Eliane Cantanhêde: Os sem-partido
Planalto assume ar militar, enquanto Guedes replica Campos, Delfim e Simonsen
O governo Jair Bolsonaro pode até não ser um “governo militar”, como generais, almirantes e civis ligados ao futuro presidente fazem fila para garantir, mas que está ficando parecido, lá isso está. Até com um superministro civil definindo a pauta, a cara e a personalidade da economia.
No regime militar, havia uma divisão clara entre os generais que presidiram o País e os grandes economistas todo-poderosos: Roberto Campos, Delfim Netto e Mário Henrique Simonsen. Os dois grupos tinham poderes bem definidos e eram obviamente de direita, mas como se fossem de dois mundos diferentes. Os economistas, por exemplo, nunca perguntaram sobre tortura e repressão.
Hoje, o economista Paulo Guedes vai assumindo poderes equivalentes a Campos, Delfim e Simonsen, com o presidente eleito cumprindo à risca sua promessa de dar independência ao ministro. Ou “carta branca”, como o próprio Bolsonaro definiu ontem.
E assim vão chegando ao novo governo economistas que comungam a mesma filosofia liberal, com prioridade fiscal, Estado enxuto e três desafios-chave do mundo moderno: eficiência, produtividade e competitividade. Isso significa, entre outros, combater privilégios, promover reformas e assumir o ônus político das privatizações. Mas e o “social”, palavrinha mágica num país tão desigual como o Brasil?
Durante a eleição, uma das grandes interrogações que rondavam a campanha de Bolsonaro era o quanto, ou até onde, ele conseguiria reprimir sua alma corporativista, estatizante, nada liberal. Na própria campanha, ele deu pano pra manga a esses temores, ao desdizer Paulo Guedes e negar a privatização da Eletrobrás, empresa considerada privatizável por nove entre dez economistas, só não pelos políticos que mantém ali suas boquinhas.
Na formação do governo, Guedes vai em frente e não apenas o mercado, mas também os especialistas e o setor produtivo elogiam suas escolhas, como Roberto Campos Neto (olha a simbologia!) no Banco Central, uma das poucas áreas poupadas por Lula e Dilma e bem mantida por Temer. Ou como Roberto Castello Branco na Petrobrás, tão atacada, mas já saneada por Pedro Parente e Ivan Monteiro.
Aplausos também para Joaquim Levy, no BNDES, que serviu aos “campeões nacionais”, mas vem sendo revirado do avesso com Temer; Mansueto Almeida com mão de ferro e antipedaladas na Secretaria do Tesouro; Ivan Monteiro, saindo da Petrobrás para o Banco do Brasil, sua casa original.
Como no regime militar, esses nomes de ponta da economia não têm deuses nem partidos, ostentam diplomas das melhores universidades, especialmente dos EUA, e transitam bem de Fernando Henrique para Lula, Dilma, Temer e agora Bolsonaro. Como transitam facilmente entre os setores privado e público. A exceção, por enquanto, é o neto do ministro, embaixador e senador Roberto Campos, o ícone do liberalismo nacional. Ele, o neto, fez toda a carreira na área financeira privada.
Além dos economistas do regime militar, há que se trazer à tona os grandes economistas que um dia foram apelidados de “tucanos”, articularam o Plano Real, ajustaram o País, voltaram para a iniciativa privada e se dividiram em 2018 entre Alckmin, Marina, Amoêdo e independência. Eles criaram uma “escola”.
Enquanto o super Guedes recruta economistas liberais, Bolsonaro cede mais e mais poder e espaço no Planalto aos oriundos do Exército, em especial ao vice, general Hamilton Mourão. Eles continuam jurando que o governo não será militar, mas há controvérsias.
Petrobrás. Apesar da versão de que “os generais” reivindicavam a presidência da Petrobrás, militares ligados a Bolsonaro garantiam desde 30/10 que seria um civil. E foi.
Eliane Cantanhêde: Sobre heróis e vilões
Esquerda e direita veem o fim do mundo, mas o Brasil precisa de pés no chão e crescimento
A esquerda insana imagina uma imensa articulação internacional, quiçá intergaláctica, para as forças pró-finanças e anticivilização dominarem os países e trucidarem os povos, inclusive o Brasil e os brasileiros. E a direita delirante vê globalistas, China maoísta, esquerda internacional, ambientalistas, abortistas, corintianos, flamenguistas, marcianos e jupiterianos destruindo a civilização ocidental cristã. O ponto em comum entre os dois polos é o horror à globalização, um processo sem volta. Uma nova guerra mundial? Ou o fim do mundo?
Tudo grandiloquente, eletrizante, como as histórias em quadrinhos do grande Stan Lee, em que heróis com poderes sobrenaturais enfrentam vilões ambiciosos e desalmados que ameaçam a humanidade. Muita ação, cor, fantasia, capas, máscaras e símbolos que saem de escritos e pranchetas e invadem não países, mas revistas, livros, telas e a imaginação de milhões pelo mundo afora. A ficção diverte, mas as teorias conspiratórias e fundamentalistas ameaçam.
Um mesmo personagem faz furor na história em quadrinhos que se mistura com a realidade do Brasil, mas num duplo papel. Ele é excêntrico, grandalhão, usa um topete curioso e cabelos cor de laranja e tem um harém à sua disposição. “Dono” da maior potência política, econômica e bélica, ele faz e fala o que quer. Para a esquerda, ele é o grande vilão a ameaçar a Terra. Para a direita, o único herói, ou Deus, capaz de salvar o Ocidente e os valores cristãos que vêm sendo devorados pela esquerda.
Enquanto a esquerda delira e a direita vai conferindo um arcabouço teórico grandioso para o bolsonarismo, nós, leigos, meros mortais, estamos mais preocupados com questões bem mais urgentes do que invasões extraterrestres, heróis que voam, escalam paredes, dominam oceanos, correm na velocidade da luz e ameaçam o planeta.
O que interessa, de fato, na posse do presidente eleito Jair Bolsonaro, em 2019, é como, com que equipe, com quais parceiros e em que prazo o Brasil vai voltar a crescer, gerar empregos, garantir educação e saúde, avançar na ciência e na tecnologia, investir na infraestrutura, combater a violência e aprofundar a guerra contra a corrupção.
Tudo isso passa pelos ministérios da Economia e das Relações Exteriores e por boas escolhas para as demais pastas. Bolsonaro vinha sendo aplaudido pelos nomes para o GSI, Justiça, Agricultura, Ciência e Tecnologia, pelo compromisso de delegar a formação da equipe econômica para o superministro Paulo Guedes, um liberal, e pela capacidade de ouvir e recuar quando necessário.
O anúncio do diplomata Ernesto Araújo para o Itamaraty, porém, interrompeu os aplausos, atraiu críticas e salpicou o futuro governo de interrogações. As declarações do próprio Bolsonaro sobre política externa já tinham criado ruídos e respostas estridentes da China, do Egito, do Mercosul, de especialistas em comércio e em relações internacionais. E agora, com a intensa circulação dos textos do futuro chanceler a favor do “deus” Trump, contra a “China Maoísta”, o “climatismo”, o “antinatalismo”, o “vazio cultural da Europa”?
O objetivo da política externa e a expertise de diplomatas é atrair simpatia para o Brasil, abrir horizontes, atrair investimentos, facilitar negócios e garantir fartos superávits nas relações comerciais. Se até o maior parceiro comercial e responsável pelo maior superávit é tratado a caneladas, fica difícil. Nem Donald Trump, metido numa capa vistosa, escalando o Empire State, enfrentando demônios e invasores marcianos poderá salvar o Brasil. Aliás, o herói Trump já enfrenta muitos vilões, assim como o vilão Trump já persegue muitos super-heróis. Ele não está nem aí para o Brasil.
Eliane Cantanhêde: Vem aí o novo Itamaraty, ‘trumpista’ e ‘bolsonarista’
O presidente eleito, Jair Bolsonaro, deu muitas voltas até chegar ao ponto zero e anunciar quem ele queria desde o início para Relações Exteriores: o diplomata “trumpista” e “bolsonarista” Ernesto Araújo, que é “júnior” (nunca exerceu a função de embaixador), mas encantou Bolsonaro como intelectual chegado aos clássicos, contrário ao globalismo, pró-Ocidente e fascinado por Donald Trump.
A principal recomendação do futuro presidente ao seu chanceler é promover a “regeneração” do Itamaraty. Leia-se: eliminar os vestígios, programas e diplomatas da era PT, particularmente ligados ao ministro dos oito anos do ex-presidente Lula, Celso Amorim. “Fazer uma limpeza, mudar tudo”, resume-se na equipe de Bolsonaro.
Na prática, porém, Araújo terá uma tarefa bem mais imediata: apagar incêndios criados por manifestações tão leigas quanto perigosas do futuro chefe sobre China, Egito, Palestina e mundo árabe, assim como assustou o Mercosul e a União Europeia. Sair da ONU? Do Acordo de Paris? Mudar a embaixada em Israel para Jerusalém?
No Itamaraty, o clima é de apreensão. Na área militar, de comemoração. Num, o temor de uma caça às bruxas e um novo viés ideológico às avessas. Na outra, a certeza de que o PT será varrido e a política externa voltará à sua tradição de pragmatismo e respeito aos interesses nacionais.
Bolsonaro demorou a anunciar Araújo porque testou uma extensa lista de candidatos ao Itamaraty e, além de serem bombardeados, não fariam dobradinha dos sonhos: presidente e chanceler anti-PT e pró-Trump com a mesma intensidade. Isso diz tudo da política externa na nova era.
Eliane Cantanhêde: Engolir sapos
Governar não é moleza nem para quem tem experiência, partido, programa e equipe. E para quem não tem?
Eunício Oliveira é do MDB, não tem nada de esquerda e apoiou Lula e Fernando Haddad pela força do PT no Nordeste, mas já no primeiro turno Haddad e o próprio Eunício perderam a eleição no Ceará. Coisa rara, o presidente do Senado não se reelegeu.
Assim, ele é um pote até aqui de mágoa e, além de dizer, ele já mostrou que não está nem aí para o presidente eleito: após Jair Bolsonaro dizer que “não é o momento” de reajustar os salários do Supremo e pedir “grandeza” aos senadores, Eunício desdenhou o apelo, pôs o aumento na pauta e ajudou a inflar em bilhões por ano o rombo fiscal.
Para piorar, Paulo Guedes foi infeliz ao falar em “dar uma prensa” no Congresso e as relações entre Executivo e Legislativo começaram a azedar antes mesmo da posse de Bolsonaro e Guedes, em janeiro, e da nova Legislatura, em fevereiro.
É um choque de realidade, porque presidentes da República não fazem o que querem e precisam aprender algo que envolve política, experiência, maturidade e personalidade: engolir sapos. “Crus, fritos, assados, cozidos, grandes, pequenos, sem sal”, acrescenta um velho conhecedor de Brasília.
Bolsonaro cancelou uma audiência com Eunício e, de quebra, outra com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, do DEM. Nós, que não presidimos nada, podemos até elogiar: “Fez muito bem, foi macho”. Mas o sábio de Brasília é cáustico: “Isso é o que o Collor faria”. Nem precisou lembrar o destino do machão das Alagoas.
Governar não é moleza, nem quando o eleito tem estrondoso apoio popular, partido consolidado, alianças sólidas, programa claro, grande experiência de administração e equipe azeitada. Estrondoso apoio popular Bolsonaro tem, mas o resto ele vai ter de aprender e construir com o carro andando, sem bater de frente com o Congresso.
O melhor será ele agir como já age com Michel Temer ou como Sérgio Moro com ele próprio. Bolsonaro é respeitoso com Temer, pela simbologia da Presidência. E Moro mantém suas posições, mas faz inflexões e releva as diferenças com Bolsonaro.
Se acerta nas escolhas para o Executivo – como Joaquim Levy no BNDES –, Bolsonaro tem de articular maiorias no Congresso, compreendendo a complexidade e a multiplicidade dos atores fundamentais para aprovar suas reformas e propostas. Ou seja, para que seu governo dê certo.
A opinião pública empurra Câmara e Senado para o colo do Planalto, mas, se os sapos azedam e a relação vira uma guerra, o governo paralisa e o Congresso começa a empurrar a opinião pública para longe do Planalto. É um jogo que vai além das vontades e exige sobretudo competência.
Três tempos, mesmo diagnóstico, mesmo temor. Coluna de 12/8: “Não se pode transformar embalagem de comportamento social numa candidatura militar e menos ainda numa promessa de governo militar. Além da ameaça para o Brasil, é um enorme risco para as próprias Forças Armadas”.
Coluna de 16/10: “Bolsonaro deveria (...) dar sinais de que não fará um “governo militar”, assim como os comandantes deveriam deixar claro que a candidatura, por mais apoios que tenha de militares, não é das Forças Armadas. Isso pode reduzir dois temores: o dos civis diante da volta do regime militar, e o dos militares diante da contaminação política dos comandos e das tropas”.
Comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, à Folha de S. Paulo de 11/11: “Estamos tratando com muito cuidado essa interpretação de que a eleição dele representa a volta dos militares ao poder. Absolutamente não é. Alguns militares foram eleitos, outros fazem parte da equipe dele, mas institucionalmente há uma separação. E nós estamos trabalhando com muita ênfase para caracterizar isso, porque queremos evitar que a política entre novamente nos quartéis”.
Eliane Cantanhêde: Battisti, um troféu
Com a troca de poder, do PT para Bolsonaro, muda a situação do italiano Cesare Battisti
Depois de uma profusão de manifestações equivocadas e até chocantes na política externa, e de começar a levar o troco, o presidente eleito, Jair Bolsonaro, já tem uma carta na manga para virar o jogo: a extradição do terrorista Cesare Battisti. A ideia agrada a Itália e, por extensão, a toda a Europa. E é mais uma estocada no PT e na esquerda brasileira, com apoio do eleitorado conservador de Bolsonaro.
A tese tem o apoio do governo de Michel Temer, professor de Direito Constitucional. Além dele, os ministérios da Justiça e da Relações Exteriores já acenaram com o apoio à extradição de Battisti, não por questões de legalidade e diplomacia.
Há um problema: a decisão depende do Supremo e pode demorar, porque não tem consenso no plenário, quando os 11 ministros parecem enfim falar a mesma língua, na defesa da democracia, das instituições e do próprio Supremo.
No governo Lula, tanto o Itamaraty quanto o Ministério da Justiça, via Comitê Nacional para Refugiados (Conare), recomendaram a extradição de Battisti, condenado à prisão perpétua no seu país por quatro assassinatos quando integrava um movimento terrorista e refugiado no Brasil desde 2004.
O então ministro da Justiça, Tarso Genro, do PT, mexeu mundos e fundos, mudou a posição do Conare, desconsiderou a do Itamaraty, convenceu Lula e manteve Battisti no Brasil, como “preso político”, não um assassino julgado pela Justiça italiana.
Na Itália, mobilizou Justiça, polícia, governo, parlamento e opinião pública. No Brasil, virou debate nacional e foi parar no Supremo, que chegou a uma decisão salomônica: autorizou a extradição de Battisti, mas delegando ao presidente Lula a decisão final.
No apagar das luzes do seu governo, Lula concedeu o refúgio ao italiano, deixando críticas no meio jurídico, sequelas na relação com a Itália e uma nuvem de incertezas sobre próprio Battisti, agora casado, pai e com ocupação regular.
A Itália retaliou com luvas de pelica, quando o ex-diretor do BB Henrique Pizzolato fugiu para o país após condenado no mensalão e acabou preso. Pela reciprocidade, refúgio de Battisti no Brasil seria igual a refúgio de Pizzolato na Itália, e seus advogados alegavam que as prisões brasileiras eram medievais (o que não é de todo mentira) e ele acabaria morto (improvável).
Em vez da reciprocidade fria e pragmática, a Itália cumpriu todos os trâmites legais e extraditou Pizzolato para o Brasil, onde ele cumpriu pena, saiu vivinho da Silva da cadeia em 2017 e volta à tona como argumento a favor de devolver Battisti para Roma.
Sabe-se lá como os ministros do Supremo votarão. O argumento contra a extradição é que a decisão de Lula foi um “ato de soberania nacional” e não pode ser revista pela corte. O argumento a favor é que, se o STF delegou a Lula a decisão final, por que não delegaria agora para Temer, até 31 de dezembro, ou para Bolsonaro, a partir de então?
O julgamento de Battisti e seus desdobramentos, qualquer que seja o desfecho, tendem a ocupar a mídia, uma esquerda em baixa e uma direita em alta. Em vez de falar em sair da ONU e do Acordo de Paris, dar um chega-pra-lá na China e no Mercosul e mudar a embaixada para Jerusalém, Bolsonaro poderá badalar suas diferenças com o PT.
A União Europeia, já satisfeita com o recuo na fusão de Agricultura e Meio Ambiente, abaixaria o tom e a apreensão com Bolsonaro. No Brasil, os bolsonaristas entrariam em êxtase, a esquerda faria barulho e o meio jurídico se dividiria. Battisti, portanto, é candidato a troféu.
Ciro. Ao disputar a liderança da oposição, Ciro Gomes bate no PT e em Lula com a mesma ênfase com que, na campanha, atacava o PSDB e FHC para defender... o PT e Lula.
Eliane Cantanhêde: Erros e acertos
Senado dá tiro no pé, enquanto Bolsonaro surpreende positivamente
O aumento dos salários dos ministros do Supremo foi a primeira derrota imposta pelo Senado ao governo Jair Bolsonaro, antes mesmo da posse, mas o tiro saiu pela culatra. O aumento atiçou a irritação popular contra o Congresso e os partidos. Bolsonaro ficou do “lado certo”, os políticos, do “lado errado”.
Dinheiro para saúde, educação, saneamento, cultura e infraestrutura não há, mas para marajá do serviço público nunca falta. E o aumento do Supremo tem um efeito cascata que inunda todos os poderes e unidades da federação, com impacto danoso num déficit já pavoroso e no estado fiscal lamentável dos estados.
Derrota de Bolsonaro? Ou derrota do Brasil, do contribuinte, dos investimentos, da responsabilidade fiscal, do Congresso? O presidente Michel Temer, que poderia corrigir o erro, não pode nem o fará, porque já vinha negociando o aumento há meses com o presidente do STF, Dias Toffoli.
O Congresso insiste em não ver, ouvir, sentir e entender nada, mesmo após a vitória de Bolsonaro e a derrota de incontáveis políticos tradicionais, particularmente senadores, alguns deles até muito sérios, porque “os justos pagam pelos pecadores”.
Enquanto a imagem do Congresso continua afundando, Bolsonaro vai surpreendendo para melhor. As ameaças e manifestações fora do tom, tão chocantes na campanha, vêm sendo trocadas por reverência à Constituição, respeito às instituições – até ao presidente Michel Temer –, e uma relação civilizada com a imprensa.
Após a ameaça a um jornal e a exclusão da imprensa escrita da primeira coletiva, ambas decisões inadmissíveis, ele vem cedendo à realidade de que a mídia incomoda, mas é parte fundamental da democracia. Deu entrevistas às TVs e responde a perguntas improvisadas pelos repórteres. Seus homens fortes têm dado declarações e coletivas sobre suas intenções: o general Augusto Heleno, o economista Paulo Guedes, o juiz Sérgio Moro. Só o vice Hamilton Mourão anda calado.
Aliás, os novos ministros são a outra surpresa positiva. Gostem-se ou não deles e esgoele-se ou não a oposição, o fato é que a opinião pública e o mercado receberam bem os já citados, particularmente Moro, assim como o militar e astronauta Marcos Pontes para Ciência e Tecnologia e, agora, a deputada, agrônoma e ruralista Tereza Cristina, aplaudida no próprio Congresso.
Ex-líder do PSB, ela mudou para o DEM por votar no impeachment de Dilma Rousseff e, se vira ministra por indicação da Frente Parlamentar do Agronegócio, é um trunfo por ser a primeira mulher no primeiro escalão e tem um plus: o DEM tende a ser uma mão na roda para Bolsonaro, porque os dois são complementares. O partido do presidente eleito, o PSL, deu um salto, virou a segunda bancada na Câmara e, logo, roubará o primeiro lugar do PT. Mas quantidade nem sempre é qualidade nem garante resultados.
O PSL é um amontoado de caras novas, que mal se conhecem entre elas e têm pouca ou nenhuma experiência de Congresso. Já o DEM é muito experiente, disciplinado, passou por uma renovação que alavancou líderes mais novos e modernos. E o partido tem muita identidade com a pauta liberal de Bolsonaro, ou melhor, de Paulo Guedes.
Bolsonaro quer um diplomata de carreira no Itamaraty (logo, please!) e pode levar militares para duas áreas que eles consideram pontos fortes do regime de 1964: Infraestrutura e, não se assuste, Educação.
Por último, Heleno vai para o Planalto. Na Defesa, ficaria voltado para as Forças Armadas. No GSI, órgão de inteligência, terá acesso direto ao presidente e às principais informações e segredos do País. Ele já tem natural influência sobre Bolsonaro e informação é poder. Logo, é forte candidato a eminência parda.
Eliane Cantanhêde: O soldado Moro
Mercado e redes comemoram Moro na Justiça, mas o PT vai passar de palavras a atos
Petistas, esquerdistas, condenados, investigados, juristas e advogados reagiram mal à ida do juiz Sérgio Moro para o Ministério da Justiça de Jair Bolsonaro, mas, mais uma vez, eles estão em minoria e, no fim, o PT vai ficar falando sozinho. A grande maioria, principalmente nas redes sociais e no mercado financeiro, não foi só a favor, mas entusiasticamente a favor da novidade.
Segundo Bolsonaro, Moro agiu como “soldado, indo à guerra sem medo de morrer”. De fato, Moro sabia que os ataques seriam implacáveis, mas balançou os prós e contras e assumiu a trincheira com inimigos definidos, objetivos claros e a ambição de reunir todo o aparato federal possível para jogar o combate à corrupção e ao crime organizado no centro do governo e da própria agenda política.
Ao resgatar para a Justiça o recém-criado Ministério da Segurança Pública, Moro terá uma Polícia Federal fortalecida, a Controladoria-Geral da República e, se a lei permitir, também o Coaf, unidade de inteligência para detectar movimentações atípicas e crimes financeiros transnacionais.
Assim, Moro deixa de ser o juiz de Curitiba e passa a ser o principal responsável pelo combate à corrupção na administração pública e o “xerife” contra organizações criminosas que pululam pelo País afora. Lutará também por novas regras anticorrupção, contra a lei de abuso de autoridade e para evitar retrocessos na Lava Jato. Com ele, vai ser difícil “estancar a sangria”.
Moro nem deve ter se dado conta disso, mas pode vir também a ter um papel adicional: funcionar como escudo contra quaisquer ameaças ou investidas verbais contra o estado democrático de direito. Por mais que tenha divergências, até rusgas, com um ministro ou outro, nesse caso cerrará fileiras com o Supremo pela Constituição.
Bolsonaro, que disparou graças à condenação firme à corrupção, prometeu aparato e munição a Moro, seu maior troféu na formação do Ministério. Estava tão feliz pelo golaço que ontem mesmo deu entrevista coletiva, leve, coloquial. Só errou ao barrar os jornais, uma implicância boba. E atiçou a curiosidade ao admitir que tem “pouco contato” com o vice, general Hamilton Mourão, mas isso é outra história.
A ida de Sérgio Moro para a Justiça, porém, ainda vai dar muito pano para a manga da oposição, particularmente do PT. Ontem, petistas diziam que “caiu a máscara” de Moro e enumeravam decisões que tomou como magistrado que, segundo eles, prejudicaram diretamente o ex-presidente Lula, preso em Curitiba e impedido pela Lei da Ficha Limpa de concorrer contra Bolsonaro na eleição.
Segundo eles, tudo está explicado. O vazamento da conversa entre a então presidente Dilma Rousseff e Lula às vésperas da nomeação dele para a Casa Civil, com o foro privilegiado de brinde, além da divulgação de parte da delação premiada do ex-ministro Antonio Palocci contra Lula e o PT bem no meio da eleição. Agora, o partido promete passar das palavras aos atos, ou melhor, às ações para tentar até mesmo anular a condenação – logo, a prisão – de Lula.
Não dará em nada, mas chateia, cria saias, ou melhor, “togas-justas” no Supremo e engrossa o discurso de entidades internacionais que até agora ainda querem acreditar que o impeachment de Dilma foi “golpe” e que Lula é “preso político”.
Como se diz no jargão da economia, Moro já tinha precificado essa reação e essas acusações antes de desembarcar no Rio ontem para dizer sim a Jair Bolsonaro. Além da vaidade, da ambição profissional e do sonho de se firmar para sempre como o líder do combate à corrupção – tudo isso legítimo –, Moro aceitou o cargo com duas certezas: a de que dará um choque na corrupção sistêmica e a de que o Brasil nunca será como antes. Boa sorte!
Eliane Cantanhêde: Bolsonaro, o novo Lula
Se perder, o PT amanhece na oposição contra um ‘novo Lula’ com dogmas e multidões
Enfim, chegamos ao final dessa eleição que teve de tudo, até candidato presidiário e facada no líder das pesquisas. Se houve algo estável em toda a campanha, desde o primeiro turno, foi a dianteira firme e segura do candidato Jair Bolsonaro, do PSL, um capitão reformado que está há 28 anos na Câmara e meteu os filhos na política, mas surge como “o novo”, para fazer “tudo diferente”. Acaba a eleição, vem aí a prova dos 9.
O grande marco de 2018 foi o fim da disputa PT versus PSDB, que atravessou décadas desde 1994, e o início da polarização PT versus Bolsonaro, mas com fortes mudanças no velho petismo e o surgimento de um “novo Lula”, só que pela direita.
A estrela do PT já tinha sido jogada pela janela em outros carnavais, ou eleições, e nesta até o vermelho foi deixado de lado, mas o maior ausente não foram os símbolos, foram os atores. A famosa militância petista ficou em casa, a nova militância bolsonarista é que ocupou as ruas e a guerra eleitoral migrou para as redes sociais. Para o bem, principalmente para o mal.
Assim como tudo o que Lula diz é dogma para os petistas, tudo o que o capitão Bolsonaro diz passou a mover multidões pelo País afora, por mais barbaridades que tenha dito, sobre ditadura, tortura, mulheres, gays e por menos que tenha falado de pobres e do principal problema brasileiro: a desigualdade social.
Bolsonaro é um novo Lula, mas às avessas. Enquanto Lula garantia a fidelidade cega de artistas, intelectuais e da Igreja Católica cativando um eleitorado inabalável no Nordeste e entre os de baixa renda e escolaridade, Bolsonaro domina a classe média e se enraizou por todos os segmentos alavancado pelos ricos com diploma que emergiram como força política em junho de 2013. Mas a adoração a ambos tem muita semelhança, com uma realidade virtual em que tudo o que eles dizem vira verdade.
São esses dois polos que estarão se enfrentando nas urnas de hoje, de onde surgirá o futuro presidente do País e automaticamente a maior e mais aguerrida oposição que jamais se viu. Se Fernando Haddad (PT) vencer, terá contra ele um exército bolsonarista que bate o PT tanto nas ruas quanto nas redes, em número e em agressividade.
Se for Bolsonaro, como todas as pesquisas indicam, o que sobra de esquerda organizada para reagir e se contrapor é o PT. Esmagado nas eleições de 2016, com Lula preso, seus demais líderes também presos e até Dilma derrotada, mesmo assim o PT foi para o segundo turno. Ferido, não morto.
Logo, o que as pesquisas indicam que estará saindo das urnas hoje é um Bolsonaro eleito presidente e aprendendo o beabá da negociação política, da construção de maiorias parlamentares, da importância do equilíbrio fiscal, da dificílima tarefa de dizer “não”, muito especial para aliados, e tendo de conviver com algo inerente à democracia: a oposição. Confrontado, o general Ernesto Geisel fechou o Congresso. O capitão Bolsonaro não terá essa opção.
Ali na espreita estarão as instituições, a própria sociedade, os partidos e movimentos organizados e... o PT. Se perder a eleição hoje, o PT já amanhece amanhã como o grande vitorioso para liderar a oposição ao próximo governo. No início, devagar, auscultando, tateando. Pelo óbvio, quanto mais o governo errar, mais a oposição vai crescer.
E é assim que a terrível polarização da eleição vai ser transportada para o novo governo. Aí, é torcer e rezar pelo bom senso e o equilíbrio porque, para além das ideologias, dos partidos e das diferenças, há uma turminha que tem muita pressa: os 13 milhões de desempregados na rua da amargura. É por eles, pelo Brasil e pelo futuro que fica aqui o meu voto: sucesso, presidente, seja você quem for!
Eliane Cantanhêde: Não vai ser de goleada
Bolsonaro perde e Haddad ganha milhões de votos, mas sem tempo para virada
O PT espanca Fernando Henrique Cardoso há quase 20 anos, fez uma campanha canalha contra Marina Silva em 2014 e atacou a candidatura Ciro Gomes em todos os flancos em 2018, mas os petistas estão indignados, ou irados, porque FH, Marina e Ciro têm enorme dificuldade em apoiar Fernando Haddad antes do domingo. Engraçado, não é?
Aliás, se fosse o PSDB, a Rede ou o PDT contra Jair Bolsonaro, o PT iria manifestar apoio a eles? Ou faria como sempre, em cima do muro, vendo o circo (e o País) pegar fogo para depois lucrar ao apagar o incêndio?
Bolsonaro é franco favorito para a Presidência, mas a diferença entre ele e Haddad vem caindo e isso mexe com os nervos das duas campanhas. Bolsonaro ameniza o tom e acena com um governo de coalizão. O PT aumenta a pressão e o constrangimento para que outras forças políticas se manifestem pró-Haddad, contra o “autoritarismo”.
Ciro teve 12% dos votos, mas o tucano Alckmin nem chegou a 5% e Marina despencou do segundo lugar até um raso 1%. FH nem voto tem. Mas, para o PT, um sinal deles a favor de Haddad poderia tirar do muro milhões de eleitores que oscilam entre votar nulo ou em Haddad. Seria um empurrão.
Assediado pela mídia, por telefone, pela internet e ao vivo, Fernando Henrique reclama que “intimidação é inaceitável”. Parece se deliciar com a insistência e com a própria resistência a apoiar automaticamente o PT, que nunca apoiou automaticamente ninguém. Muito pelo contrário.
Marina e o PDT anunciaram um “apoio crítico” a Haddad, enquanto Ciro Gomes viajava com a família para a Europa e seu irmão Cid fazia a papagaiada no evento do PT – “Vocês vão perder! Vocês vão perder!”. Depois, anunciou apoio a Haddad, mas simplesmente ignorou os eventos de campanha do PT no Ceará.
É muito provável que FH, Marina, Ciro e Cid venham a votar em Haddad no domingo, mesmo que não anunciem publicamente o apoio. Mas não pelo PT, nem mesmo pelo próprio Haddad, mas contra Bolsonaro e o que ele representa. Assim como há antipetismo, há um forte antibolsonarismo.
As intenções de voto em Bolsonaro recuam tanto como as de Haddad sobem, mostrando que o sentimento contra Bolsonaro está crescendo, depois do vídeo do deputado federal reeleito Eduardo Bolsonaro dizendo que “bastam um soldado e um cabo para fechar o Supremo” e da acusação dos petistas de que empresários foram pagos por Bolsonaro para disseminar fake news contra Haddad.
Além disso, a diferença entre os dois candidatos diminuiu por causa dos programas do PT com Bolsonaro defendendo a tortura e um torturador, contra direitos das empregadas domésticas e ao lado do presidente Temer e do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, um dos presos mais famosos da Lava Jato. Como pano de fundo, a massificação da ideia de que, eleito, Bolsonaro será uma ameaça à democracia, às minorias e aos pobres.
De outro lado, Haddad também andou fazendo besteiras. A principal delas foi usar uma sabatina para acusar o vice de Bolsonaro, general Hamilton Mourão, de ter sido torturador na ditadura militar. O general tinha 16 anos na época e a declaração de Haddad não foi apenas irresponsável como voltou como bumerangue na testa dele. Na reta final, o fundamental é não errar.
Rio. A distância entre Witzel (PSC) e Eduardo Paes (DEM), de 12 pontos, é igual à de Bolsonaro e Haddad, com uma diferença: a redução é bem mais acentuada no Rio e as curvas podem cruzar até domingo.
Marielle. Alta fonte nega que o governo tenha jogado a toalha nas investigações sobre o assassinato de Marielle e espera novidades “a médio prazo”. Quem tem razão?
Eliane Cantanhêde: Caça às bruxas
Com Bolsonaro, guinada na política externa e dança de cadeiras no Itamaraty
A polarização política chegou ao Itamaraty, com acusações mútuas de caça às bruxas e perspectiva de grandes mudanças a partir de janeiro de 2019, se o presidente for Jair Bolsonaro, como indicam as pesquisas. Nesse caso, haverá uma guinada na política externa e uma forte dança de cadeiras.
A campanha de Bolsonaro acusa diplomatas de estarem por trás da avalanche de reportagens negativas ao candidato nas principais publicações da Europa, Estados Unidos e América Latina. E ressalta: elas não apenas classificam Bolsonaro como “racista”, “homofóbico” e “ameaça à democracia”, como poupam ou até enaltecem o PT.
Na fila, The Economist, um bastião do liberalismo econômico internacional, Financial Times, Liberation, The New York Times e Le Figaro, além de importantes jornais da América Latina, no que o comando bolsonarista classifica de campanha externa contra o candidato e que atinge também organismos internacionais.
Ao acusarem diplomatas brasileiros de municiarem jornais e jornalistas estrangeiros, aliados do candidato do PSL apontam os que seriam “líderes da campanha”: os embaixadores aposentados Celso Amorim e José Viegas, que foram ministros da Defesa nos governos do PT e recebidos com desconfiança principalmente pelo Exército.
Amorim foi chanceler nos oito anos de Lula e participou ativamente da campanha dele à Presidência. Ao liderar a política externa “ativa e proativa”, ou Sul-Sul, Amorim direcionou o foco para países emergentes e alternativos e foi assim que a China desbancou os EUA como principal parceiro comercial brasileiro e Amorim forjou toda uma geração de diplomatas. Bolsonaristas dizem que são “todos petistas” e estão em cargos-chave que, aliás, citam de cor.
Paulo de Oliveira Campos, o POC, chefe do Cerimonial da Presidência de Lula, é embaixador em Paris; Mauro Vieira, ex-chanceler, na ONU, em Nova York; Antonio Patriota, também ex-chanceler de Dilma, em Roma; Antonio Simões, em Montevidéu, sede do Mercosul. Eles são a elite do Itamaraty. Patriota, por exemplo, é primeiro de turma.
Apesar de listar os “inimigos” sem cerimônia, a equipe de Bolsonaro acusa “os petistas do Itamaraty” de estarem fazendo listas de colegas que tenham manifestado apoio ou simpatia pelo capitão. Grosso modo, assim como há uma guerra de guerrilhas das duas campanhas na internet, ela poderia estar ocorrendo também na Casa de Rio Branco.
A campanha de Bolsonaro também diz que o “aparelhamento” do PT na administração pública, estatais, bancos públicos e agências reguladoras se estendeu a órgãos internacionais e cita a ex-ministra de Dilma Ideli Salvatti, que ganhou uma função na Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington.
É desses órgãos, segundo bolsonaristas, que saem as notícias negativas não apenas contra Bolsonaro, “mas contra o Brasil”, desde atribuir o impeachment de Dilma a um “golpe” até a manifestação de dois integrantes de um comitê da ONU “determinando” que Lula tinha de concorrer às eleições, mesmo preso em Curitiba.
A intenção de Bolsonaro, caso vença as eleições, é trazer de volta esses técnicos, fazer uma dança de cadeiras nas embaixadas e principais consulados, cancelar postos abertos por Amorim em pequenos países – que considera ser de alto custo e baixo retorno para o Brasil – e, principalmente, mudar a política externa.
Principais objetivos: “recuperar o pragmatismo, a liderança natural do Brasil na América do Sul e os parceiros tradicionais, como os EUA”. O primeiro alvo é a Venezuela. Com Bolsonaro na Presidência, será o fim da aliança com Nicolás Maduro, como na era PT, e da “leniência” com o regime dele, no governo Temer. Falta descobrir os “bolsonaristas do Itamaraty”. Até agora, estão por baixo dos panos.
Eliane Cantanhêde: Risco de contaminação
Há quatro décadas, o general Ernesto Geisel cansou das provocações dos “bolsões radicais, porém sinceros” e, com duas canetadas, reconduziu as Forças Armadas para a hierarquia, a disciplina e a ordem. Foi o fim da politização e o início de uma profissionalização militar que atravessou diferentes governos, dois impeachment e fortes crises.
Geisel demitiu o ministro do Exército, Silvio Frota, que contestava a abertura política, e o então comandante do 2.º Exército, Ednardo D’Ávila Mello, por não conter os seus “radicais” em São Paulo. E foi assim que o presidente garantiu a “abertura lenta, gradual e segura” até a posse do também general João Figueiredo e a redemocratização de 1985.
Quanto mais o Ibope confirma a virtual vitória do capitão reformado Jair Bolsonaro e do seu vice, general da reserva Hamilton Mourão, mais cresce a dúvida: até que ponto um governo com forte apoio de militares e com participação de altas patentes poderá contaminar as Forças Armadas, com a volta da politização, dos grupos e das consequentes disputas internas de poder?
Ninguém, dentro e fora do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, considera possível ou viável um golpe militar clássico a esta altura, mas quem descarta uma democracia tutelada, ou seja, uma tutela militar sobre o governo civil democraticamente eleito?
Na Venezuela, sempre tão jogada no colo do PT (e com boas razões), o regime Hugo Chávez começou exatamente assim como o governo Bolsonaro está para começar no Brasil: com o desgaste monumental do Congresso, dos partidos e dos políticos; um grau de corrupção insuportável; índices de violência assustadores; um discurso de descrédito da mídia, das instituições, das próprias eleições. Não é preciso dizer no que deu. A democracia, a economia, as empresas, o emprego, a imprensa e as condições sociais implodiram.
Bolsonaro se prepara para assumir com uma bancada própria na Câmara (o PSL elegeu 52 deputados, só atrás do PT) e espera que ruralistas, evangélicos, a “bancada da bala” e o próprio Centrão venham por gravidade. Assim, ele já pode dar um cala-boca nos que o imaginavam ilhado no Planalto, sem condições de governabilidade. Força no Congresso, ele deverá ter.
O problema é saber qual será a simbiose entre o governo Bolsonaro e as Forças Armadas. Mourão, Oswaldo Ferreira, Aléssio Ribeiro Souto e Augusto Heleno são da reserva, mas todos chegaram a generais de quatro estrelas, o mais alto grau da carreira, e conviveram a vida inteira com o atual Alto-Comando do Exército. Mourão, inclusive, fazia parte dele. As visões de mundo, de política e de comportamento são iguais, assim como a velha visão “nacionalista” da economia.
Além de condenar duramente a violência na campanha, Bolsonaro deveria também parar de defender a ditadura e dar sinais de que não fará um “governo militar”, assim como os comandantes deveriam deixar claro que a candidatura, por mais apoios que tenha de militares, não é das Forças Armadas. Isso pode reduzir dois temores: o dos civis diante da volta do regime militar, e o dos militares diante da contaminação política dos comandos e das tropas.
Para começar, ele deve parar de desacreditar as urnas eletrônicas, elogiadas no mundo todo. E deve desestimular as fake news grosseiras e os ataques ao MP, ao meio ambiente, às reservas indígenas, aos currículos das escolas e, claro, à mídia. Governo entra, governo sai, a mídia continua no mesmo lugar: crítica, vigilante, um contrapeso às verdades de ocasião e às tentações do poder. É seu papel na democracia.
FHC tem mágoa da mídia, o PT vivia às turras com a mídia, os bolsonaristas se unem contra a mídia. Mas, se é ruim com ela, é muito pior sem ela. Não é, Venezuela?
Eliane Cantanhêde: ‘Bloco da Sensatez’
Devastado, PSDB tenta reunir os cacos num bloco contra a crise contratada para 2019
O PSDB, ou o que sobrou dele, tenta juntar os cacos e articular um bloco na Câmara com PPS, DEM e PSD para atuar no Congresso no próximo governo e servir de embrião para um novo partido moderado, de centro, com tendência à direita. Seria o que eles chamam de “Bloco da Sensatez”, pegando carona no alerta de Fernando Henrique Cardoso contra a “marcha da insensatez”.
Dê Jair Bolsonaro (PSL), como tudo indica, ou Fernando Haddad (PT), em franca desvantagem, a avaliação do bloco é que tempos muitos difíceis estão por vir no País e no Parlamento, com o novo governo batendo cabeça, cometendo erros crassos, e a oposição armada até os dentes. Por isso, seus articuladores jogam na mesa duas premissas de atuação: bom senso e responsabilidade.
Devastado pelas urnas e pela radicalização entre Bolsonaro e PT, o PSDB não enxerga um futuro, com FHC errático, Serra, Aécio e Alckmin fora de combate e João Doria, neófito, mais à direita e pouco confiável, tentando assumir o vácuo. No partido, há uma torcida contra Doria (que passou vexame com Bolsonaro) e a favor de Márcio França (PSB). Além de São Paulo, tucanos estão no segundo turno no RS, MT, RO, RR e a joia da coroa, Minas.
Além de Alckmin levar o troféu de pior desempenho da história do PSDB nas eleições, com menos de 5% dos votos, a bancada da Câmara foi quase dizimada. Dos seis últimos líderes, só um, Carlos Sampaio (SP), sobreviveu. Não voltam Antônio Imbassahy (BA), que perdeu a reeleição, e todos os que tentaram o Senado: Bruno Araújo (PE), Jutahy Jr. (BA), Nilson Leitão (MT) e Ricardo Tripoli (SP).
Também caíram tucanos de grande força na bancada do partido e de relevância na própria Câmara, como Luiz Carlos Hauly (PR), relator da reforma tributária, Rogério Marinho (RN), da trabalhista, Marcus Pestana (MG), vice-presidente da comissão da reforma da Previdência, e Floriano Pesaro (SP), um dos principais especialistas em programas sociais do Congresso.
Se a bancada tucana de São Paulo caiu à metade, de 13 para seis, a do próprio partido despencou do terceiro para o nono lugar da Câmara. O PSDB deixa de ser um dos principais partidos para se embolar entre os médios – e sem suas mais conhecidas estrelas. No Senado, Aluizio Nunes Ferreira nem disputou, Cássio Cunha Lima (PB), vice-presidente da Casa, e Paulo Bauer (SC) ficaram de fora.
Na avaliação interna, essa devastação é resultado de uma sequência de fatores e erros: Aécio Neves enrolado até a alma na Lava Jato, a prisão do ex-presidente da sigla Eduardo Azeredo, o “apetite” de governadores tucanos, a incapacidade de perceber os recados das ruas desde junho de 2013, o desdém pela força das redes sociais. Além, é claro, do próprio processo político.
O impeachment livrou Lula do peso Dilma e tirou a crise do colo do PT e jogou no de Michel Temer. Logo, o impeachment garantiu o PT no segundo turno, apesar de tudo, da prisão de Lula, das investigações, do mensalão e do petrolão. Basta comparar os índices de Lula com Dilma no governo e com Dilma fora do governo.
Correndo por fora, Bolsonaro virou “o cara”, enquanto o PSDB, como sempre dividido, tentava escorar o governo Temer e garantir as saídas da crise econômica. O hoje favorito para a Presidência simplesmente não existia antes do impeachment, que salvou o PT, e das gravações de Joesley Batista/Rodrigo Janot, que trucidaram Temer e implodiram o PSDB.
Assim, a queda de Dilma e a PGR de Janot definiram, junto com as ruas, o segundo turno de hoje entre o capitão e o PT. E Bolsonaro, se vencer, vai dever a vitória a Janot, Joesley, o desgaste político e o esgotamento da polarização PT versus PSDB. Agora, é se preparar para a crise já contratada para 2019. A “Bancada da Sensatez” vai ter muito trabalho.