à nota desta coluna que afirmava ter ele se transformado em escravo da sua candidatura. Há três dias, em palestra, disse o contrário, que não vai colocar seu projeto pessoal à frente do Brasil e que mais adiante pode abrir mão da disputa. Doria é um governador eficiente, pragmático e bom de comunicação. Seu péssimo desempenho nas pesquisas se explica pela perseguição política e pelo preconceito que sofre. Por ser novato e ter comprado briga pelo controle do PSDB, também foi abandonado pelos velhos caciques do seu partido, mesmo aqueles que não têm mais voto.
Petrobras
Não vai demorar para o gráfico do lucro da Petrobras entrar na campanha eleitoral. Comparado aos piores anos de Dilma, o resultado da petroleira é espetacular. De um prejuízo de R$ 34,8 bilhões em 2015 para um lucro de R$ 106,6 bi em 2021. Se Bolsonaro for usar estes números para tentar demonstrar uma qualidade de gestão que não é sua, pode ser alvejado pela culatra com pelo menos uma questão: Se a Petrobras deu tanto lucro, por que não reduziu o preço dos combustíveis?
Cinco anos
Por favor, parem de atacar o procurador-geral Augusto Aras apenas porque ele vem sentando em cima das mais de 30 denúncias por crimes de responsabilidade apresentadas contra o presidente Jair Bolsonaro ao longo dos últimos três anos. Afinal, esta é a praxe no organismo que ele preside, não é mesmo? Se não, como explicar a demora de quase cinco anos para o Ministério Público enfim pedir a condenação e a perda do mandato do deputado Aécio Neves no processo em que ele é acusado de pedir e receber R$ 2 milhões em propina do empresário Joesley Batista? Poucos crimes foram tão bem documentados quanto aquele. Tem gravação de áudio de Aécio com Joesley, onde ele diz que vai mandar um primo buscar a grana porque, primo, se trair, “a gente mata”. Da intermediária do pedido de propina, a irmã de Aécio, Andrea Neves. E tem vídeo da prisão do primo com a mala cheia de dinheiro. Se fosse roubo de macarrão num supermercado, os três estariam presos desde o flagrante.
Garotinho
O efeito Garotinho na eleição do Rio ainda não foi inteiramente medido, mas sabe-se que se ele conseguir registrar uma chapa, o governador Cláudio Castro será o maior perdedor, seguido pelo prefeito Eduardo Paes. O ex-governador, que nasceu brizolista mas aos poucos migrou no espectro político até estacionar na centro-direita, tira votos deste segmento, onde situa-se o candidato à reeleição e por onde trafega com mais desenvoltura o prefeito do Rio.
Gravata
Na semana em que o repórter Rafael Soares mostrou no GLOBO que armas e munições adquiridas legalmente por caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) abastecem o tráfico e a milícia em todo o país, Jair Bolsonaro apareceu em público usando uma gravata decorada com imagens de fuzis. Você, que conhece os decretos que ampliaram o número de armas legalmente vendidas no país e proibiram o seu rastreamento e também o da munição, sabe muito bem que estamos tratando de um homem abertamente favorável ao uso descontrolado de armas. Suas razões também são conhecidas. Não seria o caso de perguntar a você mesmo se ele ainda merece o seu respeito?
Esquizofrenia
Bolsonaro que ama Putin que ama Xi que ama Noriega que ama Maduro que odeia Bolsonaro. Bolsonaro que odeia Xi que ama Maduro que ama Putin que ama Bolsonaro que odeia Maduro que ama Noriega que odeia Bolsonaro. #PrayForUkraine.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/sustinho-bom-25411615
Demétrio Magnoli: O Império que não quer cair
Demétrio Magnoli / Folha de S. Paulo
"É tudo culpa de Lênin", pontificou outro Vladimir, Putin, no sinistro discurso que pronunciou na TV russa anunciando o reconhecimento da independência dos enclaves separatistas do Donbass. O líder da Revolução Russa teria fabricado a Ucrânia, privando a Rússia de seu berço cultural. A história putínica é lenda destinada a justificar uma guerra de agressão, mas ilumina um dilema de cem anos.
Nas suas linhas gerais, o mapa atual da Europa foi desenhado pelos tratados que encerraram a Grande Guerra, entre 1918 e 1920. Sob o impacto dos nacionalismos e do programa de Woodrow Wilson, nasceram os Estados-Nação.
As novas entidades, supostamente ancoradas na língua e na tradição, foram esculpidas a partir das ruínas dos impérios que desabavam. Desapareceram os impérios Alemão, Austro-Húngaro e Turco-Otomano. Contudo, graças ao triunfo dos revolucionários bolcheviques, sobreviveu o Império Russo, apenas convertido na URSS. "Império vermelho", mais que uma expressão retórica, é a descrição precisa da conservação de um fóssil no permafrost do Estado soviético.
Nada, porém, atravessou impunemente a era dos nacionalismos. O tema nacionalista infectou o pensamento comunista, condicionando a organização política do "Império vermelho". Lênin, o danado, criou uma união de 15 repúblicas nominalmente soberanas. Nesse sentido específico, Putin fala a verdade.
De fato, claro, o Estado soviético era uma entidade centralizada: uma constelação que girava ao redor da Rússia, ou melhor, do PCUS. Não é por acaso que cada república tinha seu próprio partido comunista, menos a Rússia. O partido único russo era o PCUS, centro intocável do poder. Mas, ironicamente, a soberania fictícia das repúblicas soviéticas propiciou, no final de 1991, o fundamento jurídico para a criação dos 15 Estados pós-soviéticos, entre os quais a Ucrânia.
A história putínica, fixada em Lênin e na implosão da URSS, ignora o nacionalismo ucraniano. Como todas as narrativas nacionais, ele ergue uma "comunidade imaginada" cuja inspiração remonta ao proto-Estado militar cossaco (Zaporozhian Sich) que, entre 1552 e 1775, conservou uma relativa autonomia diante de poloneses, otomanos e russos.
Na saga nacional ucraniana, ocupa lugar de destaque o Holodomor, o extermínio pela fome de mais de 3 milhões provocado pela coletivização forçada soviética em 1932-33, que reacendeu a chama antirrussa. O termo genocídio, hoje capturado por oportunistas diversos, inclusive Putin, define adequadamente a tragédia emanada daquele experimento de engenharia político-social. A revolução popular na Ucrânia, em 2013-14, que está na raiz da invasão russa em curso, evidenciou a persistência do nacionalismo ucraniano.
A expansão da Otan para leste, um erro histórico do Ocidente, não é a causa da invasão russa, mas o pretexto encontrado pelo chefe do Kremlin. A hipótese de candidatura da Ucrânia à aliança ocidental foi congelada desde a ação militar russa de 2014. O real motivo da invasão foi exposto por Putin, no discurso em que rejeitou a legitimidade de um Estado ucraniano soberano. Sua ambição é restaurar a "Grande Rússia", começando pelo núcleo tripartite Rússia/Belarus/Ucrânia. O Império Russo —preservado sob a forma de URSS no final da Grande Guerra e quase arruinado em 1991— tenta se reconstituir por meio de uma capitulação versalhesa da Ucrânia.
Nossa Constituição determina que, nas suas relações internacionais, o Brasil rege-se pelos princípio da "independência nacional", da "autodeterminação dos povos", da "não-intervenção" e da "igualdade entre os Estados". O Itamaraty passou os três dias decisivos recusando-se a condenar a invasão russa. Nesse passo, Bolsonaro convergiu com Dilma Rousseff, que rejeitou condenar a anexação russa da Crimeia em 2014. São governantes que sabotam nosso contrato político.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2022/02/o-imperio-que-nao-quer-cair.shtml
João Gabriel de Lima: Os tanques e o sonho europeu
João Gabriel de Lima / O Estado de S. Paulo
Numa crônica publicada na última edição da revista Monocle, o escritor ucraniano Artem Chekh descreve um passeio pela noite de Kiev. Era dezembro e, depois de comer uma pizza, ele e a mulher, Irina, observam as luzes natalinas na Praça Sofia. Constatam que as danceterias Killer Whale e Closer seguem lotadas em pleno inverno. Espantamse com a fila no Mustafir, e planejam voltar lá algum dia para comer os famosos pasteizinhos chineses do restaurante.
Artem participou das manifestações da Praça Maidan que, em 2014, derrubaram um governo fantoche de Moscou. No ano seguinte, alistou-se para lutar contra os russos. A experiência rendeu seu livro mais famoso, Zero Absoluto. Quando escreveu a crônica da Monocle, Artem temia ser convocado novamente. Pensava também em Irina, que trabalha com filmes. Ainda seria possível fazer cinema numa Ucrânia invadida?
Quando há um conflito, a vida de gente comum é abruptamente atropelada pela geopolítica. “Em Belgrado, na guerra da Sérvia, observei que as pessoas se preocupavam primeiro com a família e depois em conseguir coisas básicas como comida, que começava a faltar nos supermercados”, diz o jornalista Ricardo Alexandre, entrevistado no minipodcast da semana. Ele acaba de lançar um livro sobre o Afeganistão e é um dos maiores especialistas portugueses em conflitos internacionais.
A corrida aos supermercados já vem acontecendo em Kiev, como mostra a cobertura exclusiva – em texto e vídeo – do repórter Eduardo Gayer
para o Estadão.
O bom jornalismo sempre esteve atento para o efeito das guerras sobre o cotidiano. Em 2003, Jon Lee Anderson, da The New Yorker, conversou com representantes da classe média iraquiana às vésperas do bombardeio americano. Um dos entrevistados era um violinista que não sabia se sua orquestra continuaria existindo. Era iraquiano. Podia ser nova-iorquino.
Da mesma forma, o médico japonês descrito no livro Hiroshima, do repórter John Hersey, podia ser americano. Ele estava na varanda de seu hospital quando a bomba atômica o lançou a vários metros de distância. Teve o azar de estar do lado errado no conflito em 1945.
Da guerra, o ucraniano Artem guardou a frase de um colega do front: liberdade é poder se preocupar com coisas triviais. A Rússia invadiu a Ucrânia, e talvez não seja mais possível a Irina e Artem pensar em pasteizinhos chineses. Eles também sonhavam com um futuro europeu para o filho de 11 anos. Grande parte dos ucranianos escolheu esse futuro em eleições. A geopolítica, com seus tanques, pode fazer terra arrasada do sonho.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,os-tanques-e-o-sonho-europeu,70003991846
Murillo de Aragão: O peso político dos evangélicos
Murillo de Aragão / Revista Veja
Na medida em que o debate eleitoral se intensifica, os principais candidatos buscam se acertar com segmentos importantes de eleitores. Com mais de 30% da população de 210 milhões de brasileiros, os evangélicos são determinantes para a eleição do presidente da República. No pleito de 2014, o voto desse rebanho — que chegou a ser cortejado por Aécio Neves (PSDB) — foi essencial para Dilma Rousseff se reeleger. Em 2018, também foi determinante para a vitória do presidente Jair Bolsonaro. Na pesquisa do Datafolha de 4 de outubro daquele ano, 48% dos evangélicos declaravam voto no então candidato do PSL. O porcentual representava mais que o dobro do segundo colocado, Fernando Haddad (PT), que obteve apenas 18%.
Recentemente, segundo pesquisa do PoderData divulgada dias atrás, Bolsonaro continua liderando entre os evangélicos. Hoje o presidente venceria Lula por 44% a 32%. Ou seja, a distância dele para o candidato do PT, que em 2018 era de 30 pontos porcentuais, caiu para apenas 12 pontos. Atento à perda de terreno em um importante segmento de sua base social, Bolsonaro prepara uma série de encontros com as principais lideranças das igrejas e com parlamentares da poderosa “bancada evangélica”.
Setores do governo têm dúvidas quanto ao apoio de lideranças importantes dos evangélicos como Edir Macedo (Igreja Universal do Reino de Deus), Manoel Ferreira (Ministério Madureira da Assembleia de Deus) e o missionário R.R. Soares (Igreja Internacional da Graça de Deus). Marcos Pereira, presidente do Republicanos, partido ligado à Igreja Universal, declarou que Bolsonaro teria atrapalhado a filiação de novos parlamentares à legenda. Estaria o Palácio do Planalto trabalhando para impedir o crescimento da agremiação?
“Mesmo que a pauta econômica tenha um peso maior, a agenda de costumes continuará a ser importante para o eleitorado mais conservador”
Lula, por sua vez, tem reconstruído pontes com os evangélicos que apoiaram a eleição e a reeleição de Dilma Rousseff. Recebeu do pastor Paulo Marcelo, ligado à Assembleia de Deus, um plano de ação para cooptar votos junto aos fiéis. O petista sabe que dividindo o voto das igrejas pentecostais terá maior chance de consolidar sua liderança. Em dezembro, pesquisa do Datafolha apontava que Lula teria sido o melhor presidente do Brasil na avaliação da maioria dos evangélicos. A movimentação do ex-presidente e o resultado das pesquisas determinaram a ofensiva de Bolsonaro sobre esse segmento.
Não será, porém, uma tarefa fácil para o PT transformar a admiração em votos. Nas eleições de 2018, um fator que ajudou Bolsonaro na conquista do apoio evangélico foi a aposta na agenda de costumes. Mesmo que neste ano a pauta econômica tenha um peso maior, a agenda de costumes continuará a ser importante para o eleitorado mais conservador. Lula enfrentará problemas em abraçar de forma mais explícita essa agenda.
Enfim, mesmo que não exista uma hegemonia do voto evangélico para um determinado candidato, é certo considerar que o segmento terá relevância crescente na formatação política do Brasil em 2023 — tanto pela influência que exercerá junto ao vencedor quanto pela relevância na composição do futuro Congresso. Lembro que em 1994 eram apenas 21 deputados federais que se declaravam evangélicos. Na atual legislatura, já são mais de 100. Tudo indica que a bancada deverá prosseguir crescendo em tamanho e em influência.
Publicado em VEJA de 2 de março de 2022, edição nº 2778
Fonte: Veja
https://veja.abril.com.br/coluna/murillo-de-aragao/o-peso-politico-dos-evangelicos/
Moraes ameaça suspender Telegram se não bloquear perfis de Allan dos Santos
Mariana Muniz / O Globo
BRASÍLIA — O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes ameaçou em decisão dada no último dia 18 bloquear o aplicativo de mensagens Telegram pelo prazo inicial de 48 horas caso não haja a suspensão dos perfis do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos.
Leia: Bolsonaro espalha mensagem com notícia falsa sobre ministro Luis Roberto Barroso
"A utilização de vários perfis, criados com a intenção de se esquivar dos bloqueios determinados, tem sido prática recorrente de ALLAN LOPES DOS SANTOS para a continuidade da prática delitiva, comportamento que deve ser restringido", diz o ministro no despacho.
Ainda de acordo com o ministro, o blogueiro "tem se utilizado do alcance de seu perfil no aplicativo Telegram (com mais de 121 mil inscritos) como parte da estrutura destinada à propagação de ataques ao Estado Democrático de Direito, ao SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, ao Tribunal Superior Eleitoral e ao Senado Federal, além de autoridades vinculadas a esses órgãos".
Sonar: Guerra entre Rússia e Ucrânia embaralha esquerda e direita e dá 'nó ideológico' em bolsonaristas
O Telegram entrou na mira das autoridades da Justiça, sobretido Eleitoral, após reiteradas tentativas fracassadas de contato do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com a plataforma. A preocupação a respeito do aplicativo diz respeito à possobilidade de propagação de notícias falsas, uma vez que permite a possibilidade de grupos com até 200 mil pessoas, possibilitando disparos em massa.
"Efetivamente, o uso do Telegram se revela como mais um dos artifícios utilizados pelo investigado para reproduzir o conteúdo que já foi objeto de bloqueio nestes autos, burlando decisão judicial, o que pode caracterizar, inclusive, o crime de desobediência a decisão judicial sobre perda ou suspensão de direito", aponta o ministro.
Segundo Moraes, a empresa foi notificada oficialmente em 13 de janeiro "para que procedesse ao bloqueio imediato de contas vinculadas" a Allan dos Santos, mas nenhuma providência foi adotada, "apesar das tentativas de intimação realizadas pela autoridade policial".
O ministro determinou a intimação do Telegram, por meio de intimação pessoal dos sócios de seu procurador domiciliado no país, escritório que cuida de questões relacionadas a propriedade intelectual.
Allan dos Santos, dono do canal Terça Livre, é alvo de dois inquéritos que investigam suposto esquema de divulgação de informações falsas no Supremo. Um dos inquéritos apura ameaças a ministros do tribunal e disseminação de conteúdo falso na internet, as chamadas fake news. O outro investiga o financiamento de atos antidemocráticos. Em outubro, Moraes determinou a prisão preventiva do blogueiro além de ordenar, ao Ministério da Justiça, início imediato do processo de extradição.
O banimento do Telegram por ausência de representação legal no Brasil e descumprimento da legislação vigente é uma medida que vem sendo debatida no Congresso e também no TSE. Na Câmara dos Deputados tramita o projeto que criminaliza o disparo em massa de fake news e cria regras de conduta para plataformas digitais, como redes sociais, buscadores e aplicativos de mensagem.
O texto obriga redes sociais com mais de 10 milhões de usuários a cumprir uma série de obrigações, como ter representação no país, criar mecanismos para evitar disparos em massa e publicar relatórios de transparência. Caso as empresas descumpram a legislação, há previsão de penalidades.
Kassio e Rosa tiram sigilo de quatro apurações derivadas da CPI da Covid
Pepita Ortega / O Estado de S. Paulo
O ministro Kassio Nunes Marques e a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, decidiram tirar o sigilo de petições instauradas com base no relatório da CPI da Covid, que propôs o indiciamento de 12 autoridades com foro privilegiado junto à corte máxima. As decisões atenderam pedido do procurador-geral da República Augusto Aras e dizem respeito a procedimentos que se debruçam sobre as imputações feitas ao presidente Jair Bolsonaro, ao ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e ao deputado Ricardo Barros (PP/PR), líder do governo na Câmara.
Relator de uma apuração preliminar aberta contra Barros, o ministro Kassio Nunes Marques ponderou em sua decisão que ‘não se justifica o sigilo de documentos cuja apuração e/ou colheita pela Comissão Parlamentar de Inquérito se deu em publicidade’. O ministro fez a mesma indicação sobre documentos que eventualmente constem nos autos que não estejam sob segredo de justiça.
Já a ministra Rosa Weber tem em seu gabinete três petições derivadas dos trabalhos da CPI da Covid: uma que apura suposto crime de charlatanismo praticado pelo presidente Jair Bolsonaro; outra que investiga o chefe do Executivo e o ex-ministro Eduardo Pazuello por possível emprego irregular de recursos públicos durante a pandemia; e outra que envolve novamente o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros.
Em suas decisões, Rosa classificou como ‘inequívoco’ o interesse da sociedade em acompanhar os desdobramentos do relatório final da CPI da Covid. No despacho relativo ao procedimento envolvendo Bolsonaro, a ministra ponderou que os processos judiciais devem tramitar, como regra, ‘em regime de ampla transparência e visibilidade, sendo submetidos ao controle das partes e da opinião pública’.
A ministra destacou que a ‘instituição de modelos normativos que consagrem o segredo como estratégia de ação do Poder’ é incompatível com a ‘forma republicana e o regime democrático de governo’. A AGU havia pedido que o procedimento em questão permanecesse sob sigilo.
Aras pediu o levantamento do sigilo das petições apresentadas à corte ligadas ao relatório final da CPI da Covid nesta segunda-feira, 21. Os procedimentos tramitam junto ao gabinete de seis ministros da corte máxima: Rosa Weber, Kassio Nunes Marques, Dias Toffoli, Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski.
Nas solicitações, o chefe do Ministério Público Federal defendeu que os autos se tornassem públicos, ‘ressalvados os elementos de prova, porventura existentes, que tenham sido obtidos pela Comissão Parlamentar de Inquérito sob reserva de jurisdição’.
Com a decisão de Kassio sobre o procedimento contra Barros, mais de 400 páginas juntadas aos autos até o momento deixam de ser sigilosas. Entre os documentos, há uma manifestação assinada pelo advogado-geral da União, Bruno Bianco, que defende o arquivamento do caso, classificado o indiciamento do líder do governo na Câmara como ‘político’.
No início do mês, a cúpula da CPI se reuniu com o presidente do Supremo, Luiz Fux, para pedir a conversão das petições de Aras em inquéritos públicos. Os procedimentos, que são preliminares, estão sob sigilo desde que foram encaminhados à corte, em novembro. Os ex-integrantes do colegiado chegaram até a considerar a apresentação de pedido de impeachment contra o PGR por não tomar providências e não agir com transparência em relação ao relatório da comissão.
Sob pressão e acusações de alinhamento com o governo Jair Bolsonaro, Aras já foi cobrado até por ministros do Supremo. Diferentes integrantes da corte já pediram do procurador-geral da República informações e posicionamentos em casos sensíveis ao Palácio do Planalto, inclusive jogando luz sobre as apurações preliminares abertas no âmbito do Ministério Público Federal.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/kassio-e-rosa-tiram-sigilo-de-quatro-apuracoes-derivadas-da-cpi-da-covid/
Alon Feuerwerker: O Brasil e a crise entre Rússia e Ucrânia
Alon Feuerwerker / Análise Política
O Brasil é parte do hemisfério ocidental, tem um alinhamento quase estrutural com os Estados Unidos e a Europa devido a fatores geográficos, históricos e políticos. Mas é também um membro dos Brics com ambição global, o que impõe não apenas cuidados comerciais, mas também geopolíticos.Um exemplo na recente visita de Bolsonaro à Rússia foi o apoio à pretensão de o Brasil se tornar membro permanente do Conselho de Segurança.
Após um período marcado pela introdução de fortes elementos ideológicos na política exterior brasileira, a atitude até o momento do Itamaraty diante da crise no leste europeu retoma a linha desenvolvida desde pelo menos meados da década de 1970, ainda nos governos militares: equilibrar-se entre um pró-americanismo estrutural e os novos interesses de um grande país, o Brasil, desejoso de manter certa independência nos assuntos mundiais.
O “até o momento” se deve às crescentes pressões pelo alinhamento pró-ocidental.
O elemento novo dessa guinada: os componentes mais ideológicos do governo e da sua base de sustentação parecem seguir a atitude, também até o momento, de Jair Bolsonaro, voltada a não confrontar a Rússia. Há dois componentes circunstanciais aí:
1) o fato de o governo Joe Biden não ser visto aqui nos círculos do poder como um aliado firme e
2) as boas relações estabelecidas entre Bolsonaro e o presidente russo, Vladimir Putin.
Relações que se consolidam quanto mais Bolsonaro se convence de que Putin não é propriamente de esquerda, mas um nacionalista russo que se apoia no tradicionalismo e no conservadorismo para consolidar seu projeto e seu poder. E o detalhe curioso: até outro dia, se o referencial político era Donald Trump, o ideológico era a Ucrânia pós-Maidan. Basta lembrar das faixas pela “ucranização” nas manifestações da base pró-Bolsonaro.
Há também um componente, não desprezível, de política regional. Não conviria ao Brasil uma consolidação da cooperação militar entre Rússia e Venezuela, o que introduziria um componente de instabilização na fronteira norte. Por implicar um fortalecimento relativo das capacidades militares de Nicolas Maduro em relação a nós, e também por ter, como consequência, um aumento da pressão americana sobre nossa fronteira amazônica.
Ainda sobre as relações com os Estados Unidos e a Europa, não é preciso gastar muito raciocínio para concluir que americanos e europeus apoiariam sem nenhum sofrimento uma alternativa “não-trumpista” a Jair Bolsonaro na sucessão. O PT já identificou bem esse potencial, e hoje busca repaginar-se como um partido social-democrata nos moldes europeus. Os ajustes em sua linha de política exterior falam por si.
Ainda em relação ao PT, a crise russo-ucraniana é um complicador no cenário em que o partido persegue não apenas alianças políticas ao chamado centro, mas também apresentar- se programaticamente mais distante de um perfil que poder ser descrito pelos adversários como “radical”.
Em tese, a velha tática da equidistância, do equilíbrio e do apelo a princípios gerais poderia servir de boia contra a enxurrada de pressões para um alinhamento antirusso. Mas apenas em tese, pois o equilíbrio e a equidistância hoje correm o risco real de serem caracterizados como alinhamento pró-Moscou. O esforço dos aparatos de construção da opinião pública por estes dias chega a ser inédito. Uma observação: os mesmos que criticavam as tendências antichinesas da fase anterior de nossa política externa, e pediam pragmatismo, hoje exigem o sacrifício das relações do Brasil com a Rússia.
O que não deve espantar, pois é apenas política. Será necessário observar agora os desdobramentos das múltiplas pressões sobre a posição brasileira. Cinco pontos de atenção:
• O desfecho da crise russo-ucraniana será puramente militar ou em algum momento haverá um cessar-fogo, com as partes entrando em negociações? Há movimentos do governo ucraniano em favor de aceitar a neutralidade militar exigida pela Rússia, mas no momento o presidente Vladimir Zelensky não parece ter apoio interno suficiente para fazer esse movimento sem risco.
• As eventuais pressões internas desencadeadas pelas duríssimas sanções vao minar a posição de Vladimir Putin?
• Qual será o impacto imediato sobre a economia brasileira? Até que ponto as sanções à Rússia terão consequência sobre os negócios desta com o Brasil?
• Qual será o comportamento do maior parceiro comercial do Brasil, a China, diante das sanções à Rússia? Que impacto isso terá sobre os negócios com o Brasil?
• Como reagirá o mercado global de energia, do qual a Rússia é um jogador-chave?
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Fonte: Análise Política
http://www.alon.jor.br/2022/02/o-brasil-e-crise-entre-russia-e-ucrania.html
Invasão russa embaralha esquerda e direita e dá 'nó ideológico' em bolsonaristas
Guilherme Caetano / O Globo
SÃO PAULO — Após o bombardeio russo sobre o território ucraniano na madrugada da quinta-feira, diversos atores políticos no Brasil e no exterior começaram a se manifestar — e tomar lado — sobre a guerra. Mas em meio à hesitação do presidente Jair Bolsonaro em se posicionar, diferentemente de seus pares, bolsonaristas e grupos de direita radical demonstram confusão sobre de qual lado ficar.
Nos grupos de Telegram e nos perfis bolsonaristas nas redes sociais, onde geralmente dominam os discursos prontos a favor ou contra alguma ideia, usuários vacilam em assumir quem é o certo da história. "Entre Biden e Putin, eu fico com Trump e Bolsonaro", resumiu a militante bolsonarista com 186 mil seguidores no Twitter. No aplicativo de troca de mensagens, após uma quinta-feira sem predominância de narrativas, começam a circulam mensagens a favor de cada um dos lados. Há usuários chamando os Estados Unidos de "principal instigador do conflito", enquanto outros defendem a expulsão de membros a favor de Putin desses grupos.
Leia: Bolsonaristas usam mais uma invasão de igreja de militante do PT para atacar o partido
Paulo Eneas, editor de um dos principais sites pró-Bolsonaro, chamou Putin de "ditador", posição que tem sido assumida pelos olavistas. O bolsonarista Paulo Figueiredo, comentarista da Jovem Pan, associou Biden a uma "criança" e criticou o Partido Democrata, alinhado aos fãs do ex-presidente Donald Trump no Brasil. A família Bolsonaro tem evitado tocar no assunto. Eduardo Bolsonaro se limitou a compartilhar em suas redes uma nota oficial do governo federal que "apela à suspensão imediata das hostilidades" sem condenar o bombardeio.
Parte da dubiedade se associa ao fato de a própria Ucrânia ter se tornado referência para alguns grupos de extrema-direita no Brasil. Em 2020, no auge dos acampamentos e atos pró-Bolsonaro em Brasília e outras capitais pelo país, a bandeira ucraniana era frequentemente vista entre os manifestantes.
Figuras como a militante Sara Winter, que foi presa por organizar protestos antidemocráticos, diziam querer "ucranizar o Brasil", já que o país europeu era tomado como exemplo por bolsonaristas pela forma como a extrema-direita conseguiu se organizar e agir politicamente. O termo se popularizou entre apoiadores de Bolsonaro. O deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ), base do governo na Câmara, publicou em seu Twitter em abril de 2020: "Está na hora de ucranizar o Brasil! Quem sabe o que foi feito por lá, entenderá".
Um grupo chamado "Ucraniza Brasil" ficou acampado por alguns dias no vão do Masp, em São Paulo, em 2021, antes de ser retirado pela polícia. A partir de então, passou a se organizar num grupo homônimo de 5 mil pessoas no Telegram, onde simpatizantes compartilham discursos extremistas e teorias conspiracionistas.
Nos últimos dias, esses usuários passaram a acompanhar os relatos do brasileiro Alex Silva, que participou dos atos antidemocráticos de 2020 ostentando uma bandeira da Ucrânia e chegou a ser visto como uma liderança no processo de "ucranizar" o Brasil. Silva tem enviado vídeos e informações diariamente da Ucrânia, onde ele diz trabalhar em uma academia de tiro e táticas militares.
Além das principais democracias ocidentais, estão ao lado da Ucrânia nesta guerra também partidos de extrema-direita europeus. É o caso de Jaroslaw Kaczynski, líder do partido ultraconservador Lei e Justiça (PiS), e Viktor Órban, primeiro-ministro da Hungria e líder do Fidesz. Mas, por outro lado, para embaralhar ainda mais o assunto, há também figuras odiadas pelos bolsonaristas como os presidentes Joe Biden (Estados Unidos) e Emmanuel Macron (França) — o que torna o apoio desses grupos à situação ucraniana menos categórico.
Em apoio a Vladimir Putin — ou pelo menos um esquivamento em condenar o bombardeio sem ressalvas — há outros nomes da extrema-direita, como Steve Bannon, ex-estrategista da campanha de Trump, e o próprio ex-presidente americano. Bolsonaro se encontrou com Putin em Moscou dias atrás, ocasião em que demonstrou "solidariedade" à Rússia. Após o bombardeio, o presidente preferiu se esquivar do assunto em discursos e conversas com apoiadores.
Perfil do PT do Senado posta sobre crise na Ucrânia e depois apaga publicação | Reprodução/Twitter
Mas desse lado também está parte da esquerda. O perfil do PT no Senado, por exemplo, fez uma publicação controversa no Twitter na quinta-feira: disse condenar "a política de longo prazo dos EUA de agressão à Rússia e de contínua expansão da OTAN em direção às fronteiras russas". Pouco após ser publicado, o tuíte foi deletado da rede social, e uma nova nota condenando os ataques foi publicada.
Manuela D'Avila (PCdoB), candidata a vice-presidente na chapa de Fernando Haddad na eleição de 2018, após pedir paz ao conflito, chamou as preocupações da Rússia de "legítimas" e criticou "o cerco da OTAN às fronteiras russas". Já o PCO (Partido da Causa Operária), legenda de extrema-esquerda, declarou "apoio total à ação da Rússia na Ucrânia".
Luiz Carlos Azedo: Existe muita empatia entre Putin e Bolsonaro
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Todos os homens do Kremlin — os bastidores do poder na Rússia de Vladimir Putin, de Mikhail Zygar (Vestígio), é um livro-reportagem com detalhes reveladores sobre o círculo íntimo de Putin e sua longa permanência no poder. É a história de um líder ardiloso e perigoso, mas também de um grupo que assumiu o controle da Federação Russa. Putin “se tornou rei por acaso”, levado ao poder por oligarcas e políticos regionais, que o acolheram ao mesmo tempo em que manipulavam seus medos e ambições. Com o tempo, demonstrou uma habilidade incomum para se manter no poder e assumir o controle do grupo com mão de ferro, em meio a intrigas, conspirações e muita corrupção.
Putin assumiu com apoio do grupo de Boris Yeltsin, que promoveu reformas liberalizantes radicais, contra os comunistas, que ainda eram fortes no Parlamento, cujo candidato era Ievgeni Primakov, um antiamericano radical e revanchista. Ataques terroristas em Moscou e o conflito na Chechênia catapultaram a candidatura do ex-diretor da FSB, a antiga KGB. A imagem de líder jovem e modernizador, que seduziu o público doméstico, não convenceu o Ocidente. Seu projeto inicial de integração da Federação Russa à União Europeia, inclusive à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), foi rejeitado pelo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e pela primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel.
Essa rejeição, que considerou uma humilhação, e a ambição de se perpetuar no poder levaram Putin à guinada nacionalista e autoritária que vem marcando sua trajetória, inicialmente alternando a Presidência e o cargo de primeiro-ministro com Dmitry Medvedev, que presidiu a Rússia entre 2008 e 2012. A consolidação de seu poder se deu em razão do apoio popular à ideia de restabelecer o status de potência mundial da Rússia e à agenda conservadora dos costumes, da aliança com os militares e com a Igreja Ortodoxa, e do controle dos meios de comunicação, dos órgãos de segurança, do Ministério Público e do Judiciário.
É aí que nasce a empatia entre Putin e Jair Bolsonaro, que ficou evidente na recente visita do presidente brasileiro à Rússia. Há um terreno fértil para essa aliança política pessoal. Bolsonaro não tinha um projeto político claro quando foi eleito, bafejado muito mais pela sorte do que em razão de suas virtudes. Tem o mesmo discurso nacionalista, a agenda conservadora, uma aliança religiosa fundamentalista, o apoio de setores militares e do sistema de segurança, porém não controla os meios de comunicação e o Judiciário.
O isolamento de Bolsonaro no Ocidente, antipatizado pela opinião pública e em litígio com os principais líderes mundiais, inclusive o presidente norte-americano, Joe Biden, faria de Putin um parceiro natural na cena mundial, após a viagem a Moscou, não fosse a crise da Ucrânia ter virado uma guerra quente. O verdadeiro teor da conversa privada entre Bolsonaro e Putin é um iceberg ainda, não ficou restrita à venda de carne e à compra de fertilizantes, estratégica para os dois países. Houve conversas no âmbito da cooperação tecnológica e militar, na qual a Rússia, sim, pode vir a fazer diferença. E, para a oposição, existe o fantasma da interferência de hackers russos nas eleições.
Cooperação
O silêncio de Bolsonaro em relação à guerra na Ucrânia é um sinal de que há, de fato, um pacto entre ambos, mal dissimulado pela atuação do Itamaraty e do chanceler, Carlos França, durante a crise. Na quinta-feira, Bolsonaro desautorizou o vice-presidente Hamilton Mourão, que condenou o ataque russo por desrespeitar a soberania da Ucrânia. A nota do Itamaraty pedindo a suspensão das “hostilidades” na Ucrânia, porém, não condenou a invasão. O Itamaraty disse apenas que acompanha as operações militares “com grave preocupação”.
A invasão da Ucrânia é o maior ataque de um país europeu contra outro do mesmo continente desde a Segunda Guerra. Putin ameaçou com “consequências nunca experimentadas na história” para quem interferisse, o que pode fazer escalar o conflito, ainda mais com a reação da Polônia, da Lituânia e da Suécia, que também têm históricas relações com o povo ucraniano. É uma reação sem precedentes contra a Rússia, desde o fim da antiga União Soviética. Entretanto, os países do G7 — Alemanha, França, Itália, Reino Unido, Canadá, Japão e Estados Unidos — exigiram que o governo brasileiro condenasse a invasão da Rússia à Ucrânia sem subterfúgios. No Conselho de Segurança da ONU, o Brasil votou a favor da condenação.
Na viagem a Moscou, Bolsonaro havia agradecido a Putin pela histórica oposição da Rússia à internacionalização da Amazônia. Esse é um tema sensível para as Forças Armadas, principalmente o Exército. Mas qual a razão de o vice-presidente Hamilton Mourão ter sido tão enfático na condenação à invasão da Ucrânia, mesmo correndo risco de ser desautorizado, como foi, pelo presidente Bolsonaro? Sem dúvida, devido ao alinhamento do Alto Comando do Exército com o Ocidente nesta crise da Ucrânia. Entretanto, existe outra fronteira de cooperação entre os dois países no âmbito militar: a venda de equipamentos e transferência de tecnologia em áreas estratégicas para a nossa indústria de Defesa.
Voto feminino: Brasil tem eleitorado consolidado, mas elege poucas mulheres
Marlen Couto / O Globo
RIO — Uma das principais inovações do primeiro código eleitoral do Brasil, instituído em 1932, a conquista do voto feminino, fruto da pressão de movimentos sufragistas e, ao mesmo tempo, de interesses políticos do governo provisório de Getúlio Vargas, completou 90 anos sem que o país tenha superado a baixa representação feminina em cargos legislativos e executivos. Além de permitir o voto, a mudança abriu portas para que mulheres se lançassem candidatas.
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O novo código definiu como eleitor o “cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo”, mas estabeleceu que o voto feminino não era obrigatório para mulheres sem renda. O direito pleno à participação, equiparado ao do homem, só foi obtido em 1965, ressalta a historiadora Angela de Castro Gomes, da Universidade Federal Fluminense (UFF), que explica que a voluntariedade garantiu aos homens poder para decidir se as mulheres com quem se relacionavam exerceriam o voto.
— Há um corte de gênero, em que os homens têm voto obrigatório e as mulheres têm voto facultativo, o que significou uma porcentagem menor de mulheres votando. E ainda há uma perspectiva de pensar a família como uma unidade em que a cabeça é o homem. Havia um discurso de oposição ao voto feminino, de que as mulheres que votavam eram um risco à família, porque estariam se afastando das obrigações domésticas.
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O tema já havia sido alvo de projetos de lei ao longo da Primeira República e de debates públicos na imprensa, antes mesmo de a Nova Zelândia se tornar o primeiro país a prever o direito ao voto feminino em 1893 — as propostas, no entanto, foram rejeitadas. No Rio Grande do Norte, uma lei instituída em 1927 permitiu que mulheres se alistassem. No pleito do ano seguinte, 20 participaram da votação, entre elas Celina Guimarães Vianna, mas seus votos foram considerados “inapuráveis” pela Comissão de Poderes do Senado.
— Já havia discussão, e a questão já estava posta antes. Não apareceu do nada no código. Em 1910, a figura de Leolinda Daltro já aparece no espaço público, na imprensa, com outras mulheres, com a solicitação de estender o direito de voto a todas as brasileiras, no mesmo momento em que ocorriam mobilizações do movimento de sufragistas na Inglaterra — lembra Mônica Karawejczyk, professora da PUC-RS e autora do livro “Mulher Deve Votar? O Código Eleitoral de 1932 e a Conquista do Sufrágio Feminino”.
Estratégia de vargas
Na primeira eleição com participação de eleitoras, a médica paulista Carlota Pereira de Queirós foi a única eleita deputada para a Assembleia Nacional Constituinte, na legenda da Chapa Única por São Paulo. Dos 1.041 candidatos, apenas 19 eram mulheres, entre elas estava Leolinda Daltro, fundadora 22 anos antes do Partido Republicano Feminino, dedicado à emancipação feminina.
Também pioneira na luta pelo direito ao voto, Bertha Lutz foi a segunda mulher a ocupar uma vaga no Parlamento brasileiro. Ela obteve a primeira suplência e acabou assumindo o mandato em julho de 1936, devido à morte do titular. Única mulher a votar na Assembleia Nacional Constituinte como delegada classista, grupo que representava categorias profissionais, a sindicalista negra Almerinda Farias Gama também disputou o cargo de deputada federal, mas não foi eleita.
Professora da Fundação Getulio Vargas (FGV), Jaqueline Zulini propõe outra visão sobre as motivações para a inclusão de mulheres entre os eleitores. A mudança foi acompanhada de outras reformulações, como a criação da Justiça Eleitoral e a introdução do voto secreto. Ela defende que é inegável a importância histórica de um código que se torna um pacote de reformas amplas com inovações institucionais. Por outro lado, pondera, tratou-se de uma agenda outorgada na vigência de um governo autoritário com poderes discricionários que pensava em se reconduzir ao poder e ter uma legitimação por meio das urnas.
— Não deixa de ser uma conquista, mas pesquisas chamam atenção para o fato de que a adoção do voto feminino é pautada em ambientes de revisão das regras do jogo em que há uma tentativa de se incorporar um eleitorado que é conservador. A mulher era vista como um eleitorado estratégico. O governo provisório via na incorporação das mulheres uma chance de conseguir se fazer eleito durante as eleições constituintes de 1933 — diz Zulini.
“Ainda é pouco”
O historiador Raimundo Helio Lopes, do Instituto Federal Fluminense, destaca um contexto mais amplo de expectativas sobre o fim da Primeira República e de crítica ao período anterior, marcado por interferências de oligarquias locais e fraudes, ainda que essas práticas tenham permanecido após o novo código eleitoral.
— Havia uma demanda para mudanças das regras eleitorais e do alistamento. Nessa conjuntura, coexistiram projetos distintos de constitucionalização. Vargas nessa época teve que se equilibrar entre os projetos — avalia Lopes.
Passados 90 anos, as mulheres são mais de 52% do eleitorado, mas a eleição de representantes para cargos públicos permanece um desafio. Na disputa de 2020, 17% dos municípios não elegeram vereadoras. Em outros 21%, apenas uma se elegeu. Nas câmaras municipais, elas somam apenas 16% dos assentos. O percentual se repete no Congresso Nacional, onde tem crescido lentamente ao longo das últimas décadas — especificamente na Câmara, o patamar é de 15%.
Desde 2009, os partidos são obrigados a lançar ao menos 30% de candidaturas femininas. Já a exigência de repasses proporcionais de recursos ao percentual de candidaturas só ocorreu a partir de 2018. A cientista política Débora Thomé, pesquisadora da UFF, enfatiza que as barreiras que dificultam a maior presença de mulheres nos parlamentos estão nos partidos, que têm poder de definir em quais candidaturas vão investir mais:
— Os partidos controlam as verbas e distribuem mal os recursos, colocam, em geral, dinheiro em campanhas de mulheres que já têm chance de se eleger, e não se consegue aumentar mais o percentual de eleitas. Passamos de uma deputada para 77 deputadas em 90 anos. Ainda é muito pouco.