Com pré-campanha de Bolsonaro em curso, Fachin promete investigar e punir doações irregulares

Weslley Galzo / O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA -  A movimentação das pré-campanhas para arrecadar recursos a seus candidatos entrará na mira do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Como mostrou o Estadão, empresários ligados ao senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e ao presidente do PL, Valdemar Costa Netto, pediram doações a representantes do agronegócio para bancar a campanha à reeleição do presidente Jair Bolsonaro (PL). No comando do TSE, Edson Fachin afirmou que o atual estágio da corrida eleitoral impõe restrições ainda maiores à busca por financiamento e garantiu consequências a quem atuar fora das regras eleitorais.

“Neste momento em que se vive pré-campanha, os limites legais de comportamento são bem mais elevados. Há um conjunto de vedações, não apenas aquelas aplicadas ao período da campanha, mas um conjunto expressivo de vedações”, afirmou em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, nesta segunda -feira, 8. “Em havendo notícia, na forma devida e com representação devida para a Justiça Eleitoral, certamente que isso será apurado e todo o tipo de financiamento que derivar de fonte ilícita sofrerá as consequência que a legislação eleitoral prevê”, completou.

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Bolsonaro recebe fora da agenda grupo de ruralistas envolvido em arrecadação de campanha

A Lei das Eleições proíbe, desde 2016, doações de empresas a campanhas e pré-campanhas. Somente pessoas físicas podem colaborar com os candidatos. O regramento eleitoral também determina que as contribuições só poderão ser feitas diretamente aos postulantes a mandato político após a apresentação de requerimento de registro de candidatura junto ao TSE, abertura de conta bancária e inscrição no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), o que só será possível a partir de julho, quando serão definidos os concorrentes nas convenções partidárias, que vão até agosto.

Outra forma de angariar recursos de forma lícita é pela arrecadação coletiva por sites de vaquinha online, que recebem doações individuais. Esse método passou a ser permitido com a reforma eleitoral de 2017 e garante que os valores sejam coletados virtualmente a partir de maio. Os candidatos só recebem os recursos se a candidatura for confirmada. Como mostrou o Estadão, a movimentação precoce de empresários em busca de dinheiro para a reeleição de Bolsonaro deixou representantes do agronegócios desconfortáveis, sobretudo por envolver Costa Neto e Flávio.

 Marcelo Weick, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), explica que nesta fase de pré-campanha a única movimentação permitida para a captação de recurso é por meio dos partidos políticos, mediante prestação de contas na Justiça Eleitoral.  “Na regra, se eles (Flávio e Valdemar) estão querendo turbinar a pré-campanha, haveria de ter as doações para o PL, o partido faria o custeio dessa movimentação prévia e depois, quando houvesse o período de campanha eleitoral, com registro de candidatura, aí sim poderia haver doação de pessoa física diretamente para a campanha do presidente”, afirmou.


Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF (18/02/2020)
Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF (11/03/2020)
Foto: Nelson Jr./SCO/STF (03/03/2020)
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Weick, que também é membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), destaca que a movimentação de empresários, como pessoas físicas, na tentativa de arrecadar recursos ao partido não pode ser considerada crime eleitoral. Ele explica, porém, que “se houver uma movimentação para pessoas jurídicas ocultamente gastarem dinheiro em pré-campanha para impulsionar, eventualmente, blogs ou perfis de internet, isso pode ser caracterizado como caixa dois e abuso de poder econômico”.

A presidente da Abrabep, Marina Morais, aponta a aproximação do período de declaração do imposto de renda à Receita Federal como um elemento impulsionador das buscas por doadores. A legislação eleitoral só permite doações de no máximo 10% do rendimento bruto dos apoiadores no ano anterior, o que será possível identificar durante na contabilidade do imposto. “A partir de agora que as pessoas vão realmente pensar sobre o quanto elas têm de receita declarada no ano passado, quanto podem doar, então me parece fazer sentido que os doadores começarem a se organizar como pessoas físicas para doarem para a campanha”, disse.

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Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,com-pre-campanha-de-bolsonaro-em-curso-fachin-promete-investigar-e-punir-doacoes-irregulares,70004002435


Reunião com potenciais arrecadadores escancara campanha antecipada

Vera Rosa / O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - Quem frequenta os gabinetes do poder, em Brasília, sabe que, em política, os sinais exteriores de campanha antecipada são evidentes. Mesmo assim, tudo parece correr como se nenhuma restrição da lei eleitoral atingisse o inquilino do Palácio do Planalto. Foi assim que, na tarde de segunda-feira, 7, o presidente Jair Bolsonaro recebeu no Planalto um grupo do agronegócio que tem pedido dinheiro para a campanha da reeleição.

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Bolsonaro usa palácios para acenos a mulheres, ruralistas e evangélicos

O encontro ocorreu no mesmo dia em que o Estadão revelou que empresários estavam se apresentando, desde o mês passado, em nome do senador Flávio Bolsonaro e do presidente do PLValdemar Costa Neto, para cobrar doações eleitorais. Detalhe: a reunião contou com a presença desses arrecadadores. 

Antes, em abordagens para captar recursos, eles haviam dito que quem estivesse disposto a contribuir com a campanha da reeleição seria convidado para um tête-à-tête com Bolsonaro, Flávio e Costa Neto. Na pauta, assuntos de interesse do setor.

Uma foto do encontro, publicada nas redes sociais, mostra que, do lado esquerdo de Bolsonaro, estava Bruno Scheid, administrador de fazenda de gado em Ji-Paraná (RO) com livre trânsito no Planalto. À direita, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina. Recém-filiado ao PL, partido do presidente, Scheid é pré-candidato a deputado federal. Entre os dias 5 e 21 de fevereiro, ele trocou mensagens de WhatsApp com ruralistas de outros Estados e pediu ajuda financeira para a campanha de Bolsonaro.

A ofensiva provocou incômodo em um grupo que, no passado, organizava a coleta de recursos longe da estrutura profissional do PL de Costa Neto. Agora, porém, o discurso é outro, e o casamento com o Centrão, antes classificado como “velha política”, não só tem papel passado como cobra resultados. No duelo com o PT do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, hoje favorito nas pesquisas, o PL se prepara para lançar, ainda neste mês, um site para arrecadar doações.  

A reunião de segunda-feira no Planalto – um  prédio com colunas “leves como penas pousando no chão”, como gostava de comparar o arquiteto Oscar Niemeyer – não constava da agenda pública do presidente. Só entrou depois e foi intitulada como “Encontro com o Movimento Ação Voluntária Amigos da Pecuária”.

Desde 2018, o “agro” sempre foi uma das principais bases de apoio de Bolsonaro. Hoje, porém, enfrenta divisões e não está totalmente alinhado ao governo. Tanto é assim que, no ano passado, sete entidades da agroindústria assinaram manifesto em defesa da democracia e do respeito às instituições. 

Naquela campanha, os evangélicos também sustentaram Bolsonaro. De lá para cá, no entanto, houve queixas sobre os rumos do governo e distanciamento de templos. Na tentativa de mostrar que ele, e não Lula, tem o apoio das principais igrejas, Bolsonaro se reuniu, na tarde desta terça-feira, 8, com importantes líderes evangélicos, no Palácio da Alvorada. 

“Os olhos de Deus estão sobre o senhor, presidente. Ao final de tudo virão, como vieram, os votos”, destacou o pastor Samuel Câmara, da Assembleia de Deus em Belém. Ao dar sua interpretação sobre o que esperava o Brasil em caso de vitória do PT, o chefe do Executivo tratou a eleição como uma batalha do bem contra o mal. “Essa gente que quer governar o País? Deus nos livre disso”, afirmou.

Na prática, o uso de estrutura pública da União pelo presidente-candidato, durante o período eleitoral,  sempre foi tolerado e contou com “vistas grossas” de magistrados. Arrecadações fora de época e caixa 2 nas campanhas também, apesar da proibição legal. 

“Não vai ser uma canetada que me tira daqui. Quem me tira daqui é somente Deus”, disse Bolsonaro aos evangélicos, numa referência à sua briga com ministros do Supremo Tribunal Federal. Só falta, agora, combinar o jogo com os eleitores.

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Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,reuniao-de-bolsonaro-com-potenciais-arrecadadores-escancara-campanha-antecipada-leia-analise,70004002933


História redescobre o papel de mulheres na independência do Brasil

Edison Veiga / DW Brasil

"A participação das mulheres na independência do Brasil" foi o título do curso oferecido, de forma gratuita e on-line, no mês passado pela historiadora Giovanna Trevelin — pesquisadora ligada à Universidade Estadual de Feira de Santana e divulgadora científica.

Não se trata de um esforço isolado, esse reconhecimento do papel feminino em episódio tão importante para a história do Brasil. Mas sem dúvida algo que ganha corpo mais consistente no ano em que se celebra o bicentenário da independência.

A ressignificação da participação das mulheres vem sendo tratada em obras recentes, como o livro Sobreviventes e Guerreiras: Uma Breve História da Mulher no Brasil de 1500 a 2000, da historiadora e escritora Mary Del Priore, e a biografia D. Leopoldina – A história não contada: a mulher que arquitetou a independência do Brasil, do pesquisador e escritor Paulo Rezzutti. Além disso, cada vez mais universidade brasileiras contam com projetos de pesquisa que atentam para temas correlatos, como o Grupo Nina Simone, do qual faz parte Trevelin.

A historiadora conta que é perceptível o desconhecimento quanto às "personagens femininas que participaram de um processo tão importante para a nossa história". E isso a motivou a desenvolver o curso on-line, já que o tema a "afeta diretamente, como mulher, brasileira, historiadora e pesquisadora".

Entre todas essas pesquisas, alguns nomes em comum acabam sendo destacados. São o da nobre Leopoldina (1797-1826), que se tornaria a primeira imperatriz do Brasil, da combatente Maria Quitéria (1792-1853), da pescadora Maria Felipa (?-1873) e da freira Joanna Angélica (1761-1822).

Contudo, pesquisadores acreditam que muitas outras mulheres estiveram envolvidas nas lutas pela independência brasileira. O sumiço de seus nomes nos relatos deste episódio é resultado justamente da lógica machista de um tempo em que a atuação delas era omitida dos registros, somado a uma historiografia que as ignorava.

"É complicado falar nas principais mulheres que participaram do processo de independência porque ele não foi um processo isolado e centralizado só em uma mulher ou em um grupo de mulheres", comenta Trevelin. "Hoje, oficialmente, algumas delas têm mais destaque do que outras por conta de uma prioridade de documentação histórica e da história que se escolhe contar formalmente, que aprendemos nas escolas, e que acaba se popularizando pelas mídias como novelas e séries, por exemplo. Mas isso é uma escolha."

Rezzuti destaca que a história, durante muitos séculos, foi escrita exclusivamente por homens. "Mesmo após as mulheres terem acesso ao estudo, a maior parte delas repetiam conceitos e ideias anteriores que partiam das premissas do pensamento patriarcal. Essas coisas levaram tempo para mudar, e a história das mulheres passou a ser contada de maneira mais sistemática e intensa recentemente."

Del Priore acredita que outros nomes ainda vão ser descobertos. "A questão é que há pouquíssima documentação sobre mulheres nesse período. Sabe-se que algumas atuavam como espiãs e levando comida e bebida aos soldados do imperador, mas seus nomes não são conhecidos", ressalta ela. "Os historiadores estão exumando documentos para descobrir quem foram essas figuras."

Professora na Universidade Federal de São Paulo, a historiadora Andréa Slemian lembra que é preciso contextualizar o fenômeno dentro daquele período histórico. "O momento da independência é de ebulição política, que se deu em meio ao fim da censura régia sobre os escritos, com a proliferação de uma série de textos públicos", afirma ela. "E vemos a participação de mulheres ou pessoas que assinavam com codinomes femininos. Até porque, nesse momento em que os valores patrióticos vêm à tona, ressaltou-se o papel das mulheres na antiguidade, desde as gregas e as romanas, na luta pelos valores de suas cidades."

Segundo a pesquisadora, quando esses valores são "recuperados pela imprensa", há um incentivo ao "engajamento das mulheres na luta pela independência".

As consideradas principais

Dos nomes consagrados, todas estiveram ligadas diretamente a episódios da luta pela independência. A freira Joanna Angélica, assassinada em fevereiro de 1822, era a responsável pelo Convento da Lapa, em Salvador. "Foi a primeira mulher vítima do processo de Independência do Brasil", pontua Rezzutti.

Na ocasião, soldados portugueses queriam invadir o claustro religioso feminino em busca de munição e acreditando que ali estariam escondidos os contrários ao comando militar português. Ela enfrentou, bloqueando a entrada da casa. E foi morta com um golpe de baioneta.

Maria Quitéria, por sua vez, travestiu-se de homem para integrar as tropas brasileiras contra as portuguesas, nas batalhas ocorridas na Bahia em setembro de 1822. "Mesmo depois de ter sua verdadeira identidade revelada pelo pai, seu comandante não a dispensou, entre outras coisas porque ela atirava muito melhor que muitos outros recrutas", acrescenta Rezzutti.

Já Maria Felipa era uma negra líder comunitária, pobre e iletrada, que vivia na Ilha de Itaparica, também na Bahia. Ela teria engajado outras mulheres da ilha para lutar contra os portugueses. "Naquele contexto, elas atuavam em grupos, mas não se sabe hoje o nome delas. Muitas dessas histórias permanecem e ganham força a partir de uma tradição oral, e são de muita relevância para entendermos que outras narrativas, marginalizadas até aqui, também foram decisivas na independência do Brasil", frisa Trevelin.

"Conta-se que Felipa pedia às mulheres bonitas da ilha para que passeassem pela praia para, assim, atrair os soldados portugueses. Ela se aproveitava da aproximação dos barcos para incendiá-los", diz Del Priore.

Embora tardios, alguns reconhecimentos públicos vêm aparecendo, com essas mulheres emprestando nomes a logradouros e sendo alvo de homenagens. Professora da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília, a jurista Eneida Obage de Britto Taquary lembra que Joanna Angélica, Maria Quitéria e Maria Felipa tiveram seus nomes inscritos no chamado Livro de Heróis e Heroínas da Pátria em 26 de julho de 2018, mediante lei federal.

"Há um pequeno resgate do papel dessas mulheres. E, certamente, a partir das obras que hoje têm recontado a história delas, vamos poder conhecer cada vez mais sobre a participação da mulher em vários processos importantes como foi a independência do Brasil", avalia Taquary.


Joana Angélica
Maria Quitéria
Jovita Feitosa
Ana Néri
Bárbara de Alencar
Anita Garibaldi
Maria Felipa de Oliveira
Heroínas desconhecidas
Clara Camarão
Zuzu Angel
Marias, Mahins, Marielles, malês
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Joana Angélica
Maria Quitéria
Jovita Feitosa
Ana Néri
Bárbara de Alencar
Anita Garibaldi
Maria Felipa de Oliveira
Heroínas desconhecidas
Clara Camarão
Zuzu Angel
Marias, Mahins, Marielles, malês
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Leopoldina

A participação da primeira mulher do então príncipe regente do Brasil — que ser tornaria o imperador após a independência — no processo histórico tem sido revisitada intensamente nos últimos anos. É praticamente unanimidade o reconhecimento de seu papel como artífice da independência, já suas ideias foram registradas em cartas.

Por outro lado, esse discurso acabou fazendo nascer um boato: o de que ela teria assinado um decreto de independência. Para o biógrafo Paulo Rezzutti, isso é "fake news histórica".

"Leopoldina participou de todo o processo, desde todas as questões que levaram ao Dia do Fico, do qual ela foi uma das principais articuladoras, até a sua regência, no lugar do marido, durante a qual ela enviou cartas para ele em São Paulo aconselhando-o a romper definitivamente com Portugal", ressalta ele, sobre os antecedentes do Sete de Setembro.

Ele conta que quando Pedro partiu para São Paulo, em agosto de 1822, em viagem, Leopoldina ficou como princesa regente. "Mas não com plenos poderes, como podemos ver no decreto de sua nomeação", ressalta. "Ela não podia deliberar nada sem a concordância do marido. "

"No entanto, ela presidiu o conselho de Estado convocado no Palácio de São Cristóvão a 2 de setembro de 1822, para discutir as notícias vindas de Portugal que pediam o retorno imediato do restante da família real que havia ficado no Brasil para a Europa", acrescenta. "Os despachos e as cartas produzidos durante essa reunião […] instigaram dom Pedro para que ele fizesse logo a independência, antes que fosse tarde. "

Daí para dizerem que ela teria assinado um decreto de independência, foi um pulo. "É um boato, e apenas isso", contextualiza Rezzutti. "Primeiro que o Brasil não tem uma declaração de independência, como os Estados Unidos; segundo que a ata do Conselho de Estado de 2 de setembro presidido por Leopoldina nem menciona a questão da independência, a ata é publica, pode ser consultada online no site do governo federal. Mas nada disso diminui o envolvimento de Leopoldina em todo o processo, só não há uma assinatura dela em nada mostrando que teria sido ela e não dom Pedro quem decidiu a independência."

Outras mulheres

Aos poucos, outras participações femininas também tem sido descobertas e melhor relatadas. Em suas pesquisas, a historiadora Trevelin deparou-se, por exemplo, com relatos das chamadas "mulheres de Saubara". No município baiano, mulheres de uma irmandade chamada Caretas do Mingau teriam lutado diretamente contra os portugueses.

"A história mais popular, e que ganhou força na região, é que essas mulheres se vestiam de branco e saíam às ruas para assustar os portugueses, que fugiam achando que elas eram almas penadas. E assim elas conseguiam levar comidas e armamentos para seus filhos e maridos que lutavam contra as tropas, o que justificava as panelas de mingau na cabeça", relata ela.

Contudo, Trevelin acredita que a organização teria sido anterior às lutas e elas já realizavam um cortejo tradicional com as panelas de mingau na cabeça para enaltecer a importância do alimento, base da alimentação local daqueles tempos.

"Também existem grupos, como o das Senhoras Bahianas, que peticionaram a Leopoldina em agradecimento a dom Pedro ter ficado no Brasil e reconhecendo a importância dela no processo, ou ainda o das Senhoras Paulistas, que também se dirigiram a Leopoldina durante o processo da independência", acrescenta Rezzutti.

Outra que é pouco lembrada é a pintora, escritora e historiadora inglesa Maria Graham (1785-1842), ligada à família imperial brasileira porque foi responsável pela educação de uma das filhas de Pedro I e Leopoldina. " [Ela] se destacou como a voz de uma mulher em meio a uma historiografia predominantemente masculina", analisa Trevelin.  " [A inglesa] escreveu um diário sobre o Brasil, onde contou como foi o processo de independência, escrevendo inclusive a respeito de Maria Quitéria. Assim, se consagrou como uma importante fonte a respeito da temática, com uma história narrada pela perspectiva feminina, incomum no período."

Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/hist%C3%B3ria-redescobre-o-papel-de-mulheres-na-independ%C3%AAncia-do-brasil/a-61050033


Cristovam Buarque: Lições da Ucrânia

Cristovam Buarque / Correio Braziliense 

A primeira lição é o custo elevado de invadir um país. Até aqui, Rússia e Estados Unidos invadiram Afeganistão e Iraque, sem que os demais países impusessem sanções. Graças à Ucrânia, esses e outros países estão descobrindo o preço de invasões. A segunda lição é a constatação universal de que os mesmos países que rejeitam refugiados da Síria e da África são generosos e solidários com os ucranianos. Esta lição deve servir para o mundo cobrar da Europa os braços abertos aos refugiados obrigados a fugirem das guerras e da pobreza. 

Outra lição: a guerra da Ucrânia permite perceber o erro cometido, 30 anos atrás, quando as nações ocidentais não aproveitaram a falência da União Soviética, para apoiar a Rússia, exigindo seu desarmamento nuclear. Tudo indica que seria difícil provocar o desarmamento unilateral absoluto da Rússia, mas não teria sido difícil aproveitar aquele momento para obter-se o desarmamento nuclear pleno de todas as nações. 

Mas, no lugar de estender a mão e ajudar na recuperação econômica da Rússia, em troca de incorporá-la em paz no capitalismo ocidental, o Ocidente preferiu fortalecer a OTAN, cercar a Rússia com armas. Tratou-a como se ainda fosse a União Soviética e a guerra fria continuasse; como inimiga sem justificativa, porque Ocidente e Oriente são capitalistas, não disputam ideias nem colônias. O Ocidente poderia ter evitado essa guerra  na Ucrânia, se tivesse agido com mais visão para o futuro e menos prisão ao passado. Em 1945, o EUA teve esta sabedoria, quando deu apoio para reconstruir a Alemanha. Em 1922, poderia ter feito uma versão do Plano Marshall para a Rússia e incorporado este país no mundo ocidental, desarmado. A arrogância dos EUA e a da Europa Ocidental preferiram aproveitar a fraqueza russa e levar a OTAN até as fronteiras para cercar a ex-URSS. A Rússia encontrou um autocrata que manipulou regras democráticas para chegar ao poder e ficar por tempo indeterminado. 

Além de recuperar a economia, Putin usou a ameaça externa para se fortalecer internamente, ao ponto de invadir um país vizinho, com o argumento de que se protegia contra as forças inimigas do Ocidente.  A consequência é que o mundo está sujeito à chantagem nuclear que Putin usa para limitar a intervenção ocidental na guerra. 

A invasão da Ucrânia ensina o risco do desastre político decorrente da falta de alternância no poder. Em poucas semanas, Putin deixou de ser reconstrutor da Rússia e passou à história como um dirigente irresponsável, despreparado, algoz de um país menor. Além de invadir uma nação soberana,  desfaz a economia de seu próprio país, devido aos efeitos das sanções que ele não percebeu que viriam e ao isolamento consequente em um tempo de economia global. Errou porque a longevidade no poder cria sentimento de onipotência, diminui o senso crítico pessoal, produz assessores submissos, assustados e temerosos que, por medo de desagradar ao autocrata, negam as informações corretas. 

Os autocratas terminam sendo vítimas do próprio medo que inspiram. Seus serviços de informação não lhes passam os riscos adiante, não os alertam de seus erros de avaliação e conduzem a decisões erradas. A invasão da Ucrânia nos passa a lição de que os autocratas que se agarram ao poder cometem erros fatais por causa da força e da longevidade no poder. Fala-se que Stalin poderia ter sobrevivido ao derrame cerebral, se os seus acólitos não tivessem medo de bater na porta de seu quarto, quando ele não apareceu na hora prevista. As surpresas de Putin são resultado do temor de seus assessores e informantes para alertarem de que o presidente ucraniano não era apenas um ator, era um líder capaz de mobilizar seu povo a lutar na defesa de seu país, nem informaram que a Europa e os Estados Unidos se uniriam e que sanções draconianas seriam impostas. 

A Europa aprendeu também a necessidade de diversificar sua matriz energética para fontes renováveis e origens diversas. 

A Ucrânia mostra ainda, para todos nós, o risco de tomar decisões com base no antagonismo e no preconceito. É o “antiamericanismo” que está levando parte da esquerda brasileira a não analisar a realidade do momento e ficar do lado de Putin, apesar de seu crime. 

A história nos ensina estas lições, não se sabe ainda se elas serão consideradas, nem a que custo. 

*Professor Emérito da UnB e membro da Comissão Internacional da Unesco para o futuro da educação 

Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2022/03/4991259-cristovam-buarque-licoes-da-ucrania.html


Luiz Carlos Azedo: Doria avalia opções diante do próprio fracasso pré-eleitoral

Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense

Avança uma conspiração surda na bancada paulista do PSDB para que o governador de São Paulo, João Doria, jogue a toalha e desista de ser candidato. As conversas entre paulistas e tucanos dissidentes, que querem pôr o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, no lugar de Doria, têm conexões com os aliados do Cidadania, que aprovou uma federação com os tucanos, e antigos líderes do União Brasil, que se afastaram de Doria por causa da filiação do vice-governador Rodrigo Garcia (ex-DEM) ao PSDB.

A terra se move sob os pés de Doria porque as pesquisas mostram que sua rejeição é a mais alta entre todos os candidatos e sua candidatura não encorpa nem mesmo em São Paulo. Os tucanos paulistas estão chegando à conclusão de que a insistência de Doria com a candidatura pode resultar na derrota de Rodrigo Garcia — que assumirá o governo de São Paulo e concorrerá à eleição — para o ex-prefeito paulista Fernando Haddad. A consolidação do nome do ex-governador Geraldo Alckmin como vice na chapa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo PSB mostra que o conflito com o ex-governador Márcio França está sendo resolvido.

Esse acordo acendeu a luz vermelha na base de Garcia. Os temores dos tucanos paulistas de que ocorra um desastre eleitoral em São Paulo sinalizaram para os aliados de Eduardo Leite que Doria é um animal ferido. Seria uma questão de tempo o governador paulista virar comida de onça, principalmente depois que deixasse o Palácio dos Bandeirantes, em 2 de abril. Desafeto figadal de Doria, o deputado Aécio Neves (MG) é um dos que estão empenhados em manter Eduardo Leite na legenda, em razão desse cenário.

Como diria um velho político gaúcho, Eduardo leite está costeando o alambrado. Convidado pelo ex-prefeito de São Paulo Gilberto Kassab, está com um pé no PSD, no qual teria garantida à vaga para disputar a Presidência da República. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (MG), pré-candidato do PSD, nunca assumiu para valer o desejo de disputar a Presidência da República. Com a mudança de legislatura, o senador mineiro tem condições de permanecer no comando da Casa, sem ter de disputar a reeleição neste ano. A dificuldade de Leite é escolher entre uma candidatura à Presidência garantida por Kassab e a mera expectativa de desistência de Doria. A escolha precisa ser feita até 2 de abril, o fim do prazo da janela para troca de partidos. A terceira opção é concorrer à reeleição ao governo do Rio Grande Sul.

Resiliência

A desistência de Doria, em razão de sua oposição interna, porém, não é a hipótese mais provável, porque essa é uma situação com a qual já lidou duas vezes: na disputa pela Prefeitura de São Paulo e, também, pelo Palácio dos Bandeirantes. Nas duas situações, apostou em amplas alianças e no marketing político, vencendo as eleições por seu desempenho na campanha. Doria apostou na agenda liberal e no discurso direto para a sociedade, trazendo a reboque os políticos recalcitrantes. Por que agora agiria diferente?

O que pode virar a mesa é o fato de que, desta vez, Doria não consegue ampliar suas alianças. A federação do PSDB com o Cidadania saiu a fórceps, provocando muita resistência interna, em estados importantes eleitoralmente, além da saída do governador da Paraíba, João Azevedo, que migrou para o PSB, e da senadora Leila do Vôlei, que pretende se candidatar ao governo do Distrito Federal, agora pelo PDT. A cúpula da legenda torce pela candidatura de Leite para acomodar os descontentes. A federação está sendo feita muito mais em nível de partidos do que em torno de sua candidatura. O senador Alessandro Vieira (SE) manteve-se, até agora, como pré-candidato, embora tenha boas relações com Doria.

Apesar de ser um homem obstinado e resiliente, Doria se pauta pela racionalidade. Não se pode descartar a possibilidade de desistir da candidatura, mas dificilmente o fará como um derrotado por uma conspiração interna. O que pode levá-lo a isso é a articulação de um projeto mais amplo, da chamada terceira via, com a narrativa de que seu projeto não é pessoal.

Mamãe Falei

O deputado estadual Arthur do Val, o Mamãe Falei, sem partido, comunicou ontem que não concorrerá à reeleição. Já havia retirado a candidatura ao governo paulista e se desfiliou do Podemos, tudo para evitar a possível cassação. Arthur do Val se deu mal porque viajou à Ucrânia e fez postagem ofensivas às mulheres ucranianas, que fugiam da guerra. Eleito no tsunami de 2018, na aba do chapéu do presidente Jair Bolsonaro, estava filiado ao Podemos havia apenas 30 dias. Provavelmente, mesmo assim, será cassados pela Assembleia Legislativa paulista.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-doria-avalia-opcoes-diante-do-proprio-fracasso-pre-eleitoral/

Confira o segundo dia do Seminário Internacional PCB 100 Anos

A esquerda brasileira, capitaneada pelo PCB, teve na chamada “revolução brasileira”, de caráter nacional e anti-imperialista, seu principal projeto de intervenção na realidade brasileira. Depois da ditadura do Estado Novo (1937-1945), paulatinamente, esse projeto foi ganhando traços de uma estratégia nacional-desenvolvimentista que galvanizou diversos setores sociais e políticos do país. A Declaração de Março de 1958 definiu a perspectiva nacional e democrática de desenvolvimento como o núcleo central da “revolução brasileira”.

O que se quer discutir aqui é a adesão a esse tipo de estratégia, suas consequências e, por fim, seu esgotamento em função do golpe militar de 1964 e do chamado “milagre econômico” promovido pela ditadura, a partir de meados da década de 1970. As profundas mudanças tecnológicas e, posteriormente, pelo advento da globalização acabaram por produzir uma reorientação geral às perspectivas de desenvolvimento e superação das crises estruturais da economia e da sociedade brasileira.

A opção pela democracia coincide com essas profundas mudanças e coloca em questão a validade da adoção novamente de uma estratégia nacional-desenvolvimentista, como a do passado.



Para mais informações acesse: https://pcb100anosfap.com.br/


Hesitação vacinal é negacionismo que pode matar, acredita Margareth Dalcolmo

Equipe da RPD e  Mario dal Poz (convidado especial) 

A médica pneumologista Margareth Dalcolmo está na linha de frente do combate à covid-19 no Brasil desde o início da pandemia de coronavírus, tornando-se uma das principais vozes de referência sobre o assunto. Pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ela é a entrevistada especial desta 41ª edição da Revista Política Democrática online (edição de março/2022).

Presidente eleita da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) para o período 2022-2023, Margareta Dalcomo tem sido considerada como porta-voz da ciência e da medicina baseada em evidências em todas as frentes do combate à Covid-19. Ela tem tido um papel fundamental para levar a informação à população brasileira sobre a doença e fazer frente às notícias falsas.

Margareth Dalcomo avalia que a pandemia teve atitudes e procedimentos diferentes em diferentes lugares do mundo. No caso do Brasil, especificamente, desde o início, o país não teve uma coordenação nacional homogênea e harmônica que unisse a comunidade acadêmica brasileira, os cientistas, pesquisadores, médicos, profissionais de saúde e a política.

Ao longo da luta contra a pandemia, a pesquisadora destaca o papel do Sistema Único de Saúde (SUS). “Um dos produtos positivos dessa tragédia que se abateu sobre nós, foi, primeiro, o reconhecimento óbvio de que a grande arma contra a pandemia é o SUS, como declarei lá trás, em 13 de março de 2020”, diz. Para ela, hoje, “até as elites mais avançadas do país reconhecem isso”, avalia. “Isso revela que o SUS mostrou a todo mundo que ele é universal, de que ele deve ser equânime, e que ele era a grande arma para fazer face à epidemia”, completa.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista de Margareth Dalcolmo à Revista Política Democrática online.

Revista Política Democrática Online (RPD): Antes de darmos início à entrevista, gostaríamos de manifestar em nome de toda a equipe da RPD e da Fundação Astrojildo Pereira (FAP), nosso mais sincero sentimento de pesar pelo passamento recente de seu marido, o professor Cândido Mendes. Era um homem de uma enorme estatura, forjada em uma trajetória de defesa das grandes causas, como a educação, os direitos humanos, a equidade social, a democracia; personagem de destaque na vida brasileira que nos fará muita falta. Receba, pois, doutora, juntamente com sua família, nossa sentida solidariedade pelo dor e saudades que se abrem nessas horas.  

Margareth Dalcolmo (MD: Obrigada. 

RPD: É até constrangedor pedir à senhora que fale da importância da vacinação na campanha contra a Covid-19, depois de centenas de suas declarações enfáticas a esse respeito, no curso dos últimos dois anos. Mas o movimento antivacina continua presente, agora com o agravante de condenar a vacinação das crianças. O que a senhora ainda pode nos dizer sobre essa questão. 

MD: Reitero, em primeiro lugar, meus agradecimentos pelas palavras sobre o Cândido. Sem dúvida, ele fará muita falta ao Brasil e, claro, a mim, entre outras razões, pelo que me auxiliou daquele seu jeito especial nas campanhas em que me envolvi, de combate à pandemia.  

Sabíamos, desde o início, que a grande arma contra a Covid-19, uma doença viral, zoonótica, que atravessou a barreira humana, vinda do mundo animal, propiciada por uma série de condições que não cabe aqui declinar, era a vacinação. Essa, evidentemente, é uma situação que pode se repetir a qualquer momento e que, provavelmente, não será a última epidemia de nossas vidas. Não teremos grandes tréguas da maneira como o homem tem pilhado e tratado mal o planeta.  

Como se trata de uma doença viral, aguda, de transmissão respiratória, sabíamos, de saída, que a grande solução para essa natureza de doença seriam as vacinas. Sabíamos, também, que não haveria tratamento fácil para uma doença desta natureza, ao contrário das viroses de natureza crônica, como, por exemplo, a AIDS, que está entre nós há 40 anos, para a qual não há vacina até hoje. Para essas doenças crônicas, como a AIDS, a hepatite C, que também são virais, mas não são agudas, há tratamentos. É provável, portanto, que, hoje, será possível erradicar a hepatite C do mundo com os tratamentos disponíveis, desde que se garanta acesso igualitário para todos. Hoje, o acesso ainda é razoavelmente elitizado.  

Tal como esperado, mais de 100 grupos de pesquisadores no mundo inteiro se dedicaram a buscar essa solução. Viraram dia e noite tentando resgatar modelos de vacinas que já haviam sido utilizados, ou plataformas, como chamamos, em doenças anteriores, como, por exemplo, dengue, no ebola, no Chikungunya, e que não haviam funcionado, como algumas vacinas de vetor viral, por exemplo, como é a própria plataforma da AstraZeneca/Oxford, que hoje está nacionalizada completamente pela Fiocruz, garantindo autonomia completa ao Brasil nesse sentido. Foi, sem dúvida, feito inédito, extraordinário, na história da medicina. Sem burlar etapa alguma, ética ou metodológica, pesquisadores lograram colocar – testadas e validadas e, sobretudo, regulamentadas pelas agências regulatórias – vacinas plausíveis e possíveis de protegerem nossa população. A despeito dos mais céticos, o impacto das vacinas foi inquestionável. Mesmo diante de novas variantes, as vacinas deram proteção, pelo menos em uma redução substancial do número de mortes e de casos graves pela doença. Os dados são tão, digamos, exuberantes, falam por si mesmos.  

RPD: Os otimistas dizem que estamos em uma fase de domesticação da doença e que, em breve, teremos aprendido a conviver com ela. Já os pessimistas defendem que, enquanto a vacinação não chegar perto da universalidade, sempre correremos risco de que novas variantes surjam. É possível voltarmos a uma normalidade qualquer? E que normalidade seria essa? Quais os critérios sanitários, políticos e éticos nos permitiriam definir o que seria uma situação normal após uma pandemia como essa? Por exemplo, 700 óbitos diários podem ser considerados normais?  

MD: Obrigada pela pergunta. Eu nunca me deixei contaminar pelo pessimismo, nem mesmo agora quando parece ser tão fácil, quando além de uma pandemia, vivemos uma situação bélica absolutamente inaceitável de qualquer ponto de vista. Mas eu diria que temos cicatrizes demais. Eu nunca usei a expressão novo normal.  

O que é normal? Prefiro interpretar à luz da epidemiologia, à luz da clínica, do que são ou do que sejam as endemias, ou as epidemias. A covid-19, tendo alcançado esse grau de distribuição no mundo, gerou um fenômeno com a solução que já discutimos em relação às vacinas, que é outro fenômeno inaceitável, que é o que eu tenho chamado do apartheid vacinal. Para que considerássemos a doença controlada, seria necessário que tivéssemos, no mínimo, cerca de 60% das pessoas no planeta vacinadas. Mas a distribuição de vacinas pelo mundo é absolutamente iníqua. No Brasil, 72% da população já está imunizada com duas doses – ainda faltam alguns milhões que não compareceram para tomar a terceira dose, fenômeno comportamental que precisa ser analisado pelos antropólogos, sociólogos do comportamento, pois é inacreditável que isso continue a ocorrer. Mas em países como o Haiti, aqui ao nosso lado, a cobertura vacinal é baixíssima. Considerando que, na Alemanha, na França, o berço do Iluminismo, nos Estados Unidos, os estoques de vacinas se acumulam aos milhares, como se pode falar que 61% ou 62% da população já foram vacinados? Os números frios da distribuição de vacinas são inaceitáveis. 

É lastimável que mecanismos criados para prever e solucionar esses problemas, como, por exemplo, o mecanismo Covax, das Nações Unidas, da própria OMS, não tenham sido acionados e continuam, portanto, ineficazes. Não se pode esquecer que o SARS-CoV-2 não vai desaparecer de nossas vidas, ele será um vírus endêmico entre nós, já está incorporado em uma coisa que chamamos clinicamente de painel viral. Trata-se de um procedimento a que submetemos um paciente quando é internado com suspeita de doença viral. Desse painel, já constam influenza, adenovírus, rinovírus, sincicial respiratório, H1N1, H3N2, e os SARS-CoV-2. Tudo isso já está integralizado no painel, de maneira que, daqui para frente, sempre será possível termos o que chamamos diagnóstico diferencial. O patógeno da Covid-19 não desaparecerá de nossas vidas, já vai integrar nosso painel viral. 

A pergunta seguinte é se serão necessários reforços vacinais. A meu juízo, sim, todos precisaremos de uma terceira dose e de uma quarta dose de vacinação, independentemente da idade, de imunodepressão, será uma questão de adequar os prazos. O Brasil está em um caminho correto, já tendo começado a prover vacinas, a quarta dose, para as pessoas em determinada situação de prioridade, como idade, presença de doenças de imunodepressão, qualquer que seja ela. Então, isso está certo. Provavelmente, daqui a pouco, serão vacinados os profissionais de saúde, que estamos trabalhando diretamente com a doença, e depois, todo mundo deverá receber. A pergunta adicional é se será necessário vacinar-se contra a Covid-19 anualmente como se faz para a gripe. 

Para mim, não. Não estou falando de fatos, falo de minha avaliação como médica, como pesquisadora, acho que não. Penso que teremos reforços e, muito provavelmente, a epidemia tende a se estiolar ao longo do tempo. É possível que ainda apareça uma ou outra variante com alta capacidade de disseminação, mas não deverá ser capaz de causar casos graves como nós temos visto com a variante ômicron e suas subvariantes, a BA.2, que hoje não é predominante, mas ela se dissemina com muita facilidade no mundo todo, inclusive, no Brasil.  

Ainda temos um número de mortes muito alto. Quem está internado e quem está morrendo? São pessoas não vacinadas ou pessoas de mais idade, portadoras de uma condição que as fragilize muito e que, portanto, as expõe a uma determinada complicação clínica. Então, como vejo isso? Entrando no terceiro ano pandêmico, precisamos vacinar de maneira mais equânime o mundo todo. Não adianta completar 90% da população brasileira. Sabemos que estamos falando de uma doença de transmissão respiratória e, portanto, os cuidados ditos não farmacológicos são imprescindíveis. Considero uma temeridade, uma perda de tempo a discussão em curso no Rio de Janeiro sobre o uso de máscara. Já me recusei, inclusive, a dar entrevistas a esse respeito. Precisaremos usar máscara durante muito tempo ainda. Basta responder à seguinte pergunta: quem de vocês, hoje, ou daqui a um mês, embarca em um avião para um voo internacional, transoceânico, sem máscara, sabendo que, mesmo que os aviões tenham melhorado a condição de aeração e filtragem, estamos falando de uma doença altamente contagiosa e de transmissão respiratória? Não tem sentido, os cuidados não farmacológicos em ambiente fechado, como o uso de máscara, a meu juízo, deverão ser mantidos ainda no ano de 2022. Ao ar livre, é outra coisa, não tenho dúvida, pode-se ficar sem máscara 

RPDEstá-se pensando em transferir às pessoas a responsabilidade pelo uso ou não de máscaras, quando a responsabilidade tem de ser das autoridades sanitárias por se tratar de uma questão de saúde pública. Essa inversão de responsabilidade praticamente atribui ao  doente a opção de ficar doente. O que pensa sobre isso?

MD: Tenho dito e vou aqui reiterar: um dos produtos positivos dessa tragédia que se abateu sobre nós, foi, primeiro, o reconhecimento óbvio de que a grande arma contra a pandemia é o SUS, como declarei lá trás, em 13 de março de 2020. Hoje até as elites mais avançadas do país reconhecem isso. E cada vez que recebo uma foto de um empresário – com quem discuti a compra privada de vacina, em uma iniciativa espetacular conduzida pela Luiza Trajano – sendo vacinado com uma plaquinha de Viva o SUS!, me comove muito. Isso revela que o SUS mostrou a todo mundo que ele é universal, de que ele deve ser equânime, e que ele era a grande arma para fazer face à epidemia.  

O segundo aspecto positivo foi que nós, pesquisadores, saímos de nossos casulos, quer dizer, de nossos laboratórios, de nossos pontos de pesquisa, nossos hospitais, e viemos a público e nos expusemos. Nunca houve participação tão maciça, permanente de vários médicos, cientistas com a população. Sinto um reconhecimento de muita gente nas ruas, em aeroportos, supermercados, retribuindo essa demonstração de confiança. Jamais recebi hostilidade. Parece que fizemos a coisa certa, nos desencastelamos dos nossos consultórios e nos expusemos ao público. Levamos muita pancada também, mas guardamos uma coerência e uma tranquilidade quanto ao que sabemos fazer, que é cuidar de pessoas, estudar, publicar, fazer estudos de boa qualidade e, sobretudo, não cair na simplificação dicotômica do certo ou errado, abrindo sempre espaço para certo relativismo quando couber. 

 Sobre a questão da responsabilidade na mão individual é tão absurda quanto a autorização de bailes de carnaval privados. Fui favorável ao cancelamento do Carnaval e paguei preço alto. Uma matéria em O Globo chegou a dizer que a decisão penalizou apenas os desfiles, que, como sabemos, ocorrerão em data posterior. É jogo de ilusões, as centenas de festas privadas com 400, mil pessoas, e todo mundo sem máscara, inundaram a cidade, sem a menor fiscalização. Resultado: todos estamos nos preparando, hospitais, rede pública, privada, nós, médicos, para os próximos dez dias. Haverá, sem dúvida, um boom de casos de infecção, pois ainda circula cepa altamente contagiosa. 

O argumento de que "está todo mundo muito cansado" das restrições não é suficiente. Tem gente mais cansada do que os agentes de saúde na linha de frente do combate à pandemia? Não tem saída, está todo mundo cansado, mas isso não pode dispensar cuidados. Com um pouquinho mais de colaboração, paciência ou resiliência, nós chegaremos a imunizar 90% da população brasileira, encerrando de vez essa discussão nociva quanto à necessidade do uso de máscara. Ao ar livre, liberação geral; em ambientes fechados, máscara no rosto. Eu não recebo para uma reunião na minha casa pessoas que não se tenham vacinado com três doses e não possuam passaporte vacinal. É um comportamento que faz parte do processo civilizatório. 

O problema mais relevante no momento é a vacinação de nossas crianças. Não é possível manter criança fora da escola. Eu já tive essa discussão com vários grupos de pais, e provoquei: "por acaso, você se perguntou se ia vacinar seu filho para sarampo?”. Crianças de seis meses recebem vacina penta valente, cinco vacinas de uma vez só na sua coxinha, e nenhum pai se pergunta se aquilo é muito, se é pouco para dar no seu bebê. A contaminação política dessa discussão é muito nociva, considero. Hoje, a cobertura vacinal de crianças é preocupantemente baixa. Estive em Pernambuco há poucos dias, justo quando Cândido faleceu. Mas ainda antes me reunir com o governador, o secretário de saúde, o ex-ministro Sérgio Rezende, e fiquei muito impressionada, porque eles tinham tomado as medidas sanitárias corretíssimas. Acontece que, apesar desse trabalho extraordinário, a cobertura vacinal de criança estava em 32%, vítima do movimento antivacina que levou o governo local a estocar vacinas. Ajudei como pude, fui ao “Bom Dia Pernambuco” e fiz meu discurso pró-vacina.  

Este é o problema prioritário de saúde pública no Brasil, não é a discussão do uso ou não de máscara. As evidências atestam essa tese, ou será que alguém se sente seguro entrando sem máscara em um elevador onde alguém pode ter dado um espirro e espalhado no ar 200 milhões de partículas infectantes, replicantes, que ficam naquele ambiente? 

RPDO SUS não enfrenta problemas de prestígio ou reconhecimento. É uma instituição exemplar da sociedade brasileira. A pergunta é como está de recursos, humanos e financeiros? E a formação e o treinamento dos profissionais que se ocupam dos serviços prestados pelo SUS? 

MD: Como disse, sabíamos que o SUS seria uma grande arma para combater a epidemia, mas também sabíamos o quão desvalido ele entrou nessa guerra. O SUS entrou, digamos, forte, no sentido do seu ideário, da sua universalidade, da sua oferta, da sua capilaridade, mas ele entrou combalido. Em algumas cidades, sobretudo, como no Rio de Janeiro, conhecíamos as deficiências do SUS, as clínicas da família desmanteladas desde o governo anterior. A situação era muito complicada e ficou mais grave. O reconhecimento da classe média quanto à qualidade dos serviços do SUS e, ao mesmo tempo, o empobrecimento da população que levou milhões de pessoas a deixar seus planos de saúde e recorrer à rede pública de saúde assolaram demandaram excessivamente o SUS. A começar, será necessário fazer-se investimento maciço em recursos humanos, para  qualificar pessoal em condições de atuar nos 80% de resolubilidade que o SUS pode oferecer para doenças ou para assistência de modo geral, tanto no âmbito da assistência primária, quanto naqueles procedimentos de alta complexidade, de que a população não se dava conta pudessem ser oferecidos pelo SUS, como transplante, captação e transplante de órgãos, sem mencionar o fornecimento de medicamentos para doenças raras, de altíssimo custo. 

 Ouvi algumas vezes ao longo desses dois anos que era o seguro que cobriria a maioria das despesas médicas. Aprendi, porém, que não é seguro que vai pagar o transporte por avião de órgãos, nem fornecer os remédios sofisticados que haverão de evitar rejeição ao longo de toda a vida. Na verdade, as seguradoras não reembolsam remédios, ao contrário dos Estados Unidos. Paga-se uma fortuna de seguro de saúde, e outra fortuna para conseguir alguns medicamentos de uso prolongado.  

RPDÉ difícil entender como a politização da questão das vacinas possa ter alimentado atitudes negacionistas de parte de setores mais ilustrados da população, bem como de entidades médicas estaduais e federais. A que se pode atribuir esse fenômeno? 

MD: Olha, eu mesma vivo sob essa perplexidade porque eu tive muitas surpresas, algumas decepções, inclusive, da origem dessas atitudes. Imaginei que pudesse ser um problema de comunicação, mas, no Brasil, franqueou-se o acesso aos meios de comunicação. Pode não haver filtros, mas o acesso está liberado, até mesmo em nome da liberdade de expressão se diz qualquer coisa. Confesso que, para mim, é um mistério. Gostaria de destrinchar essa questão com sociólogos do comportamento, antropólogos sociais, pessoas de fato qualificadas para explicar como esse fenômeno – irracional, de qualquer ponto de vista – se espalhou como um rastilho de pólvora. 

 Uma coisa é o comportamento lamentável de alguns dos nossos órgãos de representação, como o próprio Conselho Federal de Medicina (CFM), que a nós nos entristece enormemente. Outro foi a politização que contaminou órgãos como a Conitec, criado para regular a incorporação de procedimentos e medicamentos. É inaceitável. Como foi que isso aconteceu? Gostaria muito de saber responder de uma maneira precisa, como eu costumo responder, mas não sei. Tampouco conseguiria explicar como determinados grupos de médicos também se politizaram nesse discurso, alimentado por uma ideologia que levou as pessoas a parar de raciocinar, fazendo às vezes troça do que chamamos evidências científicas, como se evidências científicas fossem algo como um luxo, e não algo sobre o qual devemos basear qualquer decisão, mesmo em uma situação de epidemia.  

Atos heroicos, ou voluntários, ou um voluntarismo de experimentação, como eu chamo, não tem mais sentido no mundo de hoje. Em um mundo em que você demonstra tudo aquilo, formula uma hipótese e vai buscar demonstrar se essa hipótese está certa ou errada. Não é muito importante ela estar certa ou errada, o importante é que você diga a verdade. Como Pasteur, ficou triste à beça quando foi lá mostrar seus experimentos, ficou zangado, mas não escondeu, não escamoteou, quer dizer, os resultados, ruins ou não, vieram à tona. Nós não fazemos pesquisa para dar certo, nós formulamos uma hipótese e procuramos demonstrá-la. Sabíamos desde o início que a solução para a virose de transmissão respiratória aguda seria a vacina, que era óbvio que o investimento tivesse de se concentrar na vacina. Questionar que as vacinas utilizadas teriam menos benefício do que efeito adverso é absolutamente irresponsável; mais ainda, dar ouvidos a esse discurso. 

Muito pior é que médicos estivessem metidos nisso, defendendo algo chamado de tratamento precoce. Somente agora, após dois anos de pesquisa, estamos chegando no tratamento precoce de verdade, antivirais que poderão ser usados em casos confirmados, com sintoma até o quarto dia; os casos leves e moderados, com medicamento por via oral, cinco dias etc. O que se alegava antes era mero lixo, vale dizer cloroquina, nitazoxanida, invermectina. Em junho de 2020, fizemos um documento, à luz dos estudos de fase três publicados, subscrito por 11 pesquisadores, entre os quais me incluo, em junho de 2020 que não encontrava bases científicas para o esdrúxulo tratamento precoce. 

É normal que o tempo gere informações e que a dinâmica da própria epidemia exija a revisão de certos conceitos. No caso das vacinas, os resultados dos estudos revelam que o número de efeito adverso é tão pequeno em relação aos benefícios que não cabe questionar a abertura de escolas e universidades. Não tem mais sentido, nada é mais prejudicial do que manter a criança fora da escola. Conversei com mães que ficaram em casa confinadas com criança fora da escola durante mais de um ano, com marido, tendo que fazer tudo dentro de casa, sem ajuda, e ainda tendo as crianças dentro de casa, muitas das quais tinham como única refeição a merenda da escola.  

RPDAs experiências brasileiras de saúde pública que mais deram certo foram aquelas que tiveram ampla participação popular, de grupos, organizados ou não, da sociedade civil, como nos casos da HIV e AIDS, além, claro, de campanhas de redução do consumo do tabaco e da vacinação de poliomielite. Agora presenciamos todas essas manifestações não só contrárias à vacina, mas também a favor dessa bobagem do uso da invermectina, da cloroquina, que têm contribuído para estacionar a cobertura vacinal, por exemplo, em cidades como o Rio de Janeiro. Esse movimento pernicioso poderá impedir que a gente chegue ao nível de 90% de imunização? Ou ainda é possível remobilizar a população em defesa do sistema de saúde? 

MD: Não há dúvida de que a enorme participação e adesão populares ajudaram nos acertos da política pública de saúde. Isso aconteceu mesmo quando a população em geral ainda não tinha conhecimento do que o SUS era capaz de fazer. Por exemplo, o que contribuiu para a expectativa de vida do brasileiro aumentasse de 54 anos para 76 anos em 40 anos? Foi o saneamento básico. Coisa nenhuma: 40% das escolas no Brasil não têm esgoto, nem saneamento básico. É um escândalo a questão do saneamento básico no Brasil. A resposta correta é a vacinação, a vacinação das crianças, que reduziu de maneira espetacular a mortalidade infantil, nas últimas décadas.  

O brasileiro poderia não estar a par das proporções, taxas, etc, do êxito da política pública de saúde, mas via a quantidade de pessoas que envelheciam em suas famílias. Hoje, o Brasil é um país que envelhece, 11% da população têm mais de 60 anos, a despeito de todas as nossas iniquidades. Temos, portanto, de nos preparar para cuidar de uma população que envelhece no Brasil. Esse é um dos maiores desafios do SUS.  

Na verdade, são vários os desafios. Milhares e milhares de brasileiros, que passaram pela Covid-19, têm sequelas da doença. Covid-19 é uma doença grave. Muitos dos que exibiram sintomas leves, sem necessidade de entubação ou transferência para o CTI, apresentam sequelas, e isso exige reabilitação, isso exige serviços de alta complexidade – públicos e privados – com diversas especialidades, para assistir esse universo de pessoas e ajudá-las a se reintegrar no mercado de trabalho. Estou falando de sequelas vasculares, pulmonares, motoras e até psiquiátricas. A doença pode afetar o comportamento e outros aspectos da condição humana que ainda não identificamos. 

Por tudo isso, não pretendo parar de repetir: tal como o velho antibiótico que tínhamos de tomar três vezes ao dia, de oito em oito horas, hoje o compromisso é ser vacinado, para que possamos conter a transmissão dessa doença. Já estamos conseguindo diminuir a incidência de casos graves, de mortes. Não se pode, portanto, negar o óbvio, quer dizer, a tradição de adesão ao processo de vacinação. Basta verificar que, hoje, quem está exibindo sintomas graves da doença, quem está morrendo, são os não vacinados, este é um dado público. Conhecemos depoimentos dramáticos, como o de um pai que se interna e interna o filho, o filho morre, e ele dá uma declaração patética: "fui eu que convenci meu filho a não se vacinar, porque ele queria se vacinar. Ele tinha 32 anos, eu tenho 65. Ele morreu, e eu fiquei".  Por que a população não pega esse depoimento de uma família destroçada?  

Os americanos têm chamado esse fenômeno de hesitação vacinal. O termo é até engraçado, mas esse comportamento pode matar. 

Continuarei na luta cotidiana para convencer as pessoas de que vamos melhorar nossa condição de nos reintegrarmos a uma condição de uma vida cotidiana normal, como tínhamos antes, superando todas as sequelas – clínicas e sociais – da Covid-19 indelevelmente marcadas no Brasil. 

Saiba mais sobre a entrevistada

Dra Margareth Dalcolmo MD, PhD é pneumologista e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz). É doutora em Medicina pela Universidade Federal de São Paulo (USP), com experiência na condução e participação de protocolos de pesquisa clínica e tratamento da tuberculose e outras micobacterioses. É membro de Comissões Científicas das Sociedades Brasileiras de Pneumologia e Tisiologia e de Infectologia, da REDE TB de Pesquisa em Tuberculose e membro do Steering Committee do Grupo denominado RESIST TB, da Boston Medical School. Integra também o Expert Group for Essential Medicines List da WHO e o Regional Advisory Committee do Banco Mundial para projetos de saúde na África Subsaariana em tuberculose e doenças respiratórias ocupacionais. Tem mais de 100 artigos científicos publicados nacional e internacionalmente. É docente da Pós-graduação da PUC-RJ, membro e ex-coordenadora da Câmara Técnica de Pneumologia e Cirurgia Torácica do Cremerj. Investigadora principal dos ensaios clínicos SimplicTB da Global Alliance for Tb Research e BRACE Trail para vacina BCG para prevenção da Covid-19. Colunista semanal do jornal O Globo, em “Hora da Ciência”. Presidente Eleita para a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisologia para o biênio 2022-2024.

** Entrevista especial produzida para publicação na Revista Política Democrática Online de março/2022 (41ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

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Matheus Schuch: Bolsonaro pede a evangélicos apoio contra ‘ameaça socialista’

Matheus Schuch / Valor Econômico

BRASÍLIA - Preocupado com o assédio de outros candidatos à Presidência da República a líderes evangélicos, o presidente Jair Bolsonaro recebeu dezenas de representantes do segmento, ontem, em um café da tarde no Palácio da Alvorada. Em clima de campanha eleitoral, pediu apoio contra o que chama de “ameaça socialista” no país e, se dirigindo aos religiosos, prometeu dirigir o país “para o lado que os senhores desejarem”.

Sob aplausos de pastores que antes anunciaram alinhamento a seu governo, Bolsonaro também exaltou seu compromisso em colocar um evangélico no Supremo Tribunal Federal (STF), já materializado com a indicação de André Mendonça, e voltou a dizer que vê autoridades no país atuando “fora das quatro linhas da Constituição” - discurso que já utilizou diversas vezes para atacar ministros da Corte.

“Quando falo das Forças Armadas, e elas são nossas, elas são o último obstáculo para o socialismo. As Forças Armadas têm um compromisso, um juramento, o dever de respeitar a nossa Constituição. Nós jogamos dentro das quatro linhas, mas devemos fazer também que quem jogue fora, entre dentro das quatro linhas. É a força da lei. Não a lei da força”, discursou.

A indicação de um evangélico para o Supremo foi motivo de tensão entre Bolsonaro e líderes evangélicos no ano passado. O pastor Silas Malafaia, que chegou a publicar vídeos com críticas veementes ao governo, dobrou-se em elogios ontem a Bolsonaro e foi responsável por arregimentar parte dos convidados. Aplaudido com entusiasmo pelos presentes, fez um discurso inflamado com críticas ao PT e convocou os religiosos a ampliarem seu envolvimento na política.

Dando sequência ao tom adotado por Malafaia, Bolsonaro clamou aos pastores que se empenhem na “missão” de evitar que uma “gangue” retorne ao Poder.

“Eu dirijo a nação para o lado que os senhores assim o desejarem. É fácil? Não é, mas nós sabemos e temos força para buscar fazer o melhor para a nossa Pátria”, reforçou Bolsonaro. “Não vai ser uma canetada que vai me tirar daqui. Quem me tira daqui é somente Deus. Não existe um ato meu, um discurso, uma ação, uma MP fora das quatro linhas [da Constituição]. Será que é tão difícil fazer algumas pessoas entenderem que essa é a maneira civilizada de nós convivermos aqui no Brasil?”.

Antes de discursar, Bolsonaro chorou ao ouvir o relato de apóstolo César Augusto, religioso que o visitou no hospital em 2018, após o então candidato ser vítima de uma facada.

Quatro anos depois, o presidente utilizou o episódio como uma prova de que teria sido escolhido por Deus para o cargo e voltou a dizer que é a melhor opção para o próximo mandato.

“Nós vamos vencer esse obstáculo. Existe gente melhor do que eu? Milhares de pessoas melhores do que eu. Mas é a oportunidade do momento, o nome que está aí é o meu”, complementou.

O café no Palácio do Alvorada reuniu mais de 80 parlamentares da bancada evangélica. O presidente do Republicanos, Marcos Pereira, estava presente, apesar da turbulência na composição da aliança para as eleições.

Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/noticia/2022/03/09/bolsonaro-pede-a-evangelicos-apoio-contra-ameaca-socialista.ghtml


Endurance, barco de Shackleton, é achado mais de cem anos após naufrágio

Redação / O Estado de S.Paulo

Destroços do navio Endurance, do explorador Ernest Shackleton, foram encontrados 107 anos após o naufrágio. A embarcação que foi esmagada por gelo antártico e afundou a cerca de 10 mil pés (3 mil metros) foi encontrada por cientistas no último fim de semana nas profundezas da Antártida.

A descoberta foi anunciada nesta quarta-feira, 9, em um comunicado da expedição de busca, a Endurance22. As filmagens mostravam o navio em condições notavelmente boas, com seu nome claramente visível na popa. 


Tentativas anteriores de localizar os destroços do navio de madeira com 44 metros e três mastros, cuja localização foi registrada por seu capitão Frank Worsley, falhou devido às condições hostis do Mar de Weddell, na Antártida, coberto de gelo.

No entanto, a missão Endurance22, organizada pelas Malvinas Maritime Heritage Trust, usando veículos subaquáticos avançados equipados com câmeras de alta definição e scanners, rastreou os restos mortais da embarcação. "Estamos maravilhados por nossa boa sorte...", disse Mensun Bound, diretor de Exploração da expedição.

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Menson Bound (à esq.) e John Shears lideram a expedição que localizou a embarcação na costa antártica. Foto: Esther HORVATH / Falklands Maritime Heritage Trust / AFP

"Esta é de longe a melhor conservação de um naufrágio de madeira que eu já vi. Está na vertical, intacto e em brilhante estado de conservação", reforçou o arqueólogo marinho. "Você pode até ver o Endurance na popa", completou.

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A expedição para encontrar a embarcação havia partido em fevereiro para a Antártida. Foto: EFE/ Falklands Maritime Heritage Trust e Nick Birtwistle

Iniciada em fevereiro deste ano, a expedição - liderada pelo explorador polar britânico John Shears, operada a partir do navio quebra-gelo sul-africano Agulhas II - descobriu que o Endurance estava a quatro milhas (seis quilômetros) da posição registrada, em 1915, por seu capitão, Frank Worsley.

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Imagens da embarcação são mostradas em tela de controle da expedição. Foto: FALKLANDS MARITIME HERITAGE TRUST via AFP
História do Endurance

O veleiro de três mastros se perdeu em 1915 durante a tentativa fracassada de Shackleton de fazer a primeira travessia da Antártida. Shackleton tentou cruzar o continente, em uma travessia de 2.900 quilômetros através do continente gelado, do Mar de Weddell ao Mar de Roos, passando pelo Polo Sul. O barco ficou encalhado por meses, foi perfurado pelo gelo e depois afundou.

Apesar de encalhado no gelo, a tripulação de 28 homens do Endurance voltou para casa viva, sendo considerada uma das grandes histórias de sobrevivência da história humana. Os tripulantes caminharam pelo gelo marinho, vivendo de focas e pinguins, antes de zarparem em três botes salva-vidas e chegarem a uma ilha desabitada.

De lá, Shackleton e alguns tripulantes remaram cerca de 800 milhas (1.300 quilômetros) no bote salva-vidas James Caird até as ilhas Geórgia do Sul, no Atlântico Sul, onde encontraram ajuda em uma estação baleeira.

Na quarta tentativa de resgate, Shackleton conseguiu retornar para buscar o restante da tripulação na Ilha Elefante em agosto de 1916, dois anos depois da sua expedição transantártica imperial ter deixado Londres. /Reuters, AP e NYT

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Fonte: O Estado de S. Paulo
https://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,destrocos-do-endurance-barco-do-explorador-shackleton-sao-achados-mais-de-cem-anos-apos-naufragio,70004002888


Lira articula requerimento de urgência para votar PL da mineração

Deborah Hana Cardoso Correio Braziliense

Líderes da Câmara dos Deputados discutiram, ontem, em reunião, a votação do projeto de lei (PL) 191/2020, que libera a mineração em terras indígenas. O líder do governo na Casa, Ricardo Barros (PP-PR), já colheu assinaturas para o requerimento de urgência e afirmou que a proposta será avaliada pelos líderes e pelas bancadas nesta semana. Por ser uma PL, o governo precisa apenas de maioria simples. A deputada Celina Leão (PP-DF), que também participou do encontro, disse que os parlamentares precisam de tempo para discutir o assunto.

No mesmo dia, um grupo de oito deputados de vários partidos apresentou um pedido a Lira para que suspenda a tramitação do projeto. O requerimento é assinado por Joenia Wapichana (Rede-RR), André Figueiredo (PDT-CE), Reginaldo Lopes (PT-MG), Alencar Santana Braga (PT-SP), Renildo Calheiros (PCdoB-PE), Sâmia Bomfim (PSol-SP), Bira do Pindaré (PSB-MA) e Wolney Queiroz (PDT-PE).

Nos bastidores, o deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP) afirmou ao Correio que, para costurar o projeto, o presidente da Câmara se reuniu com líderes na residência oficial. "Tirou a discussão de dentro do Congresso e levou para a casa dele. Quando o colégio de líderes é aqui (Câmara), todos entramos no colégio de líderes. Lá, não", apontou. Ainda de acordo com o parlamentar, Lira manteve a votação remota. "Esvaziou o plenário. Os deputados votam de casa e recebem o alinhamento 'o governo quer que vote assim'. Assim, eles têm maioria. Assim que funciona", reclamou.

O deputado Nilto Tatto (PT-SP) explicou que ainda há uma pressão do governo pela aprovação do projeto de lei. "Empresas de mineração estrangeiras e nacionais querem abrir o precedente. Esse é um PL inconstitucional. Bolsonaro fala em potássio utilizando a crise da Ucrânia, o que é mentira", criticou. Do jeito como está desenhado, se aprovado, o Estatuto do Índio de 1973 deve perder o artigo que restringe aos indígenas a exploração de riquezas em suas terras. (Art 2°. Parágrafo IX).

Aos jornalistas, o deputado André Fufuca (PP-MA) disse que estava na Câmara para saber como andava a "situação" das bancadas. De acordo com Agostinho, a pauta do que seria votado no plenário contemplava o Dia Internacional das Mulher, algo que ele não discorda, mas observou: "Lira pode incluir, a qualquer momento, a votação da urgência do projeto (da mineração em terras indígenas) e, posteriormente, pode colocar para votar o mérito do projeto. Se aprovada a urgência, não precisa passar por comissão nenhuma. A oposição está unida contra o tema, mas não temos mais que 150 votos contra a matéria. Do outro lado, difícil achar quem vote contra".

O PL foi enviado em 2020 pelo então ministro da Justiça, Sergio Moro, e por Bento Albuquerque, chefe da pasta de Minas e Energia. Na época, a Câmara era presidida por Rodrigo Maia, que não pautou a matéria. Agora, sob a presidência de Lira, o texto volta à mesa para negociação. Ele já afirmou que os deputados precisam de coragem para debater o assunto.

Inconstitucional

No documento assinado pelo grupo de parlamentares contrários ao projeto, eles afirmam que o PL "apresenta problemas evidentes de inconstitucionalidade e injuridicidade, como o disposto no art. 37 e afronta o Regimento Interno da Câmara". Segundo os deputados, a proposta do Executivo desconsiderou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, do qual o Brasil é signatário, com relação à consulta tornada obrigatória pela referida Convenção, portanto, que não abrange apenas os processos administrativos decorrentes da legislação, incluem também as "medidas legislativas".

"Não houve consulta formal às comunidades indígenas ou seus representantes para a elaboração do PL nº 191/2020, conflitando com os compromissos internacionais firmados pelo Brasil. Igualmente, não se considerou o artigo 19 da Declaração das Nações Unidas para os Direitos dos Povos Indígenas", alegam.

Potássio

Em linha com o conflito na Europa, a escassez de fertilizantes pode atrapalhar a produtividade no agronegócio. O potássio (cloreto de potássio) pode ser usado como fertilizante e este tem sido o discurso para a tramitação do PL. O jornal O Estado de S.Paulo, a partir de um levantamento feito por dados da Agência Nacional de Mineração (ANM), mostrou que a maioria das minas de potássio estão localizadas fora das áreas indígenas. O presidente Jair Bolsonaro (PL) tem defendido a exploração das terras para atenuar a dependência brasileira dos defensivos agrícolas russos.

"O solo brasileiro é pobre quando se trata de potássio e ele é importante para a produtividade de soja, o que interessa ao agronegócio. "O escândalo é que conseguimos mostrar que o potássio, que está sendo usado como motivo para pautar o texto, não está nas terras indígenas", finalizou Rodrigo Agostinho.

Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2022/03/4991544-lira-articula-requerimento-de-urgencia-para-votar-pl-da-mineracao.html


Cármen Lúcia: Claros, sombras e mulheres

Cármen Lúcia / Folha de S. Paulo

"(...) e quem não é capaz para as coisas, não se meta nelas; e mais vale morrer com honra que viver com desonra". Assim dona Hipólita Jacinta Teixeira de Melo dirigiu-se ao vigário da Comarca de Rio das Mortes dando notícia da prisão de Tiradentes.

Eram os idos de 1789. Maio. Dona Hipólita, informada, cuidou de avisar os participantes da "Inconfidência Mineira". Atuara no movimento, sua casa em Ponta do Morro sendo local de encontros dos depois apelidados "inconfidentes". Importante marco da história brasileira, são conhecidos os nomes dos seus participantes, sua trajetória, sua ação. As parcas referências às mulheres que participaram daquela conjuração registram, quase sempre, apenas as mencionadas como musas, cantadas em versos conhecidos. As inconfidentes mineiras ou outras figuras de ação no período, de dona Hipólita a Inácia Gertrudes de Almeida, permaneceram ausentes da história brasileira.

Afirma-se cega a justiça. Se fosse, sua imagem mesma seria inexplicável com a venda a acompanhar sua representação. Não se venda cego, mas aquele capaz de ver o que não se quer seja vislumbrado. À parte a história desta representação, o que vem à mente é se a história também tem sua cegueira de conveniência, ocultos à visão humana fatos ou passagens que marcam a trajetória das pessoas.

Nos sombrios da história e nos silêncios da justiça foram guardadas, quando não escondidas, as mulheres. Principalmente as mais pobres, as negras, as "bem-comportadas moças" e, mais ainda, as que não eram "tão boazinhas". Mesmo alteando suas ações, dando voz a suas ideias e atuando altivamente, são mantidas silenciadas e invisibilizadas na importância política, cívica e social.

Assim é para se manter o modelo repetido de uma sociedade de não partilhamento ou compartilhamento do poder. Como se fosse ele apenas prerrogativa ou gozo, não responsabilidade e compromisso cívico. Versejado por Carlos Drummond de Andrade ao festejar Mietta Santiago, o direito mesmo de ser igual como eleitora, que causou estranheza e foi desigualdade vencida, faz agora 90 anos no Brasil. Por isso gracejava o poeta aos estranhamentos: "Mulher votando? Mulher, quem sabe, Chefe da Nação? O escândalo abala a Mantiqueira, faz tremerem os trilhos da Central e acende no Bairro dos Funcionários, melhor, na cidade inteira funcionária, a suspeita de que Minas endoidece, já endoideceu: o mundo acaba".
Dona Hipólita segue como exemplo na "doidice" de um mundo no qual a igualdade humanizadora ainda é luta contra tantas cruéis formas de desigualdade.

Mas não há acasos na história da humanidade. O que há é a sua construção, os ideais que se impõem, os interesses que prevalecem, as formulações racionais ou não que se projetam e que contam, não raro, com o imponderável. Mesmo este há de ser superado para que a invenção humana tenha vez. Na aventura humana se pode ser protagonista ou figurante, atuante ou espectador. É escolha e trabalho, empenho e persistência.

A conquista de direitos é um "continuum" civilizatório. Para além da conquista de textos legais garantidores do respeito à igualdade é imprescindível também assegurar a efetividade dos direitos conquistados. As leis são necessárias; não são bastantes. A vida não começa nem termina em Constituições e leis. Inicia-se e segue, isso sim, na ideia de mulheres e de homens. Dela se passa às ações voltadas a finalidades legítimas apenas quando postas para realização do interesse de todos os viventes.

Da ação à transformação se tem o projeto e a concretização da criação humana, responsabilidade de todos, mulheres e homens.

Afinal, ainda seguindo o testemunho ativo de dona Hipólita, a mulher é capaz para as coisas, por isso há de nelas atuar. Ser parte e participar são deveres do ser humano nesta passagem tumultuada da história. Mulher não abdica de sua obrigação humana. Porque não quer ser sombra e esconderijo, senão também luz, a que se busca para o melhor projeto social de uma humanidade mais digna, ética e comprometida com todas as formas de vida.

*Ministra do Supremo Tribunal Federal, é professora titular de direito constitucional da PUC-MG

Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2022/03/claros-sombras-e-mulheres.shtml


Elite brasileira parece concentrar hoje mais dinheiro do que a russa

Pedro Fernando Nery / O Estado de S.Paulo

As sanções anunciadas nos últimos dias têm chamado atenção para os oligarcas, o grupo de russos muito ricos que ajudaria a sustentar Putin no poder. O termo – oligarcas – é usado para a elite da Rússia, mas não tipicamente para elites de outros países. O que permite usar a denominação lá e não, por exemplo, aqui? Que semelhanças e diferenças existem entre as nossas elites?

Nos dicionários, a definição de oligarca passa pela elevada influência política que o sujeito detém, mas também se permite o uso para definir alguém muito rico (um sinônimo de magnata, ricaço). A Rússia é, de fato, um país muito desigual, com alta concentração de renda naqueles que estão no topo dela – mas é difícil encontrar medida que mostre que essa concentração é maior do que no Brasil.

O 1% da população russa que está mais bem posicionado na distribuição de renda concentraria 22% de toda a renda do país – segundo o World Inequality Report 2022. É um dos maiores níveis do mundo. Mas perderia para o do Brasil: aqui o 1% mais rico da população leva 27% da renda (segundo a mesma fonte).

Esta concentração nunca foi inferior a 20% da renda nacional, segundo o trabalho do Pedro de Souza, que construiu uma série histórica desde 1926. Neste sentido, se a atual elite russa é relativamente recente – vem dos anos 90, o Brasil tem uma tradição mais longeva para o seu 1%. Não é difícil rastrear parte das fortunas brasileiras a boas conexões políticas desde a ditadura militar (pense em empresários presos na Lava Jato) ou até Vargas

Voltemos aos dados do 1%: a fatia detida por estes grupos no total do patrimônio, por sua vez, seria equivalente nos dois países: em ambos o 1% mais rico responderia por cerca de 50% da riqueza (a apuração desta medida, porém, é menos consensual). 

Os dados mostram ainda que os ricaços de ambas as nações ficariam bem na comparação internacional: os mais ricos de cada país também pertencem ao clube dos mais ricos do mundo, segundo Branko Milanovic. Em termos absolutos, pela revista Forbes, a Rússia tem mais bilionários do que o Brasil (mas produzimos mais deles – proporcionalmente – em 2021). 

Se há óbvias diferenças – os bilionários russos fabricados por privatizações corruptas, o uso obstinado de offshores, o envolvimento com um Estado mafioso – não é fácil encontrar uma medida que permita classificar de forma inconteste os russos ricaços como oligarcas sem incluir no rótulo os nossos também. 

*DOUTOR EM ECONOMIA

Fonte: O Estado de S. Paulo
https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,pedro-fernando-nery-elite-russia-brasil-oligarquia,70004001329