Elio Gaspari: Está no ar a barafunda Bolsonaro
Governo enriquece Lei de Murphy: se algo pode dar certo, trabalha para que dê errado
Jair Bolsonaro superou as marcas de impopularidade de seus antecessores no início do primeiro mandato. Com viés de piora, esse desempenho deve-se em parte a um processo de autocombustão, mas nem tudo pode ser atribuído a Bolsonaro. Ele teve a ajuda de ministros civis e militares.
Resolveram fazer uma reforma da Previdência. Poderiam ter seguido a sugestão do economista Paulo Tafner, fatiando-a. Mandariam primeiro o corte dos privilégios dos marajás e depois cuidariam dos miseráveis. Resolveram juntar as duas brigas. Vá lá.
É elementar que a profissão e a Previdência dos militares nada têm a ver com as dos servidores civis. Poderiam ter separado as duas questões. Não só juntaram os debates, como decidiram botar no combo um projeto de reestruturação da carreira militar, coisa que não tem nada a ver com a Previdência.
Todas essas decisões embaralham o debate e dificultam a aprovação de algo parecido com o projeto original do governo. Como alguma reforma haverá de ser aprovada sempre se poderá cantar vitória. Afinal, Fernando Henrique Cardoso e Lula também fizeram reformas da Previdência. Nenhum deles atritou-se com o presidente da Câmara.
A barafunda vai além da reforma. O ministro Sergio Moro resolveu peitar Rodrigo Maia com mais uma de suas jeremíadas. Tomou umtranco e ficou em paz. Durante a visita de Bolsonaro a Washington, o ministro das Relações Exteriores foi humilhado, um filho do presidente disse que os brasileiros que vivem nos Estados Unidos sem documentação são “vergonha nossa” e o condestável da Economia informou que gosta de Coca-Cola e da Disneylândia. (Quem passava dias sozinho na Disney era o professor Mário Henrique Simonsen, mas ele nunca anunciou isso a uma plateia de empresários.)
Se tudo isso fosse pouco, Bolsonaro disse na Casa Branca que acredita “piamente” na reeleição de Donald Trump. Sentiu cheiro de banana e foi procurar a casca para escorregar. Os dois presidentes que mais ajudaram a ditadura brasileira foram Lyndon Johnson e Richard Nixon. Um encantou-se com o marechal Costa e Silva, o outro com Emilio Médici. Ambos foram eleitos com memoráveis maiorias e acabaram naufragando. Amaldiçoado, Johnson desistiu da reeleição. Acuado, Nixon renunciou. Os presidentes brasileiros não disseram coisa parecida. Trump nunca teve a força de qualquer um desses antecessores.
A Lei de Murphy diz que, se uma coisa pode dar errado, errado ela dará. O governo do capitão parece disposto a enriquecê-la: Se uma coisa pode dar certo, trabalham para que dê errado.
BRETAS PRENDEU TEMER PORQUE QUIS
Lula foi para a carceragem de Curitiba depois de ter sido indiciado, denunciado e condenado em duas instâncias. Temer foi encarcerado sem ter sido ouvido, indiciado, denunciado ou condenado. Tudo bem, o juiz Marcelo Bretas prendeu-o preventivamente e decisão judicial deve ser cumprida.
Na sua decisão o doutor Bretas reconheceu que Temer não foi condenado e ofereceu uma “análise ainda superficial” dos crimes que o ex-presidente teria cometido.
Cuidando do “superficial”, ocupou 40 páginas de sua decisão. Sua análise faz sentido, e muito, mas é apenas uma opinião. Justificando a prisão preventiva de Temer, Bretas não escreveu uma só linha.
Justificou-a genericamente, quando associou-a à de outros integrantes da “suposta organização criminosa”, e nisso ocupou três páginas. Nelas, justificou as preventivas porque “no atual estágio de modernidade, bastam um telefonema ou uma mensagem instantânea” para ocultar “grandes somas de dinheiro”. (São Paulo tem rede de telefonia desde o início do século passado.)
Mais: o coronel Lima, faz-tudo de Temer, cuidava de apagar rastros e documentos no próprio escritório. (Bretas não fez qualquer referência à tentativa de depósito de R$ 20 milhões em dinheiro vivo na conta do coronel.)
Mesmo admitindo-se que tudo o que Bretas atribuiu a Temer na sua “análise ainda superficial” seja apenas parte de uma horrível verdade, as razões que citou para encarcerá-lo preventivamente são ralas.
O Brasil teve dois ex-presidentes presos. Um porque foi condenado. O outro não foi ouvido, indiciado, denunciado ou sentenciado. Os tempos estranhos ficaram mais estranhos.
EREMILDO, O IDIOTA
Eremildo é um idiota e acredita em tudo o que dizem os presos, a polícia e os procuradores, só não entende como alguém entrou numa agência bancária para depositar R$ 20 milhões em dinheiro vivo.
Alguém deveria carregar duas malas, cada uma pesando 25 quilos.
O cretino acha que existe um vídeo registrando a passagem desse estranho personagem pelo banco.
O Ministério Público informou que esse fato “ainda precisa ser investigado e apurado”.
RICO, COM SARAMPO
O governo propagou a ideia de que trocou a condição de pedinte na Organização Mundial do Comércio por um assento no clube dos ricos tornando-se eventual membro da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE.
Não é bem assim, porque a China está na mesma gaveta que o Brasil na OMC e tanto o México como a Grécia são membros da OCDE.
No mesmo dia em que o governo festejou essa possível baldeação, a Organização Mundial da Saúde tirou o Brasil da lista de países que erradicaram o sarampo.
Quando o delegado brasileiro for a uma reunião da OCDE e perceber que o sueco não chega perto dele, saberá por quê.
BASTA!
Nunca é demais lembrar como funcionava o tribunal de cassações da ditadura. Reuniam-se os ministros que integravam o Conselho de Segurança Nacional e um coronel lia a biografia do acusado.
Em 1969, o conselho estava reunido e o oficial começou e ler os dados pessoais de uma vítima: “Simão da Cunha, mineiro, bacharel...” O general Orlando Geisel interrompeu-o: “Basta!”
Seguiu-se uma grande gargalhada. Cunha foi cassado sem que fosse lida a acusação.
BOA NOTÍCIA
Uma dezena de fundações privadas cacifam o programa Ensina Brasil, que seleciona jovens formados em universidades públicas e privadas interessados em trabalhar por dois anos como professores nas redes escolares do país. Eles já atuam em alguns municípios de Pernambuco, Espírito Santo, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Programas semelhantes existem em 45 países.
A sabedoria convencional ensina que poucos recém-formados em seja lá o que for topariam trabalhar dois anos como professor. Pois neste ano o Ensina Brasil teve 10 mil candidatos para 123 vagas. Depois de um processo seletivo, eles passam por quatro semanas de curso presencial em São Paulo e assistem a 2.000 horas de aulas a distância. A ideia do projeto é achar gente interessada em melhorar a educação no país, formando lideranças nessa área.
Os jovens que entram no Ensina Brasil recebem os salários da escola e uma pequena ajuda do programa.
Como nem tudo são flores, há estados onde os sindicatos de professores não querem nem ouvir falar no assunto.
*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".
Elio Gaspari: O STF quebrou um pé da Lava Jato
Chamar roubalheiras de políticos de caixa 2 sempre foi um sonho de consumo
Por 6 a 5, o Supremo Tribunal Federal decidiu que os delitos de caixa dois e as práticas que lhes são conexas devem ficar no âmbito da Justiça Eleitoral. Jogo jogado.
Em 2006, por unanimidade, o mesmo Supremo decidiu que a cláusula de barreira era inconstitucional. Ao fazer isso, as togas dos 11 ministros serviram de cobertura para pequenos partidos que mamavam recursos do fundo partidário e o tempo dos horários gratuito de televisão. Veio a Lava Jato e, com ela, escancarou-se a roubalheira nacional. Graças ao clima que Curitiba criou, o Congresso aprovou uma nova modalidade de barreira.
Em 2017, o ministro Gilmar Mendes, que estava na unanimidade de 2006, disse que “hoje muitos de nós fazemos um mea-culpa, reconhecemos que foi uma intervenção indevida, inclusive pela multiplicação de partidos”. (Ele foi o único a fazer o mea-culpa, mas deixa pra lá.)
O 6 a 5 de quinta-feira poderá ser avaliado daqui a anos. Entre a unanimidade de 2006 e o mea-culpa de 2017 passaram-se nove anos.
Chamar de caixa dois as roubalheiras de políticos sempre foi um sonho de consumo. Esse truque saiu da cartola de Lula em 2005, quando surgiu o escândalo do mensalão.
Quando o Supremo matou a cláusula de barreira, os ministros sabiam que, junto com a defesa da liberdade de expressão, abriam a porteira para otras cositas más. Hoje, na estrada do caixa dois há 50 tons de capilés. Numa ponta está o candidato que aceita uma ajuda (monetária ou não) e deixa de registrá-la junto à Justiça Eleitoral. Na outra, está o magnífico Sérgio Cabral. Até bem pouco tempo ele dizia que amealhara dezenas de milhões de dólares valendo-se do desvio de dinheiro eleitoral.
Era mentira. Num exagero, mandar para a Justiça Eleitoral o processo de um coletor de propinas porque ele diz que tudo era caixa dois seria o mesmo que começar numa Vara de Família o processo do assassino de um casal que deixou quatro filhos, tornando-os órfãos.
Num voto seco, técnico, o ministro Luis Roberto Barroso sintetizou a questão: o que importa não é para onde o dinheiro vai, mas de onde ele vem. Se ele vem de propinas, o delito não é eleitoral, mas corrupção.
Barroso ficou na minoria.
A sessão do Supremo teve um momento de teatralidade com Gilmar Mendes chamando procuradores de “gângsters”, mas foi ele quem melhor definiu o debate: ”O que se trava aqui é uma disputa de poder”. Saiu satisfeito o lado de quem tenta esconder suas roubalheiras atrás do caixa dois, e quem perdeu foi a turma da Lava Jato.
O tempo mostrará as consequências do 6 a 5. Em cinco anos, a República de Curitiba destampou a panela da corrupção nacional como nenhum grupo de procuradores ou tribunal conseguiu fazê-lo desde que a Terra dos Papagaios chama-se Brasil.
A turma da Lava Jato acertou muito e errou pouco, mas tropeçou na soberba.
Sergio Moro não deveria ter divulgado o grampo de uma conversa de Dilma Rousseff com Lula sabendo que ela ocorreu fora do prazo autorizado pela Justiça. Também não deveria ter divulgado um anexo irrelevante e inconclusivo da colaboração do comissário Antonio Palocci no calor da campanha eleitoral do ano passado. Talvez não devesse ter deixado a Vara de Curitiba, e certamente os 12 procuradores signatários do acordo que criaria uma fundação de direito privado com recursos da Petrobras deveriam ter medido melhor os riscos que corriam.
Tanto a turma de Curitiba como os seis ministros do STF acharam que são supremos.
VENDA DE ALMA
Enunciando mais um pilar de sua diplomacia paleolítica, o chanceler Ernesto Araújo informou que “nós queremos vender soja e minério de ferro, mas não vamos vender nossa alma”.
Resta saber se alguém quer comprar essa alma.
RADIOATIVIDADE
O Ministério Público não quer ouvir o sobrenome Bolsonaro no caso do assassinato de Marielle Franco.
Antes que se pense que há nisso alguma forma de blindagem, o motivo real da preocupação é técnico. Se algum Bolsonaro entrar na roda, o foro do caso sai da alçada do MP. A prisão de Ronnie Lessa e Élcio Queiroz mostra que as promotoras pegaram o fio da meada.
TESTE
Como ficariam as coisas se:
1) Adélio Bispo, o autor da facada contra Jair Bolsonaro, fosse vizinho de Fernando Haddad no condomínio Vivendas da Barra.
2) Se um delegado informasse que a filha de Adélio namorara um filho de Fernando Haddad.
3) Se Adélio tivesse chegado ao local junto com um cidadão filiado ao PT.
4) Se a polícia encontrasse 117 fuzis pertencentes a Adélio na casa de um amigo dele.
CRIME DE ÓDIO
O delegado Giniton Lages, que investigava o assassinato de Marielle Franco, atribuiu o provável motivo da ação atribuída ao ex-PM Ronnie Lessa a “uma obsessão por determinadas personalidades que militam à esquerda política”. Crime de ódio, enfim. Essa é forte.
Adélio Bispo diz que esse foi o motivo que o levou a esfaquear JairBolsonaro. Até hoje não apareceu pista de mandante.
O Brasil teve outros três famosos atentados movidos pelo ódio político.
Em 1897, Marcelino Bispo atentou contra a vida de do presidente Prudente de Moraes e matou o ministro da Guerra. Em 1915, Manso de Paiva matou o senador Pinheiro Machado com uma facada. Eram lobos solitários.
No terceiro caso, tratava-se de ódio alugado, pois havia mandante. Em 1954, a guarda pessoal de Getúlio Vargas tentou matar o jornalista Carlos Lacerda e assassinou um major da Aeronáutica. Deu no que deu.
Quatro presidentes americanos foram assassinados por ódio político. Em três casos, foram ações de lobos solitários (John Kennedy, William McKinley e James Garfield). No quarto, o de Abraham Lincoln, houve quadrilha, mas não houve mandante.
Juntando-se todos esses atentados, jamais os criminosos tiveram negócios com o jogo clandestino e com milícias. Somando-se todas as armas dos atentados brasileiros e americanos, não se chega nem perto do arsenal de 117 fuzis de Ronnie Lessa. Conta outra, doutor.
RECORDAR É VIVER
Para que os operadores políticos de Bolsonaro percebam o peso que os políticos dão aos seus pedidos.
Em 1962, o vice-presidente americano Lyndon Johnson pediu a John Kennedy a nomeação de uma juíza para Dallas. Nada feito. Johnson era um protegido do presidente da Câmara e ele avisou ao governo: enquanto ela não for nomeada, a sua pauta está trancada. A nomeação saiu no dia seguinte.
No início da tarde de 22 de novembro de 1963, diante de um mundo perplexo, Kennedy estava morto e Johnson foi levado para o avião presidencial, onde deveria prestar juramento diante de um juiz federal.
O ar refrigerado do Air Force One estava desligado e fazia um calor horrível em Dallas. O novo presidente pediu que achassem a juíza Sarah Hughes, pois queria que ela presidisse a cerimônia de sua posse.
Poucas pessoas notaram que ele fora à forra.
Elio Gaspari: O governo tem rumo, o da crise
A quitanda não tem troco, mas vende fiado emendas constitucionais
O professor Delfim Netto avisou que a partir do dia 2 de janeiro o governo precisaria abrir a quitanda todas as manhãs oferecendo beringelas e troco à freguesia. A quitanda tem oferecido encrencas, baixarias e tuítes. Se isso fosse pouco, o "Posto Ipiranga" de JairBolsonaro vende fiado três projetos de emendas constitucionais, daquelas que precisam de três quintos das duas Casas do Congresso. Pode-se até pensar que a da reforma da Previdência será aprovada. Qual? A que conseguir os três quintos.
Como se planejasse dificuldades, o ministro Paulo Guedes anunciou que pretende propor a desvinculação das despesas orçamentárias. Nova emenda constitucional. Tem mais. Uma medida provisória determinou que as contribuições sindicais não podem ser descontadas na folha de pagamento dos trabalhadores. Ótima ideia, porque a nobiliarquia do sindicalismo quer que os trabalhadores tenham todos os direitos, menos o de decidir se contribuem para suas guildas. O fim do desconto compulsório abalará todos os sindicatos, que bem ou mal, devem cuidar dos interesses dos trabalhadores. Para evitar esse colapso surgiu outra boa ideia, acabar com a unicidade que obriga que cada categoria tenha um só sindicato por município. Em tese, havendo competição, o sistema funcionará melhor. Para o estabelecimento da pluralidade será necessária uma terceira emenda constitucional.
Vistas separadamente, cada uma dessas propostas faz sentido. Juntas, coligam os interesses dos sindicalistas, dos marajás da Previdência às corporações da saúde ou da educação. Separados, esses blocos podem ser batidos. Juntos, até hoje estão invictos.
Há na pregação do ministro Paulo Guedes algo de José Wilker no comando da inesquecível caravana Rolidei do "Bye Bye Brasil" de Cacá Diegues. Quem viu o filme lembra que no seu momento de glória poética o Lord produziu o supremo símbolo da modernidade: neve.
A plataforma reformista de Guedes tem suas próprias dificuldades, mas a elas somou-se à natureza errática do próprio presidente, que não pode ver casca de banana sem atravessar a rua para escorregar nela. Em menos de cem dias, Bolsonaro viu-se encoberto pela névoa de um possível controle palaciano. É a velha lenda segundo a qual grandes ministros são capazes de controlar presidentes. Donald Trump está aí para demonstrar a futilidade dessa ideia.
No Brasil, a teoria do controle interno teve dois grandes fracassos e um êxito. Pensou-se que Fernando Collor seria controlado. Deu no que deu. Antes dele, pensou-se em blindar o comportamento errático do general João Figueiredo. A trama derreteu em menos de um mês.
O controle funcionou no caso do general Emilio Médici. De 1969 a 1974, quando ele presidiu o Brasil, mandaram os professores Delfim Netto (na economia), João Leitão de Abreu (na administração) e o general Orlando Geisel (nas Forças Armadas). A manobra só deu certo porque foi voluntária e sincera. Médici, que não queria ser presidente, decidiu delegar esses poderes. Ao decidir não mandar, mandou como poucos, até porque tinha o cajado do Ato Institucional nº 5. Faltam a Bolsonaro não só o AI-5 como a disciplina circunspecta de Médici. (Vale lembrar que, sabendo o risco que corria por ter dois filhos adultos, levou-os para o quartel do Planalto. De um deles, Roberto, pouco se falou. Do outro, Sérgio, nada.)
O governo Bolsonaro parece sem rumo. A má notícia é que seu rumo pode vir a ser o de uma crise.
Elio Gaspari: A turma da Lava Jato criou uma fundação
Os doutores da força-tarefa superestimaram sua força e extrapolaram suas tarefas
Em setembro passado, a Petrobras e o governo americano assinaram um acordo pelo qual a empresa encerrou seus litígios com os órgãos reguladores daquele país. Era um espeto de US$ 2,95 bilhões. Nessa negociação acertou-se que o equivalente a R$ 2,5 bilhões seriam pagos às “autoridades brasileiras”.
Em dois momentos o acordo se refere às “Brazilian authorities” como destinatárias do dinheiro.
Em janeiro deste ano, o doutor Deltan Dallagnol e outros 11 procuradores da força-tarefa da Lava Jato de Curitiba assinaram um acordo com a Petrobras pelo qual o dinheiro que deveria ir para as “autoridades brasileiras” foi para uma conta aberta numa agência da Caixa Econômica de Curitiba em nome do Ministério Público Federal.
Seria razoável supor que os R$ 2,5 bilhões fossem para a conta do Tesouro Nacional, nome de fantasia da Bolsa da Viúva, mas, afinal de contas, eles, como os diretores de hospitais, também são autoridades.
Os doutores da força-tarefa superestimaram sua força e extrapolaram suas tarefas. Superestimaram seus poderes colocando sob sua jurisdição um dinheiro que deveria ir para o Tesouro. Exorbitaram suas tarefas quando estabeleceram que metade dos R$ 2,5 bilhões seja transformado num fundo para financiar uma fundação de direito privado.
Ela ainda não existe, mas, segundo os procuradores, seus recursos “serão destinados ao investimento social em projetos, iniciativas e desenvolvimento institucional de entidades idôneas que reforcem a luta da sociedade brasileira contra a corrupção, inclusive para a proteção e promoção de direitos fundamentais afetados pela corrupção, como os direitos à saúde, à educação e ao meio ambiente, dentre outros”. Tudo, enfim.
O ervanário, correspondente ao orçamento da Universidade de Campinas, foi burocraticamente apropriado para sustentar uma fundação de natureza privada. Se essa tivesse sido a combinação da Petrobras com o governo americano, seria o jogo jogado. Em nenhum momento os procuradores de Curitiba ou mesmo a Procuradoria-Geral da República são mencionados no acordo americano.
No item 7 do acordo firmado pelo Ministério Público com a Petrobras, os doutores dizem que “as autoridades norte-americanas consentiram” em que os recursos “sejam satisfeitos com base no que for pago (...) conforme acordado com o Ministério Público Federal”.
Seja qual for o significado desse “satisfeitos”, esse consentimento não consta do acordo. Vá lá que tenham combinado noutra sala. Pode sobrar para o lado americano da combinação.
No item seguinte está escrito que “conforme previsto no acordo com a Security Exchange Commission (a CVM americana) e o Departamento de Justiça, na ausência de acordo com o Ministério Público Federal, 100% do valor acordado com as autoridades americanas será revertido integralmente para o Tesouro norte-americano”.
Isso não consta do texto mencionado. Lá está escrito que o dinheiro voltará para o Tesouro americano se a Petrobras não o entregar às autoridades brasileiras. Nada a ver com “acordo com o Ministério Público Federal”.
A turma da Lava Jato acha que pode tudo. Pode até nomear um procurador aposentado para presidir essa fundação milionária. Talvez possa, mas fica feio.
Serviço: Todos os documentos mencionados neste texto podem ser consultados no site Migalhas.
FACHIN TRAVOU A FESTA
Talvez a turma da Lava Jato possa tudo, mas num caso semelhante ao da apropriação burocrática dos R$ 2,5 bilhões do acordo da Petrobras, o ministro Edson Fachin travou a festa.
O Ministério Público Federal queria destinar o butim amealhado pelo casal de marqueteiros João Santana e Mônica Moura ao Fundo Penitenciário Nacional. Eles deviam R$ 6 milhões em multas e repatriaram US$ 21,8 milhões de contas que mantinham no exterior, alimentadas por empreiteiras.
FACHIN FOI CLARO
“O valor deve ser destinado ao ente público lesado, ou seja, a vítima, aqui compreendida não necessariamente como aquela que sofreu diretamente o dano patrimonial, mas aquela cujo bem jurídico tutelado foi lesado. No caso, a Administração Pública.”
Fachin mandou que o dinheiro da multa também fosse para a Viúva, “cabendo a ela e não ao Poder Judiciário, inclusive por regras rigorosas de classificação orçamentária, definir, no âmbito de sua competência, como utilizará essa receita”.
HARDT NÃO LEU
A defesa de Lula está sendo boazinha com a juíza Gabriela Hardt, que o condenou a 12 anos no processo do sítio de Atibaia. Reclamam porque ela copiou e colou trechos de outra sentença de Sergio Moro.
É pior. A doutora simplesmente não leu o que assinou. Se tivesse lido, não diria que Léo Pinheiro e José Aldemário Pinheiro são duas pessoas diferentes. Léo é o apelido de Aldemário. Esse seria o erro menor.
Na última página de sua sentença, quando colou o trecho da sentença de Moro, ela menciona um “apartamento” quando julgava o caso de um sítio. “Apartamento” era o tríplex do Guarujá.
A juíza não leu o que colou.
VIVANDEIRAS
Seja qual for a leitura que se faça da frase de Bolsonaro —“democracia e liberdade só existem quando a sua respectiva Força Armada assim o quer”—, fica uma pergunta: e quando elas não a querem, o que entra no lugar?
A resposta simples é que se vai para uma ditadura, mas isso não é tudo. Vai-se também para um período de anarquia militar.
Na ditadura das louvações de Bolsonaro, a anarquia instalou-se na madrugada de 2 de abril, quando o general Costa e Silva nomeou-se ministro da Guerra. Sucederam-se sedições. Em 1965, o marechal Castello Branco foi obrigado a editar o Ato Institucional nº 2, que acabou com a eleição para presidente e governadores. Em 1968, Costa e Silva foi (com gosto) levado a baixar o AI-5. Em 1969, impedindo a posse do vice-presidente Pedro Aleixo para instalar a Junta Militar dos “Três Patetas”.
Em outubro de 1977, no último suspiro da anarquia, o ministro Sylvio Frota achou que emparedaria o presidente Ernesto Geisel. Foi demitido.
O então capitão Augusto Heleno, atual ministro do Gabinete de Segurança Institucional, deve se lembrar desses dias, pois era um jovem ajudante de ordens de Frota.
O capitão Bolsonaro deixou o Exército em 1988, com a carreira comprometida por atos de indisciplina. Como paisano, deve evitar uma carapuça lançada em 1964 pelo marechal Castello Branco quando apontou para as “vivandeiras alvoroçadas, (que) vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do Poder Militar”.
PAULO FALARÁ?
A banda chique do PSDB paulista está conformada e acha que em breve seu operador Paulo Vieira de Souza começará a colaborar com a Viúva.
Paulo Preto está na cadeia e já foi condenado a penas que somam mais de um século.
*Elio Gaspari, Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".
Elio Gaspari: Crivella quer o Porto Jogatina
Cariocas são obrigados a suportar fantasias e empulhações do prefeito do Rio
Num mesmo dia, o prefeito Marcelo Crivella disse que "o Rio de Janeiro é o epicentro da corrupção" e anunciou um futuro radiante para o projeto do Porto Maravilha. Prometeu R$ 10 bilhões em investimentos com a construção de duas torres de hotéis, um centro de convenções e... um cassino.
O prefeito do "epicentro da corrupção" defende a legalização da jogatina para salvar um projeto megalomaníaco atolado na zona portuária da cidade. Isso num estado que tem dois governadores presos, e foram apanhados em roubalheiras dezenas de deputados, secretários do governo e conselheiros do Tribunal de Contas. Dois cardeais da sacrossanta Arquidiocese de d. Eugênio Salles viram suas atividades tisnadas por malfeitos de pessoas que lhes eram próximas. Tudo isso sem que o jogo seja legalizado.
Um policial militar que trabalhou com a família Bolsonaro e orgulhou-se de "fazer dinheiro" ainda não ofereceu uma versão consistente para explicar suas movimentações financeiras. Um capitão da tropa de elite da PM teve a mãe e a mulher empregadas no gabinete do filho do presidente. Alcunhado "Caveira", o oficial foi expulso da corporação e está foragido. Ele era donatário de uma milícia da cidade.
O Rio de Janeiro elegeu um juiz para o governo do estado. Outro policial, que se apresentava como seu consultor para assuntos de segurança, está na cadeia, acusado de extorsão. Na última eleição esse policial foi candidato a deputado federal pelo partido do governador. O filho do presidente homenageou-o numa sessão da Assembleia Legislativa.
Sem cassinos, o Rio já está assim. Nenhuma pessoa de boa-fé pode acreditar que alguma coisa melhorará com estímulos à jogatina e a abertura de lavanderias de dinheiro. Ao crime organizado Crivella que juntar o jogo legalizado.
O prefeito não joga, não fuma, não bebe e sabe que está apenas criando uma nova miragem para uma cidade ludibriada por fantasias como as da Copa do Mundo e da Olimpíada. De miragem em miragem o Rio vive uma eterna Quarta-Feira de Cinzas. Crivella sabe que a reabertura dos cassinos depende da aprovação de uma lei pelo Congresso. Conhecendo a tessitura do crime organizado na cidade, dificilmente Jair Bolsonaro perfilhará a legalização do jogo.
No mundo real, a única pessoa tenuemente interessada nas torres e no cassino prometidos por Crivella é o bilionário americano Sheldon Adelson, que tem complexos de turismo e jogo em Las Vegas, Macau e Singapura. Ele começou a trabalhar aos 12 anos (tem 85) e já juntou US$ 33,3 bilhões (R$ 125,7 bilhões).
É um campeão da causa de Israel e a ele se atribui a abertura dos cofres de muitos republicanos para Donald Trump. É também um protetor do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu. Dele viriam os R$ 10 bilhões imaginados por Crivella.
O Porto Maravilha de Eduardo Paes atolou porque era um projeto demófobo. O Rio da zona portuária nunca poderia ter sido o que é o Puerto Madero argentino, como a Barra da Tijuca nunca será uma Miami. Aquela área está num bairro popular e centenário. Quem quiser conferir, que ande pelas ruas da Gamboa e de São Cristóvão. A megalomania imobiliária encalhou porque foram poucos os interessados em levar suas empresas para lá. Ali, o povo do Rio sempre viveu em casas modestas. Miami é em outro lugar.
Na região do Porto Maravilha construíram-se dois novos museus. A poucos quilômetros dali, pegou fogo o Museu Nacional. (Quarenta anos antes, incendiou-se o museu de Arte Moderna. Ganha um fim de semana em Caracas quem souber de outra cidade com semelhante desempenho.)
Elio Gaspari: A confissão de Cabral tem farinha de pizza
O juiz Marcelo Bretas e o Ministério Público no Rio podem transformar a massa numa inédita faxina
A quantidade de farinha que o ex-governador Sérgio Cabral colocou na sua repentina conversão à causa da verdade deu um cheiro de pizza às suas confissões. O doutor reconheceu-se viciado em roubo. Isso até as pedras sabem, tanto que ele já amealhou sentenças que lhe dão a fortuna de 198 anos de cadeia.
Sua confissão vale nada, mas pode vir a valer muito, desde que o juiz Marcelo Bretas e o Ministério Público Federal no Rio percebam que Cabral pode se transformar no maior colaborador da história daquilo que se convencionou chamar de Lava Jato.
Cabral presidiu a Assembleia Legislativa, foi senador, governou o Rio por oito anos, reelegeu-se com dois terços dos votos e emplacou um cúmplice como sucessor. Ele sabe tudo, sabe mais do que souberam os empreiteiros e é o primeiro gato gordo do aparelho do Estado a mostrar que pode falar. Nada a ver com a colaboração seletiva e pasteurizada do ex-ministro Antonio Palocci.
A guinada de Cabral sugere que ele busca um acerto no escurinho dos processos. Falando o que já se sabe, aliviaria a situação de seus parentes e conseguiria algum tipo de conforto. Nesse caso, surgiria um Cabral 2.0. O mitológico gestor de propinas daria lugar ao administrador de confissões.
Se o detento quer colaborar com as investigações, precisa sentar com o Ministério Público para contar como funciona a máquina de corrupção política, administrativa e empresarial do andar de cima do Rio de Janeiro. Esse mecanismo arruinou o estado e a cidade. A roubalheira na privataria da saúde é exemplar na sua crueldade. Tem um pé nos hospitais públicos e outro operando o prestígio e a força moral da Arquidiocese. O andar de baixo conhece a ruína porque convive com ela, o que se precisa expor é o mecanismo com que o andar de cima operou e opera essa máquina.
O Ministério Público em Curitiba desvendou as tramas das empreiteiras porque trabalhou duro, com inédita independência.
No Rio essa máquina rateou, tanto que ao tempo em que Cabral cabalava, a Procuradoria dormiu em berço esplêndido.
A Lava Jato quebrou o mundo dos comissários petistas e das empreiteiras em 2014, quando o doleiro Alberto Youssef começou a falar. Cabral pode vir a ocupar esse lugar, desde que responda direito às perguntas certas. Nesse caso, poderia ganhar paz de espírito e leniência.
Fora daí, é pizza.
Bolsonaro passou pela primeira pesquisa
Bolsonaro tem filhos encrenqueiros e ministros perigosamente folclóricos, como Ricardo Vélez, Damares Alves e Ernesto Araújo, mas a pesquisa CNT/MDA mostrou que ele vai bem, obrigado. Seu desempenho no cargo foi aprovado por 57,5%, percentagem um pouco superior à dos votos que teve no segundo turno (55%). Já a avaliação do governo ficou rala, em 39% de aprovação. No primeiro turno um eleitorado fiel deu a Bolsonaro 46% dos votos.
Considerando-se a polarização que marcou o segundo turno, só 7,6% dos entrevistados que votaram para presidente arrependeram-se da escolha que fizeram. (Nessa percentagem há pessoas que votaram nele ou em Fernando Haddad, mas pode-se especular que poucos eleitores do PT estejam arrependidos.) A percentagem de pessoas que acharam o governo ruim ou péssimo (19%) é menor que a dos eleitores de Haddad no primeiro ou no segundo turnos (29% e 45%).
A sabedoria convencional permitia supor que mais gente que votou em Bolsonaro para derrotar o PT tivesse ficado desencantada com as trapalhadas do início do governo. Isso não aconteceu.
Madame Natasha
Natasha concedeu uma bolsa de estudos ao ministro Sergio Moro pela nota que divulgou ao comunicar que revogou a nomeação (feita por ele) da pesquisadora Ilona Szabó para uma suplência do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.
O doutor disse o seguinte:
"Diante da repercussão negativa em alguns segmentos, optou-se por revogar a nomeação, o que foi previamente comunicado à nomeada e a quem o ministério respeitosamente apresenta escusas".
Natasha lamenta que Moro torture o idioma.
O "optou-se" esconde a autoria da opção, que foi dele. Poderia ter dito "optei".
O ex-juiz de Curitiba curvou-se à "repercussão negativa em alguns segmentos". Se repercussão negativa dobrasse suas convicções, teria mandado soltar boa parte das pessoas que condenou. Vá lá que o Moro de Brasília precisa ser outro, mas falar em "alguns segmentos" ofende a inteligência de quem lhe dá crédito. Há "segmentos" reclamando de qualquer coisa, até de vacinas. Moro sabe quais foram os "segmentos" que pressionaram Bolsonaro.
Finalmente, o ministro pediu "escusas" a Szabó. Natasha acredita que Moro deve aprender a usar a palavra "desculpas".
Em 2016, quando ele divulgou uma conversa de Lula com Dilma Rousseff, grampeada fora do prazo da interceptação autorizado pela Justiça, pediu "respeitosas escusas" ao Supremo Tribunal Federal.
Sistema S
A caixa de surpresas da Fecomércio do Rio assombra vários escritórios de advocacia da cidade. O Ministério Público está atrás de contratos onde estava combinada uma rachadinha com os maganos da instituição.
Infeliz coincidência
A sorte faltou ao Tribunal de Contas da União quando acatou um pedido para abrir uma auditoria na Receita Federal dias depois do vazamento de informações de que o Leão xeretava as contas de magistrados.
O tribunal poderia ter acordado há anos, meses ou semanas, mas despertou quando entrou na roda a doutora Isabel Gallotti, do STJ. Ela é casada com Walton Alencar, um dos ministros do TCU.
A ministra informou que sua movimentação financeira derivou de uma herança materna, declarada à Receita.
Adrenalina
Chegará nesta semana à TV paga o documentário "Free Solo", vencedor do Oscar. Vendo-o, ganha-se uma dose de adrenalina sem que se tenha que queimar calorias.
Em uma hora e meia o filme conta a história de Alex Honnold escalando sozinho e sem cordas os 900 metros da escarpa de El Capitán. (O Pão de Açúcar tem 390 metros). Um erro e ele morreria. Um dos integrantes da equipe que filmou a proeza evitava olhar para a cena.
A primeira escalada do penhasco, com cordas, levou 47 dias. Honnold, subiu em duas horas. Ele é um vegetariano frio que gosta de viver em vans.
Numa época em que o cinema faz de tudo com efeitos especiais, "Free Solo" mostra a audácia e o sangue frio de um atleta que tinha apenas as mãos, breu e um par de tênis.
Bloomberg
Se Deus quiser, Michael Bloomberg disputará a presidência dos Estados Unidos em 2020. A seu favor tem a biografia, pois começou de baixo, tem uma fortuna de US$ 51 bilhões e foi um grande prefeito de Nova York por 12 anos. Não recebia salário. Contra, só a idade, pois entraria na Casa Branca com 79 anos.
Em 2016, antes da eleição de Trump, ele o definiu:
-- Como nova-iorquino, eu reconheço um vigarista quando o vejo.
*Elio Gaspari, jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".
Elio Gaspari: Os ‘çábios’ uniram os marajás aos miseráveis
Não deu outra. Os “çábios” que conceberam o projeto de reforma da Previdência descobriram um jeito de entregar aos marajás a bandeira da defesa dos miseráveis. Fizeram isso ao propor a tunga do Benefício de Prestação Continuada, que dá um salário mínimo (R$ 998) aos miseráveis que têm mais de 65 anos. O projeto é engenhoso. Dá R$ 400 ao miserável a partir dos 60 anos, o que é um alívio para quem recebe, no máximo, R$ 371 pelo Bolsa Família. Com a outra mão querem tomar pelo menos R$ 598 mensais dos miseráveis que têm mais de 65 anos. Eles só terão direito aos R$ 998 se, e quando, chegarem aos 70 anos.
Se o conserto do rombo da Previdência precisa tungar um benefício pago aos miseráveis que têm entre 65 e 70 anos, então é melhor devolver o Brasil a Portugal. O ministro Paulo Guedes produziu um projeto racional e conseguiu apresentá-lo de forma competente. Na essência, podou privilégios. Essas virtudes levam à estupefação diante da tunga de sexagenários miseráveis. Ela só serve para soldar uma aliança maligna e hipócrita. O marajá que acumula privilégios ganha o direito de combater as reformas apresentando-se como defensor dos pobres e dos oprimidos.
Está entendido que o capitão reconheceu que errou ao combater a reforma proposta por Michel Temer, mas se as pessoas podem mudar de opinião, não podem mudar os fatos. Quando ele estava do outro lado da trincheira, lembrava que a expectativa de vida no Piauí “estava na casa dos 69 anos, quando você bota 65, você convida a oposição a fazer sua proposta e melar esse projeto”. Bingo. Os “çábios” fizeram isso, pois tomando-se a expectativa de vida do Piauí, seus miseráveis, que hoje recebem R$ 998, perderão o benefício aos 65 e irão para o outro mundo antes de terem direito a receber o que recebem hoje.
Tosa
O repórter Ancelmo Gois revelou que, num fim de semana, o ministro Paulo Guedes andou pelo Leblon e cortou o cabelo no salão Care, em Ipanema. Esses salões são os únicos lugares onde a turma do andar de cima paga para ganhar cortes. No Care uma tosa custa de R$ 130 a R$ 250. Não é o mais caro, pois há salão que cobra R$ 320.
Para a turma do regime geral da Previdência, um corte de cabelo vai de uns R$ 15 a R$ 30.
ESTÃO CORROMPENDO A MORALIDADE
Duas operações de combate à corrupção produziram episódios que corrompem a luta pela moralidade. Num, a turma da Lava-Jato do Paraná recorreu a uma gambiarra destinada a contornar a propensão libertadora do ministro Gilmar Mendes e prendeu o notório Paulo Vieira de Souza, o Paulo Preto da caixinha do PSDB paulista. No outro, prenderam e soltaram o presidente da Confederação Nacional da Indústria por causa de espetáculos teatrais mal explicados. O doutor Paulo Preto já foi preso duas vezes. Ameaçou os cúmplices com a possibilidade de romper seu silêncio, e documentos suíços mostram que amealhou milhões de dólares.
Para quem olha o caso de fora, ele não deveria estar solto, mas está.
Com barulho coreografado, o Ministério Público revelou que Paulo Preto tinha um bunker onde guardava R$ 100 milhões. Nas palavras do procurador Roberson Pozzobon, “talvez o bunker de Paulo Preto tivesse o dobro do dinheiro do bunker do Geddel”: “Isso é um escárnio”.
Para quem gosta de espetáculo, seria uma prisão exemplar, investigação primorosa. Teve milhões, bunker ,e até dinheiro no varal para não mofar. Era prato enfeitado, porém requentado.
A acusação veio da delação do doleiro Adir Assad e é de 2017. A cifra de R$ 100 milhões também é de 2017. E o bunker? “Talvez”, pois os endereços dados por Assad há dois anos não foram investigados.
São muitos os escárnios que acompanham o caso de Paulo Preto. Seria ótimo se o Ministério Público encarcerador brigasse publicamente com os magistrados libertadores, mas é péssimo que se faça isso com espetáculos de manipulação do distinto público.
Em outro episódio prenderam Robson Andrade, presidente da CNI, porque acharam o que parece ser uma roubalheira em contratos de eventos teatrais em Pernambuco. Se investigação de malfeitorias praticadas com dinheiro do Sistema S pretende girar em torno de festivais de bonecos é melhor economizar o dinheiro dessas operações espetaculares.
COISA PARA MAGO
Diversos dirigentes do PSL não foram convidados para a posse do capitão. Alguns se fizeram de desentendidos e apareceram nas solenidades.
A saída de Gustavo Bebianno deu uma enorme desarrumada no tabuleiro, e o presidente precisará de um mago para consertá-la. Se houver bom senso, Bolsonaro deverá começar seu serviço construindo uma convivência saudável com Rodrigo Maia.
DORIA DE OLHO
A turma do capitão gosta de pensar que a oposição ao governo vem do PT e da esquerda. É uma meia verdade. O verdadeiro polo alternativo está em São Paulo e gira em torno do governador João Doria. É para lá que confluem e são estocadas as ambições e os ressentimentos que Bolsonaro produz.
BANCADAS TEMÁTICAS
Para aprovar a reforma da Previdência o governo abriu um balcão de promessas para emendas de parlamentares. Acreditou na história das “bancadas temáticas”?
Tente Papai Noel (os deputados não acreditam em Papai Noel nem em promessas de liberação de recursos de emendas).
MARIA THEREZA FALA
No mês que vem chegará às livrarias “Uma mulher vestida de silêncio”, de Wagner William. Contará a história de Maria Thereza, a linda mulher do presidente João Goulart, um marido protetor e promíscuo.
Eles se casaram quando ela tinha 15 anos e ele, 37. Aos 21, Maria Thereza se tornou a bonita e elegante mulher do presidente da República e, aos 23, deixou a Granja do Torto com dois filhos pequenos para um exílio que durou 22 anos. O desterro terminou quando ela atravessou a fronteira levando o marido dentro de um caixão.
Em “Uma mulher vestida de silêncio” Maria Thereza conta sua história triste. Enquanto foi a mulher do poderoso Jango, era perseguida por um acervo de maledicências. A maior, por pública, vinda do governador Carlos Lacerda. Passou-se mais de meio século e nunca apareceu um só fiapo de veracidade, mas assim era o mundo.
Maria Thereza Goulart foi detida por duas vezes em condições humilhantes, viu as fronteiras das traições e da ingratidão, comeu o pão que Asmodeu amassou e nunca mostrou ressentimento, nem durante a cerimônia em que os restos mortais de seu marido voltaram a Brasília. Aos 78 anos, vestida de silêncio, Maria Thereza Goulart divide seu tempo entre Porto Alegre e o Rio.
ERRO
Estava errada a informação que saiu aqui, contando que os sapos, quando colocados numa panela com água aquecida lentamente, não percebem o calor e deixam-se ferver. Trata-se de pura lenda.
Quem se deixa ferver ou fritar são os ministros. Muitos sapos são feios, mas nenhum é bobo.
Elio Gaspari: De Manchinha@auau para Todo Mundo
Se a PM tivesse matado 13 mastins, talvez o governador Witzel fosse mais caridoso
Sou a cadela Manchinha, que um segurança de supermercado matou em Osasco, em dezembro passado. Fiquei comovida com a comoção criada pelo meu caso e sugeri que vocês continuassem a reclamar quando os bichos fossem maltratados, mas pedi que cuidassem melhor dos bípedes. Escrevi o seguinte:
"Vira e mexe, vocês leem que agentes da segurança pública entraram em bairros de pessoas pobres, confrontaram-se com bandidos e mataram 'suspeitos'. Nossa inteligência canina não entende o que seria um 'suspeito'. De quê? Em casos extremos, dois 'suspeitos' de portar armas foram abatidos. Um carregava uma furadeira e o outro, um guarda-chuva."
Outro dia, a PM do Rio matou 13 pessoas ("suspeitos", claro) e o governador Wilson Witzel disse que foi "uma ação legítima da polícia para combater narcoterroristas". Palavra de cachorro não vale nada, mas meus pares que andam pelo morros do Rio argumentaram que, mesmo que estivessem metidos com drogas, não é assim que funciona a Justiça dos bípedes. Quadrúpedes, vocês sabem, só atacam quando estão com fome, mas vocês nos chamam de irracionais.
Irracionais são vocês. Vejam o caso do garoto Pedro Henrique Gonzaga. Era consumidor de drogas, mas acho que o doutor Witzel não o chamaria de "narcoterrorista". Teve um surto e encrencou-se com um segurança do supermercado Extra. Tomou um mata-leão e foi estrangulado durante quatro minutos, diante de dezenas de pessoas e de pelo menos outro segurança. Sua mãe pedia para que saísse de cima do rapaz, pois ele estava dominado e tomou um "cala a boca, puta". Pedro Henrique morreu.
O segurança que me espancou talvez não quisesse me matar. Além disso, a cena da violência que sofri foi muito mais rápida. O bípede que estrangulou Pedro Henrique e chamou a mãe dele de "puta" teve impávida assistência. Garanto que se ele estivesse fazendo a mesma coisa com um cachorro a reação da plateia seria mais solidária. Se a PM tivesse matado 13 mastins, talvez o governador Witzel fosse mais caridoso.
Os doutores do Extra disseram que "uma investigação interna constatou de forma inicial que se tratou de uma reação a uma tentativa de furto a arma de fogo de um dos seguranças". Patranha. Isso teria acontecido depois do início do incidente, quando Pedro Henrique já estava no chão. A repórter Ana Carolina Raimundi mostrou que a polícia ainda não comprou essa história.
Ela mostrou mais: o segurança Davi Amancio era um condenado da Justiça. Tendo espancado uma companheira, em 2017, foi sentenciado a três meses de prisão em regime aberto. Um advogado da Group Protection, empresa terceirizada para garantir a segurança do supermercado, disse que a atribuição de checar a ficha criminal dos seguranças é da Polícia Federal. Tudo bem, e nós os quadrúpedes é que somos irracionais.
Daqui do meu canil fiquei sabendo que o ministro Sergio Moro brindou os brasileiros com um pacote de medidas contra o crime. Tomara que dê certo, mas a cachorrada sabe que os bípedes latem à maneira deles e que ministro não morde.
No parque onde nós passeamos, vem com frequência um senhor meio rabugento, sempre vestido num terno preto. Dizem que é advogado e se chama Sobral Pinto. Durante o Estado Novo ele pediu que um preso político tivesse seus direitos respeitados de acordo com a lei de proteção aos animais.
Vai aqui um pedido ao ministro Moro. Amplie o seu pacote anticrime com um dispositivo:
"Ficam estendidos aos bípedes os direitos que a lei confere aos animais."
Grrrrrrr
Manchinha
Elio Gaspari: A rebelião do andar de cima
Quem se encantou pela franquia Bolsonaro achando que se livraria das bandeiras do corporativismo petista, não sabia o tamanho do ativismo do andar de cima. O presidente anunciou que “vamos botar um ponto final em todos os ativismos do Brasil”. Todos, não.
Desde sua eleição, o governo foi confrontado por três movimentos corporativos. Cedeu em dois e é provável que a Procuradoria-Geral da República cederá no terceiro. Em todos os casos mobilizaram-se servidores do andar de cima, gente com salários mensais que vão de R$ 20 mil a sabe-se lá quanto.
A primeira rebelião veio dos procuradores da Fazenda Nacional. Paulo Guedes queria colocar um diretor do BNDES na cadeira de procurador-geral. A corporação rebelou-se, avisando que centenas de procuradores abandonariam seus cargos em comissão, pois o procurador-geral deveria ser escolhido no quadro da instituição. Ganharam.
O segundo confronto deu-se com os auditores da Receita Federal. A Agência Nacional de Aviação queria que eles cumprissem a norma da revista ao entrarem em áreas restritas dos aeroportos. Os descontentes mostraram seu desagrado apurrinhando a vida de milhares de passageiros, obrigando-os a esperas de até quatro horas nas filas das alfândegas. Resolveram inspecionar todas as malas desses supostos contrabandistas. No dia seguinte três ministérios foram acionados e o governo cedeu.
A terceira rebelião veio dos procuradores da República. Até a última terça-feira, 192 doutores devolveram 325 funções não remuneradas. Eles apresentam reivindicações técnicas, nas quais está embutida uma questão salarial, escondida nos penduricalhos de uma categoria que ganha, no barato, R$ 25 mil líquidos. Por trás dessa rebelião está o painel da sucessão da procuradora-geral, Raquel Dodge. A batalha ainda não terminou. Até hoje, magistrados e procuradores ganharam todas.
Ativismo do andar de cima é outra coisa.
Nos EUA mexe-se na ‘Bosta Seca’
Oito em cada dez magistrados brasileiros querem importar o instituto saxônico do “plea bargain” sem que exista sequer tradução consolidada dessas palavras para o português. O ministro Sergio Moro fala em “solução negociada”. Trata-se de aceitar que um réu reconheça sua culpa, negocie um acordo com o Ministério Público e obtenha alguma leniência do juiz.
Muito bonito na teoria, mas a prática será outra. O Brasil importou o mecanismo da delação premiada e criou o monstrinho da doutrina da “Bosta Seca”. Em 2015, quando o doleiro Alberto Youssef disse numa audiência em Curitiba que um outro réu mentira em sua delação e ofereceu-se para uma acareação, um procurador disse que “esse é o tipo de coisa que quanto mais mexe, pior fica”. Em seguida, ouviu-se: “É igual a bosta seca: mexeu, fede”.
Os pacotes de bosta foram remetidos às instâncias superiores e poucas delações foram anuladas por serem mentirosas. O direito saxônico funciona melhor que o brasileiro, mas a pirataria de mecanismos obrigará orquestras de frevos a tocar rock. Na semana passada a juíza americana Amy Jackson, que está com um dos processos que infernizam a vida de Donald Trump, mostrou como as coisas funcionam por lá. Em junho ela mandou para a cadeia Paul Manafort, o poderoso chefe da campanha eleitoral do presidente. Em setembro ele se declarou culpado e fez um acordo de colaboração. Em novembro o procurador Robert Mueller Jr. informou à juíza que Manafort mentiu em diversos pontos de sua confissão.
A juíza estudou o caso, entendeu que ele mentiu e desobrigou-se de tratá-lo com leniência. Manafort, de 69 anos, está com a saúde em pandarecos. A sentença virá em março e ela pode lhe dar até dez anos de prisão. Manafort, um dos homens mais poderosos de Washington, dificilmente sairá vivo da cadeia.
A PRIVACIDADE DE MORO
Em Brasília, o ministro Sergio Moro foi do noviciado ao folclore em menos de dois meses. Quando lhe perguntaram se, dias antes da edição do decreto que facilitou a posse de armas, encontrou-se com hierarcas da indústria Taurus, deu a seguinte resposta: “O direito à privacidade, no sentido estrito, conduz à pretensão do indivíduo de não ser foco de observação de terceiros, de não ter os seus assuntos, informações pessoais e características expostas a terceiros ou ao público em geral.”
Madame Natasha intrigou-se com a vontade de Moro de ficar fora das vistas do “público em geral”. Mandava melhor Armando Falcão, seu antecessor de 1974 a 1979, com o famoso bordão “nada a declarar”. Faltou sorte a Moro. Na mesma semana a Alta Corte do Reino Unido julgou o caso dos endinheirados proprietários de um prédio vizinho ao museu Tate, que reclamavam porque binóculos colocados no terraço devassavam suas casas. O juiz Anthony Mann mandou-os passear e sugeriu que fechassem as cortinas ou baixassem as persianas.
OS BOLSONAROS
O Brasil vai completar 200 anos e já teve de tudo, governantes larápios, senis e mesmo com famílias rapaces, mas nenhum deles tentou institucionalizar suas proles. Getulio Vargas deu corda a um irmão e ele foi associado à sua deposição de 1945 e ao suicídio de 1954. Um filho deputado também não o ajudou. D. Pedro II, chefe de uma dinastia, aturou um cunhado italiano e perdulário, mas manteve-o longe. O genro, príncipe consorte, também não lhe trouxe fortuna. Nomeando-o comandante das tropas que guerreavam o Paraguai, alimentou a nociva intriga política segundo a qual a Coroa tentava obscurecer a figura do Marquês de Caxias, seu antecessor.
Pela primeira vez, a família de um presidente participa institucionalmente da vida política do país. Os três filhos de Bolsonaro têm mandatos populares, mas isso nunca deu certo.
A KOMBI DE BEBIANNO
Quando a equipe que carregava a candidatura presidencial de Jair Bolsonaro cabia numa Kombi, Gustavo Bebianno era o motorista. Como o sapo que não percebe o vagaroso aquecimento da água de uma panela, ele não reagiu ao início de sua fritura. Passou de provável ministro da Justiça a possível chefe da Casa Civil, mas acabou numa desidratada Secretaria-Geral da Presidência. O doutor deixou-se ferver.
O LIMITE DE GUEDES
Guedes pode muito, mas não deve mexer com o agronegócio sem combinar com a ministra da Agricultura, Tereza Cristina. A lealdade do pessoal que sustenta a doutora tem uma solidez que não existe na turma do papelório.
LULA EM CASA
Cresceu a ala de comissários petistas interessados em sondar magistrados para saber como seria recebido um pedido da defesa de Lula para que ele fosse transferido para o regime de prisão domiciliar.
ELETROSURINAME
A Enel, ex-Eletropaulo, interrompeu três vezes o fornecimento de energia na região da Avenida Paulista. Em todos os casos foram aquelas piscadas que fazem a alegria das empresas que consertam equipamentos danificados.
Seria boa ideia que ela investisse nessa área.
Elio Gaspari: Os juízes no deserto de juristas
Pesquisa sobre magistrados contou tudo e sua digestão ajudará o debate
Os juízes brasileiros vivem num deserto de jurisconsultos. Isso foi o que revelou a pesquisa da Associação de Magistrados Brasileiros depois de ouvir 4.000 doutores ativos ou aposentados. Diante de um pedido para que citassem três juristas que viam como referências importantes para o direito brasileiro, mencionaram cerca de 3.000 nomes. Os professores Luiz Werneck Vianna, Maria Alice de Carvalho e Marcelo Burgos filtraram os mais citados e disso resultou uma lista de 47 juristas. Apesar de seus 196 anos de existência, o Supremo Tribunal Federal só produziu nove nomes.
Da atual composição da corte entraram quatro: Luís Roberto Barroso, Celso de Mello, Luiz Fux e Alexandre de Moraes. Barroso, com 320 citações entre os juízes de primeiro e segundo graus, só perdeu para o monumental Pontes de Miranda (1892-1979), autor de mais de 300 obras. Entre os ministros de tribunais superiores, teve uma solitária menção, enquanto Pontes de Miranda ganhou cinco. (Conhecendo o tamanho dos egos do meio, os professores listaram as preferências dos juízes por ordem alfabética.)
A cultura jurídica dos magistrados que responderam à pesquisa revela grande respeito por autores que lidam com o lado processual da máquina e, em alguns casos, por advogados que produziram competentes manuais. Exagerando, pode-se dizer que são como pilotos que leem tudo sobre o funcionamento das aeronaves, mas não consideram relevante a autobiografia de Charles Lindbergh, a primeira pessoa a atravessar o Atlântico, num voo solo de 33 horas a bordo de um monomotor. Podem ter razão.
Juristas como Vitor Nunes Leal e Hermes Lima, ex-ministros do STF cassados em 1968, ficaram de fora. Na outra ponta, José Carlos Moreira Alves, procurador-geral do general Emílio Médici, nomeado para a corte em 1975, também não entrou. Alfredo Buzaid, ministro da Justiça da ditadura de 1969 a 1974, teve uma citação, mas Francisco Campos, o grande jurista do Estado Novo, autor do preâmbulo do primeiro Ato Institucional, não se classificou.
É surpreendente que entre os autores das 15 obras acadêmicas e filosóficas mais citadas pelos magistrados estejam apenas dois americanos. Isso numa época em que o direito brasileiro sofre as dores do parto da delação premiada e se discute a introdução de um mecanismo da "plea bargain" sem que haja sequer tradução consolidada para o instituto. (O ministro Sergio Moro diz que é "solução negociada", mas há quem fale em "transação penal") Mais de 80% dos magistrados brasileiros gostam da ideia. É verdade que o direito americano é diferente do brasileiro, mas, se o negócio é importar jeans, rock e leis, a discussão melhorará quando alguém citar Oliver Wendell Holmes (1841-1935), um campeão das liberdades públicas que ainda por cima combateu pelo Norte durante a Guerra da Secessão.
O relatório da pesquisa chama-se "Quem Somos -- A Magistratura que Queremos" e está na rede. Foram 198 questões que produziram cerca de 800 tabelas. É um tesouro em si porque mergulhou na vida dos magistrados e, acima de tudo, porque a equipe de professores fez esse mesmo trabalho há 20 anos. Desta vez, sua realização foi coordenada pelo ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça. Poucos países do mundo puderam fazer a mesma coisa. Sua completa digestão deverá levar algum tempo.
Quem quiser começar a examiná-la partindo de temas atuais, pode ter um auxílio começando pela questão 176, a da "situação de moradia": 70% dos juízes de primeiro grau e 93% daqueles do segundo grau vivem em casa própria.
Elio Gaspari: As mineradoras precisam chamar os oncologistas
O diretor da Agência de Mineração mostrou a fonte do desastre de Brumadinho: a barragem do cartel das empresas
Eduardo Leão, diretor da Agência Nacional de Mineração, reconheceu numa entrevista ao repórter Nicola Pamplona que "tanto a questão de barragens quanto a questão das multas já foram pauta no Senado e realmente não andaram". Ele acredita que "tenha tido algum lobby para arquivar esses projetos".
Ex-funcionário da Vale, Leão acrescentou: "Infelizmente, tem empresas sérias, que a gente conhece, que em algum momento acabam formando um cartel que não permite esses avanços".
Não podia ter sido mais claro. As mineradoras blindaram-se. Um projeto que elevaria o teto das multas para R$ 30 milhões foi arquivado, e elas continuaram fazendo o que acham melhor, com multas de R$ 3.600. (Um motorista que bebeu paga R$ 2.934.)
Num paralelo que vem do comportamento das empreiteiras quando começou a Lava Jato, o cartel das mineradoras precisa se livrar do pessoal da gastrite, ouvindo os oncologistas.
Os poderosos empresários tinham dores no estômago e tratavam da gastrite até que foram todos para a cadeia. Diante da realidade da Lava Jato, foram aos oncologistas e tiveram outro diagnóstico: "Os senhores têm câncer no estômago, precisam passar por uma cirurgia e em seguida irão para a quimioterapia. Será um sofrimento e não posso dizer que ficarão curados".
Sofreram o diabo, mas estão soltos.
Horas depois do desastre de Brumadinho, o presidente da Vale, FábioSchvartsman, deu uma entrevista na qual admitiu que não sabia porque as sirenes da barragem ficaram em silêncio. Sete dias depois, informou que "a sirene foi engolfada pela queda da barragem antes que ela pudesse tocar". Schvartsman entrou no modo gastrite, pois sirenes tocaram dois dias depois, quando houve risco de rompimento de outra barragem.
Os doutores da gastrite não põem a cara na vitrine e escalam os marqueses para o papel de bobo. Essa atitude decorre de um sentimento de onipotente impunidade. (Quem se lembra das respostas arrogantes de Marcelo Odebrecht no início da Lava Jato sabe o que é isso.)
Na sua primeira entrevista, Schvartsman mostrou que a empresa alemã Tüd Sud atestou em dezembro a estabilidade da barragem de Brumadinho. Era verdade, e o laudo jogou a Tüd na lama. Agora, o engenheiro Makoto Namba, signatário do parecer, diz que se sentiu pressionado pela Vale para assiná-lo. Até aí, tudo seria uma questão subjetiva. A Polícia Federal mostrou a Namba uma troca de mensagens inquietantes de funcionários da Vale para colegas da Tüd, ocorrida dois dias antes do desastre, e perguntou-lhe o que faria se o seu filho estivesse na barragem. Ele respondeu: “Após a confirmação das leituras, ligaria imediatamente para seu filho para que evacuasse do local bem como que ligaria para o setor de emergência da Vale responsável pelo acionamento do Plano de Ação de Emergência de Barragens de Mineração para as providências cabíveis".
A Vale está atarantada no varejo porque seu comportamento no atacado orienta-se pelo protocolo da gastrite. O problema das empreiteiras estava no câncer do cartel, acima do varejão das propinas. Felizmente, quem usou a palavra demoníaca pela primeira vez foi o diretor da Agência Nacional de Mineração.
O passado e o futuro da imprensa
Para quem se preocupa com o futuro da imprensa ou sente sono quando ouve que o cheiro de tinta é agradável, saiu nos Estados Unidos um bom livro. É "Merchants of the Truth" ("Mercadores da Verdade - O Negócio da Notícia e a Luta pelos Fatos"), de Jill Abramson. Ela dirigiu o New York Times de 2011 a 2014, quando foi demitida.
O livro está debaixo de chumbo, mas é uma competente narrativa do que aconteceu com a imprensa desde que surgiram a internet, os sites e o iPhone. Abramson conta as histórias no New York Times, do Washington Post e dos sites BuzzFeed e Vice. De um lado estavam os donos do mundo, investido-se de um direito divino para decidir o que devia ser lido. Do outro, adoradores da internet, cabeludos, alguns bêbados ou drogados e quase todos pobres. O New York Times chegou à beira da falência, e o Post foi vendido a Jeff Bezos. Os cabeludos viraram bilionários e pareciam os senhores de um novo tempo.
Quando a internet era uma criança, um dos editores de Post lembrou que, se um sapo for colocado numa panela com água aquecida aos poucos, ele será cozinhado sem mover uma pata, pois seu sistema nervoso não registra a lenta evolução da temperatura. Ninguém o ouviu, e ele foi trabalhar num site. Centenas de jornais ferveram.
O New York Times luta bravamente para sair da panela e conseguiu 3,3 milhões de assinantes digitais. O Post voltou a ser um grande jornal. Com frequência, festeja-se que Bezos contratou cem jornalistas. Falta lembrar que ele teve 80 engenheiros na empresa.
A internet mudou a cabeça dos editores, quebrou barreiras na publicidade, impôs a métrica de audiência para as redações e, onde se falava em leitor, fala-se em clique. Jornalistas passaram a enfeitar eventos.
Abramson conta essa história com graça e a dose certa de fofocas. Tudo isso e mais a campanha de Donald Trump. Seu rancor da demissão é contido e ela circulou num evento junto com o patrão que a mandou embora. Se Jill Abramson tivesse conhecido Zózimo Barroso do Amaral, diria: "Enquanto houver repórteres, haverá esperança".
Faz tempo, o bilionário Warren Buffet ensinou que quando aparece uma tecnologia nova é arriscado investir nela, pois quase todos os primeiros fabricantes de automóveis faliram. O que se deve fazer é abandonar a velha. No caso, vender os cavalos das carruagens. Buffet recusou-se a salvar o Times quando ele estava quebrando. (Salvou-o o bilionário mexicano Carlos Slim.)
Abramson mostra como o Times e o Post estão na luta, sem tentar fabricar carros puxados por cavalos ou alimentando os bichos com gasolina.
CNPJ geral
De um sábio que entende de leis:
"Ao nominar o PCC e outras facções de criminosos, o ministro Sérgio Moro deu-lhes um verdadeiro CNPJ".
Solução popular
Pode-se estimar que a proposta de importação do mecanismo americano das soluções negociadas entre os réus e o Ministério Público tem o apoio de 9 entre 10 magistrados.
Registro
O secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, anunciou que o governo não conseguirá zerar o déficit fiscal neste ano.
Ele sempre soube disso, e o ministro da Economia, Paulo Guedes, foi avisado ao vivo e a cores que a sua promessa de campanha era inviável.
Fantasias
O Carnaval vem aí, mas os hierarcas da República já criaram um código de fantasias.
Em ocasiões solenes, vestem faixas acetinadas. O governador Wilson Witzel mandou fazer uma, azul celeste.
Quando querem mostrar que estão trabalhando, vestem coletes. O de Witzel é laranja.
Elio Gaspari: Moro pôs a bola em campo
Pacote do ministro inaugurou governo Bolsonaro e, ao discuti-lo, Congresso precisa mostrar a que vem
Sergio Moro lapidou o discurso desconexo de defesa de lei e da ordem que levou Jair Bolsonaro à Presidência da República. Para listar apenas alguns aspectos do pacote do ministro, homicida ficará trancado por, pelo menos, três quintos da duração da sentença; condenados na segunda instância irão para a tranca e caixa dois passará a ser crime.
A repressão aos crimes de colarinho-branco será tão dura quanto aquela que habitualmente atinge pessoas de pele negra. Essas propostas serão festejadas nos balcões das lanchonetes, por onde passam pessoas que têm medo de andar na rua à noite.
Moro quer trazer para o direito brasileiro a instituição saxônica das "soluções negociadas". Na essência, elas permitem um acordo entre réu e a Promotoria. O cidadão reconhece sua culpa, negocia a redução da pena com o promotor e com isso descongestiona-se o Judiciário.
Na teoria, faz sentido. Na prática, toda importação de regras do direito saxônico equivale a tentar calçar um par de stilettos de Christian Louboutin nos pés de um jogador de futebol.
O calo resultante da divulgação por Moro, no meio da campanha eleitoral, de um anexo irrelevante e inconclusivo da colaboração do ex-ministro Antonio Palocci está na memória política do país.
Felizmente, Moro fala agora em "soluções negociadas". Até há pouco falava em "plea bargain", talvez para evitar uma das traduções possíveis e evitando a palavra "barganha".
No Judiciário americano todas as delações protegidas pela teoria curitibana da "bosta seca" teriam sido mandadas ao lixo. Lá, se um delator diz uma coisa e outro diz o contrário, mexe-se na bosta seca, empesteia-se a sala e anula-se uma delas, ou as duas.
A solução negociada entre o réu e o Ministério Público pode ser um sonho de consumo. Contudo, no Brasil, leis suecas convivem com uma realidade haitiana. No que vai dar, não se pode saber. Afinal de contas, o ex-capitão Adriano Magalhães da Nóbrega, da PM do Rio, jamais faria um acordo com a Promotoria.
O "Caveira", senhor da milícia de Rio das Pedras, era amigo de Fabrício Queiroz. Sua mãe e sua mulher foram empregadas por ele no gabinete de Flávio Bolsonaro porque, nas palavras do colega, "a família passava por grande dificuldade, pois à época ele estava injustamente preso." Libertado, "Caveira" foi absolvido. Não se sabe por quê, está foragido. Na outra ponta, qualquer preso que está apanhando numa delegacia faz qualquer acordo.
Num ponto o projeto de Moro parece um jabuti. Quando ele diz que um juiz poderá deixar de impor uma pena ao agente público se "o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção".
Falta definir "medo" e "violenta emoção". Os policiais cariocas que mataram um cidadão que empunhava uma furadeira e outro que carregava um guarda-chuva tiveram medo, foram surpreendidos ou estavam emocionados?
A proposta de Moro acertou no atacado. Contém apenas lombadas no varejo, mas o Congresso terá tempo para aperfeiçoar o projeto e pode-se acreditar que senadores e deputados não tentarão proteger o instituto do caixa dois.
O surgimento de uma bancada com toques de demagogia haitiana será um contraponto à demagogia sueca. Nesse sentido Moro desviou-se das duas.
O ministro passou a vida no gabinete de juiz, onde sua caneta mudava a realidade. Na nova cadeira, fez tudo direito com a caneta, mas a realidade continuará a assombrá-lo. As milícias do Rio e as quadrilhas do Ceará expuseram-se logo que ele chegou a Brasília, e continuam lá.