Eliane Cantanhêde: ‘Democratice’ e democracia

Armas não podem ficar em mãos de pessoas perigosas e as redes de fake news são isso: armas

Levante a mão quem nunca teve de desmentir as fake news mais absurdas, até grotescas, em grupos de família, amigos, às vezes até de trabalho? De repente, do nada, aquela pessoa que convive com você há anos, que parece (ou parecia) razoável, antenada e inteligente, passa a compartilhar mentiras tão primárias e sem nexo que qualquer um deveria jogar automaticamente no lixo. É como lavagem cerebral, crença religiosa, negação da verdade. A pessoa perde a racionalidade e entra no vale-tudo a favor do seu mito e contra os adversários desse mito.

As redes de fake news atingiram uma audácia inaceitável, apesar de não terem começado com os Bolsonaros – porque o PT também era craque nisso no poder – nem serem exclusivas do Brasil – porque a eleição de Donald Trump nos EUA e a vitória do Brexit no Reino Unido são exemplos de como a internet é usada para transformar mentira em verdade. Se impacta tão decisivamente a vida, o voto e as eleições, pode mudar o mundo. E para pior. Depende de quem tenha mais dinheiro, recursos tecnológicos e falta de escrúpulos.

Assim como é fundamental distinguir “democratice” de democracia, é preciso evitar a confusão entre liberdade de expressão e de opinião, de um lado, e agressão e mentira, de outro. Não uma mentirinha inocente, mas uma arma feroz contra a verdade e a realidade, para propaganda enganosa, destruição de biografias e até ameaça à segurança física de cidadãos e autoridades. Armas, de qualquer espécie, não podem ficar em mãos de pessoas perigosas, de instinto criminoso.

Uma coisa é censura, proibir a opinião, a livre manifestação. Outra é o ministro do Supremo Alexandre de Moraes bloquear contas usadas como armas para espalhar o ódio, criar realidades paralelas, confundir incautos, destruir reputações, disparar injúria, calúnia, difamação e até convocação para estuprarem filhas de ministros do Supremo. Moraes não concluiu nada disso da cabeça dele, mas, sim, com provas concretas, cópias de mensagens e dados sobre contas reais e inventadas, inclusive levantados pelo próprio Facebook.

Alvo de um furioso ataque em massa e acusado criminosamente até de pedófilo pelas redes que são alvo de Alexandre de Moraes, o youtuber Felipe Neto deu uma entrevista à GloboNews, no domingo, condenando o “momento de validação do negacionismo e do obscurantismo” e comparando os autores desse tipo de ataque a “ratos que saíram do esgoto, de forma violenta e grotesca”. E ele também fez questão de destacar: “Não estou falando de opiniões divergentes, sim de negacionistas científicos, péssimos revisionistas históricos, pessoas que intencionalmente deturpam, manipulam e negam o que a ciência diz”.

O bom da história é que, como no mundo todo, o Brasil também debate intensamente a liberdade de expressão e a internet, na mídia, na sociedade, no Congresso e no Supremo, que, aliás, tem um segundo semestre bem animado pela frente. Um semestre que começou ontem, com o ministro Edson Fachin suspendendo o compartilhamento de dados da Lava Jato com a Procuradoria-Geral da República (PGR). A decisão confirma o que previmos aqui: os absurdos do governo Bolsonaro uniram o Supremo, os ataques à Lava Jato vão desunir.

E é assim, desunida e com pauta quente, que a Corte vai se posicionar quanto ao falso dilema entre fake news e liberdade de expressão, além de passar por uma dança de cadeiras. Em setembro, a presidência vai de Dias Toffoli, tido como ministro mais próximo de Bolsonaro, para Luiz Fux, considerado o mais suscetível às pressões da opinião pública. E, em novembro, sai o supertécnico Celso de Mello e entra o primeiro ministro da lavra de Bolsonaro. Só “terrivelmente evangélico” ou também terrivelmente bolsonarista?


Eliane Cantanhêde: Lavação de roupa suja

Com Bolsonaro em campanha e jogando o governo no colo dos ministros, foco é no MP e no STF

Com o presidente Jair Bolsonaro em campanha para 2022, sem máscara e promovendo cloroquina e aglomerações, o foco vai para os órgãos de investigação do País. A bola da vez é o Ministério Público, depois do escanteio do Coaf, das tentativas de domar o leão da Receita e de investigações sobre interferência política na Polícia Federal. Pairando sobre isso, a suspeita de que o Ministério da Justiça ressuscita o SNI da ditadura.

O clima está animado, como se viu no bate-boca virtual entre o procurador-geral da República, Augusto Aras, e o braço-direito do seu antecessor Rodrigo Janot, o subprocurador Nicolao Dino. A reunião era sobre orçamento, mas Dino subiu o tom contra Aras por seus ataques à Lava Jato. A defesa da Lava Jato virou uma lavação de roupa suja. Ao vivo!

A bem de Aras, diga-se que a guerra interna no Ministério Público vem de longe e teve momentos agudos na gestão polêmica e até hoje mal explicada de Rodrigo Janot, cuja marca é a delação premiada de Joesley e Wesley Batista. O resultado foi tenebroso para o País e espetacular para os irmãos da J&F, que, como nos filmes de mafiosos, acabaram com seus aviões, lanchas e apartamentos maravilhosos em Miami e Nova York.

Até hoje, três anos depois, a delação continua válida, nas mãos do relator no Supremo, Edson Fachin. O próprio Janot pediu a revisão, Raquel Dodge foi na mesma linha e aqui vai uma informação: Aras também articula com o STF o fim da delação e dos prêmios fantásticos para os Batistas. Pelas regras, eles perdem a mamata, mas as provas que entregaram continuam válidas.

Na guerra entre os grupos de Janot e de Aras, a mais grave no MPF desde 1988, incluem-se a pressa para estabelecer quarentena aos juízes candidatos (a “Lei Moro”) e o debate, que vai crescer nesta semana, sobre os acordos de leniência (delações premiadas são com pessoas, acordos de leniência, com empresas). O MP investiga, negocia, julga e fecha os acordos. E isso vai mudar. A intenção é juntar o “sistema U” nos acordos de leniência, ou seja: AGU, CGU, TCU e MPU. Sob o comando da AGU.

A crise no MP, porém, é apenas mais uma nos órgãos de investigação. Bolsonaro interveio no Coaf, quando o órgão de fiscalização financeira detectou as “movimentações atípicas” das contas de um tal de Fabrício Queiroz. Depois, o presidente foi flagrado intercedendo a favor de igrejas evangélicas multadas pela Receita. E, por último, ele é investigado pelo Supremo por acusações de intervenção política na PF.

Nesse enrosco todo, só faltava um ataque sistêmico à Lava Jato justamente quando o presidente deflagra sua campanha à reeleição em 2022, com a velha política e o velho Centrão. Às ovelhas do PSL, carinhos, fotos, lábia. Aos lobos do Centrão, cargos, favores e destaque nos palanques. O anfitrião de Bolsonaro no Piauí, aliás, foi o senador Ciro Nogueira (Centrão).

E o governo não descuida dos adversários. O Ministério da Justiça criou um novo SNI para produzir dossiês com perfis, ações, declarações e até fotos de pessoas da área de segurança e das universidades que ousem falar mal de Bolsonaro. Não é uma operação contra fascistas, mas contra antifascistas. Dá para entender? Até agora, já são 579 alvos. Amanhã, pode ser… você!

Assim, as manchetes mudaram, com Bolsonaro deixando o presidente de lado e assumindo o candidato, mas a vida continua: o presidente empurra as políticas (e as culpas) da economia, saúde, meio ambiente, educação e cultura para seus ministros, enquanto protege aliados e “ficha” adversários. O Supremo entra no foco engalfinhando-se com redes de golpistas e de fake news e o Ministério Público racha pela Lava Jato. Calma na superfície, ebulição nas profundezas.


Eliane Cantanhêde: Platô no vírus e na política

Finalmente, a direita real e moderna descola-se da direita fake e patética. E o Exército?

O presidente Jair Bolsonaro continua sendo uma fonte de instabilidade e temos dois milhões de contaminados e perto de 80 mil mortos pela covid-19, mas o Brasil conteve a dupla escalada e – ainda que em patamares desesperadores – vai chegando a um platô na política e no vírus e é hora de deslanchar o pós-pandemia e prestigiar a força das instituições e da sociedade civil. A imagem do País esfarela mundo afora, mas é preciso reconhecer a incrível capacidade de resistência a ameaças e bravatas.

Com Bolsonaro em fase de trégua e de quarentena, o Judiciário em recesso e o Legislativo trazendo as reformas estruturais de volta à pauta do País, vem essa sensação de platô político e de volta à normalidade, reforçada por indicadores ainda frágeis, mas em viés de alta, na economia. A situação da pandemia ainda é macabra, sem prazo para terminar, mas constrói-se união para minimizar os danos colaterais e tratar as feridas: quebradeira de empresas, milhões a mais de desempregados e o aprofundamento da miséria.

Esse debate é possível depois da fantástica resistência aos ataques contra as instituições, a ciência e a inteligência. O Supremo liderou esse processo e, mesmo atuando no limite, às vezes balançando perigosamente para o excesso, deu a sustentação indispensável para uma reação que brotou de todos os lados e cristalizou a certeza de que o Brasil não é o melhor dos mundos, mas sabe sustentar a democracia.

Mesmo antes de pegar a covid-19 (o que ele buscou fervorosamente), Bolsonaro já tinha parado de disparar insultos diários, atiçar as hordas golpistas, avalizar a guerra da internet contra tudo e todos, reabrindo o diálogo e as relações com os poderes. O vírus fez o resto e, com o presidente devidamente recolhido, o País passou a respirar melhor, a acordar sem tanto sobressalto.

Antes tarde do que nunca, o governo passou a ouvir o grito estridente, ensurdecedor, dos que defendem o Meio Ambiente, descobrindo com enorme surpresa que a gritaria pela preservação não é só de ONGs, conselhos, Igreja Católica e esquerdistas. Ela veio forte de fundos de investimento internacionais, bancos e grandes empresas nacionais, ex-ministros da economia e ex-presidentes do Banco Central.

Esse movimento estabelece, enfim, uma distinção entre a direita moderna, culta e pragmática e essa direita instalada no poder, atrasada, ignorante, com um discurso ideológico incompreensível. Pior: no ataque, agressiva, endeusando armas, guerras imaginárias, inimigos fantasmas e desmanchando tudo sem construir nada. Isso não é ser “de direita”. A direita entendeu e obrigou Bolsonaro a começar a entender.

Assim surge a novidade: o debate sobre saídas para o País. O Congresso se reúne em torno da reforma tributária, o governo entrega na terça-feira sua proposta de simplificação de impostos, grupos e entidades civis participam do processo. Exemplo: a Liderança Pública (CLP), coordenada pelo cientista político Luiz Felipe D’Ávila, apadrinha 28 projetos essenciais, a começar das reformas. O Brasil demonstra que tem instituições, sociedade ativa, imprensa livre, e que ninguém e nenhum poder consegue impor pensamento único e ideias estapafúrdias.

Aí entramos na Saúde. As posições de Bolsonaro sobre isolamento social, aglomerações, máscaras e cloroquina deixaram de ser só chocantes para cair num terreno onde perigo e ridículo se misturam.

Os militares, se reagiram mal ao uso da expressão “genocídio”, sabem que o ministro do STF Gilmar Mendes tem razão ao alertar para a associação da imagem das Forças Armadas com uma política que custa vidas e é recriminada no mundo inteiro. É preciso bater em retirada de uma guerra perdida – e que não é sua – para a covid-19. Enquanto é tempo.


Eliane Cantanhêde: Sócio no fracasso

Gilmar Mendes errou feio ao usar ‘genocídio’, mas acertou no diagnóstico e no alerta

Apesar de frágil, sempre por um fio, a trégua entre os três Poderes ia bem até ser ameaçada pela declaração impetuosa do ministro do Supremo Gilmar Mendes, de que “o Exército se associou ao genocídio” ao intervir no Ministério da Saúde e assumir a política negacionista do presidente Jair Bolsonaro na pandemia. Foi um deus nos acuda no governo, na Defesa e nos comandos de Exército, Marinha e Aeronáutica. Porém, o ministro do STF errou feio nos termos, mas acertou no diagnóstico.

O que realmente irritou as Forças Armadas foi o uso da expressão “genocídio” – na definição do Houaiss, “extermínio deliberado, parcial ou total, de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso” –, que define o crime mais grave do direito internacional, remete ao Holocausto e à morte de 6 milhões de judeus. É despropósito unir Exército e genocídio e não há, tecnicamente, como usar o termo para a ação de Bolsonaro na pandemia, por mais condenável que ela seja.

Assim, a irritação dos militares é compartilhada por magistrados e civis até de oposição, que elogiam a resistência firme do Supremo às investidas de Bolsonaro e às ameaças golpistas de seus filhos e seguidores, mas criticam Gilmar Mendes por “ter ultrapassado o limite”. Lembram que a palavra de um ministro do Supremo tem a força de uma sentença e os excessos vulgarizam, tiram peso, relevância e solenidade da função, que deve servir de reflexão para a Nação.

Dito isso com todas as letras, não se pode negar que Gilmar Mendes não errou nos fatos, no conteúdo. Há um evidente desmonte do Ministério da Saúde, inadmissível em tempos normais e trágico durante uma pandemia avassaladora. Sem ministro há 60 dias, entregue a um general intendente da ativa e entupida de militares que nunca viram uma curva epidemiológica, a Saúde foi jogada na mesma vala do MEC e da Cultura.

A tática de Bolsonaro é clara: anular o ministério, usar um cumpridor de ordens e uma legião de batedores de continência para impor suas decisões mais estapafúrdias e fazê-los lutar contra a ciência, isolamento social, máscaras e bom senso, enquanto faz propaganda da cloroquina, que não é comprovadamente eficaz para a covid-19, mas tem efeitos colaterais que podem ser graves. O próprio paciente Bolsonaro se submete a eletrocardiogramas duas vezes ao dia. Se não é perigoso, por que essa “histeria”?

Para Gilmar Mendes, tudo isso é parte da estratégia de Bolsonaro: esperar o fundo do poço, com quase dois milhões de contaminados, mais de 70 mil mortos, economia esfacelada, empresas quebradas e alguns milhões de desempregados a mais, para jogar a culpa em governadores, prefeitos e no Supremo – que determinou que Estados e municípios não são obrigados a cumprir o que o governo federal manda.

Assim, o termo “genocídio” foi agressivo e apelativo, mas Gilmar Mendes alertou para a manobra de Bolsonaro de usar militares para jogar seus erros e a própria culpa nos outros. Tanto é verdadeiro que a Defesa aumentou a pressão para o general Eduardo Pazuello, interino da Saúde, para passar para a reserva. Ele prefere ficar na ativa e sair da Saúde. A ver.

O ex-ministro Henrique Meirelles, atual secretário de Economia de São Paulo, destrói a manobra de Bolsonaro com uma única frase impecável: “O que afeta a economia é a pandemia, não as medidas para combater pandemia”. Bolsonaro deixou a pandemia correr solta, sem coordenação nacional, sem dar exemplo. A história poderia ser outra, com menos mortes e saída mais rápida. A economia não sofreria tanto. Só falta agora Bolsonaro dizer que não tem nada a ver com isso. Tem tudo a ver e, quanto antes o Exército se descolar do fracasso, melhor.


Eliane Cantanhêde: Nem heróis nem vilões

Na demolição da Lava Jato, o PT ajuda a PGR e a PGR reforça a vitimização de Lula

O PT e os lulistas em geral esfregam as mãos e comemoram os ataques contra a Lava Jato iniciados pela Procuradoria-Geral da República (PGR), mas deveriam parar, pensar e lembrar da máxima do ex-deputado José Genoino, um dos petistas mais lúcidos, depois abatido, talvez exageradamente, pelo mensalão: “Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”.

Uma coisa é a PGR e ícones da área jurídica detectarem “excessos” na Lava Jato e ameaçarem até punir os líderes da força-tarefa, o que reforça o discurso de vitimização do ex-presidente Lula. Outra coisa é isso favorecer objetivamente Lula. Muda algo na Justiça e no STF? A PGR, com um escolhido pelo presidente Jair Bolsonaro fora da lista tríplice, tem alguma simpatia pelo petista?

No limite, os que atacam a Lava Jato na PGR até admitem que houve “algum excesso” no caso do triplex do Guarujá, pelo qual Lula foi condenado em primeira e segunda instância e passou 580 dias preso. Mas, automaticamente, defendem que ele deve ser preso, sim, é pelo sítio de Atibaia, recheado de provas robustas.

Logo, a adesão do PT à demolição da Lava Jato pela PGR é para insistir em Lula vítima, mas principalmente é contra o ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro e a força-tarefa. Uma vingança, com forte efeito colateral: uma aliança entre opostos. Ao demonizarem a Lava Jato, quanto o PT ajuda o bolsonarismo na PGR e quanto a PGR bolsonarista reforça a vitimização de Lula?

Ao dar o primeiro tiro em Curitiba, a PGR atraiu a artilharia do PT, OAB, TCU, da Corregedoria do MP e de condenados ou processados (do Centrão, MDB e PSDB?) que pretendem transformar os “heróis” da Lava Jato em “vilões”. Eles, porém, não são heróis, muito menos vilões e, como Moro alertou em Live do Estadão, em 3/7, a Lava Jato foi um benigno “divisor de águas” contra a eterna impunidade. “Não entendo, sinceramente, aonde quem ataca a Lava Jato quer chegar”, provocou.

Há versões opostas para o marco zero da guerra, a ida da procuradora Lindôra Araújo a Curitiba. Considerada a maior bolsonarista da PGR, ela reclamou que foi maltratada ao pedir os arquivos das operações e levar um técnico para uma varredura nos equipamentos. Concluiu que estavam “com medo”. Já o pessoal de Curitiba diz que Lindôra chegou “com tom intimidatório, de interrogatório”, mas eles se dispuseram a liberar arquivos e só ressalvaram que, no caso de dados sigilosos, o acesso depende de procedimentos e justificativas formais, para “não gerar nulidades”. A batalha virou guerra.

A PGR acusa os procuradores de ter gravadores/interceptadores usados para “grampos”. Eles negam com as notas fiscais. Também diz que os procuradores dissimulavam investigações contra políticos com foro privilegiado, registrando só partes dos seus nomes. E eles negam dizendo que esses nomes surgiram inadvertidamente, em investigações que eram contra terceiros. Tudo isso está na Corregedoria, onde Lindôra tem portas abertas.

Na versão dos procuradores, ela chegou em pé de guerra e eles tentaram amenizar o clima e cooperar. E justificam: não dá para confrontar a PGR, é uma guerra perdida. Mas quem perde a guerra? A corrupção e o crime organizado? Ou quem combate a corrupção e o crime organizado?

Não é má ideia atualizar o modelo, corrigir excessos, integrar a PGR nas operações, compartilhar as informações e evitar as críticas recorrentes de que “os fins não justificam os meios”. Mas isso deveria surgir de discussões sérias e da busca de consensos. Aparentemente, a intenção não é essa, é demolir a Lava Jato e demonizar seus líderes. Quem entra nessa? O PT? O PSDB com o senador José Serra (SP) na rede? É melhor definir bem o inimigo antes de entrar em guerra alheia.


Eliane Cantanhêde: A crise continua

Bolsonaro mantém Decotelli em nome de seus 42 anos de vida pública, mas até quando?

A erosão do “robusto currículo” do professor Carlos Alberto Decotelli dá raiva, pena e, principalmente, medo da disputa reaberta no Planalto para fazer o novo ministro da Educação depois do inusitado Vélez Rodríguez, do inqualificável Abraham Weintraub e do constrangedor Decotelli. A ala militar, que indicou o doutor que não é doutor, está envergonhada. A ala ideológica, dos filhos do presidente, está esfregando as mãos, gulosa. E o Centrão, vai desperdiçar essa chance?

As chances de Decotelli permanecer ministro pareciam ter ruído junto com o seu currículo, já que a tese de mestrado na FGV é acusada de fraude, o título de doutor na Argentina não existe e o pós-doutorado na Alemanha foi uma um devaneio – não há pós-doutorado sem doutorado. O presidente Jair Bolsonaro, porém, decidiu prestigiar “o lastro acadêmico e sua experiência de gestor”, em detrimento de “problemas formais de currículo”. Por enquanto, Decotelli fica. Até quando?

O único item do currículo que fica em pé é o curso de Administração na Universidade Estadual do Rio (Uerj), o que poderia ser suficiente para a posse no MEC. O problema é inventar títulos e ser acusado de plágio, um vexame inominável para ele próprio e um constrangimento desnecessário para Bolsonaro, que, induzido ao erro, publicou nas redes sociais o currículo cheio de buracos. Assim como ele, a mídia também.

Bastaram os repórteres vasculharem daqui e dali para descobrir esses buracos. Por que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) não fez o seu trabalho de filtro? Ou displicência, ou a checagem de nomes é só ideológica, ou a decisão foi tão rápida pelo presidente que não deu tempo de consultar o GSI/Abin. A terceira hipótese faz mais sentido. Bolsonaro tinha pressa para indicar um nome, porque a “ala ideológica” – leia-se: os filhos e assessores fascinados pelo tal guru da Virgínia – não queria perder a vaga. A “ala militar” agiu rápido e o presidente assinou a nomeação.

O fato é que Bolsonaro não dá a mínima para o ministério e para a própria Educação, fundamentais em qualquer lugar do mundo e ainda mais no Brasil, onde o problema maior, o problema-mãe, é a desigualdade social. Como criar uma grande nação com uma parcela tão grande da população excluída, sem chance de um lugar ao sol. Como salvar a Educação, garantir o futuro das crianças pobres? Com Vélez, Weintraub, Decotelli, ideologias fajutas, currículos fraudulentos? E esse drama não acabou. Pobre MEC, pobre Educação, pobres crianças pobres.

E por que a “pena”, ao lado de raiva e medo no primeiro parágrafo? Decotelli é um professor negro, respeitado no meio acadêmico, com perfil técnico, e foi muito bem recebido depois de dois traumas sucessivos no MEC. Num momento de mobilizações nos Estados Unidos e no mundo democrático pela igualdade racial, ele seria o primeiro negro num governo que tem na Fundação Palmares Sergio Camargo, um negro que nega o racismo no Brasil. Logo, Decotelli tinha tudo a ver. Mas não resiste aos fatos.

O professor deu estranhas versões ontem ao presidente e à mídia, dizendo que o plágio na tese de mestrado na FGV foi porque “leu demais” e que sua tese de mestrado foi reprovada por ser “muito profunda”, o que remete a uma comparação injusta, mas que acaba surgindo, com o mentiroso advogado Frederick Wassef. Haja cara de pau!

O que fica é tristeza, desencanto, constrangimento, vergonha. Decotelli parecia uma grande referência e exemplo, mas foi virando uma grande decepção e constrangimento. O presidente anuncia que ele fica, mas, como tudo o que é ruim sempre pode piorar, não convém desprezar a hipótese de um terceiro “olavista” no nosso MEC.


Eliane Catanhede: ‘Caráter inusitado’

PGR em chamas, MP, PF, Receita e ex-Coaf são peças do quebra-cabeças lançado por Moro

Procuradoria-Geral da República está em chamas e a força-tarefa da Lava Jato reclama do “caráter inusitado” da ação da subprocuradora geral Lindôra Araújo, braço direito de Augusto Aras e ligada à família Bolsonaro, que desembarcou em Curitiba exigindo arquivos e dados sigilosos das investigações e criando a impressão de uma devassa na Lava Jato que pode atingir até o ex-ministro e ex-juiz Sérgio Moro. Esse, porém, é apenas mais um fato “inusitado” num país com quase 60 mil mortos de covid-19.

A audácia de Lindôra corresponde à sucessão de mentiras ridículas do advogado Frederick Wassef, capaz de inventar até “forças ocultas” que queriam matar Fabrício Queiroz para atingir o presidente Jair Bolsonaro. E lembra o pedido inusual da delegada da PF Denisse Ribeiro para o Supremo suspender as investigações sobre bolsonaristas golpistas e, assim, evitar “risco desnecessário para a estabilidade das instituições”. Tudo muito inusitado.

O mais grave, porém, é que a ida da procuradora a Curitiba ocorre quando o presidente Jair Bolsonaro é investigado pelo Supremo justamente pela acusação, feita por Moro, de intervir politicamente na Polícia Federal. E tudo num contexto maior de controle dos órgãos de investigação do País, não só para proteger filhos e amigos, como admite o presidente, mas também para perseguir adversários, como suspeitam governadores, ministros do STF, cúpula do Congresso e o próprio Moro. Ou seja, os alvos.

Lindôra, aliás, também exigiu os arquivos da Lava Jato em São Paulo e Rio e já tinha requisitado de todos os Estados e DF as investigações contra governadores. Ela alega que é coordenadora da Lava Jato na PGR e isso faz parte do trabalho, mas seus próprios pares desconfiam dessa “justificativa técnica”, convencidos de uma ação política coordenada. Tanto que três procuradores pediram demissão do grupo de trabalho e uma quarta já tinha saído por divergências.

Assim como Bolsonaro é investigado por intervir na PF e Lindôra invade investigações do MP em Curitiba, Rio e São Paulo, vale lembrar que, depois de revelar ao mundo a existência de um tal de Queiroz, o Coaf saiu do Ministério da Justiça, pulou de galho em galho e foi parar no Banco Central com o nome de UIF. E Bolsonaro, segundo o Estadão em 30/4, já pressionou a Receita Federal para perdoar dívidas milionárias de igrejas evangélicas.

Tudo somado, tem-se que Bolsonaro e seus seguidores têm uma visão muito particular e pouco republicana dos órgãos de investigação: PF, MP, Receita e Coaf, agora UIF. Essas peças vão montando o quebra-cabeças lançado por Moro a partir da demissão do competente delegado Maurício Valeixo da PF e das sucessivas mexidas na superintendência do Rio. Foram inusitadas, mas fazem todo o sentido.

Com Bolsonaro acuado e os militares passando a estabelecer (finalmente...) claros limites entre governo e Forças Armadas, veio à tona o personagem “Jairzinho Paz e Amor”, que dialoga com Judiciário e Legislativo, baixa o tom, ameniza a expressão, para de incendiar o País a cada manhã e de atiçar golpismos a cada domingo. Paz e amor, porém, implicam também órgãos de Estado e de governo independentes, apartidários, sem ações de “caráter inusitado” para salvar filhos e amigos e massacrar “inimigos”. Paz é paz, guerra é guerra.

Saúde

Reunido na quinta-feira para definir as promoções, o Alto Comando do Exército manteve em aberto e não indicou ninguém para a vaga de general de Divisão de Eduardo Pazuello, que foi cuidar da logística na Saúde e acabou ministro. Ele avisou que volta à Força em três meses. É a previsão para o fim da pandemia?


Eliane Cantanhêde: Jairzinho Paz e Amor

É melhor ‘presidente banana’ que ex-presidente prematuro e Bolsonaro tenta uma inflexão

A escolha do professor Carlos Alberto Decotelli da Silva para o estratégico e sofrido Ministério da Educação é mais um passo na metamorfose do presidente Jair Bolsonaro em Jairzinho Paz e Amor. Decotelli é conservador, sim, e não se poderia esperar algo diferente, mas carrega um belo currículo, não tem nada a ver com o antecessor Abraham Weintraub e muito menos é do grupo “olavista”. Logo, já é um avanço. Sua nomeação ocorre com Bolsonaro acuado, se enfraquecendo na área militar, e esquece manifestações golpistas e se aproxima de Judiciário e Legislativo, amenizando até a expressão facial e o tom de voz. Não à toa. São duas investigações contra ele no Supremo, uma contra Flávio Bolsonaro na Justiça Federal do Rio e outras contra parlamentares, empresários e militantes bolsonaristas, por fake news e atos golpistas, que se aproximam do “gabinete do ódio” e dos filhos do presidente.

O vice Hamilton Mourão entrou no radar, Bolsonaro finalmente concluiu que estava afundando e era hora de nadar e parar de afogar todo o resto. Essa pausa para reflexão, digamos assim, tem um papel fundamental da ala militar do governo, que manifestou incômodo com a ignorância e beligerância de Weintraub e não se dispõe a um abraço de afogados por problemas pessoais de Bolsonaro e seus filhos.

Tanto a queda de Weintraub quanto a ascensão de Decotelli, que teve uma fugaz passagem pela Marinha, têm a influência direta da ala militar, que tem tido contatos com ministros do Supremo e as cúpulas da Câmara e do Senado. Bolsonaro sempre bate no peito para demonstrar autoridade e já perguntou: “vou ser um presidente banana?”. Bem, é melhor ser um presidente um tanto “banana” do que um ex-presidente antes do tempo. De um lado, os militares mostraram desconforto. Do outro, o tal Olavo de Carvalho extrapolou ao postar um vídeo, aos palavrões, ameaçando o presidente. Somados, os dois movimentos reequilibraram o jogo, com a vitória da ala militar sobre a ala ideológica não só na questão pontual do MEC, mas na estratégia de sobrevivência.

Qualquer equilíbrio, porém, é precário. Bolsonaro atacou governadores, prefeitos, STF, Câmara e Senado. E também universidades, professores, alunos, médicos, enfermeiros, ambientalistas, indigenistas, jornalistas, artistas, intelectuais, militantes dos direitos humanos, movimentos negros… E a imagem do Brasil no exterior jamais esteve tão tristemente esgarçada desde os tempos da tortura. Bolsonaro não é vítima e sim réu nesse desgaste nas relações institucionais, federativas e internacionais. E é nesse ambiente adverso que tem de enfrentar as ações no Supremo e as revelações sobre a simbiose entre Flávio, Fabrício Queiroz, Márcia Aguiar, Capitão Adriano, milícias e o imprevisível Frederick Wassef.

Aliás, por que o general Augusto Heleno, do GSI, implodiu de vez a versão mal-ajambrada de Bolsonaro para a acusação de interferência na PF? O presidente dizia que seu alvo não era a PF, mas sim a segurança dele e da família do Rio, a cargo do GSI, quando, furioso, reclamou: “Eu não vou esperar foder a minha família toda (…), porque eu não posso trocar alguém (..).” Em oficio, Heleno responde que não houve “óbices ou obstáculos” para troca nenhuma. Em um ano e meio de governo, foram três na segurança no Rio.

Assim, o presidente tirou Weintraub, nomeou um nome respeitável para o MEC, reabre o diálogo e faz a alegria do Centrão, mas a crise continua. As investigações se aprofundam e não se tem ideia de como Bolsonaro vai se virar no depoimento ao STF. Sobretudo depois de Heleno, é impossível manter a versão inverossímil. E que outra versão podem inventar? O depoimento de Bolsonaro não será mais mera formalidade. E é um problemão.


Eliane Cantanhêde: Medo e barbeiragem

De erro em erro, Bolsonaros embolam Queiroz, Adriano, Wassef e demonstram medo

Nesse oceano de pessoas e fatos inacreditáveis, destacam-se as barbeiragens da família Bolsonaro ao tratar do amigão Fabrício Queiroz e de todas as questões nebulosas, e sob investigação do Ministério Público, que envolvem o agora senador Flávio Bolsonaro e resvalam perigosamente para o próprio presidente Jair Bolsonaro.

Tudo começa com a rachadinha operada por Queiroz no gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio, chega a funcionários fantasmas ali e também no gabinete de Jair na Câmara em Brasília, evolui para suspeita de lavagem de dinheiro e traz à tona as ligações de Jair, Flávio e Queiroz com um líder da milícia fluminense, o capitão Adriano, morto pela polícia. Engrossa esse novelo Frederick Wassef, falastrão, exibicionista e longe de ser um criminalista com dimensão para representar um senador, quanto mais o presidente.

Não bastasse a barbeiragem de abrir as portas dos palácios da Alvorada e do Planalto a Wassef, que tal permitir (ou pedir?) que ele escondesse Queiroz na sua casa de Atibaia? Não foi Queiroz que se meteu lá. Logo, meteram o Queiroz justamente na casa do advogado do presidente da República e do seu filho senador. Equivale a jogar Queiroz definitivamente no colo de Bolsonaro e Flávio. Coisa de gênio.

A barbeiragem seguinte vem com as reações de ambos. Numa live para tentar dizer que não tem nada com Queiroz, Jair põe-se a defendê-lo. A prisão foi “espetaculosa”, o amigo não estava foragido e não havia mandado de prisão contra ele, mas “pareciam estar prendendo o maior bandido do mundo”. Bolsonaro está solidário com o amigo que quebrava os maiores galhos do filho? Ou não pode atirá-lo às feras porque Queiroz tem muito revelar?

Segundo depoimentos, Queiroz chegou chorando e muito abalado à prisão no Rio, o que é uma péssima notícia para Jair e Flávio Bolsonaro. Nada pior do que um potencial homem bomba imprevisível e desestruturado emocionalmente, inclusive porque sua mulher, Márcia, fugiu e pode entrar para a lista de procurados da Interpol. Aliás, ela própria tem muito o que contar, se contar.

Outra barbeiragem é o advogado de Queiroz. Nada contra ele, mas contra a simbologia. Paulo Emílio Catta Preta era advogado do miliciano Adriano. Aprofundar os elos entre Queiroz, Adriano, Flávio e Jair Bolsonaro? Depois de Flávio condecorar o líder da milícia, Jair elogiá-lo publicamente e a família empregar a mãe e a mulher dele em seus gabinetes?

A primeira família tem de se preocupar também com Wassef, que está em evidência – e adorando. Se usufruía da intimidade dos Bolsonaro a ponto de abrigar Queiroz em casa, ele sabe de muita coisa. E não tem cara de guardar segredos, nem de dar a vida por alguém. Daí porque enxotaram Wassef dos casos de Flávio, mas o senador fez rasgados elogios ao enxotado em redes sociais: “A lealdade e competência do advogado Frederick Wassef são ímpares e insubstituíveis”. A cobrança de “lealdade” e o adjetivo “insubstituível” para quem está sendo substituído têm um sinônimo: medo.

E aí vem a última barbeiragem - até agora. O substituto do insubstituível Wassef é respeitável, mas foi advogado de Sérgio Cabral e de militares acusados de “excessos” na ditadura. Cabral é um dos maiores símbolos de corrupção. E a sensação de que generais sugeriram advogado para o caso Flávio-Queiroz vai na contramão do desejável: que eles fiquem (ficassem) a léguas dessa lambança toda.

É hora de todos desconfiarem de todos e de todos quererem se livrar de todos – presidente, Flávio, militares, Queiroz, Márcia, Wassef, advogados, a mãe e a mulher de Adriano -, mas quanto mais barbeiragens vão fazendo, mais eles se embolam perigosamente. O clima é de medo. E isso tudo ainda vai muito longe.


Eliane Cantanhêde: Fim de festa

Militares recuam. Weintraub fugindo e Mário Frias na Cultura completam clima de fim de festa

A fuga do inacreditável Abraham Weintraub para Miami e a chegada do também inacreditável Mário Frias à Secretaria de Cultura trazem ao governo um sensação de fim de festa, ou de fim do mundo, com o presidente Jair Bolsonaro catatônico, os generais aturdidos, o trio jurídico tentando um “respiro” do Supremo e o pau comendo na Justiça e na pandemia. Com um milhão de contaminados e 50 mil mortos, o foco do presidente está em outros números: 01, 02 e 03.

Situação dramática. Os militares finalmente se dão conta, o mundo jurídico age e o político se preserva. Todos conversam com todos procurando uma luz no fim do túnel: ex-presidentes (menos Lula), atuais e ex-ministros do Supremo, da Defesa e da Justiça, políticos de diferentes cores, juristas independentes, militares da ativa e da reserva. Os bolsonaristas veem “abuso” e “perseguição” contra Bolsonaro, o STF e os demais lembram que os ataques e ameaças partiram dele. Mas há uma saudável operação de guerra para defender o País – apesar do presidente.

Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes e Dias Toffoli, pelo menos, têm conversado com o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, e Gilmar foi ao comandante do Exército, general Walter Pujol (que tem sido exemplar). Também têm canal com o ministro da Justiça, o secretário-geral da Presidência e o advogado-geral da União, além de influentes generais da reserva. Bolsonaro, que deveria liderar esse processo, está alienado. Na sua dimensão, almoça com gatos pingados do Centrão, faz live patética com Weintraub, defende o preso Fabrício Queiroz e desdenha de um milhão de brasileiros com o vírus (“Quase 90% não sentem quase nada”).

Os militares fecharam os olhos para atos golpistas, uso da marca das FA, obsessão contra o isolamento social e a favor da cloroquina e até para a derrubada de portarias sobre controle de armas. Agora, como Sérgio Moro, chegam ao seu limite. Meia volta, volver. Defender Queiroz, Flávio Bolsonaro, ligações com milícia? Weintraub no Banco Mundial? Aparelhamento das PMs? Manipulação das FA pelo capitão insubordinado? Aliás, Bolsonaro faz questão de um general da ativa à disposição. Será que o secretário de Governo, Luiz Eduardo Ramos, vai mesmo para a reserva?

Certo domingo, Bolsonaro convidou o ministro da Defesa para uma volta inocente de helicóptero. Eis que – na versão do general – ele se viu num ato contra o STF e o Congresso e pela volta dos militares. É mole? E ele já ratificou a nota do general Augusto Heleno ameaçando o STF com “consequências imprevisíveis” e a de Bolsonaro dizendo que as FA não vão cumprir “ordens absurdas” e “julgamentos políticos”. Na primeira, houve recuo. Na outra, explicação de bastidores: Bolsonaro queria os comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica na nota. O ministro da Defesa assumiu o ônus.

Na quinta e na sexta, com a prisão de Queiroz, Bolsonaro chamou o general Fernando e o ministros da Justiça, deixando no ar a tentativa de envolvê-los (com a PF junto) num problema que não é de governo, mas dele e dos filhos. E as Forças Armadas com isso? Os comandantes bem fazem continuando mudos, cegos e surdos, enquanto o ministro da Defesa deveria ir tirar fotos nas ações militares na pandemia, bem longe de Brasília.

As FA, porém, não podem se descuidar da população civil armada, do aparelhamento das polícias, das suspeitas de promiscuidade com milícias. Já imaginaram a PM cruzando os braços numa invasão do STF? Típico caso de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), com Exército na rua. E aí? Forças Armadas contra polícia? Em nome do que? Dos Bolsonaro? É melhor prevenir esse risco do que remediar depois. O Brasil agradece.


Eliane Cantanhêde: Mourão no radar

Queda de Weintraub não ‘baixa a bola’, pois as pontas contra Bolsonaro se juntam rapidamente

A pergunta não é mais onde está o Queiroz, mas onde está Jair Bolsonaro. Com Fabrício Queiroz preso, Frederick Wassef desmascarado, a pressão de STF, TSE, TCU, Congresso, Justiça do Rio e movimentos pró-democracia, a situação do presidente da República vai se tornando insustentável. Cresce o alívio em setores governistas que se decepcionaram com Bolsonaro e agora trabalham pela ascensão do vice Hamilton Mourão. Neste caso, estão militares da ativa e da reserva.

O temor desses setores era de que o torniquete fosse do TSE e estrangulasse a chapa Bolsonaro-Mourão, mas o cerco contra Bolsonaro, filhos, advogado e apoiadores mais radicais se fecha não no TSE, que pode cassar a chapa, mas no Supremo, onde as investigações envolvendo bolsonaristas de todos os tipos levam diretamente ao presidente e não há nada contra o vice.

Sem esquecer que as circunstâncias e a opinião pública começam a pressionar o Congresso, onde o alvo de um impeachment seria Bolsonaro, não a chapa, não o vice. Com as várias frentes que desembocam no presidente, não há Centrão capaz de segurar uma onda que vem de fora e pode chegar incontrolável ao Congresso – como nos casos de Collor e Dilma.

As pontas se juntam rapidamente: milícia, rachadinha, gabinete do ódio no Planalto, parlamentares, empresários e manifestantes golpistas, o tal Wassef… Sem currículo, sem casos expressivos, vira advogado e faz-tudo do presidente, esconde o Queiroz em casa e indica para ele o mesmo advogado de quem? Do capitão Adriano, o miliciano morto pela polícia numa operação, suspeita-se, de queima de arquivo.

Tudo em torno de Bolsonaro é estranho. Tudo e todos. Como um cidadão como Wassef se aproxima, vira amigo da família, participa de posses e desfruta da intimidade dos palácios? Ligações com satanismo, ex-mulher processada por uma montanha de crimes, faixa pró AI-5 ao lado de bonecos do Scarface, poderoso chefão hollywoodiano. Pensem nos empresários, pastores, líderes partidários e gurus que integram esse círculo. Cada vez é mais difícil participar disso. Sérgio Moro que o diga.

Se a demissão de Abraham Weintraub do MEC é para restabelecer pontes do governo com o Supremo – ou “baixar a bola”, como dizia Mourão –, é tarde demais. Até porque a bola não está mais só no STF. O pedido para quebrar o sigilo bancário de parte da bancada bolsonarista foi da PGR. A decisão de prender Queiroz foi da Justiça do Rio.

Militares da ativa e da reserva, juristas renomados e personagens importantes de governos anteriores tentavam articular com ministros do Supremo uma espécie de trégua, encampando uma crítica recorrente de Bolsonaro: “Estão abusando”. Seria então a hora de dar um “refresco”, “um pouco de ar” para Bolsonaro.

Isso não seria exatamente a favor dele – considerado caso perdido –, mas para dar uma satisfação aos militares que estão no bloco dos cansados com o presidente, mas ao mesmo tempo convencidos de que o Supremo e a mídia extrapolam e há uma perseguição contra Bolsonaro. Os fatos, no entanto, se acumulam e mostram que nem há exagero nem perseguição, mas a constatação de que a eleição dele foi um erro. O País está à deriva em meio a uma pandemia devastadora.

Alerta o ex-presidente do STF Ayres Britto: “Numa democracia consolidada, não se pode impedir a imprensa de falar primeiro nem o Judiciário de falar por último”. O presidente e seus apoiadores, arrependidos ou não, precisam entender que não há “abusos” do Supremo. Há decisões com base na Constituição, a defesa implacável da democracia. E não há como dar um “respiro” nem “baixar a bola”, inclusive porque o Supremo é a parte mais visível, mas integra uma sólida resistência a um presidente que nunca assumiu de fato. Mourão está no radar


Eliane Cantanhêde: Ordens absurdas

Bolsonaro é contra ‘ordens absurdas’, mas são dele as ordens e declarações mais absurdas

Tem um probleminha a mais na nota em que o presidente Jair Bolsonaro fala em nome das Forças Armadas e avisa que elas não cumprem “ordens absurdas”: é exatamente dele, do presidente da República, que partem as ordens, os projetos, as decisões e as declarações mais absurdas.

Na campanha de 2018, o então deputado do baixo clero já exigia que a realidade e as pesquisas se adaptassem às suas vontades. Se não confirmavam o que ele achava que tinha de ser, acusava os institutos de fraude e só parou de brigar com eles quando a realidade e a sua vontade convergiram e sua candidatura disparou.

Na eleição, Bolsonaro e seu entorno disseram, ameaçadoramente, que só havia uma alternativa: a vitória ou a vitória. Só respeitariam o resultado se ele ganhasse; se perdesse, seria roubo. Um ano depois, já presidente, Bolsonaro fez algo nunca visto no mundo: acusou de fraude a eleição que ele próprio venceu. Acusou, mas não comprovou.

No governo, Bolsonaro manteve a toada. O desmatamento não é o que ele quer? Demite o presidente do Inpe. O desemprego não é conveniente? Cacetada no IBGE. Uma extensa pesquisa mostra que não há uma “epidemia de drogas” no País? Manda a Fiocruz engavetar. Atenção! Estamos falando de Inpe, IBGE e Fiocruz, orgulhos nacionais.

A “ordem absurda” de Bolsonaro que mais teve consequências foi a demissão do diretor-geral da PF, para ele bisbilhotar diretamente as investigações contra filhos, amigos e aliados. Foi por dizer “basta!” e não acatar essa ordem que o ex-juiz Sérgio Moro saiu do governo e deixou uma investigação do Supremo contra Bolsonaro.

Dúvida: se as FA não cumprem “ordens absurdas”, o que dizer do general da ativa Eduardo Pazuello diante dos achismos do presidente na Saúde? O isolamento social salva vidas, mas não se fala nisso. A cloroquina foi descartada para a covid-19 até pela FDA dos EUA, mas no Brasil pode-se usar à vontade – inclusive os dois milhões de doses imprestáveis para americanos. Só faltava o presidente dar uma ordem absurda – e criminosa – para invadirem hospitais de campanha e mostrar que, ao contrário do que dizem a realidade e os governadores, estão vazios. Não falta mais!

E que tal mudar a metodologia, e até o horário, de divulgação dos dados da pandemia (agora quase 45 mil mortos e um milhão de contaminados)? O presidente acha mais de mil mortos em 24 horas muito ruim para ele e a reeleição. Então, melhorem-se os números. O Brasil chocou o mundo, mas STF, Congresso, mídia e a comunidade médica e científica não engoliram o que Pazuello engoliu a seco. E o governo recuou.

Outra “ordem absurda”: para Abraham Weintraub passar por cima da Constituição e da autonomia universitária e nomear 25% dos reitores federais durante a pandemia. Ou seja: passar uma boiada, fazer caça às bruxas e acabar a “balbúrdia” nas universidades. Mas também não funcionou. As instituições gritaram, o Senado disse não e Bolsonaro revogou a MP relâmpago.

Na sequência, o governo divulgou o balanço da violência em 2019 e excluiu, ora, ora, os dados referentes à polícia, que crescem ano a ano. A alegação foi “inconsistência”, o que, ok, pode acontecer, mas o passado condena. O governo esconde números incômodos e os policiais são da base eleitoral e alvo de cooptação por Bolsonaro. Depois de desmatamento, desemprego, covid-19, emprego… foi só um erro técnico?

Bolsonaro está em meio agora a “ordens absurdas” com efeito bumerangue: foi ele quem nomeou Weintraub, que não trouxe nenhuma solução, só problemas. E foi ele quem deu a ordem para as FA não seguirem “ordens absurdas” e “julgamentos políticos” de outro Poder, o que remete ao imperial:

“A Constituição sou eu”. Há controvérsias. E resistência.