Cármen autoriza inquérito contra ministro e consulta PGR sobre investigar Bolsonaro
José Marques / Folha de S.Paulo
A ministra Cármen Lúcia, do STF (Supremo Tribunal Federal), determinou nesta quinta-feira (24) a abertura de inquérito criminal sobre o ministro Milton Ribeiro, da Educação, e deu 15 dias para a PGR (Procuradoria-Geral da República) informar se também investigará o presidente Jair Bolsonaro (PL).
A investigação contra o ministro ocorre a pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras. A Procuradoria irá apurar suspeitas de corrupção passiva, tráfico de influência, prevaricação e advocacia administrativa.
Ao autorizar a abertura de investigação, a ministra disse que "a gravidade do quadro descrito é inconteste e não poderia deixar de ser objeto de investigação imediata, aprofundada e elucidativa sobre os fatos e suas consequências, incluídas as penais".
"Nos autos se dá notícia de fatos gravíssimos e agressivos à cidadania e à integridade das instituições republicanas que parecem configurar práticas delituosas", acrescentou.
"O cenário exposto de fatos contrários ao direito, à moralidade pública e à seriedade republicana impõe a presente investigação penal como atendimento de incontornável dever jurídico do Estado e constitui resposta obrigatória do Estado à sociedade, que espera o esclarecimento e as providências jurídicas do que se contém na notícia do crime".
Cármen Lúcia deu prazo de máximo de 30 dias improrrogáveis para o inquérito, "salvo o caso de motivação específica e suficiente".
O pedido de Aras foi feito depois de a Folha revelar áudio em que Ribeiro afirma que o governo Jair Bolsonaro (PL) prioriza prefeituras cujos pedidos de liberação de verba foram negociados pelos pastores que não têm cargo e atuam em um esquema informal de obtenção de verbas do MEC.
Esses pastores, Gilmar Santos e Arilton Moura, também são alvos do inquérito.
Em outro despacho, Cármen Lúcia afirmou que os fatos imputados ao ministro estão "intimamente conexos com a sua própria fala sobre a eventual participação de Jair Messias Bolsonaro, Presidente da República".
"Tem-se da notícia publicada e que fundamenta o pedido de abertura de inquérito para a apuração dos fatos relatados quanto ao ministro da Educação, que ele teria afirmado, em reunião com prefeitos municipais, que repassaria verbas para municípios indicados pelo pastor de nome Gilmar, a pedido do presidente da República Jair Bolsonaro", descreve a magistrada.
"Assim, pela gravidade dos fatos subjacentes ao que expresso pelo ministro de Estado e que levaram o procurador-geral da República a pedir a esse Supremo Tribunal Federal abertura de inquérito para
averiguar a veracidade, os contornos fáticos das práticas e suas consequências jurídicas, tem-se por imprescindível a investigação conjunta de todos os envolvidos e não somente do ministro de Estado da Educação".
A ministra, então, dá um prazo de 15 dias para que a PGR se manifeste sobre a possibilidade de investigar Bolsonaro.
No pedido de investigação sobre Ribeiro, Aras solicitou que sejam ouvidos em depoimentos o ministro, os dois pastores e prefeitos que teriam sido beneficiados com verbas do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação).
Pede ainda que o Ministério da Educação e a Controladoria-Geral da União esclareçam o cronograma de liberação de verbas do FNDE e os critérios adotados.
Ambos os pedidos foram atendidos por Cármen Lúcia. Ela deu o prazo de 15 dias para que esses esclarecimentos sejam apresentados.
A ministra, no entanto, negou pedido para que polícia faça a análise das circunstâncias da produção do áudio veiculado com as declarações de Milton Ribeiro. Segundo ela, é "impertinente ao objeto da presente investigação e sem vinculação jurídica com as práticas apontadas como delituosas que teriam sido cometidas pelo investigado".
O pedido de inquérito foi enviado na tarde desta quarta (23) diretamente ao presidente do STF, ministro Luiz Fux, mas ficou sob responsabilidade de Cármen Lúcia, que é responsável por outros pedidos feitos por parlamentares contra o ministro.
O procurador-geral da República afirma em seu pedido que, ao ser questionado pela imprensa, Ribeiro "em momento algum negou ou apontou falsidade no conteúdo da notícia veiculada" e admitiu "a realização de encontros com os pastores nela mencionados".
"Em que pese a sua menção à 'nenhuma possibilidade de determinar a alocação de recursos para favorecer ou desfavorecer qualquer município ou estado', a posição por ele ocupada —na cúpula do órgão máximo da área de educação do país— proporciona-lhe direção política sobre o funcionamento do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação e o seu respectivo cronograma", diz o pedido de Aras.
"À ideia de que 'não há qualquer hipótese e nenhuma previsão orçamentária que possibilite a alocação de recursos para igrejas de qualquer denominação religiosa', se opõe o argumento de que não é apenas a destinação dos próprios recursos públicos a igreja que se inquina, mas a existência de uma uma potencial contrapartida à prioridade concedida na liberação dessas verbas", acrescenta o PGR.
Na terça-feira (22), a pressão sobre o ministro da Educação atingiu grau crítico após a revelação pela Folha do áudio em que ele afirma priorizar, a pedido de Bolsonaro, a liberação de verbas para prefeituras negociadas por esses dois pastores sem cargos oficiais no governo.
Enquanto Ribeiro cancelou sua agenda em São Paulo e divulgou nota para minimizar a atuação do presidente da República no caso, integrantes da oposição acionaram órgãos de fiscalização, pediram a convocação do ministro e a abertura de uma CPI para apurar os fatos.
O ministro da Educação é evangélico e pastor, mas até mesmo integrantes da bancada evangélica no Congresso cobraram explicações, e alguns deles cogitavam a substituição de Ribeiro do posto de comando na pasta.
Os dois pastores têm proximidade com Bolsonaro desde o primeiro ano do governo. Em 18 de outubro de 2019, participaram de evento no Palácio do Planalto com o presidente e ministros.
O ministro em nota ter determinado alocação de recursos para favorecer qualquer município.
Ribeiro afirma que Bolsonaro não teria pedido para que os pleitos dos pastores fossem atendidos, mas somente que todos os indicados por eles fossem atendidos.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2022/03/carmen-lucia-do-stf-determina-abertura-de-inquerito-sobre-ministro-da-educacao.shtml
Datafolha: Lula tem 43% das intenções de voto; Bolsonaro, 26%; Moro, 8% e Ciro, 6%
Redação / O Globo
RIO — Restando pouco mais de seis meses para o primeiro turno das eleições de 2022, pesquisa Datafolha divulgada nesta quinta-feira aponta que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) segue liderando a disputa pela Presidência com 43% das intenções de voto. O presidente Jair Bolsonaro (PL) aparece em segundo lugar com 26%, desempenho superior ao que vinha registrando em rodadas anteriores de pesquisas do instituto. A margem de erro é de dois pontos percentuais, para mais ou para menos.
Mais atrás, aparecem os candidatos do Podemos, Sergio Moro, com 8%, e do PDT, Ciro Gomes, com 6%.
Veja também: Diferença entre Lula e Bolsonaro diminui entre eleitores mais pobres, aponta Datafolha
Em relação ao levantamento anterior, de dezembro do ano passado, o Datafolha aponta uma distância menor entre Lula e Bolsonaro. Na ocasião, o petista oscilava entre 47% e 48% das intenções de voto, a depender do cenário, enquanto o atual presidente variava entre 22% e 21%.
As duas pesquisas, contudo, não são diretamente comparáveis, já que houve mudanças na lista de candidatos. A pesquisa de dezembro tinha nomes como os do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que se retiraram da disputa posteriormente. Por outro lado, foram incluídas agora as pré-candidaturas de André Janones (Avante), Vera Lúcia (PSTU) e Leonardo Péricles (UP).
Veja o percentual de intenções de voto dos candidatos - Cenário 1:
Lula (PT) - 43%
Bolsonaro (PL) - 26%
Sergio Moro (Podemos) - 8%
Ciro Gomes (PDT) - 6%
João Doria (PSDB) - 2%
André Janones (Avante) - 2%
Simone Tebet (MDB) - 1%
Felipe D'Ávila (Novo) - 1%
Vera Lúcia (PSTU) - 1%
Leonardo Péricles (UP) - não chegou a 1%
Brancos ou nulos - 6%
Não souberam responder - 2%
'Propina em Bíblia': Ouça os áudios em que prefeitos denunciam pastor lobista do MEC
Outros cenários
O Datafolha testou ainda um cenário com o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), como candidato no lugar do governador de São Paulo, João Doria (PSDB). Doria venceu as prévias do PSDB no fim do ano passado. Leite, no entanto, avalia um convite do PSD para concorrer à Presidência, além da possibilidade de concorrer pelo próprio PSDB no lugar de Doria -- hipótese estimulada por aliados.
Os desempenhos de Leite e Doria apresentam pouca variação, com ligeira desvantagem para o gaúcho, mas dentro da margem de erro. No cenário com o governador gaúcho, Ciro Gomes oscila de 6% para 7%, e André Janones oscila de 2% para 3%. Lula e Bolsonaro mantêm o mesmo desempenho do cenário anterior.
Veja o percentual de intenções de votos dos candidatos - Cenário 2:
Lula (PT) - 43%
Bolsonaro (PL) - 26%
Sergio Moro (Podemos) - 8%
Ciro Gomes (PDT) - 7%
André Janones (Avante) - 3%
Eduardo Leite (PSDB) - 1%
Simone Tebet (MDB) - 1%
Vera Lúcia (PSTU) - 1%
Felipe D'Ávila (Novo) - não chegou a 1%
Leonardo Péricles (UP) - não chegou a 1%
Brancos ou nulos - 7%
Não souberam responder - 3%
Veja o percentual de intenções de votos dos candidatos - Cenário 3:
Em um terceiro cenário pesquisado pelo Datafolha, sem a emedebista Simone Tebet e com Doria no lugar de Leite, o governador paulista se mantém no patamar de 2% de intenções de voto. PSDB e MDB debatem, com o União Brasil, a adoção de uma candidatura única entre os três partidos à Presidência. Recentemente, Moro estimulou que o Podemos também participe das conversas.
Lula (PT) - 44%
Bolsonaro (PL) - 26%
Sergio Moro (Podemos) - 8%
Ciro Gomes (PDT) - 7%
André Janones (Avante) - 3%
João Doria (PSDB) - 2%
Felipe D'Ávila (Novo) - 1%
Vera Lúcia (PSTU) - 1%
Leonardo Péricles (UP) - não chegou a 1%
Brancos ou nulos - 6%
Não souberam responder - 2%
Veja o percentual de intenções de votos dos candidatos - Cenário 4:
Em um quarto cenário, sem nomes do PSDB e com Tebet na lista de candidatos, a senadora do MDB se mantém no mesmo patamar de outros cenários, com 1% das intenções de voto.
Lula (PT) - 43%
Bolsonaro (PL) - 26%
Sergio Moro (Podemos) - 8%
Ciro Gomes (PDT) - 8%
André Janones (Avante) - 3%
Simone Tebet (MDB) - 1%
Vera Lúcia (PSTU) - 1%
Felipe D'Ávila (Novo) - não chegou a 1%
Leonardo Péricles (UP) - não chegou a 1%
Brancos ou nulos - 7%
Não souberam responder - 2%
O Datafolha ouviu 2.556 eleitores em 181 municípios de todo o país entre terça e quarta-feira desta semana. A pesquisada foi registrada no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sob o protocolo BR-08967/2022. O nível de confiança do levantamento - isto é, a probabilidade de que ele reproduza o cenário atual, considerando a margem de erro - é de 95%.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/politica/datafolha-lula-tem-43-das-intencoes-de-voto-bolsonaro-26-moro-8-ciro-6-25445716
Na América do Sul, hora de rever os desafios e as oportunidades
Maria Hermínia Tavares / Folha de S. Paulo
Estudiosos da economia mundial anunciam que a era de ouro da globalização, iniciada nos anos 1990, está chegando ao fim, por ter sido golpeada, primeiro, pela pandemia da Covid-19; agora, pela invasão russa da Ucrânia. O economista Dani Rodrik, da Universidade Harvard, por exemplo, em entrevista ao jornal Valor, argumenta que a conjugação de ambos os eventos alçou os cálculos geopolíticos e as preocupações com a segurança nacional ao lugar ocupado pela integração econômica e financeira globais. O efeito, diz ele, será a reposição das regiões como esfera privilegiada de organização das cadeias produtivas e trocas internacionais.
Eis um bom momento para rever os desafios e as oportunidades da América do Sul. Em comparação com outras áreas, o grande triângulo regional tem a vantagem do convívio em geral pacífico entre as nações que o ocupam —em larga medida afiançado pelo compromisso do Brasil com o respeito ao direito internacional e a prioridade conferida à diplomacia e a soluções negociadas das disputas de fronteiras.
Essa fecunda coexistência contrasta com a recorrente dificuldade de gerar uma região mais coesa e apta a se apresentar com identidade própria na cena internacional. Muitos foram os projetos de integração que se esboroaram. Só para ficar nas últimas décadas, fracassaram a Iirsa (Iniciativa para a Integração Regional Sul-Americana), de 2000, e a Unasul (União das Nações Sul-Americanas), de 2008. O Mercosul (Mercado Comum do Sul), de 1991, mal se aguenta vivo, incapaz de injetar dinamismo nas trocas entre seus participantes, menos ainda rivalizar com a China, hoje o maior parceiro comercial do Brasil e da Argentina.
Estruturas produtivas que mal se comunicam, comércio regional minguado, presença ativa de grandes potências, recorrente instabilidade política e, por fim, ausência de liderança capaz de produzir convergência —e pagar os custos inevitáveis da maior integração— explicam muito desse triste desempenho.
As mudanças em outras paragens oferecem nova chance ao subcontinente, desde que os seus países consigam produzir liderança compartilhada e coordenação em torno de uma agenda comum. Os temas a exigir inovadora cooperação são claros: enfrentamento das mudanças climáticas com investimentos de porte em energias renováveis e defesa da Amazônia; desenvolvimento do potencial produtivo de commodities; fortalecimento das instituições de saúde coletiva; criação de defesas eficazes contra o narcotráfico e outros ilícitos; enfim, a manutenção da democracia na região e da zona de paz no Atlântico Sul. Haja desafios!
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/maria-herminia-tavares/2022/03/na-america-do-sul-hora-de-rever-os-desafios.shtml
Eugênio Bucci: A confusão que favorece a tirania
Eugênio Bucci / O Estado de S. Paulo
Num artigo publicado no dia 11 de março no The Washington Post, a colunista Margaret Sullivan expôs com clareza singular uma das táticas mais insidiosas dos líderes autoritários. Especialista em mídia e imprensa, temas de suas colunas no Post, a jornalista demonstra que, para autocratas como Vladimir Putin, há algo de mais valioso do que fazer com que as pessoas acreditem neles: este algo de mais valioso é fazer com que as pessoas não acreditem em mais nada e em mais ninguém. Resumida assim, a fórmula parece um contrassenso. Como, afinal de contas, um tirano pode arregimentar apoio popular, se não faz por merecer a confiança irrestrita das multidões?
Antes de responder, lembremos que nós, aqui no Brasil, conhecemos de perto esse tipo de mando. Neste ponto, vamos nos afastar da linha de argumentação de Margaret Sullivan. Olhemos para o nosso país e vamos entender o contrassenso. Não temos aqui, nos trópicos, um sósia perfeito de Vladimir Putin, mas é inegável que anda nestas terras um personagem que almeja virar Putin quando crescer. Pois então: como é que esses sujeitos agregam seguidores?
Agora a resposta é fácil. Eles não ganham corações selvagens e mentes turvas porque se apresentem como cidadãos confiáveis, íntegros e de boafé. Definitivamente, não é assim que eles se apresentam. Eles mentem, e não precisam esconder que mentem. Eles mentem, todo mundo sabe que eles mentem, mas, como suas mentiras – às vezes cínicas, às vezes perversas – ostentam um potencial destruidor, é com eles mesmos que as falanges ressentidas cerram fileiras.
Líderes como Putin (e seus imitadores) não precisam ser dignos de crédito irrestrito. Eles não precisam construir laços baseados na verdade e na honradez da palavra – basta que se mostrem brutais o suficiente para destruir todas as instituições do saber e do conhecimento que florescem na democracia (como a universidade, a ciência, a justiça, as artes e a imprensa), pois, como não se cansam de repetir – e nisso seus adoradores acreditam fervorosamente –, essas instituições não passam de um amontoado de mentiras. Mentindo em nome de combater a mentira, eles arrebanham seus fiéis.
Para os tiranos, a prioridade não é conquistar a credulidade dos incautos, mas fazer com que o maior número de incautos não deposite mais um pingo de confiança em nenhuma instituição da democracia. Vieram para destruir. Seus apelos mais inflamados repousam não em projetos afirmativos, positivos, construtivos, mas na promessa de devastar qualquer resistência que encontrarem pela frente. É verdade que esses apelos costumam vir camuflados em retóricas aparentemente edificantes em torno de entidades mágicas como a “Pátria”, a “Grande Rússia”, “Deus”, “família” ou qualquer Shangri-lá que simbolize idílio ou virtude (sua fantasia de futuro é sempre a restauração de uma glória mística e militar que teria existido no passado), mas, no fundo, o que leva as sociedades a se entregarem a estes demagogos da força bruta é a paixão por dizimar o que, na democracia, tem parte com a verdade.
Voltemos, agora, à jornalista Margaret Sullivan. Ela nos lembra que a filósofa Hannah Arendt (1906-1975) já havia nos alertado, numa entrevista concedida há cinco décadas, para este truque maligno dos líderes autoritários. Em seu artigo A nova tática de controle da Rússia é aquela que Hannah Arendt apontou há cerca de 50 anos, ela recupera uma frase mais do que luminosa da pensadora alemã: “Se todo mundo sempre mente para você, a consequência não é que você acredite nas mentiras, mas sim que ninguém mais acredite em nada”.
É por isso que a indústria da desinformação a serviço dos regimes de força não se envergonha de espalhar falácias e fraudes. Ela não constrói credibilidade em ponto algum, não precisa disso, apenas semeia o descrédito generalizado. As fake news servem exatamente para incinerar as vias de acesso à verdade factual. O próprio conceito de verdade dos fatos vai se perdendo. As correntes de apoio ao presidente da República não falam em fatos, mas apenas em “narrativas”. Para elas, a verdade dos fatos não existe, só o que existe são versões. No credo das milícias virtuais, não há mais diferença entre juízo de fato e juízo de valor (entre fatos e opiniões). No lugar do pensamento objetivo e do debate racional, quem entra em cena é o fanatismo. Assim, a indústria da desinformação consegue, pouco a pouco, fazer com que, nas palavras de Hannah Arendt, “ninguém mais acredite em nada”.
Pronto: aí está o canteiro ideal para que modelos de inspiração fascista venham a florescer. “Com um povo assim”, dizia a filósofa (conforme lemos no artigo de Margaret Sullivan), “você pode, então, fazer o que quiser”. Se o povo se convencer de que todo enunciado que tinha o estatuto de verdade factual se reduz a impostura e manipulação, aclamará o primeiro maluco facínora que prometer atear fogo em tudo.
Logo, os pregadores das tiranias só precisam produzir confusão e mais confusão. O resto virá como consequência.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,a-confusao-que-favorece-a-tirania,70004017550
Bolsonaro e Milton Ribeiro: o governo em troca de uma barra de ouro
Malu Gaspar / O Globo
É difícil prever no que vai dar o escândalo que se abateu nos últimos dias sobre o Ministério da Educação. Mas é fácil perceber que, nesse caso, demitir Milton Ribeiro pode não ser suficiente para fazer o escândalo se distanciar do Palácio do Planalto. E não apenas porque Ribeiro diz, na reunião com prefeitos que teve o áudio exibido pela Folha de S.Paulo, que atender os pedidos de liberação de verba do pastor e lobista Gilmar Santos "foi um pedido especial" do presidente da República.
Os registros públicos das agendas de Bolsonaro mostram que, quando Milton Ribeiro assumiu o cargo, o pastor já tinha acesso livre ao Palácio do Planalto. Gilmar já havia sido recebido duas vezes antes de Ribeiro chegar ao ministério. E depois da terceira visita a Bolsonaro, deixou o Palácio e foi direto para o MEC falar com Ribeiro.
O ministro mal tinha completado dois meses de mandato quando o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) agradeceu ao pastor pelo apoio à família, num vídeo publicado nas redes sociais: "Se não fossem pessoas como o senhor, certamente a nossa guerra aqui na disputa do poder em Brasília seria muito mais complicada".
Talvez esses antecedentes expliquem por que, mesmo com toda a pressão que a bancada evangélica e o Centrão fizeram num primeiro momento pela demissão de Ribeiro, Bolsonaro tenha mandado avisar que não vai tirá-lo do cargo assim tão facilmente. Disposição que se manteve firme mesmo depois que um prefeito maranhense relatou ter recebido do pastor que atuava com Gilmar, Arilton Moura, um pedido de propina de R$ 15 mil antes e um quilo de ouro depois da liberação dos recursos.
Assim que o presidente deixou claro que não cederia, fontes ligadas ao Centrão e a parlamentares evangélicos começaram a procurar os jornalistas para tentar emplacar algumas ideias. A primeira, que o ministro foi "ingênuo" ao se deixar gravar – mas não necessariamente ao permitir que os pastores indicados por Bolsonaro formassem um "gabinete paralelo" dentro do MEC.
Uma segunda frase muito repetida era a de que o ministro da Educação não é problema dos evangélicos, mas uma questão que concerne exclusivamente a Bolsonaro. "Esse é um problema do executivo", disse o líder da bancada evangélica, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ). "Não fomos nós que colocamos, não somos nós que vamos pedir para tirar."
Outra conversa corrente, ainda, era sobre o temor de que o ministro saísse atirando, caso percebesse que havia sido abandonado. Com que munição e contra quem, exatamente, ninguém disse. Analisando o que está em disputa, porém, é possível imaginar.
O dinheiro sobre o qual os pastores estavam sentados no MEC era do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, o FNDE, que financia a construção de escolas, creches e quadras de esportes, a compra de ônibus escolares e equipamentos de tipos variados.
São realizações bem visíveis, o chamado "dinheiro na veia", bem mais palpável para os eleitores dos grotões do que a lendária diretoria da Petrobras que fura poço, tão almejada em governos anteriores. Mais precisamente R$ 10,1 bilhões em 2022, destinados majoritariamente a emendas parlamentares, incluindo o orçamento secreto comandado por Arthur Lira (PP-AL).
Os principais cargos do fundo são preenchidos pelos três partidos que compõem o Centrão de Bolsonaro: PP, Republicanos e PL. Mas eis que, quando um prefeito precisa ir ao ministério pleitear a liberação da verba para sua obra ou equipamento, encontra lá um pastor cobrando pedágio que não era nem do Centrão e nem ligado às principais lideranças evangélicas que compõem o governo.
Considerando que, pela lei eleitoral, o dinheiro precisa ser gasto até o início de julho, fica evidente que os pastores ligados a Bolsonaro atravancaram o caminho de muita gente em um momento crucial. Não era preciso ter dotes divinos para saber que, em algum momento, ia dar no que deu.
Nada disso tem a ver com religião, com a guerra cultural que o presidente buscou travar no Ministério da Educação e nem com a presença dos evangélicos no governo. Quem conhece bem o eleitorado evangélico afirma que tampouco o episódio será capaz de fazê-los deixar de votar em Bolsonaro.
É – isso sim– mais um capítulo deplorável na história de um governo que começou celebrizado pelas rachadinhas, passou pelos coronéis lobistas de vacinas e agora torna célebre a propina em barra de ouro. E que pode custar à Bolsonaro, já bastante cercado pelo Centrão e outros tipos de pastores, bem mais do que um quilo de ouro.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/malu-gaspar/post/bolsonaro-e-milton-ribeiro-o-governo-em-troca-de-uma-barra-de-ouro.html
Merval Pereira: Aparelhamento evangélico
Merval Pereira / O Globo
Há quem considere que a deterioração do nosso sistema eleitoral teve início quando os partidos políticos descobriram uma maneira certa de eleger mais candidatos sem precisar de tantos votos quanto o quociente eleitoral exige. Passaram a procurar primeiro artistas, radialistas e jornalistas televisivos, depois jogadores de futebol, e atualmente os candidatos evangélicos têm a predominância.
A Frente Parlamentar Evangélica tem hoje 115 deputados federais, 13 senadores e uma meta ambiciosa: chegar a 30% do Congresso, acrescentando 40 deputados e 11 senadores à sua bancada. É um projeto de poder político preocupante, que chegou a escalar o governo da cidade do Rio de Janeiro como passo importante. Mas essa primeira empreitada foi um fracasso fenomenal com a gestão do bispo Marcelo Crivella, sobrinho do bispo Edir Macedo, da Igreja Universal.
Com as coligações proporcionais, em boa hora extintas, bastava que cada partido tivesse um ou dois puxadores de votos para garantir a eleição de mais candidatos. O palhaço Tiririca teve 3 milhões de votos desde que se candidatou pela primeira vez à Câmara dos Deputados, em 2010. Com isso, estima-se que tenha levado no seu vácuo de cinco a dez candidatos menos votados. Além da extinção das coligações, o Congresso Nacional aprovou mudanças nas regras eleitorais para evitar que candidatos com poucos votos nas eleições proporcionais sejam eleitos pelos “puxadores de votos”.
Agora, os candidatos precisam atingir individualmente 10% do quociente eleitoral de seus estados, o número mínimo de votos que cada partido precisa ter para conquistar uma vaga no Legislativo. São tentativas de retirar das eleições influências que desvirtuem o voto popular. Mas a ação dos evangélicos continua inabalável.
A situação em que se meteu o ministro da Educação, Milton Ribeiro, entregando a pastores a destinação de verbas públicas a pedido do presidente Bolsonaro mostra uma face vergonhosa do aparelhamento político da máquina pública. Na CPI da Covid, já tinha ficado clara a existência de um gabinete paralelo no sistema de saúde pública, a partir da influência de lobistas no Ministério da Saúde. Cansamos de criticar os governos do PT, do MDB, do Centrão que nomeavam pessoas ligadas aos partidos sem capacitação para os cargos. E agora vemos que o Ministério da Educação se utiliza de critério religioso para tomar decisões. É o pior dos mundos, um governo que é guiado pelos interesses de uma religião.
É uma situação inadmissível, seja a religião que for. Pelo jeito, a prática de ter assessores informais existe em todos os ministérios — e, pior, assessores ligados a determinada linha de pensamento, que agem por fora, sem cargos oficiais. Na CPI da Covid, vimos que muitas pessoas trabalhavam dentro do ministério vendendo vacinas, e outras coisas, sem nenhum cargo no governo. É um governo informal, e a informalidade no governo não pode existir.
Pastores não têm nada a ver com o Estado, e sim com suas igrejas. Tanto que a contrapartida de soltar verbas oficiais para prefeitos era a construção de igrejas nos municípios beneficiados. Temos uma novidade na relação público-privada que chega ao extremo. Diante de todo o escândalo no Ministério da Educação, é quase certo que o ministro Milton Ribeiro saia do governo. O Centrão pode não ter força para fazer o sucessor, mas tem força para tirá-lo, porque o escândalo será explorado na campanha, e o governo precisa tomar uma providência.
Pode ser até uma primeira crise entre Centrão e Bolsonaro, que não abre mão de nomear um ministro para ter a garantia de que os valores tradicionais serão ensinados nas escolas, muito mais que a garantia de um projeto de educação organizado e necessário para o país. Por isso, a pasta já teve quatro ministros em seu governo.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/aparelhamento-evangelico.html
Luiz Carlos Azedo: O tucano Eduardo Leite e sua “sombra do futuro”
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
O tempo urge para o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, que precisa se decidir entre permanecer no PSDB ou migrar para o PSD, a convite do ex-prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab. Em ambos os casos, para ser candidato a presidente da República, Leite precisaria se desincompatibilizar do cargo até 2 de abril.
Na primeira opção, essa seria a única decisão sobre seu controle, pois sua candidatura dependerá da desistência do governador paulista João Doria. Na segunda, teria legenda garantida para disputar a Presidência, mas isso não significaria o apoio efetivo dos deputados e senadores do PSD.
Vamos por partes. No PSDB, Doria garante que não pretende desistir para outro tucano — se isso vier a ocorrer, será em favor de outro candidato da chamada terceira via que esteja em melhores condições eleitorais, ou seja, Sergio Moro (Podemos) ou Simone Tebet (MDB). O governador paulista se prepara para deixar o cargo, faz entregas e badala suas realizações, como as três mil escolas em horário integral, que considera seu grande legado na Educação. Não pensa na hipótese de disputar a reeleição ao Palácio dos Bandeirantes, garante aos aliados.
A conspiração para remover Doria da disputa presidencial no PSDB, porém, vai de vento em popa. Parte das fichas está no tabuleiro eleitoral de São Paulo, até agora muito adverso para o vice Rodrigo Garcia. Os desafetos do governador imaginam que tão logo deixe o Palácio dos Bandeirantes, os tucanos paulistas se aliarão aos parlamentares de outros estados que defendem sua substituição por Leite, na convenção eleitoral do PSDB, em agosto.
Essa expectativa parte de uma avaliação do cenário eleitoral paulista, em que Garcia aparece bem atrás de Fernando Haddad (PT), Márcio França (PSB) e Tarcísio de Freitas (sem partido). Se os três forem candidatos, será ensanduichado por França e Freitas no interior paulista, e engolido por Haddad na Grande São Paulo.
Essas dificuldades de Garcia estão sendo atribuídas à rejeição de Doria em São Paulo, mas pau que dá em Chico dá em Francisco. Ou seja, a disputa local está sendo muito balizada pela polarização entre o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Tarcísio e Garcia estão disputando o campo político antipetista, enquanto que Haddad e França trafegam na esteira de Lula.
Apesar de se digladiarem, os tucanos não querem a saída de Leite. Para Doria, que venceu as prévias e acredita controlar a convenção eleitoral, seria um concorrente a menos. Seus dissidentes, porém, fazem um raciocínio mais complexo e trabalham com dois cenários. No primeiro, o governador seria pressionado a desistir pelos aliados do União Brasil e do MDB, que manifestariam apoio a Leite. No segundo, mesmo não sendo o candidato do PSDB, o gaúcho seria a liderança em condições de comandar a federação do PSDB com o Cidadania na reconstrução de uma alternativa social-democrata para o Brasil. Simplesmente porque a sua “sombra de futuro”, em razão da idade, é muito maior do que a de qualquer outro cacique tucano.
A deriva de Alckmin
De certa forma, a deriva do Geraldo Alckmin em direção a Lula reforça esse vácuo de liderança. Herdeiro político de Mario Covas e uma das principais lideranças históricas do PSDB em São Paulo, ao lado de Fernando Henrique Cardoso, José Serra e José Aníbal, a filiação de Alckmin ao PSB, consumada ontem, não pode ser subestimada: o ex-governador tem corpo, cara, coração e cabeça de tucano, mesmo trocando de legenda. Seu discurso não deixou nenhuma dúvida de que pretende agregar ao velho partido do clã Arraes, e à candidatura de Lula, a velha narrativa do PSDB histórico.
Apesar dos questionamentos, a aliança de Alckmin e Lula já foi digerida pelo PT e por toda a esquerda que apoia o ex-presidente. O fato de ter o vice indicado pelo PSB, o maior partido da coalizão de esquerda liderada por Lula, é um ponto final no assunto.
Ao sair da solenidade, os deputados José Guimarães (CE) e Carlos Zarattini (SP), por exemplo, não escondiam o entusiasmo com o discurso do ex-governador paulista, que deixou muito claro seu apoio a Lula. Alckmin falou de esperança e da necessidade de não deixar o passado tolher o futuro. De certa forma, antecipou o discurso que inevitavelmente todos os tucanos de sua geração farão num eventual segundo turno entre o petista e Bolsonaro.
Voltando a Eduardo Leite, essa deriva de Alckmin atrapalha muito os planos de Doria e não pode ser contida por outras lideranças históricas da legenda, que têm apenas uma estratégia de sobrevivência — a maioria em busca de uma vaga na Câmara, como o senador José Serra (SP), por exemplo. Quem poderia resgatar a trajetória do PSDB e conter uma deriva eleitoral, segundo essas lideranças? O governador gaúcho, mesmo que não seja candidato. Por óbvio, esses tucanos dão como certa a cristianização de Doria.
Maria Cristina Fernandes: O pacto paulista
Maria Cristina Fernandes / Valor Econômico
A crença de que a eleição presidencial se define em São Paulo tem movido erros e acertos de campanhas. Não é diferente este ano.
A filiação de Geraldo Alckmin ao PSB para compor a chapa presidencial petista e a escolha de Tarcísio Freitas, o ministro menos contaminado do bolsonarismo, para a disputa estadual são acertos. A disputa presidencial de João Doria, o quinto governador paulista a se perder no mesmo caminho desde a redemocratização, é erro.
Dele emerge a ameaça de derrota que paira sobre o PSDB na disputa pela manutenção do governo que o partido comanda há quase 27 anos.
Fernando Henrique Cardoso, o único tucano a chegar ao Palácio do Planalto, o fez sem escala no Bandeirantes. O PT, das quatro eleições presidenciais que ganhou, só em uma (2002) venceu também em São Paulo. A despeito desse histórico, uma vitória em São Paulo é estratégica.
A primeira razão é aritmética. O Amapá triplicou sua fatia no eleitorado nacional nos últimos 30 anos e chegou a 0,3% do total. Já São Paulo se manteve estável (21,7%) mas na condição de maior colégio eleitoral. É preciso juntar os sete Estados do Norte e os três Sul para emparelhá-lo.
Esta aritmética move Jair Bolsonaro na sua busca por uma vaga no segundo turno. Com uma rejeição em São Paulo superior à média nacional, o presidente precisa colar sua imagem num candidato local descontaminado. De maneira que, a cada cinco pontos amealhados pelo ministro na disputa paulista, pingue um a mais na contagem nacional para o chefe chegar ao segundo turno.
Tarcísio Freitas, carioca e torcedor do Fluminense, já é mais conhecido pelos paulistas que o vice-governador Rodrigo Garcia, graças à atuação das redes bolsonaristas na divulgação de seu nome. Tem como cartão de visitas a experiência na infraestrutura, quesito em que o governo paulista investiu o dobro do que a União o fez em todo o país no ano passado.
Mas a numeralha só conta um pedaço da história. Mais do que eleger presidentes, São Paulo os tem derrubado. As multidões que saem às suas ruas, dos carapintadas aos pixulecos, dão concretude aos números frios da impopularidade dos governantes. Repaginadas, também serviram de munição para quem quer ganhar no tapetão, como mostrou o 7 de setembro de 2021.
É nesta caixa de ressonância que o PT mira. Tem sua maior chance no Estado, desde 2002, quando José Genoino foi para o segundo turno contra Alckmin. Mais do que os eleitores, quem amplifica o volume das manifestações no Estado, estejam estas nas ruas, no noticiário, nos fóruns empresariais, sindicais e culturais, é a concentração. De tudo. Se São Paulo tem um pouco mais de um quinto dos eleitores, chega a um terço de toda a riqueza produzida no país. O som vem daí.
Por isso Lula destacou o mais tucano de seus correligionários, o ex-prefeito Fernando Haddad para a missão de conquistar a caixa de ressonância do antipetismo nacional. Puxou Alckmin tanto para amaciar sua chapa quanto para abrir caminho para Haddad, que já busca um vice “honesto e bom gestor”, ou seja, um dublê do novo parceiro lulista.
Se o ex-prefeito já se movia naturalmente para o centro, a saída de Guilherme Boulos da disputa estadual é um incentivo a mais à moderação. Se o eleitor de esquerda se incomodar, não terá para onde ir.
Quando candidato à Presidência Haddad dizia aos amigos que, se eleito, seu ministro da Fazenda seria Persio Arida, economista da campanha de Alckmin, seu adversário em 2018. Agora está em uma disputa em que o eleitor não escolhe com o bolso, mas com foco nos serviços de segurança, saúde, educação e transporte. Enfrentará um governo que entregou mais que aqueles que o antecederam. Já viveu situação parecida quando, a despeito da boa gestão na capital, foi derrotado na tentativa de reeleição. Mas a situação não está condenada a se repetir.
Ao contrário de Lula, que tem na defesa da democracia o eixo de sua polarização com Bolsonaro, Haddad tem dois adversários fortes cujas máquinas federal (Freitas) e estadual (Garcia) tendem a pesar mais do que os valores.
Haddad lidera a disputa mas também enfrenta a rejeição mais alta, quesito em que ruma para ter concorrentes quando os eleitores se derem conta de quem são os candidatos e seus apoiadores. Bolsonaro e Doria lideram a disputa de padrinhos mais rejeitados.
A rejeição de Doria ruma para se tornar um clássico da história política. A Coronavac faz dele um dos gestores públicos mais credores de reconhecimento nesta pandemia. Mas a avidez do governador pelo confete e a incapacidade de esquentar a cadeira, o sufocam na raiz. No seu lugar, brotou a aversão à política de isolamento.
A obsessão pelo marketing, a traição a Alckmin e até a agressividade contra Bolsonaro no auge da pandemia pesam contra si e contaminam tudo o que faz. O Estado tem a menor taxa de homicídios da história (6/100 mil habitantes) e multiplicou por nove os alunos matriculados em tempo integral, mas metade da população o desaprova como governador.
Entre 1995 e 2021, São Paulo cresceu 65,2% e o Brasil, 71,5%. De sua posse até o fim do ano passado, o Estado cresceu 8% e o país, 1,8%, mas ele se mostra incapaz de convencer mais do que 3% da população de que governaria bem o país.
Rodrigo Garcia terá apenas seis meses como governador para tirar o manto do antecessor sobre este legado. Não será fácil porque, como candidato a presidente, a gestão em São Paulo é o que Doria terá a mostrar.
Seus correligionários acham que os 20% de reconhecimento da gestão são suficientes para colocar Garcia no segundo turno, mas o apoio de Bolsonaro sozinho amealha mais do que isso para Tarcísio. Não será fácil convencer o eleitor de que é preferível prorrogar a fadiga de material com o PSDB a entregar a polícia para Eduardo Bolsonaro acabar com as câmeras nos uniformes que derrubaram a letalidade policial.
O risco de o bolsonarismo, derrotado nacionalmente, sobreviver em São Paulo seria suficiente para Haddad e Garcia fazerem um acordo de apoio recíproco, em caso de um dos dois não ir para o segundo turno. Como disse Alckmin na filiação ao PSB, ao lembrar as disputas contra Lula, era um tempo em que não se colocava em questão a democracia. Agora é.
Não há, porém, pontes capazes de costurar um compromisso anti-bolsonarista. E assim, depois de danificar trilhos por onde escoam os destinos da nação, o bolsonarismo parte para tomar a locomotiva.
Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/o-pacto-paulista.ghtml
Por que petistas e tucanos não se uniram antes?
Cristiano Romero / Valor Econômico
A filiação do ex-governador Geraldo Alckmin ao PSB foi, sem dúvida, o fato político mais relevante da corrida presidencial até agora. O mais incrível foi ver Alckmin, ex-representante da ala conservadora do PSDB, derramar-se em elogios ao ex-presidente Lula (PT).
“É esta a grande causa do Brasil que nos une, que nos irmana, neste momento histórico. Temos que ter os olhos abertos para enxergar, a humildade para entender, que ele [Lula] é hoje o que melhor reflete e interpreta o sentimento de esperança do povo brasileiro”, discursou o ex-tucano, que saiu do PSDB para ser candidato a vice-presidente na chapa de Lula. “Não tenho dúvida de que o presidente Lula, se Deus quiser, eleito, vai reinserir o Brasil no cenário mundial, vai alargar o horizonte do desenvolvimento econômico e vai diminuir essa triste diferença social que nós temos no país.”
Nas redes sociais, além de o acontecimento de ontem ter sido um dos mais vistos e comentados, circularam chistes e piadas de todo tipo, “memes”, como se diz na internet. Apoiadores do petista e do novo “socialista” disseminaram imagens da novidade política. Num dos vídeos, avisa-se, em meio ao som de metralhadoras e antes de mostrar Alckmin discursando, que as cenas são “fortes”, recomenda-se a retirada de crianças da sala e observa-se de que não se trata de obra ficcional. No fim, uma pilhéria que se pretende epígrafe: “No Brasil, inverossímil é a vida e não a arte”.
Para além do gracejo, importa entender o movimento político. Olhando-a em perspectiva, a união Lula-Alckmin, embora não traduza perfeitamente o encontro há muito esperado entre o PT e o PSDB, significa, sim, a aproximação entre essas duas forças da social-democracia brasileira - ainda que o ex-governador de São Paulo seja menos identificado com essa doutrina do que, por exemplo, o senador José Serra (PSDB-SP), o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-governador Mário Covas, falecido em 2001.
Petistas e tucanos não estiveram juntos antes por uma razão: disputa do poder. É quando a vaidade (ou veleidade) se sobrepõe à nobreza da compreensão de que, em certos momentos, é preciso abrir mão de interesses pessoais em benefício de algo maior - o destino de 211 milhões de pessoas, a maioria, pobre.
Lula e FHC estiveram politicamente juntos muito antes de disputarem a presidência. Em 1978, o então sindicalista _ o PT foi fundado dois anos depois _ fez campanha para FHC, candidato ao Senado pelo MDB de São Paulo. Em 1984, os dois participaram do movimento “diretas já”, cujo objetivo era eleger, pelo voto popular, o sucessor do último general do regime militar.
Dois anos depois, Lula e FHC, defenderam, na essência, valores da social-democracia durante a formulação da nova Constituição. É verdade que o PT boicotou a cerimônia de homologação da nova Carta Magna. Petistas alegaram que o texto saiu como desejavam a direita e o chamado “centrão” da época. Na ocasião (1988), espalhou-se a informação de que o partido se recusara a assinar o ato de criação da Constituição.
Na verdade, os petistas subscreveram a Carta porque esta foi uma formalidade exigida de todos os constituintes. Mas, o boato manchou a imagem da sigla - o que eles fizeram foi muito pior porque, afinal, significou rejeitar a nova lei fundamental do país, que, apesar de todos os problemas, instituiu como cláusulas pétreas direitos e garantias fundamentais que sustentam o regime democrático e encerram projeto de nação.
Em 1989, na primeira eleição direta para presidente desde 1960, Lula superou Leonel Brizola, do PDT, e foi para o segundo turno. Perdeu para Fernando Collor, mas, ali, deu-se fato histórico que muitos ainda não enxergaram: depois de 59 anos, o getulismo deu lugar ao lulismo como fenômeno dominante da política (governa-se com ou contra esses dois movimentos).
Em várias ocasiões de sua história, o PT optou pelo poder imediato e acabou pagando caro. Em 1992, foi o partido mais atuante na campanha de impeachment de Collor. Quando este caiu, o vice Itamar Franco ameaçou não assumir se não tivesse apoio da maioria das legendas. Presumindo que a gestão Itamar fracassaria e sabendo que a sucessão presidencial ocorreria dali a dois anos, os petistas recusaram-se a apoiar o governo. Desobedecendo a essa ordem, a ex-prefeita Luíza Erundina aceitou convite para ser ministra e, por isso, foi “suspensa” por um ano. Em 1997, deixou o PT e filiou-se ao PSB.
O PT calculou mal o que seria o governo Itamar. Este tinha aliados em praticamente todas as legendas, capital político extraordinário para governar. Se a lógica petista estivesse certa, todos estavam errados, menos o PT. FHC conta que, em 1994, à frente do Plano Real e sabendo que este tinha enorme chance de finalmente acabar com a hiperinflação no Brasil, chamou Lula para uma conversa, na qual enfatizou essa predição e o alertou que o ideal seria os dois estarem juntos politicamente.
Lula consultou Aloízio Mercadante, referência do partido em assuntos econômicos, e este previu que o Real daria errado. Bem, por causa do plano que liderou, FHC ganhou a eleição presidencial de 1994 e de 1998 no 1º turno, tendo Lula como principal desafiante. Mais: desde a volta da eleição direta, FHC foi o único a vencê-la em 1º turno.
Em 2002, o petista, finalmente, ganhou a confiança da maioria dos eleitores e chegou à Presidência. A transição de governo foi a mais civilizada de que se tem notícia e, no exercício do poder, Lula se reaproximou de FHC Um exemplo: antes de participar de encontro com autoridades europeias, em seu primeiro mês no cargo, Lula telefonou a Fernando Henrique para lhe pedir conselho sobre como se posicionar à esperada invasão do Iraque pelos Estados Unidos. Antes, consultou-o sobre as nomeações que planejava fazer.
O fato é que Lula se revelou mais pragmático do que seus apoiadores, principalmente os intelectuais da USP e os remanescentes da guerrilha. Pragmatismo significou, basicamente, adotar e até aperfeiçoar o arcabouço econômico da gestão tucana. Tudo deu certo e pode-se dizer que nunca antes PT e PSDB estiveram tão próximos do ponto de vista programático como no início da primeira gestão petista.
Mas, como no Brasil, nada é simples quanto parece ser, já no primeiro ano de mandato de Lula, seu então ministro da Casa Civil, José Dirceu, começou a falar em “herança maldita”, o que, obviamente, aborreceu FHC sobremaneira. (os outros capítulos da novela PT-PSDB continuam na próxima semana)
Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/brasil/coluna/por-que-petistas-e-tucanos-nao-se-uniram-antes.ghtml
William Waack: A recuperação de Bolsonaro
William Waack / O Estado de S. Paulo
Ainda que modesta, a recuperação de Jair Bolsonaro nas pesquisas encurtou o tempo e diminuiu as chances de alternativas ao atual presidente e a Lula, o favorito para ser o próximo. Ela matou também as chances de Lula vencer já no primeiro turno, o que submeterá o chefão petista a uma dificílima negociação antes do segundo – não para enfrentar Bolsonaro mas, sim, para tentar governar depois.
O “afunilamento” dos candidatos da terceira via está se dando pela percebida dificuldade de qualquer um deles em deslanchar, e não pela demonstração de muita força nas pesquisas. Até aqui esse afunilamento não levou a uma conjugação de esforços dos vários operadores políticos. Que permanecem dizendo haver tempo suficiente para consolidar uma alternativa à polarização.
A aparente falta de pressa desses articuladores se dá pelo raciocínio central deles: formar bancadas é tão ou mais importante do que a construção de uma candidatura presidencial. Claro que são coisas interligadas, pois um candidato competitivo ao Planalto ajuda a puxar votos para deputados federais. Mas dadas as regras de jogo do sistema político e de governo, a formação das bancadas ganhou um peso maior ainda.
No sentido das regras do jogo talvez esse seja o legado mais relevante de Bolsonaro, que entregou importantes ferramentas de poder ao Legislativo. Esse fato ficou evidenciado mais uma vez durante a janela partidária, que se encerra agora, e na qual aproximadamente 10% dos deputados trocaram de legenda. No saldo, os principais vencedores foram partidos associados à grande massa amorfa do Centrão, que estará plenamente confortável com Bolsonaro ou Lula – o que diz muito sobre a política brasileira.
A recuperação de Bolsonaro nas pesquisas não “nacionalizou” as eleições estaduais, que permanecem altamente regionalizadas e influenciam a composição do Legislativo. Ou seja, os favoritismos nos diversos Estados obedecem a fatores “locais”, sem que o candidato na liderança em cada Estado deva essa condição exclusivamente ao apoio dos líderes “nacionais”. Foi esse “regionalismo” que dificultou a formação de federações, com a qual se pretendia reduzir o absurdo número de partidos.
A mencionada recuperação acentuou nas camadas “pensantes” das elites econômicas e políticas, além das intelectuais, um certo conforto, além de resignação, em relação ao favoritismo de Lula. Em parte esse estado de espírito é impulsionado pelo profundo horror às boçalidades bolsonaristas. Em boa parte, porém, é resultado de acomodação, complacência e a convicção de que, no Brasil, as coisas se resolvem por si mesmas. Não se resolvem.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,a-recuperacao-de-bolsonaro,70004017923
Renascimento da Amazônia pode ajudar o Brasil a cumprir metas do Acordo de Paris
Míriam Leitão / O Globo
Cinco milhões e duzentos mil hectares da Amazônia, que se regeneraram depois de desmatados, não competem com a agricultura. Podem, portanto, ser destinados à restauração. Essa é a conclusão da nova pesquisa do Imazon, dentro da série de estudos Amazônia 2030. A descoberta dos pesquisadores é um passo adiante do estudo recentemente divulgado, mostrando que 7,2 milhões de hectares estão em processo avançado de regeneração. Com as políticas certas, esse renascimento ajudará o Brasil a cumprir as metas do Acordo de Paris e permitirá a muitos produtores resolverem seu passivo ambiental.
— O grande potencial da Amazônia para a restauração é a partir da vegetação nativa. E isso por quê? Porque as sementes estão sendo dispersadas, animais estão circulando entre fragmentos, isso cria um ambiente muito favorável. Em algumas áreas, claro, será necessária intervenção — explicou o engenheiro agrônomo e pesquisador do Imazon Paulo Amaral.
A boa notícia é essa capacidade de regeneração que a floresta ainda tem, apesar de já ter perdido 81,3 milhões de hectares, 20% de sua cobertura ao longo da história. Os pesquisadores seguiram um roteiro trabalhoso para achar essas áreas na floresta:
— Temos o banco de dados de todas as partes que eram florestas e não são mais. Aí pegamos essas áreas abertas e a partir de algorítimos e imagens de satélites identificamos o que havia sido ocupado por agricultura, conseguimos separar também o que era plantio de eucalipto e chegamos nessas áreas.
Foram ao todo 13 milhões de hectares — 13 mil km2 de floresta — que se refizeram depois do desmatamento. Mas os pesquisadores separaram as que tinham sido desmatadas em um prazo de até cinco anos, considerando que o produtor pode voltar a elas para plantar. Com seis anos e até 30 anos de abandono foram identificados 7,2 milhões de hectares.
— Aí separamos as áreas que tinham aptidão agrícola das que não tinham. São dois milhões de hectares que enfrentarão a pressão da produção agrícola. Por fim, chegamos a esses 5,2 milhões de hectares regenerados há mais de seis anos e sem pressão agrícola. Isso representa uma grande chance para o produtor, porque não há o custo de oportunidade, ou seja, o produtor não estará deixando de plantar ou criar gado porque a terra não é adequada para isso — explica a economista Jayne Guimarães, consultora do Imazon.
E a falta de aptidão que eles dizem é serem grandes declives, ou então Área de Preservação Permanente, como a beira dos rios, que não podem mesmo ser desmatadas. Depois de todas essas análises, os autores do estudo, além dos dois entrevistados, a pesquisadora Andréia Pinto e o consultor Rodney Salomão, foram conferir in loco.
— Fomos a campo para ver se aquilo que estávamos identificando nas imagens correspondia ao verificado no local. Confirmamos. Em muitos casos encontramos produtores que estavam com passivos ambientais, por terem desmatado mais do que podiam ou terem suprimido área de APP e vimos que eles, em muitos casos, já zeraram o passivo — diz Amaral.
Se tudo for mantido assim, o Brasil, que se comprometeu no Acordo de Paris a reflorestar, até 2030, 12 milhões de hectares sendo 8,6 milhões na Amazônia, poderá cumprir a meta facilmente. Mas antes terá que implementar uma série de políticas públicas que os pesquisadores recomendam.
Sugerem que haja um sistema de monitoramento de vegetação secundária. Que o governo retome o processo de validação do cadastro ambiental rural, que está parado. E retome os programas de regularização ambiental. Uma parte dessa regeneração ocorreu em terra pública não destinada, onde há os maiores ataques de grileiros, porque são públicas, mas não são Unidades de Conservação, tipo parque ou floresta nacional. É preciso definir a destinação dessas terras. Por fim, é necessário também definir o pagamento por serviços ambientais, principalmente para os outros dois milhões de hectares que têm aptidão agrícola e que ficam em áreas privadas.
Em 2017, o governo Temer lançou a Política Nacional de Recuperação de Vegetação Nativa (Proveg). “Além disso, o Código Florestal determina a restauração de áreas de floresta que foram suprimidas ilegalmente”, diz o estudo. O que os pesquisadores do Imazon mostram é que é possível cumprir essas metas. A Amazônia fez a maior parte do trabalho, renasceu depois de desmatada. Cabe ao Brasil fazer o resto.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/refazendo-amazonia.html
Silvio Pons: Putin perdeu a noção da realidade, mas não o comparemos a Hitler
Entrevista dada a Umberto De Giovannangeli, "Il Riformista", 23 mar. 2022
O arsenal ideológico de Vladimir Putin, suas referências à história da Rússia, as citações da Bíblia. Compreender, não demonizar: uma escolha de campo (informativo). “Il Riformista” discute sobre isso com um dos mais respeitados estudiosos do “planeta” russo: Silvio Pons. O professor Pons ensina História contemporânea da Escola Normal Superior de Pisa. É presidente da Fundação Gramsci.
* A guerra na Ucrânia se combate no território, no céu, mas também nos discursos. E o “czar” do Kremlin fez muitos discursos “históricos” nestas semanas. Professor Pons, qual é o fio condutor desta narração “putiniana”?
A coisa que mais me impressiona é o salto de qualidade no uso da história como legitimação da política, o que, se se quiser, é também o aspecto mais inquietante.
* Por quê?
Porque é uma história mitologizada. Já vimos exemplos de história mitologizada – na guerra da ex-Iugoslávia, para não ir muito longe no tempo – e vimos aonde levou. Formam-se convicções que não são só propaganda instrumental para fins de uma operação bélica. São convicções profundamente enraizadas em quem as expressa e, no fim, ofuscam a consciência de quem as recebe, sobretudo na ausência de liberdade de expressão e de informação. Isto é o que me surpreende mais. A saber, esta ideia de que exista uma espécie de espaço espiritual da Rússia, como o chamou Putin. Trata-se de uma ideia imperial que se estende à Ucrânia e pretende um papel hegemônico da Rússia na Eurásia. É uma convicção que não se desenraíza facilmente. Nesta chave, pode haver uso da violência sem fronteiras nem limites. Corre-se o risco de perder uma dimensão do realismo político. Parece-me que foi isto o que aconteceu a Vladimir Putin. A esta consideração acrescentaria uma segunda, a meu ver, igualmente importante e que se refere aos seus discursos. No de 21 de fevereiro, com base neste discurso mitológico sobre a história, o presidente russo afirmou que a Ucrânia não existe como estado e como nação. Esta ideia provavelmente teve influência no fracasso da “blitzkrieg”.
LEIA ainda
* Em outras palavras...
Quem inspirou esta operação bélica contava com o fato de que o Estado ucraniano derretesse como a neve ao sol ou então que houvesse uma intervenção militar do exército ucraniano para neutralizar Zelensky, permitindo assim aos russos vencer a guerra em poucos dias. Em vez disso viu-se diante de uma resistência patriótica. Nestes trinta anos os ucranianos construíram uma democracia frágil, mas certamente uma consciência patriótica forte. Mesmo tendo rapidamente a evidência de que, ao contrário da sua mitológica visão liquidacionista, a Ucrânia existe – ainda assim Putin continua a repetir o mesmo discurso. E isto é muito inquietante porque não o repete só porque deve seguir forçosamente adiante, tendo começado as coisas de um certo modo. Isto seguramente é verdade. Existe uma lógica pela qual, se você começa algo de modo celerado, deve seguir por este caminho celerado. Mas o que ainda mais me impressiona, e inquieta, é que Putin está profundamente convencido e que, portanto, a leitura desta resistência que faz e impõe aos russos é uma leitura em chave de bandos organizados pelo Ocidente, armas fornecidas pelo Ocidente e assim por diante. Não me parece que tenha mudado alguma coisa no discurso mitológico que articula a guerra de invasão. Neste momento, insisto em afirmar, estou de fato impressionado e preocupado com isto, porque está claro que, se tudo está definido por esta mitologia putiniana, é muito difícil compreender como é que seja possível sentar-se em torno de uma mesa de negociação. Ainda mais com Zelensky. Nenhuma das motivações indicadas por Moscou para invadir a Ucrânia, violando a soberania nacional e a legalidade internacional, mostra-se convincente e fundamentada. Até os países que apoiam a Rússia no seu desafio ao Ocidente, como a China, evitaram entrar muito em detalhes.
* Onde está o salto de qualidade imprimido por Putin?
Sua narração meta-histórica sobre as relações especiais no passado entre os dois países dirige-se – convém voltar a acentuar – a negar qualquer legitimidade à existência da Ucrânia como Estado-nação. Não por acaso Putin se lançou numa nova polêmica antileninista para negar o princípio da autodeterminação nacional, que, ao contrário, indica como causa da dissolução da União Soviética. A referência a um passado idealizado serve assim ao objetivo de delinear o perfil de uma cultura política bem distinta daquela do legado comunista, ou melhor, daqueles que poderiam ser seus elementos progressistas, com exceção do nexo com a Segunda Guerra Mundial. Isto é transparente nas acusações de neonazismo dirigidas ao nacionalismo ucraniano, que por certo toca um ponto profundo na população russa. Com a guerra de invasão, Putin pôs de lado a ideia de uma “federalização” da Ucrânia que confirmasse a máxima autonomia das repúblicas russófonas do leste, para visar a desestabilizar o Estado com uma intervenção armada em vasta escala. O chefe do Kremlin não deixou de recorrer aos argumentos habituais, inspirados na segurança nacional, na ameaça representada pela expansão da Otan para leste. Tal visão, reiterada muitas vezes, foi muitas vezes liquidada no Ocidente como meramente instrumental. Mas, antes ainda do advento de Putin ao poder, já existia na Rússia uma percepção negativa da expansão da Otan. O fato de o Ocidente (Estados Unidos e Europa) não ter apreendido este dado ou ter considerado que os países do ex-império soviético fossem “terreno de caça”, foi um erro, cultural e não só geomilitar, que terminou por favorecer as posições mais revanchistas em Moscou. O problema é que Putin levou esta síndrome de segurança além de toda e qualquer visão realista e parece ter perdido o sentido do realismo que o caracterizou no passado. O poder de Putin conheceu uma gradual, mas sensível, involução autoritária no último decênio. Uma involução que se colocou na conjuntura global pós-crise de 2008 – em síntese, o ocaso da globalização ocidental e a emergência de uma ordem multipolar. Mas ela também revela continuidades de longa duração...
* Do que se trata?
Antes de mais nada, a continuidade da grande potência como pilar do consenso no país, que Putin encarnou desde o início e que, muito mais do que a modernização econômica, tornou-se o terreno para resgatar a humilhação sofrida depois do colapso soviético, em termos de empobrecimento, rebaixamento, marginalização da Rússia. Esquecemos, em particular, que nos últimos quarenta anos as classes dirigentes russas desencadearam uma série de guerras quase ininterrupta, com a única exceção dos anos de Gorbachev. Afeganistão, 1979, duas guerras na Chechênia, 1994 e 1999, quando emerge a figura até então desconhecida de Putin, Geórgia, 2008, Ucrânia, 2014, e hoje. Em outras palavras, a época pós-Guerra Fria nunca foi pacífica para a Rússia e a militarização certamente enfraqueceu a sociedade civil. Entre as continuidades essenciais está a síndrome da segurança herdada do passado e levada ao extremo por Putin, que dela fez o eixo fundamental da sua resiliência interna.
* Nestes dias muitos se aventuraram em fazer paralelismos entre o pensamento de Putin e o de um personagem que deixou um sinal trágico, devastador, na Europa: Adolf Hitler. Há até mesmo quem definiu os discursos de Putin destas semanas como o “Mein Kampf” do czar do Kremlin. Não lhe parece um exagero?
Absolutamente, sim. Esta me parece uma visão superficial e atabalhoada. Não que faltem analogias...
* Quais são, professor Pons?
Uma delas é a reivindicação de ajuda a ser dada às minorias linguísticas russas fora dos limites da Federação Russa. Nisso há uma analogia com o Hitler dos sudetos e do desmembramento da Tchecoslováquia em 1938. A outra analogia é a de uma narração vitimista da nação russa. A ideia de que a Rússia tenha sido gravemente humilhada e marginalizada na ordem mundial pós-Guerra contém em si algo de verdade. Mas na versão putiniana torna-se um “complô do Ocidente", torna-se uma visão nebulosa, hostil, sem nenhuma possibilidade de argumentação divergente. Estas analogias existem, mas são analogias superficiais.
LEIA Ainda
Intervista a Silvio Pons: “Il piano fallito di Putin, spiazzato dalla resistenza dell’Ucraina”
* Em que bases históricas as define como tal?
Antes de mais nada, há uma consideração que deveríamos fazer em chave realista. Hitler queria conquistar o mundo, e a Alemanha da época tinha também os instrumentos, bélicos e econômicos, para pôr em ação os planos de conquista de amplo alcance. E apesar disso se viu na condição de perder a guerra, até porque tais bases não eram adequadas às aspirações de Hitler. A Rússia de hoje nem de longe tem estas possibilidades, a não ser do ponto de vista dos seus arsenais atômicos. Neste sentido poderíamos dizer que Putin não é Hitler porque não quer conquistar o mundo, mas quer fazer outra coisa.
* Qual coisa?
Quer construir um espaço pós-imperial russo que se defronta, de modo hostil, com a Otan e que tende a se aliar com a China. Neste sentido, Putin não é Hitler e corre o risco, antes, de se tornar um ator subordinado ao projeto chinês de uma outra ordem mundial. Contudo, isto não significa que Putin não seja criminoso e menos ainda que não seja perigoso. Não é preciso ser Hitler para ser perigoso. Por exemplo, não é preciso ser Hitler para fazer a limpeza étnica que está fazendo na Ucrânia. Nós na Ucrânia vemos, sobretudo, o aspecto mais trágico, o ataque armado aos civis que é um crime contra a humanidade. Mas o que está acontecendo é também uma limpeza étnica, deliberadamente provocada pela invasão russa. Porque o fluxo de migrantes que chegará rapidamente a 5 milhões é, de fato, uma limpeza étnica. Isto é o que está acontecendo.
Fonte: Esquerda Democrática