Pablo Ortellado: O Telegram cedeu
Pablo Ortelado / O Globo
Depois de muita especulação sobre o que fazer com o Telegram, o ministro Alexandre de Moraes deu um ultimato e a empresa finalmente cumpriu uma decisão judicial brasileira. Em sua decisão, o ministro determinou a suspensão do canal do ativista bolsonarista Allan dos Santos, sob pena de multa de R$ 100.000 diários e a suspensão do aplicativo de mensagens no país, inicialmente por 48 horas. O Telegram, que sistematicamente se negava a atender decisões judiciais, cedeu e bloqueou no Brasil os canais de dos Santos. A mudança de postura da empresa terá grandes repercussões para o processo eleitoral no Brasil.
O Telegram é um aplicativo de mensagens criado pelo empresário russo Pavel Durov com o propósito declarado de proteger uma visão radical da liberdade de expressão. A empresa tomou algumas ações para isso: estabeleceu sua sede em uma jurisdição favorável e remota (Emirados Árabes Unidos) e distribuiu a guarda de dados dos seus usuários em servidores em diferentes países, de maneira que, para entregar dados íntegros, seriam necessárias decisões judiciais em diversas jurisdições. Além disso, o Telegram se notabilizou por não constituir representantes nos mercados nos quais operava e não atender decisões judiciais desses países.
Nos últimos anos, à medida que a base de usuários do aplicativo crescia, crescia também a pressão de autoridades policiais e judiciais para combater atividades ilícitas no aplicativo, que iam do terrorismo à pedofilia. Até o ano passado, o Telegram fez concessões pontuais a sua defesa radical da liberdade de expressão, colaborando pontualmente com a polícia europeia em processos que envolviam terrorismo e violência. Sua postura resistente em atender a justiça fez com que o aplicativo fosse bloqueado em muitos países, a maioria deles pouco democráticos.
Tudo começou a mudar com as pressões de Alemanha e Brasil desde o final do ano passado. Na Alemanha, ameaças contra políticos e a organização de manifestações violentas levaram a polícia e a justiça alemãs a aumentar a pressão contra a empresa, chegando a ameaçar bloquear o aplicativo. No Brasil, o TSE tentou convidar o Telegram para planejar a aplicação das regras eleitorais e a empresa sequer se dignou a receber a correspondência. Depois disso, o ministro Luis Roberto Barroso começou a discutir em entrevistas o bloqueio do aplicativo e, no Congresso, o PL das Fake News retomou a tramitação com um artigo que obrigava empresas com muitos usuários a constituir representantes no Brasil, prevendo o bloqueio para quem não o fizesse.
Nas últimas semanas discutiu-se muito no Brasil como fazer o Telegram acatar ordens judiciais sem efetivamente bloquear o uso do aplicativo no Brasil, uma medida extrema que prejudicaria milhões de usuários. Na Alemanha, a pressão parece ter funcionado com o Telegram finalmente bloqueando contas e canais por determinação das autoridades do país.
A justiça brasileira estabeleceu contato com as autoridades alemãs e não se sabe, neste momento, o quanto isso colaborou para que o Telegram também atendesse a justiça brasileira. Além disso, descobriu-se, recentemente, que o Telegram tinha constituído advogados no país para proteger seus interesses em propriedade intelectual. Foi essa empresa de advogados que o ministro Alexandre de Moraes citou na sua decisão.
O cumprimento de uma decisão judicial brasileira abre um precedente que pode ter grandes consequências para o processo eleitoral. Nos últimos anos, os bolsonaristas vêm construindo um sólido ecossistema de grupos e canais no Telegram complementando a rede de grupos de WhatsApp que criaram desde 2018.
Além dos usos lícitos para mobilização e propaganda, esses grupos e canais têm sido usados para difundir informações falsas que tentam minar a confiança dos eleitores nas urnas e no sistema eleitoral brasileiro. Há motivo para supor que esses grupos e canais vão ser cada vez mais utilizados para sabotar a confiança nas eleições e, em caso de derrota de Bolsonaro, mobilizar ativistas para contestar o resultado. Com o estabelecimento deste precedente, esses grupos e canais podem agora ser monitorados e eventuais ações ilícitas podem ser punidas antes que seja tarde demais.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/artigo-telegram-cedeu-25412831
Celso Rocha de Barros: Invasão da Ucrânia é má notícia para a esquerda e motivo de confusão na direita
Celso Rocha de Barros / Folha de S. Paulo
No que se refere à invasão da Ucrânia por tropas russas, duas coisas devem ser óbvias para a esquerda latino-americana: em primeiro lugar, ninguém precisa nos explicar que os Estados Unidos também são capazes de agressões imperialistas. Em segundo lugar, ninguém aqui aceita a ideia de que potências nucleares têm o direito de invadir países vizinhos que tentam sair de suas áreas de influência.
A Ucrânia é um país soberano que deve ter suas fronteiras preservadas.
Qualquer outra posição dentro da esquerda está errada. Não, uma vitória russa não será um triunfo do anti-imperialismo; será uma vitória do imperialismo russo.
Não, um fortalecimento do imperialismo russo não aumentará a margem de manobra dos países mais pobres para extrair concessões econômicas dos impérios em disputa: a Rússia continua sendo um país com graves problemas econômicos que não está em condições de ajudar ninguém.
E, pelo amor de Deus, uma vitória russa não representará progresso para os ideais de esquerda. Isso já não era verdade na época da União Soviética: a exportação da revolução pelos tanques soviéticos foi sempre uma tragédia. Mas no caso do regime russo atual a ideia é francamente bizarra: Putin é um conservador militarista que governa aliado a oligarcas.
Sim, com todos esses problemas, a Rússia pode ser um aliado na formação de um mundo multipolar. Mas se você acha isso, a guerra é uma tragédia: um aliado potencial do multipolarismo se enfiou em um conflito que pode lhe tirar legitimidade na arena internacional por muitos anos.
Por fim, há gente comemorando a invasão como desafio à ordem internacional pós-Guerra Fria. Na verdade, o que se viu na esfera internacional nos últimos anos foi o seguinte movimento: tudo que a globalização capitalista tem de mais selvagem —superexploração da força de trabalho, degradação ambiental, especulação financeira— prolifera livremente.
O que entrou em crise foram os esforços de tornar esse processo um pouco mais civilizado, como a ONU ou a União Europeia. A invasão reforça essa tendência.
Enfim, a invasão da Ucrânia foi uma notícia muito ruim para quem defende os valores da esquerda ou para os liberais que esperam que o capitalismo seja acompanhado das instituições de uma sociedade aberta.
Para quem defende as versões mais reacionárias do capitalismo, porém, alguma confusão ideológica diante da guerra na Ucrânia é compreensível.
Na semana passada, políticos e comentaristas de extrema-direita americanos, como Steve Bannon, elogiaram o atual regime russo: segundo Bannon, na Rússia as pessoas sabem em que banheiro ir, sem essa história de transgênero.
Não é por acaso, portanto, que o bolsonarismo ficou atordoado com a invasão da Ucrânia. Bolsonaro havia acabado de ir à Rússia proclamar-se "solidário" a Putin; mas seus militantes sempre defenderam "ucranizar" o Brasil, referindo-se às táticas da extrema-direita ucraniana.
Bolsonaro gostaria de unir-se à Otan, como o governo da Ucrânia, mas também gostaria de instaurar uma ditadura como a de Putin.
Sonha exatamente com o capitalismo sem civilização que vem ganhando espaço, mas não tem coragem de desafiar os Estados Unidos. Como Steve Bannon diante do banheiro, Jair ficou paralisado pela dúvida e sujou as próprias calças.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/celso-rocha-de-barros/2022/02/invasao-da-ucrania-e-ma-noticia-para-a-esquerda-e-motivo-de-confusao-na-direita.shtml
Negociações entre Ucrânia e Rússia começam na Belarus enquanto guerra entra no 5º dia
Patricia Pamplona / Folha de S.Paulo
Depois de uma madrugada de mais explosões em diferentes partes da Ucrânia nesta segunda-feira (28), as atenções no quinto dia de guerra voltam-se a Gomel, pequena cidade da Belarus que recebe enviados dos presidentes Vladimir Putin e Volodimir Zelenski em uma mesa de negociação.
Moscou e Kiev concordaram no domingo em se sentar para negociar, e o governo da Ucrânia chegou a dizer que a ofensiva russa contra suas principais cidades diminuiu o ritmo. Mas os relatos de ações militares brutais em cidades como Kiev e Kharkiv, as maiores da Ucrânia, continuam se acumulando.
A depender das condições do Kremlin, Zelenski pode acabar assinando sua rendição. O gabinete do líder ucraniano, porém, afirma que o objetivo é buscar um cessar-fogo e a retirada das tropas russas.
Inicialmente, o presidente rejeitou a iniciativa. Em um pronunciamento, disse que seria possível conversar na Belarus se os russos não tivessem usado a ditadura aliada como uma das bases para seu ataque —justamente contra Kiev, a menos de 200 km da fronteira sul belarussa.
O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, não disse o que a delegação de seu país vai exigir. Nesta segunda, afirmou que Moscou está interessado em chegar a um acordo e lamentou que a negociação não tenha começado ainda no domingo. Já o chanceler ucraniano, Dmitro Kuleba, afirmou que a Rússia aceitou o encontro sem precondições, o que seria resultado da resistência imposta pelo país aos invasores.
Na manhã desta segunda (madrugada em Brasília), o Ministério das Relações Exteriores da Belarus publicou nas redes sociais a foto de uma grande mesa com bandeiras russas e ucranianas em sinal de que estava pronto para receber as delegações dos dois países em conflito.
A comitiva ucraniana chegou a Gomel poucas horas depois. Antes, Zelenski publicou um vídeo em que pede aos militares russos que entreguem suas armas. "Abandonem seus equipamentos. Não acreditem em seus comandantes, não acreditem em seus propagandistas. Salvem suas vidas", disse ele, em russo.
O governo ucraniano afirmou, mais cedo, que Kiev apresentava um cenário mais tranquilo, diferente do visto nos últimos dias, quando a ofensiva russa cercou a cidade. Ainda assim, o Reino Unido diz que forças de Moscou permanecem 30 km ao norte e são contidas pelos ucranianos que defendem Hostomel.
Os combates também continuam em Chernihiv, no norte, onde um prédio residencial foi atingido por um míssil, o que causou um incêndio. Na região, o aeroporto de Jitomir também foi alvo durante a madrugada, segundo as forças de Kiev. O lançamento teria sido feito da Belarus, apesar de o país ter dito que não permitiria ataques a partir do seu território, em meio à expectativa da negociação entre as comitivas.
Segundo a imprensa ucraniana, os militares do país atribuíram uma eventual queda no ritmo da ofensiva à própria resistência. "Todos os esforços russos para ocupar [Kiev] falharam", disseram as Forças Armadas. O discurso foi corroborado pelo Ministério da Defesa do Reino Unido, segundo o qual "falhas logísticas e a firme resistência ucraniana continuam a frustrar o avanço" de Moscou.
Por outro lado, o Ministério da Defesa da Rússia afirmou ter tomado as cidades de Berdianski e Enerhodar, além da planta nuclear de Zaporijchia, segundo a agência de notícias Interfax. As autoridades locais ucranianas relataram ainda combates em Mariupol, mas Kiev nega ter perdido o controle da usina nuclear.
Além da conversa em Gomel, outro diálogo aguardado nesta segunda é o do presidente americano, Joe Biden, com aliados dos EUA para "coordenar uma resposta unida", segundo a Casa Branca divulgou na noite de domingo. O governo do democrata não deu detalhes sobre quem participaria do encontro, previsto para as 11h15 em Washington (13h15 em Brasília), mesmo horário em que a Assembleia-Geral da ONU debate uma resolução para condenar a invasão russa.
Uma medida do tipo já foi vetada por Moscou no Conselho de Segurança. Assim, na prática, a resolução serviu apenas para que os países mostrassem seu descontentamento com a iniciativa de Vladimir Putin sem gerar ações imediatas. O Ocidente tem adotado diversas medidas para reagir a Moscou, com sanções que incluem a proibição do uso do espaço aéreo por aeronaves do país e a desconexão de bancos russos do sistema internacional de transferências financeiras.
As sanções já levaram a uma queda de 15% do rublo em relação ao dólar e ao euro na abertura do mercado em Moscou nesta segunda, e a moeda só não caiu mais porque o Banco Central russo interveio.
Neste domingo, o G7 também ameaçou a Rússia com novas medidas, e o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, garantiu que o grupo das principais economias do mundo estava "totalmente alinhado" contra a invasão da Ucrânia. As críticas aumentaram após Putin colocar suas forças nucleares em alerta —o governo britânico, no entanto, não viu grandes mudanças na postura nuclear russa.
Nesta segunda, o chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, disse que o bloco não iria se engajar em uma escalada em reação à atitude do mandatário russo. O presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, afirmou, porém, que a UE irá debater o ingresso da Ucrânia, o que pode alimentar as tensões. Zelenski pediu o acesso imediato ao bloco europeu sob um procedimento especial.
A neutralidade da Ucrânia é o ponto principal das demandas feitas por Putin. O russo quer evitar que Kiev integre a Otan, a aliança militar ocidental, e, por tabela, a União Europeia.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/02/explosoes-atingem-kiev-e-kharkiv-mas-ucrania-ve-ofensiva-da-russia-diminuir-ritmo.shtml
Mobilizações das polícias estimulam candidaturas a governador e senador
Levy Teles / O Estado de S.Paulo
Mobilizações policiais por melhorias nas condições salariais e de trabalho e paralisações ressurgiram pelo Brasil a sete meses da eleição presidencial. O recrudescimento dos movimentos das forças de segurança nos Estados deverá ter reflexo nas disputas deste ano. O Estadão identificou, até o momento, pelo menos 11 possíveis candidatos com origem nas polícias Civil e Militar e nas Forças Armadas nas eleições majoritárias – a governo do Estado e ao Senado.
A Região Nordeste tem a maior parte dos nomes (6), com destaque para o Ceará, onde Capitão Wagner (PROS) – que foi derrotado na disputa pela prefeitura de Fortaleza, em 2020, numa votação parelha – deverá se candidatar ao governo do Estado. A expectativa é de que Wagner polarize a eleição contra o candidato do grupo do PT/PDT, que terá o apoio do atual governador, Camilo Santana (PT).
No Estado, a outra candidatura policial é a do vereador de Fortaleza Inspetor Alberto (PROS), que deverá concorrer ao Senado. Ex-policial civil, Alberto é simpático à pauta bolsonarista, posa com ministros do governo em fotos e tem o apoio de líderes aliados ao Palácio do Planalto.
Em 2020, um motim de policiais militares no Ceará levou a episódios de violência – o senador e ex-governador Cid Gomes (PDT) foi atingido por dois tiros quando tentava invadir o 3.º Batalhão da PM em Sobral com uma retroescavadeira. Oito PMs foram excluídos da corporação e mais 351 policiais identificados como participantes do motim respondem a processos administrativos disciplinares.
O governador de Roraima, Coronel Marcos Rocha (PSL), é o único entre os ex-policiais que vai disputar a reeleição ao Executivo estadual. Além de Ceará e Roraima, candidaturas ligadas às forças de segurança e às Forças Armadas devem ser lançadas em Sergipe, Alagoas, Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Goiás e Rio Grande do Sul – neste Estado, o atual vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, será candidato ao Senado pelo Republicanos.
Pauta federal
É na categoria de ex-policiais, porém, que está a grande maioria das pré-candidaturas majoritárias. Vereador em Maceió, Delegado Fábio Costa quer se candidatar ao Senado. Para isso, deverá deixar o PSB. “Já fui bombeiro militar e agora sou delegado”, observou. “Estou tendo que dialogar com personagens da política para conseguir viabilizar.”
O presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima, afirmou que 2018 representou um ponto de inflexão para a classe policial – que mantém olhos atentos à Câmara dos Deputados. “O lugar político de excelência das polícias até 2018 eram as Assembleias Legislativas, porque é onde está o dia a dia da agência da polícia”, disse Lima. Depois, segundo o pesquisador, “as associações perceberam que muitos dos obstáculos criados na modernização da gestão da segurança, das condições de trabalho, eram temas de pauta federal”.
Na avaliação de Lima, no Congresso é possível também defender uma agenda de costumes predominantemente conservadora. “Não é nenhuma novidade que policiais tenham uma aderência maior aos temas conservadores. É algo observado globalmente.”
De acordo com levantamento do 14.º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 25.452 policiais e integrantes das Forças Armadas foram candidatos entre 2010 e 2020; 87,6% dos candidatos nas eleições de 2020 são vinculados a partidos de direita e centro-direita. Ainda segundo o estudo, até 2018, 1.860 foram eleitos, e, em toda a década, 94,5% dos candidatos eram homens. Nas eleições de 2018, 32 deputados federais e quatro senadores foram eleitos e passaram a compor a representação da categoria no Congresso.
Classe
O deputado Subtenente Gonzaga (PDT-MG) afirmou que a eleição do presidente Jair Bolsonaro, em 2018, impulsionou vitórias na Câmara dos Deputados e nas Assembleias Legislativas. Segundo ele, porém, a participação política dos policiais não está necessariamente atrelada a Bolsonaro. “A politização dos profissionais de segurança é um processo de organização da classe”, disse Gonzaga.
Nos últimos dois meses, houve movimentos de paralisação de forças da Polícia Civil ou Militar em pelo menos três Estados: Minas Gerais, Pernambuco e Rio Grande do Norte, com pressões intensas na Paraíba e em Sergipe.
Há uma semana, cerca de 30 mil manifestantes estiveram em assembleia-geral em Belo Horizonte e deflagraram paralisação policial no Estado – o movimento foi considerado “referência” por associações de praças da PM e por sindicatos da Polícia Civil pelo País.
Em Sergipe, uma mobilização que já durava mais de um ano indicava uma possível formação de greve estadual. Antes da realização da assembleia-geral que estava marcada para a quinta-feira passada, líderes do movimento se encontraram com Gonzaga, uma das principais vozes do movimento em Minas. Tanto em Sergipe como em Minas, os Tribunais de Justiça estaduais determinaram a impossibilidade de paralisação, com multa aos movimentos em caso de continuidade.
Para entender
Legislação
Paralisações e protestos contra superiores são vedados pela lei a policiais e a bombeiros militares. De acordo com o regulamento, podem configurar motim.
Supremo
Em 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou que servidores que atuam na área da segurança pública (incluindo agentes civis) não podem entrar em greve.
Constituição
Em Minas Gerais, o próprio comandante-geral da PM, Rodrigo Sousa Rodrigues, deu aval à participação de policiais da ativa no protesto por reajuste salarial. A manifestação teve adesão até de policiais da ativa e armados. A Constituição proíbe atos com participantes armados.
Reflexo
Especialistas em segurança voltam a temer que o movimento em Minas reacenda a onda de motins no Brasil. Mobilizações de integrantes das forças de segurança também devem ter reflexo nas eleições, com candidaturas ligadas às polícias Civil e Militar e às Forças Armadas.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,mobilizacoes-das-policias-estimulam-candidaturas-a-governador-e-senador,70003993574
Luiz Carlos Azedo: Ocidente e Oriente estão em luta pela hegemonia na Ucrânia
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Quando Alexander Hamilton exortou os norte-americanos a decidirem se “as sociedades humanas são mesmo capazes de constituir um bom governo, com base na reflexão e na escolha, ou se estão condenados para sempre a ter organizações políticas que são fruto do acidente e da força” (O Federalista, nº 1), em 1787, no debate que levou à consolidação a Constituição dos Estados Unidos, traçou o curso da linha divisória que separa o Ocidente democrático do resto do mundo. Os países que foram capazes de seguir esse caminho constituíram bons governos e foram adiante, ampliando consideravelmente a sua influência mundial; os que tomaram outro rumo, como a Alemanha nazista e, mais recentemente, a antiga União Soviética, amargaram o declínio, a disfunção e/ou o colapso.
Entretanto, depois da débâcle dos regimes comunistas do leste europeu, as democracias do Ocidente começaram a enfrentar uma crise de representação sem precedentes, provocada pela revolução tecnológica que elas próprias protagonizaram e as dificuldades de sustentar um modelo de Estado que se baseava muito mais no fabianismo, uma doutrina liberal-socialista, do que no Leviatã de Thomas Hobbes, o Estado liberal clássico. O Estado de bem-estar social, que fora fundamental para suplantar o chamado “socialismo real”, entrou em crise. Com isso, a democracia representativa passou a ter dificuldades para acompanhar as mudanças de uma economia globalizada.
É aí que entram em cena um pequeno país asiático e um gigante de dimensões continentais. A pequena Cingapura, que fora governada por Lee Kuan Yew por 30 anos e hoje é comandada por seu filho mais velho, Lee Hsien Loong, e a China de Deng Hisiao Ping, hoje liderada por Xi Jinping, operam um processo de modernização com resultados surpreendentes, a partir de governos autoritários, que passou a ser referência para diversos países no mundo. Inicia-se, assim, uma corrida para reinventar o Estado, na qual muitas vezes a democracia e o Estado de bem-estar social estão de mãos dadas numa rota suicida, por causa do populismo e do inchaço dos governos; em outras, em confronto aberto, no Estado mínimo, igualmente perigoso, devido às desigualdades.
Na China, os gestores buscam inspiração no Ocidente, miram o Vale do Silício, nos Estados Unidos, para reinventar o capitalismo; porém, olham para Cingapura na hora do “aggiornamento” do seu governo. A cidade-estado adota o sistema Westminster de governo unicameral, ou seja, é uma república parlamentar. O Partido de Ação Popular (PAP) ganhou todas as eleições desde a concessão britânica de autonomia interna em 1959. O país tem o terceiro maior poder de compra per capita do mundo, é um dos mais ricos do planeta.
Fim da História
Liderada pelos Estados Unidos, desde o colapso do comunismo europeu, a ideia hegemônica no Ocidente é de que a democracia é um credo universal, basta extirpar a tirania para que se enraíze; e que democracia e capitalismo são siameses, a livre escolha de uma parte não existe sem a da outra. Essas são as premissas básicas do famoso ensaio O fim da História, de Francis Fukuyama, o filósofo e economista norte-americano.
Democracia liberal e capitalismo, porém, não têm uma relação automática, e a equação capitalismo, autodeterminação e globalização não é de fácil solução. Mesmo nos Estados Unidos e na Europa, a democracia está sendo posta à prova por forças autoritárias e “iliberais”, que buscam a modernização conservadora. Não à toa o fantasma republicano de Donald Trump ronda o governo do democrata Joe Biden.
Na corrida entre governos democráticos e autoritários para reinventar o Estado e modernizar a economia, entre os quais algumas monarquias sanguinárias aliadas aos Estados Unidos, destacam-se a emergência da China, como segunda maior potência econômica do planeta, e a ascensão da Alemanha e da França como líderes de uma Europa Ocidental economicamente unificada. A resposta de Donald Trump nos Estados Unidos fora iniciar uma guerra comercial com o gigante asiático, ao mesmo tempo em que buscava e estimulava a adoção de um modelo político “iliberal” para acelerar o processo de modernização no Ocidente. Esse curso foi interrompido pela vitória de Joe Biden, que trouxe a maior potência econômica e militar do planeta para o eixo da reafirmação de sua hegemonia mundial, aliada à Inglaterra no Atlântico, e à Austrália, ao Japão e à Índia no Pacífico, num pacto militar para isolar a China.
O resultado foi a reaproximação entre a Rússia, que recrudesceu sua doutrina geopolítica ao invadir a Ucrânia, e a China, empenhada em levar a Nova Rota da Seda ao coração da Europa. O confronto entre Ocidente e Oriente está novamente instalado. No lugar do mundo globalizado e multipolar, que se desenhava a partir das disputas comerciais, estabeleceu-se uma nova bipolaridade, que se sustenta no equilíbrio estratégico-militar dessas potências nucleares e tem como divisor de águas a narrativa da democracia como modelo de vocação universal, como exortou Hamilton.
Fake news: Canais bolsonaristas usam brechas do YouTube para seguir no ar
Marlen Couto / O Globo
Brechas nas regras estabelecidas pelo próprio YouTube têm permitido que canais com vídeos removidos sucessivamente por desinformação sobre a Covid-19 sigam no ar. Em parceria com a consultoria Novelo Data, O GLOBO identificou que, nos casos do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e do pastor Silas Malafaia, bloqueios para a postagem de novos conteúdos não foram aplicados mesmo com a reincidência no desrespeito às normas internas.
Levantamento da consultoria mostra que Flávio já teve quatro vídeos retirados do ar pela plataforma — o primeiro episódio aconteceu em julho de 2020, e o segundo, em janeiro do ano passado. Os dois casos mais recentes de exclusão ocorreram em dezembro de 2021, com intervalo de 20 dias. Ao menos três deles abordavam a Covid-19, o que sugere violação da política do YouTube sobre o assunto.
Em nota divulgada após a última remoção, a plataforma disse que se tratava do primeiro aviso ao canal. Os dados da Novelo indicam, porém, que a conta do senador já tinha sido alvo de remoções antes e, portanto, deveria ter sido punida ao menos com um bloqueio de sete dias, o que não aconteceu. Procurado, o YouTube não esclareceu o critério adotado.
Situação semelhante ocorre em relação ao canal de Malafaia, que também teve quatro vídeos excluídos. As duas últimas remoções ocorreram nos dias 12 e 13 de janeiro, após ataques à vacinação infantil. Considerando as regras da rede, o canal deveria ter sido alvo, pelo menos, de um bloqueio de duas semanas. O YouTube também não comentou o critério adotado neste caso. Ao todo, o levantamento da Novelo mapeou 41 vídeos tirados do ar nos últimos 90 dias em 33 canais bolsonaristas — ao menos 22 publicações tratavam da Covid-19.
As regras do YouTube estabelecem que a punição a um canal pode acontecer por violações recorrentes ou depois de uma infração grave, como spam e pornografia. No caso das normas sobre a Covid-19, há um sistema de avisos. O modelo, porém, permite que um perfil descumpra seguidamente os parâmetros e receba advertências mais brandas, como bloqueios temporários, sem risco de exclusão permanente, caso as remoções ocorram fora de um intervalo de 90 dias.
Na primeira violação, é emitido um alerta, enquanto na segunda vez, há o impedimento de postar novos conteúdos por sete dias. No terceiro episódio (caso ocorra dentro de 90 dias, contados a partir da primeira ocorrência), a restrição de publicação se estende por 14 dias. Por fim, se o dono do perfil cometer outra infração no mesmo período de 90 dias, o canal é removido permanentemente. Ao longo desse processo, os canais podem recorrer das remoções, o que pode reverter as punições e “zerar” a contagem.
— É possível fazer um cronograma em que você nunca acumule três avisos em 90 dias — resume o pesquisador João Guilherme Bastos, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital.
YouTube reitera regras
Os dados da Novelo Data indicam que outros cinco canais bolsonaristas podem ser alvos de remoções e bloqueios se infringirem as regras da plataforma nas próximas semanas. É o caso da médica Roberta Lacerda, que já teve seu perfil excluído do Twitter por compartilhar mensagens falsas sobre a vacina contra a Covid-19. A conta já soma três remoções entre janeiro e fevereiro. Em tese, uma nova remoção pode levar ao banimento da plataforma.
Também está sujeito a punição o canal dos médicos Albert e Carla Dickson, defensores do uso de ivermectina contra a Covid-19. A conta teve dois vídeos sobre o assunto removidos desde janeiro. Outro exemplo é o canal bolsonarista Folha Política, que teve dois vídeos excluídos no fim de dezembro. Em outubro de 2021, o próprio presidente Jair Bolsonaro ficou impedido de publicar por sete dias.
Sócio da Novelo Data, Guilherme Felitti acrescenta que há necessidade de mais transparência nas normas de combate à desinformação:
— Fica difícil entender por que esses canais não são punidos ou saem do ar, se existe outra interpretação dessas regras, porque o YouTube não detalha essa informação. Outro ponto é que a gente não sabe exatamente o que levou à exclusão desses vídeos. O YouTube, quando exclui um conteúdo, apresenta informações genéricas.
Em nota, a plataforma não tratou dos casos específicos relatados e disse que os conteúdos precisam seguir as diretrizes: “Contamos com uma combinação de sistemas inteligentes, revisores humanos e denúncias de usuários para identificar material suspeito”, disse o YouTube. Flávio e Malafaia não responderam.
Deepfakes com Lula, Moro e Dilma alertam para risco nas eleições
Cada vez mais sofisticadas, técnicas de deepfake e deepdubs colocam na boca de pré-candidatos à Presidência frases que, na verdade, eles nunca proferiram. Muitas vezes, em lugares onde eles também não estiveram. Exemplo recente é um vídeo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) dizendo amar paçoca e abrindo um pote do doce, conteúdo que ganhou projeção nas redes nesta quinta-feira, 24. O "detalhe", como a própria postagem explica, é que o líder petista não falou nada daquilo, e tudo não passou de uma farsa criada em computador.
O criador da peça, o jornalista e pesquisador de deepfake Bruno Sartori, relata na publicação ter usado a tecnologia para inserir o rosto de Lula no corpo de outra pessoa e transferir o timbre de sua voz para a fala original. Ele já compartilhou outros exemplos em seu perfil, como um vídeo que simula o pré-candidato Sérgio Moro (Podemos) recitando um poema satírico e um homem falando com a exata voz da ex-presidente Dilma Rousseff. Procurado pela reportagem, Sartori não quis se manifestar.
Deepfakes, como o nome sugere - algo como "mentira profunda", em tradução livre -, é uma categoria de farsa que vai além das fake news tradicionais. Diferentemente do que ocorre nas montagens tradicionais, os personagens retratados aparecem em vídeos e podem gesticular, falar e inclusive imitar a voz das vítimas - nesse caso, a técnica se chama deepdub.
Os conteúdos são feitos por meio de inteligência artificial. Para desavisados, é muito difícil distinguir o que é real do que é falso - uma dica é se atentar para certa estranheza nas expressões faciais, discrepâncias no tom da pele, entre outras minúcias.
Segundo o pesquisador Anderson Soares, chefe do centro de inteligência artificial da Universidade Federal de Goiás (UFG), dois fatores criam o ambiente perfeito para a disseminação de deepfakes. Primeiro, o avanço das ferramentas digitais e o amadurecimento da tecnologia nos últimos anos. Segundo, o fato de haver vídeos e áudios disponíveis em abundância para que o computador recolha os dados de aparência e voz de que precisa.
Soares afirma que a tendência é que a técnica se popularize e passe a estar disponível mesmo para quem não trabalha com tecnologia nos próximos anos. Via aplicativo de celular, por exemplo - alguns já existem, como o Reface App. "Em breve, qualquer pessoa vai conseguir produzir um vídeo ou voz falsa, é questão de pouco tempo".
Entretanto, o pesquisador argumenta que o melhor caminho não é proibir o uso da ferramenta. Ela pode ser útil para melhorar a dublagem de filmes, por exemplo, e bani-la afetaria a competitividade do Brasil no ramo da tecnologia. "O caminho é que os órgãos competentes tenham agilidade para coibir práticas antiéticas, sobretudo no que diz respeito às eleições, e a sociedade precisa ser educada para reconhecer vídeos falsos", afirma.
Na campanha eleitoral de 2018, o então candidato a governador João Doria (PSDB) foi alvo de uma deepfake. À época, passou a circular nas redes um vídeo com cenas de sexo envolvendo seis mulheres e um homem, que na gravação foi identificado como sendo o tucano. O material foi explorado por adversários para enfraquecê-lo na disputa.
"Hoje eu vi um vídeo vergonhoso nas redes sociais, que foi produzido por alguém que só quer o meu mal e o mal da minha família. Uma produção grotesca. Fake news. Pedi a um perito criminal que verificasse essas imagens. Pedi também medidas judiciais e criminais contra os autores desse vídeo. Lamento muito que a campanha em São Paulo tenha chegado a esse nível de ferir a nossa família", disse o tucano naquela ocasião.
Não é difícil, hoje, encontrar esse tipo de montagem envolvendo políticos na internet. Um caso famoso foi o que simulou o presidente Jair Bolsonaro (PL) elogiando as vacinas. Outro mostra o rosto do presidente no personagem mexicano Chapolim Colorado. Também há um exemplo em que o chefe do Executivo canta a canção "Admirável Gado Novo", de Zé Ramalho; Silvio Santos já apresentou o Jornal Nacional; Lula já cantou uma música de Pabllo Vittar; e até o ex-presidente americano Donald Trump já chamou Bolsonaro de "Bolsolino".
Questiona sobre como se prepara para enfrentar vídeos falsos, a equipe de Lula afirmou que não comenta estratégias de comunicação.
Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2022/02/4989112-deepfakes-com-lula-moro-e-dilma-alertam-para-risco-nas-eleicoes.html
Paulo Fábio Dantas Neto: A esquerda brasileira e os abismos de duas esquinas
Paulo Fábio Dantas Neto / Democracia e Novo Reformismo
O fato incontornável da semana, candidato a ter longa vida, é a agressão militar da Rússia contra a Ucrânia, ato cujas causas e consequências cabe a análises especializadas detectar e estimar e cujo alcance destrutivo, nos sentidos político e humanitário, nenhum agente que exerça ou aspire exercer autoridade política, em qualquer lugar do mundo, tem direito de ignorar ou relativizar. É um novo desafio que se apresenta aos democratas brasileiros, já às voltas com uma devastação promovida por um autocrata interno. Palavras e gestos escolhidos para uma situação podem repercutir sobre a outra.
É imperativo que analistas voltados à compreensão dos cenários anterior e posterior à agressão russa usem informação qualificada, multilateral, o mais isenta possível de vieses e produzam interpretações equilibradas, dotadas de senso de objetividade. Tão imperativo quanto isso é não faltar, por outro lado, em declarações de líderes, partidos e outros agentes da política, a capacidade de se colocar, com clareza e senso de urgência, em oposição a um gesto político-militar imediato e concreto que liquida, por decisão unilateral do governo de um país, instituições e vidas humanas que importam a todos, seja no sentido da solidariedade entre indivíduos e entre povos, seja no da autopreservação de cada pessoa, ou país. São igualmente problemáticas, numa hora dessas, a contaminação ideológica de quem se propõe a ocupar o lugar de analista e a ausência, no caso de agentes políticos, da disposição subjetiva de encarar a agressão militar sob a orientação primordial de valores.
Nenhuma posição política realista precisa ou deve ser cancelada em emergências assim. Ao contrário, nessas situações-limite elas são ainda mais requisitadas, porém, o que delas se requer, como uma de suas premissas, é que não confundam uma saudável recusa à ideologia com sua diluição num varejo destituído de causas, o que denota, não política realista, apenas uma política pequena. Daí que a condenação da agressão não comporta meias palavras da parte de quem tem responsabilidade política.
Minha opinião é desprovida de pretensões analíticas do contencioso geopolítico que ora se degenera em guerra. Faltam-me informação e reflexão sistemática sobre o assunto para estar apto a tais pretensões. Mas me é possível analisar, sim, ainda que evitando assertivas fortes, a conduta de atores politicamente responsáveis, no Brasil e no exterior. Em particular, a de forças que historicamente se autodefinem como esquerda, para as quais guerra e paz – como par de opostos - constituem, por tradição, um tema político nobre, que se mantém perene após o eclipse factual da oposição entre capitalismo e socialismo. Além de nobre, tema decisivo para a esquerda brasileita, face à hipótese provável dela voltar a ser governo.
Escapa a semileigos como eu, em relações internacionais, uma plena compreensão das razões mais ou menos determinantes pelas quais a derrocada, há mais de três décadas, do chamado socialismo real - da qual o fim da URSS foi o recibo de quitação – não levou, apesar de esforços feitos nesta direção, à desmilitarização da Europa. E das razões pelas quais não houve conversão mais relevante de recursos de estados nacionais e organismos multilaterais empregados em objetivos militares, em estratégias globais de caráter econômico, social, ambiental ou cultural. Como a ideologia não pode suprir esse déficit cognitivo, a discussão segue enevoada e convoca a política para não permitir que a controvérsia derive em guerra durante o tempo em que impera. A democracia é o melhor recurso que a política pôde até aqui oferecer ao mundo para cumprir sua missão de promover convívio pacifico aos humanos do presente, sem ofender a memória dos que já morreram, nem comprometer a vida de gerações futuras.
A democracia associada a instituições liberais não é um imperativo moral que possa ser imposto, a fórceps, a sociedades que jamais a experimentaram, como se pode dizer, sem exagero, que é o caso da sociedade russa. Ela não é uma crença universal, mas é uma fórmula política universalizável. Em vários países em que se firmou também como crença, tornou-se uma evidência institucionalizada, possível de ser oferecida, como alternativa de organização política e como dinâmica processual para resolução de conflitos, a sociedades submetidas a autocracias. O método desse oferecimento precisa ser, no entanto, o mais próprio da política democrática, o da persuasão e da participação políticas, continuamente praticadas em sociedades plurais. É a democracia ganhando força pelo exemplo, mais que pela coerção.
O arranjo liberal-democrático é um achado histórico que vigora numa parte do mundo, sob sério risco. Analistas e pensadores diversos apontam uma crise da fórmula, mas quase nenhum nega a sua vigência. As raízes e saídas da crise, bem como as chances da fórmula se manter vigente são temas controversos. Na prateleira há explicações e prognósticos úteis a vários credos políticos. Mas há sempre uma escolha política a fazer entre agir para deter ou para aprofundar essa crise. Escolha limitada pelas famosas condições objetivas tão evocadas em clássicos discursos da esquerda vinculada ao tronco principal da tradição marxista. Mas ainda assim escolha, mais ou menos assumida, ou dissimulada.
O gesto agressor do regime de Vladimir Putin induz-nos à explicitação de uma escolha política. Ser institucionalmente conservador diante de contextos onde a democracia liberal prevalece, reformador onde está constrangida por instituições iliberais e subversivo onde simplesmente ela inexiste ou foi revogada por atos arbitrários internos ou de agressão externa, como pode vir a ocorrer na Ucrânia. Essa escolha implica respaldar esforços ocidentais para dissuadir o governo russo de prosseguir na agressão; em confrontar argumentos nacional-militaristas de Putin que conferem ao interesse nacional russo um suposto direito de produzir efeitos negativos globais ao agredir “preventivamente” outro país, enquanto cala, autocraticamente, a oposição interna; por fim, implica em solidariedade à Ucrânia e à resistência dos que, naquele país, se opuserem à agressão em curso, apontando sempre a diplomacia e a pressão política como vias adequadas para detê-la. O que por sua vez implica, para não ser discurso oco, aceitar as consequências de tal opção, entre as quais a principal é que sub ótimos são o céu que a limita. Respaldar a aliança das democracias ocidentais não resolve os seus problemas. Enfrentar Putin não anula seu poder. A solidariedade à Ucrânia e seu povo não anula o extremismo do seu atual governo.
Essa escolha política também não expressa opção ideológica ou “cultural” pelo Ocidente ou por esse ou aquele tipo de organização econômica e social. Expressa alinhamento com a paz como valor e com a democracia, como instituições e conduta. Isso, em boa hora, tem orientado posicionamentos de líderes e partidos de esquerda ocidentais para os quais seria bom que a esquerda brasileira se voltasse em busca de referência e convergência. Refiro-me, como exemplos, à posição do primeiro-ministro português António Costa, à declaração pública do seu partido, o PS, bem como à da Internacional Socialista.
Observadores agudos do quadro internacional hão de analisar essas e outras falas e textos, indo além da recepção esperançosa que lhes dedico. Mais especialmente ao pronunciamento do presidente chileno Gabriel Boric, firme, simples e abrangente, dirigindo-se, sem omissões e sem excessos ou contorcionismos verbais, aos pontos cruciais: “Rusia há optado por la guerra como medio para resolver conflictos. Desde Chile condenamos la invasion a Ucrania, la violación de su soberania y el uso ilegítimo de la fuerza. Nuestra solidaridad estará com las víctimas y nuestros humildes esfuerzos com la paz”.
É ocioso comentar o flagrante contraste das palavras do presidente do Chile com o silêncio no mínimo leniente do presidente brasileiro, que sucedeu a suas palavras e gestos públicos de simpatia dirigidos a Putin. Mais significativo é comparar a fala do jovem líder chileno com a do experimentado líder popular da esquerda brasileira que, conforme indicações de todas as pesquisas, é o político com mais possibilidades de livrar o país da hipótese de reeleição do extremista. Pode-se dizer, sem dúvida, que as posições dos dois líderes da esquerda sul-americana têm sentidos gerais convergentes. Leiamos Lula: “É lamentável que na segunda década do século 21, a gente tenha países tentando resolver suas divergências territoriais, políticas ou comerciais através de bombas, tiros e ataques, quando deveria ter sido resolvido em uma mesa de negociação. Ninguém pode concordar com guerra, ninguém pode concordar com ataques militares de um país sobre outro". Convergindo no sentido geral, as duas declarações em tuíte distinguem-se, pela presença (Boric) e ausência (Lula) do termo invasão na descrição do fato ocorrido. Também pelo anonimato dos protagonistas (Rússia e Ucrânia), no caso de Lula e pela nomeação dos bois, no de Boric.
Entre o tom explícito do chileno e o genérico do brasileiro poder-se-ia ver o efeito da maior experiência do segundo, seu maior traquejo na lida com as distinções entre política e diplomacia. Essa interpretação seria, no entanto, benevolente com Lula. Em outros momentos da mesma comunicação, divulgada por Leonardo Sakamotto, o insuspeito colunista do Uol, em 24.02, fica claro que a diferença não é o que falta, mas o que sobra na análise de Lula, em relação ao posicionamento político de Boric. Fala Lula: "A gente está acostumado a ver potências fazendo isso de vez em quando sem pedir licença. Foi assim que os Estados Unidos invadiram o Afeganistão e o Iraque. Foi assim que a França e a Inglaterra invadiram a Líbia. E é assim que a Rússia está fazendo com a Ucrânia”. Aí estão os nomes do boi agressor e do boi agredido, porém, diluídos em meio a outros bois, que pastaram em outros contextos.
Os excessos dispersores do foco não são os únicos a retirar da fala de Lula o caráter de posição política orientada por valores diante da emergência dramática de uma crise atual, para torná-la uma incursão no mundo da estratégia politicamente orientada para o médio e o longo prazos, na qual presente, passado e futuro fundem-se em ritmo de tese. Para tanto, contribui também, na mesma fala, um discurso crítico da ONU que parece remetido ao contexto em que ele governou o Brasil, ou mesmo, mais atrás, o da eclosão, em plena guerra fria, do movimento dos não-alinhados a lembrar à ONU que a geopolítica do mundo mudara no sentido de congelá-la. Como entender a evocação, em flashback, neste momento, de uma política alternativa, embora não antagônica, à do globalismo liberal, que Bolsonaro xinga e Putin desafia? É possível que, em momentos não críticos, ela conte com simpatia e até parceria de Boric. Logo, não se trata de ver entre ambos os líderes, uma divergência de fundo. Mas a que atribuir a recusa de Lula a traduzir suas intenções em política externa em tática de efetivo e decidido engajamento contra o atual agressor da paz e ao lado do presente agredido? A pergunta requer olhar o que se dá na esquerda brasileira, mormente no PT, retaguarda que Lula pode interpelar, não confrontar,
É fato que se detecta no Brasil disposição semelhante à de Boric, por parte de algumas lideranças de esquerda, como se dá no caso do deputado carioca Marcelo Freixo, que certamente não é voz solitária. Frustram, por outro lado, e até preocupam as dificuldades do maior partido da esquerda brasileira em posicionar-se como a hora exige de agentes políticos que não podem se refugiar, como se analistas fossem, nas ambiguidades certamente reais e sérias que uma situação complexa envolve. Esse dilema entre se posicionar politicamente ou escapar pela análise é que parece acossar o ex-presidente Lula. O modo como enfrentará essa esquina é de alto interesse público no momento em que sob seus ombros se depositam as expectativas de muitos brasileiros que querem ou precisam sair do beco, sem sair do país.
Produz algum alívio saber que uma desastrada nota da bancada do partido no Senado - que criticava e responsabilizava principalmente os EUA e a aliança ocidental e secundariamente a Rússia, desviando o foco do caso concreto que tensiona o mundo - foi revista e tirada de circulação a tempo. Bom saber que há no PT anticorpos contra atrações ideológicas típicas de esquerda negativa, seja a saudade da guerra fria, seja a simulação ideal de uma polaridade norte/sul. Mas fica evidente ali também a presença relevante de posições que confundem alvos num momento tão delicado da política mundial e brasileira. Um mero ponto intermediário entre o olhar grudado no retrovisor e a inspiração no que se desenha como esquerda no horizonte do nosso século ainda jovem não basta porque pode, no máximo, produzir declarações genéricas que podem ser anódinas num contexto em que até o Talibã prega que se resolva a crise “por meio de diálogo e meios pacíficos”. Antes de ceder a piadas é preciso pensar que não basta pregar paz, tem que participar e se engajar, não cumprir tabela e depois torcer contra, entre amigos.
Sem agora mais me referir a líderes ou partidos específicos, registro a percepção, fora da direita autoritária (onde esse tipo de fenômeno é, a princípio, mais esperado) de uma admiração contida pela performance guerreira de Putin em áreas gauche de nossa elite política e da nossa intelectualidade. O traço é determinante na virtual extrema-esquerda (insignificante no Brasil) mas afeta, de viés, também a esquerda política, mais ainda em suas conexões universitárias, onde incide um esquerdismo doutrinário superficialmente intelectualizado. Mesmo quando se vê como “centro-esquerda”, ele segue refém da mentalidade bipolar dos tempos da guerra fria, agora aplicada a novas polaridades. A antiga atitude política anti-imperialista recicla-se pela denúncia de um “neo-liberalismo” elástico a ponto de estigmatizar todo o campo liberal, pressionando a porta do edifício liberal-democrático que é hoje o grande alvo de Putin. Mas se o olhar ousar uma penetração mais funda cogitará que a admiração pelo seu lado de “estadista” abriga reminiscências ideológicas que independem do antiamericanismo e da aversão “cultural” ao capitalismo e ao Ocidente. Pode-se ver aversão a pecados mundanos da política liberal-democrática, desfavoravelmente comparada à potência de um líder forte para promover justiça.
Como se não nos bastassem os ataques que a democracia sofre hoje no Brasil, um problema adicional seria as cadeiras de geopolítica renderem-se ao pontificado de autocratas militaristas como Putin. Será uma lástima se, na atual quadra crítica, parte relevante da esquerda brasileira admitir retroceder à lógica e à retórica da guerra fria. Nessa hipótese, ela caberá como uma luva na máxima do poeta Samuel Coleridge, da qual Roberto Campos retirou a expressão-título do seu famoso livro "Lanterna na Popa": "(...) a paixão cega nossos olhos e a luz que nos dá é a de uma lanterna na popa, que ilumina apenas as ondas que deixamos para trás". Para personagens como Roberto Campos, um liberista tido como radical, adversário ardoroso do socialismo e desconfiado da democracia, a esquerda sempre contribuiu para esse atraso em que via o Brasil mergulhado. Diagnóstico certamente exagerado, até injusto, mas que passará a valer como profecia se, numa esquina como a de hoje, a nossa esquerda não puder olhar para o mundo das possibilidades democráticas, do qual ela própria surgiu, para receber algum oxigênio.
Putin e Bolsonaro, noves fora as não poucas nem pequenas distinções entre ambos, precisam ser encarados como símbolos atualíssimos de um mesmo desafio às possibilidades da política como via de resolução de conflitos. Sendo guerreiros da autocracia como a titular da última razão, não se pode contemporizar ou flertar com os abismos que abrem, para aguardar suas vítimas no além das esquinas.
*Cientista político e professor da UFBa
Fonte: Democracia e Novo Reformismo
https://gilvanmelo.blogspot.com/2022/02/paulo-fabio-dantas-neto-putin-em-tempo.html
Cristovam Buarque: Risco do antismo nas eleições 2022
Cristovam Buarque / Blog do Noblat / Metrópoles
O setor de relações internacionais do PT cometeu o erro de apoiar a invasão da Ucrânia pela Rússia. Esta posição se explica pelo antiamericanismo que caracteriza a visão do mundo dos petistas. Se a Rússia enfrentava os Estados Unidos, então ela estava certa. Este é o perigo do “antismo”: pensar contra sem levar em conta as especificidades que ocorrem em cada momento, sem considerar que o mundo não é apenas branco e preto, nem percebendo as mudanças que acontecem.
Da mesma forma que o antismo do PT leva a erros deste tipo, as forças democráticas têm errado, ao longo de meses, por verem a política Brasília sob o antipetismo. Sabem do risco da reeleição de Bolsonaro, mas se negam a barrar esta reeleição em aliança com o PT. Deixam também de perceber que o PT e Lula de hoje podem ser diferentes do que eram há alguns anos atrás.
Foi este antismo que levou forças democráticas a se recusarem a incluir Lula e o PT na composição de uma frente nacional contra Bolsonaro. A concepção da terceira via como uma alternativa “nem nem” poderá levar à vitória do Bolsonaro, em função do voto nulo inspirado pelo antipetismo.
Felizmente, o PT parece ter reconhecido o erro de seu setor internacional e mudado de posição denunciando a invasão da Ucrânia que agora só conta com o apoio de Bolsonaro. Felizmente também, PT e Lula percebem que para derrotar Bolsonaro e depois governar precisam de aliança com outras forças e outras visões do mundo. O PT começa a deixar de antismo contra tudo que não é PT. Está em tempo das forças democráticas perceberem que não foram capazes de construir uma alternativa eleitoralmente viável e que seu divisionismo, movido pelo antipetismo, pode ser a causa da tragédia de mais quatro anos do atual governo legitimado pelo apoio voto popular.
*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador
Fonte: Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/artigos/risco-do-antismo-por-cristovam-buarque
"Qualquer candidatura que fure a polarização sairá vitoriosa", diz Eliziane Gama
Michelle Portela / Correio Braziliense
Líder da Bancada Feminina no Senado, a senadora Eliziane Gama também almeja um papel relevante na eleições, de preferência em uma chapa majoritária. Ela espera a definição da federação que o Cidadania irá compor para saber o seu destino, mas não esconde que aceita a ideia de ser candidata à vice-presidente da República. Confira a entrevista com a senadora.
Quais as preocupações das senadoras nas eleições?
Temos certa unidade em relação aos temas que nos tocam, como violência contra a mulher, mercado de trabalho, igualdade na representação política, mais mulheres na política, enfim, teses históricas. Acredito que, neste ano, precisamos intensificar o debate sobre participação das mulheres nas chapas majoritárias. Atualmente, temos uma governadora e sete vices, mas podemos ousar. E, com isso, insistir para ampliar a nossa participação no Congresso Nacional.
O que está sendo feito para impedir candidaturas laranjas de mulheres?
Temos problemas em relação a isso. Mas, se compararmos as candidaturas laranjas masculinas e femininas, na verdade, nem podemos comparar. Mas precisamos ampliar esse debate comprometendo os homens, sensibilizando, evitando que retirem mulheres desses espaços. E temos os efeitos da cota de mulheres e do Fundo Eleitoral, que agora destina recursos específicos para campanhas de mulheres. Por meio desse esforço, o número de deputadas dobrou na Câmara, e tivemos maior representação também no Senado. Isso mostra que as políticas públicas estão no caminho certo. Queremos desdobrar esses resultados com mais deputadas estaduais, federais e senadoras. E, como eu disse, ampliar a presença de mulheres em chapas majoritárias.
A senhora pretende ser uma dessas representantes?
Meu partido tem candidato a presidente, o senador Alessandro Vieira. No entanto, tenho colocado meu nome à disposição e estarei aí para defender. É importante participar. Estou na política há 15 anos. Percebo o quanto isso repercute em outras mulheres também. Quanto mais espaço você ocupa, mais responsabilidade se tem no que representa. Lógico que também temos a candidatura da Simone (Tebet) à frente, e que seria muito interessante ver duas mulheres numa chapa majoritária.
E quem seria o presidente ideal numa chapa com a senhora?
Estamos discutindo a federação com outros partidos. Temos algumas pessoas do campo democrático que, tenho certeza, poderiam assumir a presidência. Ciro Gomes (PDT) é bastante viável. Temos conversado com o PSDB, partido com o qual mais temos chance de federar, e também acho uma boa candidatura. Não podemos esquecer do Moro. Temos de construir uma candidatura que unifique o campo democrático e seja capaz de vencer a polarização entre Lula e Bolsonaro.
Essa via tem chance de vencer as eleições?
Acredito imensamente que qualquer candidatura que fure a bolha da polarização sairá vitoriosa. Bolsonaro só vence se for ao segundo turno com Lula, e vice-versa. Temos de chegar ao segundo turno unidos e construir a candidatura da vitória.
Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2022/02/4989039-qualquer-candidatura-que-fure-a-polarizacao-saira-vitoriosa-diz-eliziane-gama.html
As faces da guerra entre a Rússia e a Ucrânia e seus reflexos para o Brasil
João Rodrigues, da equipe da FAP
Na madrugada de 24 fevereiro de 2022, a Rússia deu início à invasão contra à Ucrânia. Os ataques ocorrem por terra, ar e mar. Kiev e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) falam em ocupação total do território ucraniano.
Para analisar as faces da guerra no Leste Europeu, o podcast da Fundação Astrojildo Pereira (FAP) conversa com o analista político Creomar de Souza, CEO da Dharma Political Risk and Strategy, consultoria de análise de risco político sediada em Brasília.
Ele é historiador de formação, mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e participou do programa de Doutorado em Política Comparada também pela UnB. Atualmente é também professor convidado na Fundação Dom Cabral, colunista de política do Canal MyNews e figura recorrente no jornal da CNN Brasil.
O fracasso da diplomacia internacional, as ambições pessoais do presidente da Rússia, Vladimir Putin, e os reflexos da crise militar para o Brasil estão entre os temas do programa. O episódio conta com áudios do Diário do Nordeste, Jornal da Globo, UOL, Bom dia Brasil e BBC News Brasil.
Além de eventuais edições extras, o Rádio FAP é publicado semanalmente, às sextas-feiras, em diversas plataformas de streaming como Spotify, Google Podcasts, Youtube, Ancora, RadioPublic e Pocket Casts. O programa tem a produção e apresentação do jornalista João Rodrigues.
Apib e Amazon Watch denunciam ‘farsa de mineradoras’ na Amazônia
Leanderson Lima / Amazônia Real
Manaus (AM) – A quarta edição do relatório “Cumplicidade na Destruição” se autoexplica por seu título completo: “Como mineradoras e investidores internacionais contribuem para a violação dos direitos indígenas e ameaçam o futuro da Amazônia”. Divulgado pelas organizações Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e Amazon Watch na manhã desta terça-feira (22), o relatório evidencia que a mineração está longe de ser uma atividade artesanal, como defende o presidente Jair Bolsonaro (PL). Ela avança “vorazmente” sobre terras indígenas e unidades de conservação e é bancada por grandes conglomerados que movimentam bilhões de dólares que recebem dinheiro de financiadores privados e públicos brasileiros e estrangeiros.
Segundo o relatório da Apib e da Amazon Watch, até novembro do ano passado, foram identificados 2.478 pedidos de mineração ativos sobrepostos a 261 terras indígenas no sistema da Agência Nacional de Mineração (ANM), o que é proibido por lei. Tais processos estão em nome de 570 mineradoras, associações de mineração e grupos internacionais que “requerem explorar uma área de 10,1 milhões de hectares, quase o tamanho da Inglaterra”, alerta.
O relatório nomina nove das maiores mineradoras em atuação na Amazônia: Vale, Anglo American, Belo Sun, Potássio do Brasil, Mineração Taboca e Mamoré Mineração e Metalurgia (as duas do Grupo Minsur), Glencore, AngloGold Ashanti e Rio Tinto. E mostra que gestoras de capitais como BlackRock, Vanguard e Capital Group – com sede nos Estados Unidos – investiram 14,8 bilhões de dólares nas mineradoras com interesses em Terras Indígenas (TIs). As instituições financeiras brasileiras Previ (Caixa de Previdência de Funcionários do Banco do Brasil) e o Bradesco injetaram outros 11,8 bilhões de dólares nas empresas de mineração.
Vale e a Anglo American, citadas no relatório, afirmaram recentemente que não teriam mais interesse em atuar em TIs. Porém, a Apib e a Amazon Watch verificaram que milhares de requerimentos minerários (a primeira etapa para explorar um mineral no Brasil) seguem ativos, portanto válidos, na base de dados da ANM.
Para lideranças indígenas ouvidas pela Amazônia Real, o relatório deixa claro um falso discurso das empresas, mostrando na prática que elas continuam incentivando o garimpo na região amazônica. “Eu analiso como uma farsa, uma mentira que as empresas inventam. Porque eles falam uma coisa e, por trás, eles armam outra, armam as mentiras”, afirmou a coordenadora da Associação Indígena Pariri, e vice-coordenadora da Federação dos Povos Indígenas do Estado do Pará (Fepipa), Alessandra Korap Munduruku.
“Essa questão de dizer: ‘Ah, estamos protegendo a floresta, estamos preocupados com as mudanças climáticas’, isso é uma mentira. É uma farsa porque eles querem o dinheiro financiado pelos bancos para destruir o nosso território. Território que tem povo, tem floresta, tem rio, tem criança e muita luta”, pontua Alessandra, liderança constantemente ameaçada por causa de sua luta contra garimpo, hidrelétricas e atividades de extração de madeira nas terras indígenas na bacia do rio Tapapós.
Outros bancos privados internacionais como Crédit Agricole (França), Bank of America e Citigroup (Estados Unidos), Commerzbank (Alemanha) e SMBC Group (Japão) também aparecem no relatório “Cumplicidade na Destruição”. O levantamento mostra, por meio de cinco exemplos, que as violações praticadas por algumas mineradoras seguem em ritmo acelerado no último ano, “com forte apoio do governo Bolsonaro e contando com financiamento do grande capital internacional”.
Os 2.478 requerimentos minerários ativos na ANM estão em nome de 570 mineradoras, associações de mineração e grupos internacionais. Quase metade desses pedidos (1.085) são para explorar ouro na Amazônia. Embora o número total de requerimentos tenha despencado quase pela metade, em relação ao terceiro relatório, as empresas estão se valendo de artimanhas para continuar a atividade mineradora.
Retirada de interferência
“Mesmo com o anúncio da desistência de requerimentos feitos pela Vale e pela AngloAmerican, muitos pedidos foram redesenhados para áreas nos limites das terras indígenas, o que segue trazendo os impactos negativos da mineração para os territórios”, diz a coordenadora executiva da Apib, Sônia Guajajara.
O relatório indica que a ANM está refazendo o polígono da região pretendida pelas empresas mineradoras, na prática excluindo a área sobreposta a uma TI. Porém, nesse novo traçado o garimpo fica bem no entorno das áreas que deveriam ser protegidas. “Essa manobra tem feito com que pedidos até então parados na ANM voltem a tramitar e que a agência comece a publicar autorizações de pesquisa em nome das mineradoras”, diz o relatório. Esse truque permite às empresas se desvencilhar da acusação de que atuam em áreas protegidas.
Por meio de uma parceria com o portal InfoAmazonia, responsável pelo projeto Amazônia Minada, o relatório traz como uma novidade em sua quarta edição um painel interativo online com os requerimentos protocolados junto à ANM. O mapa interativo mostra, de forma cristalina, como se dá o avanço do garimpo na Amazônia. “Em relação às terras indígenas, tais corporações atuam com sede de lucro insaciável”, diz Sônia Guajajara.
“Os povos indígenas jamais colocarão o lucro acima da vida. Desde 2020, com a apresentação do PL 191/20, manifestamos inúmeras vezes, junto às instituições públicas e à sociedade, nosso não para esse projeto de morte”, afirma a liderança indígena, lembrando dos crimes dos rios Doce e Paraopeba, contaminados pelos rompimentos de barragens de rejeitos de minério. “Tragédias anunciadas que poderiam ter sido evitadas. Lançamos o relatório na luta para evitar que histórias de morte como essas se repitam”
Estudos de caso
Nos cinco estudos de caso do relatório, são apontados em detalhes os impactos e violações protagonizados por mineradoras em áreas protegidas. Sônia Guajajara explica que os casos estão relacionados às mineradoras Vale, Anglo American, Belo Sun, Potássio do Brasil, Mineração Taboca e Mamoré Mineração. Segundo ela, a Vale possui projetos que afetam povos indígenas e outros povos e comunidades tradicionais ao longo do Brasil. Há os projetos Onça Puma e S11D, os quais exploram níquel e ferro junto aos territórios dos povos Xikrin e Kayapó, contaminando o rio Cateté com metais como chumbo, mercúrio, manganês, alumínio e ferro.
“Em relação aos quilombolas de Oriximiná, estes são afetados por uma subsidiária da Vale, a Mineração Rio do Norte, que contamina cursos d’água do rio Trombetas. Os Pataxó e Pataxó Hã-Hã-Hãe de Minas Gerais sofrem com a dificuldade de acesso à água, após o rompimento da barragem em Brumadinho, que afetou o rio Paraopeba”, explica Sônia.
Em relação à Anglo American, explica a deputada, um dos principais impactos já existentes é a construção do mineroduto Minas-Rio, o qual possui 525 quilômetros e utiliza quantidades imensas de água para transporte de minério de ferro. “O resultado é a escassez de água que sofre o povo Pataxó da Terra Indígena Fazenda Guarani, em razão da contaminação e destruição de nascentes. Em relação à Belo Sun, sua pretensão com o Projeto Volta Grande pode ser a maior área de exploração de ouro a céu aberto do mundo”, diz.
Para Sônia, há riscos reais de que a sua implementação cause a morte do rio Xingu, destruindo os igarapés que o alimentam. “Seria o ecocídio de uma região indispensável para a vida no planeta Terra como conhecemos. Em relação à Potássio do Brasil, o Projeto Potássio Autazes violou os direitos de consulta livre, prévia, informada e consentida do povo Mura e de outros povos indígenas da região”, assinala.
Apoio do governo Bolsonaro
O Projeto de Lei 191/2020, de autoria do governo federal, quer tirar a autonomia indígena de seus territórios. Neste PL, o Executivo quer a “realização da pesquisa e da lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos e para o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas e institui a indenização pela restrição do usufruto de terras indígenas”. O projeto que contradiz os pilares da Constituição de 1988, no que diz respeito aos povos indígenas, aguarda a criação de “Comissão Temporária”.
O relatório destaca a voracidade que o setor vem mostrando em direção aos territórios indígenas, desde a chegada de Bolsonaro à Presidência da República. Ainda durante a campanha, em 2018, Bolsonaro deixava claro sua política anti-ambiental e contrária aos direitos dos povos indígenas. Por várias vezes, ele fez questão de dizer que seu governo não demarcaria um centímetro de terra indígena.
Outra estratégia governamental para passar por cima dos direitos indígenas é a votação da tese do marco temporal, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que delibera sobre a questão do direito à terra ou não pelos povos originários. O julgamento foi suspenso no dia 20 de setembro de 2021, quando o ministro Alexandre Moraes pediu vistas do processo. De lá para cá, Moraes já devolveu o processo – procedimento que deixa o caso novamente apto a voltar à pauta, mas um novo julgamento ainda não foi remarcado.
Para Alessandra Korap Munduruku, a pauta anti-indígena se apresenta em várias frentes no governo Bolsonaro. “(Essa articulação) já está acontecendo. Você vê em alguns jornais os próprios parentes, denunciando a morte de crianças por causa de garimpo, vê nos jornais parentes denunciando a desnutrição das crianças, o índice muito alto de mercúrio (nos rios) e parece que a vida do povo não importa, parece que importa é só dinheiro para eles”, alerta.
“Já existem vários invasores dentro dos territórios. O papel do governo seria retirar esses invasores. E eles não fazem. Eles fazem é incentivar. Eles estão contaminando o rio, trazendo doenças, drogas, prostituição, armas. Essas empresas prometem empregos, como se a gente estivesse atrás de empregos. A gente está atrás de direitos. Queremos que nossos direitos sejam respeitados e que os povos sejam ouvidos”, finalizou.
Visibilidade internacional
A diretora do Programa Brasil da Amazon Watch, Ana Paula Vargas, falou quais serão os próximos passos após a divulgação do relatório. “O próximo passo é continuar ao lado da Apib e de outros parceiros, como a Aliança Volta Grande do Xingu, na definição de estratégias para ações de campanhas para manter os territórios indígenas como áreas livres de mineração e projetos de grande infraestrutura”, disse Vargas,
De acordo com a diretora, em 2021, ao lado da Apib e dos Munduruku, foi iniciada uma campanha que resultou no anúncio de desistência da Anglo American dos pedidos de exploração em seu território. “Vamos continuar monitorando esta empresa e manter nosso apoio às comunidades locais da Volta Grande para que a Belo Sun não consiga iniciar suas atividades e ameaçar uma região que já sofre com os impactos de Belo Monte. Além disso, a Amazon Watch vai continuar apoiando o movimento indígena e as comunidades tradicionais para pressionar financiadores que investem em empresas ligadas a violações de direitos humanos e destruição da floresta amazônica”, diz.
Um dos passos na luta pela preservação ambiental é levar as denúncias contidas no relatório “Cumplicidade na Destruição” à comunidade internacional. Reconhecer e fomentar o papel fundamental dos territórios indígenas para a conservação da floresta e dos estoques de carbono e da biodiversidade – que mantém a regulação climática global – é um dos primeiros passos, segundo Sônia Guajajara.
“É preciso que os impactos socioambientais e as violações de direitos humanos que a mineração causa sejam denunciados junto à comunidade internacional, em todos os espaços possíveis. Boa parte dos lucros, dos produtos, não permanecem no Sul global. Mas o sofrimento gerado pela ganância, sim. É preciso que haja conscientização do problema que os povos indígenas enfrentam e engajamento nas campanhas que puxamos a fim de gerar pressão pública sobre as instituições estatais, para que fortaleçam as políticas públicas de proteção socioambiental; e sobre as corporações, para que não sejam coniventes com a destruição da vida para saciar sua fome de riqueza”, finaliza Sônia Guajajara.
Ana Paula Vargas, da Amazon Watch, informou que as entidades vão iniciar uma estratégia de divulgação na imprensa internacional, com foco direcionado para os diferentes países sede dos financiadores. “Também produzimos um hotsite com depoimentos em vídeos das comunidades impactadas pela mineração para ampliar suas vozes e mostrar o impacto da mineração na vida dessas pessoas. Um longo trabalho, quase de formiguinha… Mas como elas, somos muitas e muitos, e estamos organizados nessa luta em defesa dos direitos indígenas e da Amazônia”, finalizou.
Leanderson Lima é graduado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário Nilton Lins. Tem MBA executivo em Gestão de pessoas e coaching, pelas Faculdades Idaam. Com 18 anos de experiência profissional, atuou por veículos como Jornal A Crítica, Correio Amazonense, Jornal do Commercio e Zero Hora (RS). Na televisão trabalhou na TV A Crítica, Rede TV! Manaus, e na rádio A Crítica, como comentarista. É o vencedor do Prêmio Petrobras de Jornalismo de 2015, com a reportagem “Chute no Preconceito”.
Fonte: Amazônia Real
https://amazoniareal.com.br/cumplicidade-na-destruicao/