Eliane Cantanhêde: Lula livre?
A bola está no STF, mas a questão é se Lula vai liderar ou não a resistência a Bolsonaro
Lula livre ou Lula preso? Esse é o debate da semana, capaz de envelhecer prematuramente a confissão chocante de Rodrigo Janot e deixar em segundo plano a retomada da reforma da Previdência, a derrubada de mais um lote de vetos do presidente Jair Bolsonaro e o fica não fica do senador Fernando Bezerra na liderança do governo.
A história é razoavelmente simples: a legislação diz que presos com bom comportamento podem evoluir para o regime semiaberto depois do cumprimento de 1/6 da pena, como é o caso de Lula pelo triplex do Guarujá. Logo, já pode ser beneficiado pela progressão de pena e não será ilegal se a Justiça conceder a troca de Curitiba para São Bernardo.
Porém, nada com Lula é simples, tudo é complexo e questionável. Quinze procuradores pediram que o ex-presidente saia da prisão, entre eles Deltan Dallagnol, chefe da Lava Jato e apontado por petistas como líder da força-tarefa anti-Lula. E o que fazem Lula e seus advogados? Passam dias discutindo o que é mais conveniente politicamente para o preso, até Lula escrever uma carta “ao povo brasileiro”, à mão, num tom entre vitimista e heroico e desdenhando: “Não aceito barganhar meus direitos e minha liberdade”.
Por que os procuradores pediram a liberdade de Lula? E por que Lula deu de ombros e respondeu que não? Nem Dallagnol e seus colegas querem ser bonzinhos com Lula, nem Lula, ou qualquer outro preso, prefere ficar trancafiado a ganhar a liberdade. Principalmente com nova namorada. Aliás, que “barganha”? Ninguém barganhou nada. Cumpriu o tempo, sai.
O que está por trás, nos dois comportamentos de certa forma estranhos, é um cálculo que também é jurídico, mas principalmente político: os dois lados apostam suas fichas no Supremo. A liberdade em função de uma tecnicidade jurídica é diferente de uma vitória no plenário da alta Corte.
É ali, com os 11 ministros em tom grave e paramentados com suas capas pretas, que será o grande embate das forças pró-Lava Jato e anti-Lava Jato. E Lula, sempre ele, estará no centro dos debates, divergências e resultados.
Amanhã, o plenário já esquenta as baterias, concluindo o julgamento curioso, muito curioso, que devolve para a fase das alegações finais os processos em que os condenados reclamam que, como delatados, tinham o direito a falar após os delatores, em nome do “amplo direito de defesa”.
Para não virar uma festa, os ministros pretendem definir uma tal de “modulação”, mas não é nada fácil. Até ontem, a maior probabilidade era que só tivessem direito a rever suas condenações, logo, sentenças, aqueles cujos advogados já tivessem entrado previamente com pedidos nesse sentido. E não se descarta que a proposta da ministra Cármen Lúcia entre no bolo: a revisão só valeria para os que tiveram real “prejuízo” por não serem os últimos a falar. Como e quem vai avaliar o prejuízo? Em quanto tempo? Ninguém tem a menor ideia.
Depois, vem por aí uma enxurrada de julgamentos que parecem feitos sob medida para Lula. O primeiro deverá ser o pedido de suspeição do então juiz Sérgio Moro, pedido agora bastante reforçado com as revelações das conversas entre procuradores e entre eles e o juiz.
Só então, sentindo o terreno, viria o grande lance: derrubar a prisão após condenação em segunda instância. No caso de Lula, não mais pelo triplex, mas pelo sítio, que deverá ser, logo, nova condenação dele.
No mundo político, a questão é saber se Lula se anima e se tem força para liderar a resistência a Bolsonaro nas ruas. Quem lembra a reversão de expectativas na prisão de Lula aposta que, apesar de seus 30% nas pesquisas, ele não move mais as massas. Sai da cadeia, vai para casa e fica tudo como está. A ver.
Eliane Cantanhêde: Matar e morrer
Há um Fla-Flu macabro, mas as crianças e os policiais são vítimas do mesmo sistema
Em 2019, Ágatha é a quinta criança morta por bala perdida no Rio de Janeiro. Em 2018, foram 87 policiais mortos no País em serviço e em decorrência de confrontos nas ruas. Também em 2018, 104 policiais cometeram suicídio em meio a tragédias, tensão, medo, impotência diante da violência.
E o que faz o nosso Brasil tão varonil? Repete o Fla-Flu macabro da época do assassinato brutal da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em que as vítimas viram réus e até uma juíza espalhava as mais ofensivas, indignas e grosseiras fake news contra... a assassinada!
Criou-se novamente agora uma guerra insana pelas redes sociais. Defensores de Ágatha, das crianças mortas e suas famílias despedaçadas destilam ódio contra policiais. Do outro lado, grupos policiais, ligados à polícia ou simplesmente anacrônicos e intrinsecamente violentos têm a coragem – e a desumanidade – de relevar as mortes e desqualificar a dor das famílias.
Em que mundo nós estamos? Ou melhor, que país é esse? É tão difícil compreender e admitir que Ágatha, os policiais mortos, os que se suicidaram e todas as famílias e suas comunidades são vítimas? Além de respeito, merecem enorme solidariedade e um grito de todos os grupos pela paz, democracia, empatia, solidariedade. E pela responsabilidade do Estado.
Quais são as reais políticas públicas dos sucessivos governos federais, estaduais e municipais não apenas contra a violência, mas contra o mal maior do nosso país, a exclusão, a desigualdade social? Bolsas isso e aquilo da era do PT? Ótimo, mas só são paliativos, migalhas, não têm nada de estruturantes. Tanto que a miséria continua aí, à vista de todos, a céu aberto.
Liberar armas e munições a torto e a direito, como o presidente Jair Bolsonaro fez questão de inaugurar as medidas de seu governo? Como assim? A ciência, as pesquisas, os estudiosos dizem o oposto: não se combate crime e tráfico dando mais armas, mas sim fazendo o oposto: produzindo políticas entre as várias esferas da Federação justamente para reduzir as armas em circulação. Com inteligência e ação.
Ação não é sinônimo de uma operação atrás da outra nas áreas mais vulneráveis das cidades, como os bairros pobres e as favelas do Rio. A polícia entra, ataca, mata, morre. E tudo continua igual, sob aplausos do governador Wilson Witzel, cada vez mais ousado no estímulo à matança e na sua investida política para alçar voos mais altos, certamente imaginando: “Se deu Bolsonaro, por que não dar Witzel?”.
Como não há intenção, decisão e esforço para realmente intervir e melhorar a realidade, o jeito é remediar. Como? Matando. No caso dos policiais, matando e morrendo. É cômodo para poderosos sem escrúpulos, mas é uma tragédia para o País. E, como nunca é demais repetir, tragédias quase sempre se abatem sobre os mais fracos, as favelas, a base da pirâmide.
Soa assim: se o preço para garantir a segurança dos bairros ricos e das elites é matar uma Ágatha daqui, outra dali, o que fazer não é? É o preço! Trata-se do chamado “efeito colateral” de tratamentos graves de saúde e de guerras.
E quem reclamar e chorar, vai ter de ouvir os governos dando de ombros e dizendo que opositores querem “usar caixões como palanques”. É cruel, desumano, inacreditável, tanto quanto as estatísticas: nenhuma das mortes de crianças com tiros na cabeça, tiros pelas costas e em situações absurdas foi esclarecida, ninguém está sendo processado, foi condenado ou preso. E dificilmente será. Pobres crianças mortas, pobres policiais trucidados, pobres famílias, pobre Brasil.
Corrupção. De paulada em paulada, lá se vai a Lava Jato.
Eliane Cantanhêde: Barbárie
Quem mata uma menina pode matar as testemunhas e impor a versão de 'legítima defesa'
Há dor, indignação e desespero com a morte da pequena Ágatha, mas não se pode dizer que haja surpresa. Não só a insegurança do Rio de Janeiro continua desesperadora como há uma onda estimulada pelo discurso do presidente da República e do governador do Estado, no sentido de que tem de endurecer, custe o que custar. Mesmo que custe vidas de inocentes, inclusive de crianças (desde que pobres e negras, bem entendido). Para Wilson Witzel, “é apontar na cabecinha e pou”. Visava a bandidos, mas o diminutivo acaba sendo macabro.
Assassinada com um tiro pelas costas, Ágatha é a quinta criança morta neste ano no Rio em circunstâncias envolvendo policiais. Morre a criança, liquida-se a família, acaba-se de vez com o amor-próprio de uma comunidade inteira e multiplica-se a indignação no País todo e para além das fronteiras, mas... nenhum desses crimes foi de fato investigado, ninguém foi punido.
É nessa realidade que o Brasil quer aprovar o “excludente de ilicitude”, apelidado de “licença para matar”, porque livra a cara de policiais que saiam matando os outros? O ministro Sérgio Moro diz que, pelo projeto que enviou ao Congresso, isso só vale para “legítima defesa”, e em serviço, e não tem nada a ver com o caso de Ágatha. Mas os limites são tênues...
Radicalmente contra a medida, Nelson Jobim, o ex-presidente do Supremo e ex-ministro da Justiça e da Defesa, diz que só a discussão, em si, já “estimula a polícia a fazer, mais e mais abertamente, o que já faz”. Ele explica que seria “legitimar a agressão por parte do poder público e sem o controle da operação, que seria do próprio policial”. Ou seja, corresponderia a outorgar ao policial “um poder discricionário”, porque é ele quem controla a operação, a versão e o desfecho.
Outro ex-ministro do Supremo vai além: se o policial sabe que não corre risco, que ficará impune e acaba atirando sem pensar até em crianças na escola, brincando e passeando com pais e avós, esse policial pode pisar ainda mais fundo nesse acelerador macabro. Se mata tão facilmente uma menina com um tiro nas costas, que dificuldade teria para matar também as testemunhas? Basta alegar que elas o ameaçavam e foi tudo em legítima defesa. Sem testemunhas, qualquer história ganha asas. Ainda mais se o poder público autoriza, permite, até estimula. Barbárie.
Mistério. Ninguém entendeu quando Bolsonaro anunciou que iria jantar hoje com Trump em Nova York. Não estava na agenda, a cúpula do Itamaraty não sabia, o próprio Trump depois não confirmou. Aparentemente, não era bem um jantar dos dois na Casa Branca, mas um coquetel oferecido a mais de 190 chefes de delegação que estão nos EUA para a abertura da Assembleia-Geral da ONU. E não é na Casa Branca, costuma ser na residência do embaixador americano na cidade.
Aliás. O tratamento de Brasília aos embaixadores “banidos” passa dos limites. Bolsonaro está em Nova York, mas tanto o embaixador na ONU, Mauro Vieira, quanto o embaixador alterno, Fred Duque Estrada, estão no Brasil. O Itamaraty determinou que tirassem “férias”. Eles resistiram e exigiram que fossem chamados para “serviços provisórios na chancelaria”. E não aceitaram ficar fora da lista da delegação brasileira. Nem em NY estão, mas fazem parte da lista. Incrível.
Sórdido. Tal como o chanceler Ernesto Araújo ataca ambientalistas e defensores de direitos humanos como “esquerdistas” contra o Ocidente, um tal de Roberto Alvim, diretor da Funarte, acusou a classe teatral de “denegrir nossa herança judaico-cristã” e fez ainda pior, com um ataque direto a Fernanda Montenegro, que chamou de “sórdida” e “mentirosa”. Tempos difíceis.
Eliane Cantanhêde: Bolsonaro pós-cirurgia
Foco na economia e no Senado, com torcida para a ida à ONU não virar um (novo) vexame
O presidente Jair Bolsonaro usou a sua volta ao Palácio do Planalto, após a nova cirurgia, para uma série de anúncios que têm forte impacto na economia e podem ajudar um bocado a melhorar o humor nacional detectado nas pesquisas contra o governo e o próprio presidente. As medidas são para desbloquear verbas para os ministérios, continuar a abertura da economia e apressar a geração de empregos.
O presidente desbloqueou R$ 8,2 bilhões para ministérios apertados e ministros desesperados, principalmente para o MEC, a Economia e a Defesa, onde estão professores e estudantes em pé de guerra, Paulo Guedes precisando desesperadamente mostrar resultados e as Forças Armadas, fundamentais na mesa de operações do presidente.
Ele também sancionou a Lei de Liberdade Econômica, que vai ao encontro das promessas de campanha e das pesquisas de opinião, que mostram perda de apoio em praticamente todos os segmentos, mas crescimento num universo bem específico: o empresariado. Se nunca fala a palavra “social”, Bolsonaro é 100% pró capital e sempre defende menos Estado, mais iniciativa privada.
Por fim, a escolha de José Tostes Neto para a Receita Federal, substituindo Marcos Cintra, seguiu o perfil traçado pelo maior expert em Receita no País, Everardo Maciel, que comandou o órgão nos oito anos de Fernando Henrique Cardoso. Tostes é muito respeitado e benquisto pelos colegas. Poderá fazer fortes mudanças sem abrir uma guerra interna.
Com o exato perfil soprado por Maciel, ele é maduro, da carreira e bom conhecedor do tema e da engrenagem, mas... aposentado. Logo, é próximo o suficiente para saber o que se passa e longe o bastante de grupos e intrigas do dia a dia do órgão.
Bolsonaro, porém, embarca amanhã cedo para Nova York deixando várias interrogações. A maior delas é como ele vai se sair ao discursar na abertura da Assembleia-Geral da ONU, função reservada todos os anos ao presidente do Brasil. Há uma espécie de pânico generalizado, mas ele pode surpreender.
A intenção é fazer um discurso restrito aos 20 minutos regulamentares, focando numa palavrinha mágica – “soberania” – e fazendo uma defesa enfática da proteção ao meio ambiente, mas à maneira brasileira, ou melhor, à sua maneira. Nada, porém, que possa chocar o mundo, dar palanque para o francês Emmanuel Macron e animar novos confrontos. E ele deve focar também em família, costumes, ideologia, Ocidente e fazer referência à Venezuela.
Outro cuidado também é um alívio para quem teme vexames e grosserias de Bolsonaro no ambiente internacional: assim como a facada protegeu o candidato Bolsonaro de debates, exposição e erros crassos na campanha, a quarta cirurgia deve preservá-lo de debates, exposição e erros crassos em Nova York.
Serão só 24 horas, sem almoços, comilanças e reuniões bilaterais com presidentes de qualquer continente, com exceção de um jantar com o “Deus” Trump – que, aliás, Bolsonaro anunciou, mas não estava na agenda e era desconhecido pelo Itamaraty.
Por recomendação médica, o ainda convalescente Bolsonaro tem bom pretexto para chegar, dormir, ler o discurso – escrito com Ernesto Araújo, Eduardo Bolsonaro e Filipe Martins – e voltar. Em contrapartida, não há nenhum indício de que presidentes estrangeiros façam a desfeita da se retirar do discurso ou algo dessa gravidade.
O presidente estará também voltado para questões domésticas: a substituição do líder do governo no Senado, a sanção e os vetos da nova lei eleitoral e a votação de Eduardo no Senado. A aprovação de Augusto Aras para a PGR não preocupa, mas a de Eduardo virou o centro das atenções nacionais – pelo menos nos palácios da Alvorada e do Planalto, além do avião presidencial. Aí, a “velha política” está a pleno vapor.
Eliane Cantanhêde: Alvo é líder do governo
Retaliação da PF? Muito improvável, mas versões são muito mais vistosas do que fatos
A Operação Turbulência, da Polícia Federal, com busca e apreensão em endereços e até no gabinete do líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB), vem na pior hora para o Planalto e é lenha na fogueira das teorias conspiratórias. Retaliação da PF? Improvável, mas versões são sempre mais vistosas do que fatos.
O líder foi atingido na reta final da votação da reforma da Previdência no Senado e o início da tramitação da reforma tributária, que tem tudo para ser uma pedreira e criar mais uma frente de batalha entre Executivo e Legislativo. Sem falar na aprovação de Augusto Aras para a PGR e, principalmente, de Eduardo Bolsonaro para a embaixada nos EUA.
O presidente Jair Bolsonaro se reuniu com o ministro Sérgio Moro, fora da agenda, e especula-se se foi, no mínimo, para saber o tamanho do estrago no líder ou, no máximo, para assuntar se houve “segundas intenções” da PF, alvo de críticas públicas do presidente.
A primeira questão é se as acusações são “só” sobre caixa 2 ou se há propina escorrendo para bolsos e contas no exterior, até porque a PF opinou a favor das buscas e a PGR, contra. É constrangedor para o Congresso e mais uma decisão difícil para Bolsonaro. Não dá para ignorar, mas também não dá para jogar o líder logo aos leões. Ele tem sido leal e bom articulador, numa hora de muita negociação.
A operação contra o líder ocorre também em meio a uma avalanche de críticas ao Congresso pela nova lei eleitoral. As idas e vindas da lei, que bagunça ainda mais as eleições brasileiras, serviram para alguma coisa muito útil: a identificação de caras, nomes e vozes no Senado dispostos a remar contra a corrente corporativa e ouvir a irritação e os alertas da opinião pública.
Enquanto a Câmara se uniu em torno de medidas que dificultam a transparência e a fiscalização do processo eleitoral, o Senado se dividiu. De um lado, o presidente, Davi Alcolumbre, e os velhos conhecidos de sempre, inclusive do Centrão. De outro, a aliança de uma turma nova com uma turma antiga, mas que tenta fazer diferença.
Entre os senadores mais experientes que articularam a derrota do projeto permissivo da Câmara se destacam Tasso Jereissati e Antonio Anastasia, do PSDB, Randolfe Rodrigues, da Rede, e Alvaro Dias, do Podemos, junto a nomes do Cidadania e do PSL.
O embrião desse grupo surgiu na disputadíssima eleição para a presidência do Senado, quando eles se uniram contra o senador Renan Calheiros. Primeiro, cada um teve seu candidato em oposição a Renan. Depois, uniram-se todos pela vitória do ilustre desconhecido Alcolumbre, que oscila, ora com a turma da resistência, ora ao lado daqueles que trabalham para manter tudo como está. Ou até piorar.
Na votação da nova lei eleitoral, agora nas mãos de Bolsonaro, para sanção ou vetos, Alcolumbre pendeu para os velhos líderes e perdeu. O Senado derrubou o projeto da Câmara, onde os líderes insistiram no erro e retomaram as propostas originais.
O grupo de resistência acompanha a disposição de Randolfe Rodrigues e Alvaro Dias de questionar no Supremo a constitucionalidade das mudanças na lei eleitoral, como a anistia a multas por desvios de campanhas e o uso do fundo eleitoral para a compra de sedes de partidos e pagamento de advogados para os suspeitos de crime eleitoral, além de afrouxar a Lei da Ficha Limpa e facilitar o caixa 2.
Em defesa da lei e do fundo eleitoral de R$ 1,7 bilhão, o deputado Rodrigo Maia voltou a condenar a “criminalização da política”. Mas, caro deputado, quem é culpado pela má imagem dos partidos, dos políticos e da própria política? Os jornalistas e especialistas que criticam uma lei assim, ou os senadores e, neste caso, os deputados que a aprovam?
Eliane Cantanhêde: Bolsonaro em 2022?
Partidos se esfarelam, mas força da inércia empurra Bolsonaro agora e os evangélicos depois
O presidente Jair Bolsonaro deixou em segundo plano o núcleo militar e o núcleo ideológico do seu governo para investir decisivamente na sua fiel base evangélica, dentro e fora do Congresso Nacional. Entretanto, seu maior aliado para 2022 não é nenhum dos três segmentos, são o vazio de lideranças políticas e a ausência de uma articulação concreta do centro.
O Brasil nunca foi e continua não sendo um país de extremos, nem à esquerda nem à direita. Com toda sua biografia, seu carisma e o enraizamento do PT, Lula perdeu três vezes e só chegou lá após uma real guinada ao centro. A grande pergunta, hoje, é qual é e onde está o centro.
A única liderança de peso a dar cara e voz aos setores moderados e buscar uma alternativa entre o lulismo e bolsonarismo é Fernando Henrique Cardoso, do alto dos seus 88 anos e de uma posição acima de partidos, paixões e pretensões pessoais, políticas e eleitorais. Mas ele encarna a moderação, o bom senso e a defesa da democracia, não projeta o futuro.
Foi-se o tempo dos grandes líderes, na política, na vida congressual, na Igreja Católica, nos sindicatos, na academia, nas carreiras, no empresariado, nas Forças Armadas. Aqueles que abriam a boca e o País parava para ouvir. Ulysses Guimarães, Dom Ivo Lorscheiter, Barbosa Lima Sobrinho, Antônio Ermírio de Moraes e tantos outros que viabilizaram grandes mudanças e capitanearam a Constituinte de 1988.
Foi nesse ambiente, com grandes nomes e essa efervescência de ideias, que o próprio Fernando Henrique foi emergindo como candidato à Presidência e venceu duas vezes, consecutivamente, em primeiro turno. Qual o ambiente hoje? O que é possível florescer?
O grande líder das esquerdas está preso, enquanto seu partido não consegue esboçar nenhum programa, nenhum futuro, nenhuma articulação com as demais forças políticas, refém de duas palavras que não dependem de partidos e não levam a nada: Lula livre.
O grande líder da direita é um arrivista, que se contentou em passar quase três décadas no anonimato do “baixo clero” do Congresso e, ao subir a rampa do Planalto, se ocupa em promover recuos nos avanços da sociedade e se delicia jogando dúvidas sobre o futuro da democracia.
E onde está o PSDB, que poderia liderar o centro e comandar o debate político no País? Não está nem aí, com seus ex-governadores atingidos pela Lava Jato, João Doria fazendo jogo solo, os velhos líderes fora do tabuleiro e os novos aturdidos e perdidos, em meio a uma divisão paralisante.
Talvez seja a hora de um grande freio de arrumação. Fim do PT, fim do PSDB, uma nova reaglutinação das forças que foram capazes de sobreviver, enquanto o PSL se desfaz em pedaços, desgarrando-se de Wilson Witzel no Rio, resvalando para Doria em São Paulo, insurgindo-se contra Flávio Bolsonaro no Senado.
Com toda essa balbúrdia e a falta de alternativas, quem lucra é quem já está no poder, pela força da inércia: Jair Bolsonaro. As manifestações dele são chocantes, os filhos aprontam coisas incríveis, alguns ministros (vocês sabem quais) são inacreditáveis e, pior, a recuperação da economia continua não dando os ares de sua presença, mas quem desponta para galvanizar a reação a tudo isso? Por enquanto, há um campo livre para a reeleição de Bolsonaro em 2022, contra Doria, Ciro Gomes, alguém, qualquer um, do PT. E não para por aí.
Nessa toada, Bolsonaro não só se reelege como se prepara para fazer o sucessor. Pode até tentar lançar um filho (se lançou para a principal embaixada, por que não para o Planalto?). Como plano B, os evangélicos. Têm muito, muito, muito dinheiro, e TV, rádio, palanque em qualquer bairro do País e rebanho. Só falta apoio político forte. Que tal o do próprio presidente da República?
Eliane Cantanhêde: Big brother?
Controle de dados pode servir, além da defesa de aliados, para ataque de adversários?
O mais novo temor em Brasília é que a Lava Jato original possa ser trocada por uma Lava Jato particular, em que os dados não seriam mais compartilhados por uma força-tarefa de juízes, procuradores, auditores e delegados para o combate à corrupção, mas, sim, centralizados num único gabinete: o do presidente da República.
Quando se questiona essa investida simultânea na PF, no antigo Coaf e na Receita, suspeita-se que tudo isso é para a proteção de filhos, parentes, amigos e poderosos dos três Poderes. Que tal olhar para o outro lado da moeda? E se, em vez de ser exclusivamente de defesa, uma intervenção nas instituições de investigação servir também para o ataque?
Em tese, já imaginaram o que pode representar a PF nas mãos de um filho do presidente, eventualmente escrivão de polícia; um secretário da Receita Federal disposto a mudar tudo e a centralizar os dados e investigações para dividi-las com o poder; um chefão do Coaf que admita compartilhar informações sobre movimentações financeiras com o Planalto?
Significa que, sempre em tese, uma única pessoa, o presidente da República – atual ou futuro – teria a sua disposição um mapeamento detalhado da vida pessoal, da folha policial e dos dados fiscais e bancários de todos os seus desafetos de qualquer área. Além de defender o amigo X, ele poderia facilmente atacar o adversário Y.
Mesmo antes de centralizar as escolhas do novo procurador-geral da República e o comando da PF, Receita e Coaf, o presidente Jair Bolsonaro já usou publicamente, e com seu próprio viés, informações conhecidas contra, por exemplo, Luciano Huck, João Dória, jornalistas. E se tiver acesso a dados de ministros de tribunais, deputados, senadores, governadores, funcionários, cidadãos e cidadãs? Além de divulgar, ficaria tentado a usar esse arsenal para amedrontar quem ousar confrontá-lo ou meramente questioná-lo?
É interessante a aproximação de Bolsonaro, seus filhos, seu chanceler e outros ministros com o autoproclamado guru da direita internacional, Steve Bannon, que foi estrategista da campanha presidencial de Donald Trump e depois demitido por ele da Casa Branca. Entre outras coisas, Bannon é especialista em coleta, análise e uso político de dados de cidadãos.
Aliás, quem gosta de ficção vai ficar fascinado pelo documentário “The Great Hack” (“Nada é Privado: o escândalo da Cambridge Analytica”), que confirma o quanto a realidade anda superando a imaginação e as construções mais mirabolantes dos ficcionistas. O 007 é pré-histórico, quer dizer, pré-internet.
Em resumo, para não dar “spoiler”, ali é contada como foi construída a vitória de Trump, ou melhor, a derrota de Hillary Clinton nos EUA, e como o Reino Unido conseguiu cair na armadilha do Brexit. Primeiros ministros vêm e vão, sem recuos e sem avanços – sem saída. E como se chegou a isso? Com o uso dos dados e mentes das pessoas, identificando e focando nas menos convictas – logo, mais suscetíveis a propagandas maciças e às demoníacas fakenews. Por trás de tudo, a onda mundial da extrema direita. Detalhe: Bolsonaro aparece ligeiramente no filme.
Na era PT, ficamos roucos de denunciar o aparelhamento de órgãos e estatais em favor de um partido, um grupo político e, finalmente, um esquema sistêmico de corrupção. Neste primeiro ano de Bolsonaro, surgem dúvidas sobre o aparelhamento, se não é mais por um partido, mas por um projeto de poder com conexões internacionais e centralizado num presidente que, vira e mexe, dá uma cutucada na democracia.
Com instituições e dados centralizados, sob o risco de uso na defesa de aliados e no ataque de adversários, ou de meros críticos, pode-se criar a mais destrutiva arma política: o medo. É só suposição, mas não é pura ficção.
Eliane Cantanhêde: Protejam a democracia!
Por que é preciso clamar por democracia a essa altura da história brasileira?
Em seu último pronunciamento no STF como procuradora-geral da República, Raquel Dodge fez um “pedido muito especial” aos ministros, à sociedade civil e a todas as instituições da República: “Protejam a democracia brasileira, tão arduamente erguida!”.
Pode parecer um tanto intempestivo. Apelo pela democracia? Em pleno 2019? Com as instituições funcionando plenamente? Pois é. Mas Raquel não falou por falar, apenas verbalizou uma preocupação que percorre corredores e gabinetes.
O presidente da República faz loas a ditadores sanguinários do Brasil e do exterior. Seu filho 03, o deputado e candidato a embaixador Eduardo Bolsonaro, já declarou que, para fechar o Supremo, “basta um tanque e um cabo”. O 02, vereador licenciado e internauta Carlos Bolsonaro, chocou a opinião pública, o Legislativo e o Judiciário ao postar que, “por vias democráticas, a transformação que o Brasil quer” (seja lá o que for isso) não vai acontecer na velocidade que ele gostaria.
E o que dizer da foto de Eduardo ostentando desafiadoramente uma pistola na cintura ao lado do presidente, numa cama de hospital? Foi um recado. Que recado? Para quem?
Enquanto os irmãos falam, escrevem, fazem ameaças veladas e ocupam-se com “bravatas”, como classificou o general Santos Cruz, o primogênito, senador Flávio Bolsonaro, trabalha habilidosamente num produtivo “toma lá, dá cá” com Judiciário, Câmara e Senado.
O presidente do STF, Dias Toffoli, atende pedido da defesa de Flávio e suspende todas as investigações e processos com base no falecido Coaf sem autorização judicial. Flávio retribui operando para abafar a CPI da Lava Toga, apelido para uma comissão que – indevidamente, aliás – pretende investigar e expor ministros do Supremo, inclusive o próprio Toffoli.
Ao redor disso, a cúpula da Polícia Federal continua sendo alvo e a da Receita Federal já foi abatida. Marcos Cintra, bolsonarista de primeira hora, caiu da Secretaria da Receita por insistir em ressuscitar a CPMF – que Jair Bolsonaro combateu nos anos FH, nos anos Lula, na campanha, na transição e agora durante seu governo. Logo, caiu por um motivo forte. Mas não o único.
Cintra caiu, mas a ideia de recriar o “imposto do cheque” sob nova roupagem não morreu. O ministro Paulo Guedes vai deixar a poeira baixar e mudar o discurso, mas cobrando do presidente da República, da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre: “Se não querem a nova CPMF, que opção vocês me dão para compensar a desoneração da folha de pagamento e assim gerar empregos?”. Até lá, a CPMF continua na pauta.
O que os três Poderes querem mudar mesmo é a desenvoltura de auditores em investigar pessoas que se sentem “ininvestigáveis”. Enquanto eram ministros do Supremo e parlamentares federais, ainda ia. Mas, quando isso chegou a parentes de Bolsonaro e resvalou em Flávio, a coisa mudou de figura. Definitivamente, não pode. Logo, a CPMF fica, mas a Receita muda e fica mais comportada.
Se o Brasil e o mundo já estão perplexos com as falas de Bolsonaro e seus filhos sobre democracia e meio ambiente, o que dizer do discurso do chanceler Ernesto Araújo no Heritage, um “think thank” conservador dos EUA, sobre os riscos do “climatismo” para o Ocidente? A diferença é que a fala de Carlos foi levada a sério e rechaçada, a de Ernesto virou piada na imprensa americana, às vésperas de Bolsonaro abrir a Assembleia Geral da ONU.
Aliás, Carlos ficou furioso com a repercussão do seu desdém pela democracia e acusou os jornalistas de “canalhas”. E o vice-presidente, o general Santos Cruz, os presidentes da Câmara e do Senado e os cidadãos estupefatos são canalhas?
Eliane Cantanhêde: É negociar ou negociar
Treino é treino, jogo é jogo. Com a pauta pesada no Congresso, o jeito é negociar
Passada a fase inicial da relação Planalto-Congresso, com a Câmara concentrada na reforma da Previdência, é agora que começa o verdadeiro jogo político do governo Jair Bolsonaro. As pautas legislativas dos ministérios, do Planalto e do próprio Bolsonaro são muitas e arriscadas, exigindo grande capacidade de negociação.
São os vetos à Lei de Abuso de Autoridade e à gratuidade de bagagens em voos, além das sabatinas de Augusto Aras para a PGR e de Eduardo Bolsonaro para a embaixada em Washington. Sem contar a fila de embaixadores no limbo: saíram de um posto e não chegaram a outro.
São pautas difíceis, mas a questão mais emergencial é a pindaíba do governo. Com falta de dinheiro para tudo, há um risco de apagão, ou de “shutdown”, como preferem os economistas. E quem pode resolver? O Congresso, é claro. Mas não de mão beijada.
A expectativa é de Aras passar fácil pela CCJ e pelo plenário do Senado, apesar de enfrentar fortes reações na própria casa, o Ministério Público, e nos bunkers de Bolsonaro na internet. Em geral, os políticos de diferentes tendências não têm nada de impeditivo contra ele, que, de quebra, não é exatamente um defensor dos métodos da Lava Jato, muito pelo contrário.
A mesma facilidade, porém, não deverá se repetir para a votação do “filho 03” e um sinal inequívoco disso é a demora e a reticência do papai Jair em enviar o pedido para o Senado. É muito raro, quase impossível, um candidato a embaixador ser derrubado no Senado. Já imaginaram o filho do presidente não passar? Uma derrota e tanto.
A votação dos 19 vetos da Lei de Abuso de Autoridade é outra pedreira, inclusive porque a base e o próprio partido do presidente, o PSL, estão divididos. É aquela barafunda: há de bolsonaristas a petistas a favor da Lava Jato e contra a lei, há de bolsonaristas a petistas contra a Lava Jato e a favor da lei. E com uma agravante: a queixa de que os vetos privilegiam policiais – base eleitoral e parlamentar do presidente –, em detrimento de juízes e procuradores. A melhor aposta é que Bolsonaro não vá escapar de uma derrota. Resta saber o tamanho e a gravidade dela.
A gratuidade das malas nem é prioritária, mas, de um lado, mobiliza as empresas aéreas e, de outro, tem apelo na classe média, que foi decisiva na eleição de Bolsonaro e continua sendo para segurar a erosão de sua popularidade – que não anda nada bem.
Tudo isso tem mais simbologia e é disputa de poder e teste de força política, mas a questão central mesmo é como dar algum respiro para o governo neste momento de economia a passos de tartaruga e Estado quebrado. Corte de bolsas de estudo, suspensão de pesquisas, falta até de papel higiênico nas universidades, redução de expediente nas Forças Armadas, projetos interrompidos, ministérios parando e ministros choramingando... Algo precisa ser feito e, seja o que for, depende do Congresso Nacional, que foi tão maltratado pelo presidente e agora é tão fundamental para ele. Aliás, para qualquer presidente.
Na mesa, estão algumas possibilidades, todas difíceis e polêmicas, como revisão do teto, pelo qual os gastos públicos só podem subir pela inflação de um ano para outro. Mexer nessa medida moralizante seria péssimo, mas Bolsonaro chegou a admitir e depois “desadmitiu”.
Outras opções: mexer na meta fiscal ou na “regra de ouro”, que proíbe o governo de contrair dívida para pagar custeio, inclusive folha de pagamento. Em último caso, se nada funcionar, o jeito será aprovar um crédito suplementar.
Quem pegou esses touros a unha foi o general e ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, deixando, aliás, uma pergunta no ar: o que anda mesmo fazendo Onyx Lorenzoni, da Casa Civil?
Eliane Cantanhêde: Metralhadora giratória
A grande dúvida é aonde Bolsonaro quer chegar e para onde isso vai nos levar
Quanto mais atordoado, mais o presidente Jair Bolsonaro dá asas ao que há de pior na sua personalidade e mais amplia suas frentes de batalha, internas e externas. O ambiente é de perplexidade com o presente e de dúvidas quanto ao futuro, enquanto vai ficando gritante o fosso entre um presidente que só cria problemas e um Congresso afinado com a área econômica para resolver problemas.
Depois de França, Alemanha, China, mundo árabe, Argentina, Cuba, Noruega, Dinamarca e mais uns tantos, Bolsonaro desvia sua metralhadora giratória para o Chile, onde uniu governo e oposição, direita e esquerda, contra ele. A imagem brasileira no exterior se deteriora na mesma proporção da popularidade do presidente.
Bachelet é presidente eleita e reeleita no Chile, tem biografia admirável, é filha de um militar respeitável e atual alta-comissária para Direito Humanos da ONU. Engana-se Bolsonaro ao dizer que se trata de um carguinho para quem não tem o que fazer. Ao contrário, tem prestígio e não é para qualquer um – ou uma.
O ataque a Bachelet, inoportuno em si, carrega agravantes. O pior é o conteúdo. Assim como remexeu a profunda dor do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, cujo pai foi torturado até a morte e é listado como “desaparecido”, Bolsonaro comemora o fato de o pai de Bachelet, de alta patente, ter sido torturado e morto pela ditadura chilena, que depois torturou também sua filha.
Os “crimes” do general Bachelet – “comunista”, segundo Bolsonaro – foram patriotismo, legalismo, respeito à democracia e coragem pessoal para reagir a um golpe de Estado que se transformou no circo dos horrores, como se viu. Bem, os ídolos do presidente brasileiro são Brilhante Ustra, Pinochet e Stroessner. (Sem falar em Trump, caso bem diferente.)
Outro agravante é que, ao atingir Bachelet, Bolsonaro mexeu com os brios e as cicatrizes do Chile e empurrou o presidente Sebastián Piñera para o campo de batalha. Em pronunciamento formal, com a bandeira do país, ele declarou que não concorda, em absoluto, com o tratamento dispensado a sua antecessora (e, diga-se, adversária). E quem é Piñera? Inimigo? Esquerdista? Não, simplesmente um presidente de centro-direita que vinha tentando mediar o conflito Bolsonaro-Macron. Logo, Bolsonaro acaba de perder uma peça importante na sua mesa de operações de guerra.
Por fim, Bachelet é alta-comissária da ONU e o presidente disse que vai abrir a assembleia-geral da organização no dia 24, mesmo após a cirurgia deste fim de semana. Ele, portanto, se encarregou de desmatar as boas-vindas e de queimar o clima para seu discurso. Autossabotagem. Já imaginaram se houver boicote? Os diplomatas brasileiros nem conseguem imaginar.
No front interno, o alvo é Sérgio Moro. O presidente parece sentir um prazer mórbido em manipular publicamente seu ministro, que continua sendo a estrela do governo, mas perde em imagem e ganha a desconfiança de seus velhos aliados de Lava Jato, ao assistir passivamente à fritura grosseira do delegado Mauricio Valeixo, diretor-geral da PF.
Valeixo é servidor público, com uma cultura e uma lógica muito diferentes do economista Joaquim Levy. Atacado por Bolsonaro, Levy jogou a toalha de cara. Atacado uma, duas, três vezes, Valeixo reage com a altivez que sua instituição requer de seu diretor e joga a bola para Moro, seu chefe direto, que só tem duas alternativas: ou demite o companheiro e se demite da Lava Jato, ou sai junto com ele de onde, segundo muitos, jamais deveria ter entrado.
Uma boa pergunta é o que Bolsonaro e o Brasil ganham com tantas guerras ao mesmo tempo, mas essa tem resposta na ponta da língua. A grande, enorme, dificílima questão é aonde tudo isso vai parar. Ou melhor: para onde vai nos levar.
Eliane Cantanhêde: Papai Noel existe
Em vez de brigar com os dados e só ouvir os áulicos, Bolsonaro devia ouvir mais Terezas Cristinas
Quando os jornalistas perguntaram ontem ao presidente Jair Bolsonaro sobre a preocupante erosão de sua popularidade, com aumento bem fora da curva dos índices de rejeição, ele voltou-se para um deles e desdenhou, com seu jeitão “simples e transparente”: “Você acredita em Papai Noel?”.
Não, presidente, acreditamos nas pesquisas de opinião, como no IBGE, Inpe, Ibama, Fiocruz, ICMBio, Ancine, na ciência, nas universidades, na educação que vai além do ensino, na diplomacia dos bons modos, nos direitos humanos e, claro, na defesa do meio ambiente.
Todos os presidentes, em diferentes épocas, reagem mal a dados negativos sobre seu governo e sua popularidade e preferem se trancar nos palácios, ouvir os áulicos cheios de elogios ou circular em ambientes francamente favoráveis – como os militares e evangélicos, no caso de Bolsonaro. É uma fuga da realidade. Quem mais perde é o próprio presidente, além do seu governo.
Melhor do que filhos, generais, assessores e a legião de “amigos” que frequentam palácios e melhor do que multidões selecionadas, seria o presidente chamar políticos experientes e de bom senso, com coragem e independência, para lhe dizer as verdades que ele não gosta de ouvir e os outros não admitem falar.
Um exemplo é a ministra da Agricultura, Tereza Cristina. Na crise doméstica e internacional das queimadas, ela jogou um balde de serenidade para apagar as labaredas reais e de comunicação. Enquanto outros atiçavam o fogo e as guerras do presidente, ela lembrou os danos que isso causaria à imagem e aos produtos brasileiros e sugeriu: em vez de botar mais lenha na fogueira, por que não apresentar soluções práticas e agir?
Bolsonaro mudou de tom, convocou um gabinete de crise, chamou as Forças Armadase o governo passou a anunciar providências. Lucraram todos, principalmente ele e a própria Amazônia. E a guerra particular contra Macron? Bem, é outra história, que foge à alçada de Tereza Cristina. Ela não pode tudo.
É preciso que mais Terezas Cristinas se aproximem do presidente, fazendo um contraponto aos que só dizem amém e debatendo os dados do Datafolha com seriedade e vontade de captar os recados, aprender e corrigir. Pela pesquisa, a rejeição a Bolsonaro disparou para 38%, um recorde absoluto para presidentes nessa fase de mandato.
Pela primeira vez, a rejeição (ruim e péssimo) ultrapassou o regular e a aprovação (bom e ótimo), quebrando o equilíbrio anterior entre os três. Mas o mais importante é que essas conclusões não surpreenderam os analistas. Logo, não deveriam surpreender o Planalto e muito menos serem rechaçadas pelo presidente.
É só enumerar os absurdos que Bolsonaro diz, como a história do cocô, ou faz, como indicar o próprio filho, o “garoto”, para a principal embaixada do planeta. E o “herói” Brilhante Ustra? E remoer a dor do presidente da OAB diante da tortura e “desaparecimento” do pai? E as picuinhas contra a imprensa? E a manipulação, até emocional, de Sérgio Moro? E o ex-Coaf, a Receita, a PF? A cada uma delas, é natural que as pessoas se espantem e que a popularidade caia. Só o presidente e seu entorno poderiam achar que esse conjunto não afetaria sua popularidade.
Bolsonaro não admite que está errando. Ao contrário, dá de ombros, diz que ele “é assim mesmo” e tenta capitalizar a imagem de “transparência” e “simplicidade”. Como se vê, não está funcionando, mas o presidente, em vez de frear, mete o pé no acelerador, sob aplausos de quem parece que está ajudando, mas só está pensando no seu carguinho e em se manter nas graças do presidente. Assim como Bolsonaro muitas vezes não ajuda e só atrapalha seu governo, essa posição cômoda de muitos do governo não ajuda Bolsonaro, só piora as coisas.
Eliane Cantanhêde: Trump? Só Trump?
Quem está de olho na Amazônia e oferece ajuda para ter ‘retorno’? Só a Europa? Os EUA não?
Depois de isolar o Brasil do mundo desenvolvido, com sua retórica virulenta e desprezo à preservação do meio ambiente e às comunidades indígenas, o presidente Jair Bolsonaro tenta dar a volta por cima criando um cerco à França, uma das mais sólidas democracias do Ocidente.
Já telefonou para os líderes dos EUA, Japão, Espanha e Alemanha e recebeu em Brasília o mediador do seu conflito com o mundo, o chileno Sebastián Piñera, mas, obviamente, sua maior investida e grande aposta é o ídolo da família, Donald Trump.
Sem apoio dos EUA o G-7 não decide e não faz nada. Logo, Trump é meio caminho andado para neutralizar Macron e, assim, Bolsonaro marcou um gol quando as portas da Casa Branca se abriram para encontro fora da agenda de Trump com o deputado Eduardo Bolsonaro, candidato a embaixador do Brasil em Washington, e o chanceler Ernesto Araújo.
O presidente americano é cabo eleitoral de Eduardo, depois de endossar o pedido de agrément de próprio punho. Ninguém confirma, nem desmente, mas é razoável supor que Bolsonaro aproveitou o telefonema para Trump, no pico das queimadas da Amazônia e da crise com o G-7, para pedir: “Ô, Trump, recebe o garoto aí! Ele tá precisando de uma força pra passar lá no Senado!”
A visita teve duplo objetivo. Dar uma forcinha para Eduardo, que encontra forte resistência da opinião pública e dos senadores para um salto tão absurdamente grande, e arrancar algum compromisso dos EUA em relação à Amazônia, para efeitos políticos internos e externos. Que compromisso? Dinheiro? Equipes? Equipamentos? Ou um chega pra lá público em Macron?
E a coisa não é assim tão simples, depois de Bolsonaro, o pai, ter praticamente rechaçado R$ 300 milhões da Alemanha e da Noruega no Fundo da Amazônia e feito exigências e insinuações para aceitar a “esmola” de US$ 20 milhões (mais de R$ 80 milhões) dos europeus.
“Macron promete ajuda de países ricos à Amazônia. Será que alguém ajuda alguém – a não ser uma pessoa pobre, né? – sem retorno? Quem é que está de olho na Amazônia? O que eles querem lá?”, provocou o presidente brasileiro. Será que Trump, e só Trump, ofereceria ajuda sem “retorno”? Será que só os europeus estão sempre de olho na Amazônia? Os EUA nunca? O que os americanos querem lá?
Duas curiosidades: o americano deu longa entrevista a jornalistas após o encontro com os brasileiros, mas não disse uma palavra sobre Eduardo, Jair, Brasil, Amazônia. Só pensava, e falava, sobre o furacão Dorian. E as fotos só saíram no dia seguinte.
Desse jeito, a seca vai passar, as queimadas vão apagar e nem o Brasil destina parte dos milhões do fundo da Petrobrás, nem os europeus mandam seus euros, nem Trump anuncia seus dólares para salvar as florestas, enquanto Bolsonaro mantém, firme, o discurso da soberania e a tese de que os europeus (só os europeus...) querem mesmo nos roubar a Amazônia.
As queimadas, aliás, começam a perder espaço para a economia, depois que o risco de recessão técnica foi superado pelo crescimento de 0,4% no último trimestre e a Pnad confirmou a tendência de recuperação de empregos. Agora é monitorar a mais nova crise da Argentina e desfazer os nós do Orçamento de 2020.
O dinheiro acabou, o setor público é o grande entrave para a recuperação econômica e só há uma saída: assim como está aprendendo a negociar com as grandes democracias, Bolsonaro vai ter de finalmente aprender a negociar com o Congresso, por onde passeou por 28 anos.
Ou revisão do teto de gastos, ou fim da “regra de ouro” ou crédito suplementar de R$ 367 bilhões. Senão, adeus investimentos e Bolsonaro vai ter de cortar salário de servidor. Como? Só Deus sabe. Atirar em Macron e fazer reverências a Trump não vão dar um jeito nisso.